Da locomotiva à máquina de escrever.

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Sergio Ricardo do Amaral Gurgel e José Sergio do Amaral Gurgel

Da locomotiva à máquina de escrever Memórias sobre o escritor Amaral Gurgel

Brasil | Portugal | Angola | Cabo Verde


Vivesse Amaral Gurgel num paĂ­s em que a literatura popular radiofĂ´nica fosse respeitada e estaria (como estĂĄ) entre os nomes principais, merecendo o acatamento intelectual de seu trabalho. Artur da Tavola 05/01/1983

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Meu filho que tem meu nome, a dor que às vezes consome pedaços da nossa vida some mais rápido que vem, dói muito menos também... e só nos deixa a ferida. Ela logo cicatriza e a vida nem avisa do dia do esquecimento. A gente vive outra história e em perder a memória se esquece do sofrimento. Não importa o que aconteça, mesmo que você não mereça terá, ao chegar a minha idade, a certeza que o criamos e os filhos que nós amamos foram só felicidade. Não chore o que não se chora porque amar não tem hora nem o fim nos dá aviso. Com tudo que conquistei, com todos que já amei, hoje é de você que eu preciso. Do teu pai. José Sergio do Amaral Gurgel

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Ao meu querido pai, que conhece as minhas maiores virtudes, bem como os meus piores impulsos, mas ainda assim gosta de mim, ficando ao meu lado nos momentos mais difíceis, quando soube me ensinar algumas lições de vida que não têm preço. Obrigado por me convencer de que o amor existe, e não é aquele que dorme ao nosso lado enquanto a carteira faz barriga de tão cheia, mas o que nos acolhe na dor, na aflição, no desespero, no desamparo, na fome, nas lágrimas e na desilusão. Se estou vivo para escrever este livro, devo tudo a você. Te amo, meu pai. Sergio Ricardo do Amaral Gurgel

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NOTA DO AUTOR

Francisco Ignácio do Amaral Gurgel foi o maior novelista brasileiro de todos os tempos. Precursor da radionovela, Amaral Gurgel, como ficou conhecido, escreveu mais de trezentas obras para o rádio e televisão, além de tantas outras para o teatro, não obstante a morte prematura de seu pai o tenha obrigado a deixar a escola no terceiro ano do ensino fundamental. Da locomotiva à máquina de escrever foge ao padrão das biografias tradicionais, comumente repleta de datas e minuciosas descrições sobre as experiências vividas pela celebridade homenageada. Trata-se de um livro de memórias escrito a quatro mãos por dois dos seus maiores fãs: José Sergio do Amaral Gurgel e Sergio Ricardo do Amaral Gurgel, filho e neto do escritor. Nesse aglomerado de saudosas recordações, além da história das radionovelas brasileiras, o leitor encontrará os mais íntimos relatos, ilustrados por raras fotografias e recortes de matérias divulgadas pela imprensa, a respeito desse gênio enigmático da literatura nacional. Com uma linguagem peculiar, os autores, que primeira vez se aventuram a escrever sobre um tema estranho às suas atividades profissionais, conseguem arrancar risos e lágrimas em breves narrativas, sem deixar de lado os registros históricos que marcaram uma época de intensa produção cultural no país. Por essa razão, o livro é indicado não apenas para os apaixonados pela boa leitura,

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SUMÁRIO

Dedicatória . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 13 Nota do autor . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 15 Prefácio . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 19 CAPÍTULO 1: Uma estrada de ferro. . . . . . . . 23 CAPÍTULO 2: Campinas 53. . . . . . . . . . . . 33 CAPÍTULO 3: Cinquenta quilos de novela. . . . . 47 CAPÍTULO 4: Recortes. . . . . . . . . . . . . . 57 CAPÍTULO 5: Contos de bastidores. . . . . . . . 63 CAPÍTULO 6: Cenas dos últimos capítulos. . . . 75 CAPÍTULO 7: Retirem as estrelas! . . . . . . . . 89 CAPÍTULO 8: Apêndice. . . . . . . . . . . . . . 99 CAPÍTULO 9: Peças de museu. . . . . . . . . . 141 CAPÍTULO 10: Álbum de família. . . . . . . . .153

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PREFÁCIO

Quando eu saía de um shopping center perto da minha casa, pude ouvir um som mágico vindo das mãos de um homem com feição abrutalhada, que tocava violino em troca de alguns centavos. Como de costume, fiquei pensando se a cena não seria um prenúncio do tema que há tanto tempo vinha procurando para servir de enredo do meu livro. Eu precisava escrever algum romance, não só por uma questão ideológica, mas também pelo fato de viver completamente sozinho em um apartamento de três quartos, onde só abrigava os dois anjos da minha vida, Matheus e Helena, a cada quinze dias. Talvez a busca pela palavra certa, a estética dos parágrafos e a conferência das concordâncias na tela de um computador confidente fossem métodos louváveis para preservação da minha sanidade. Entretanto, escrever sobre um músico virtuoso lançado na sarjeta, além de me atrair para um inevitável clichê, representa uma realidade tão dura que poderia me fazer submergir de braços dados com a personagem. Realmente é um martírio depender da inspiração para escrever. Por mais que eu tente imaginar a página em branco do Word como um corpo de mulher, como alguns sugerem, não dá certo, nunca funcionou, também não desejo ter algum êxito. Proíbo minha mente de visualizar curvas femininas em tamanho ofício, bem como de ouvir suspiros e gemidos em Times New Roman. É um verdadeiro tormento tirar uma noite de silêncio em um restaurante vagabundo com a crença de que alguma

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ideia fantástica irá brotar de repente e só conseguir ficar com a certeza de que tudo já foi escrito pelos meus ídolos (ainda tem sido muito difícil me sentir resignado quanto à evidência de que nunca irei escrever A Queda, de Albert Camus). O pior é que nem adianta justificar minha frustração sob o argumento de terem esses gênios nascido antes de mim. A humilhação se tornaria maior se fossem meus contemporâneos, pois além do privilégio de se vangloriarem da autoria, poderiam zombar de mim pessoalmente. Quando eu poderia escrever uma história na qual a personagem se confronta com sua imagem refletida no espelho ensaiando um sorriso irônico sobre si mesmo? Chega de lamentos! Devo admitir! Tudo que eu gostaria de escrever já foi escrito! Então seria meu destino ficar algemado aos livros e artigos jurídicos? Não, o destino não pode ser tão duro comigo... Frequentemente fico me perguntando como o meu avô conseguiu escrever quase trezentas novelas para o rádio e televisão, além de diversas peças teatrais e esporádicas poesias, sem ao menos ter concluído o ensino fundamental? Incrível! Mais impressionante é constatar que até hoje ninguém teve a ideia de escrever sobre esse homem tão raro, quase sobrenatural. Vejo milhares de biografias nas estantes das grandes livrarias, mas nada sobre o meu avô. Os atores que foram por ele revelados já foram homenageados não apenas por obras literárias, mas também por exposições, peças, séries de televisão, letras de samba enredo, entre outras bajulações. Enquanto isso, meu avô sequer é citado nas novelas que contam a história das radionovelas que ele mesmo criou. Tão absurdo quanto escrever sobre a origem do Rock, sem mencionar o nome dos Beatles. Não sei se posso entender como sorte, mas o certo é que a morte prematura o poupou de

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sangrar diante dessa ingratidão. Na verdade, isso daria um livro. Se eu tivesse um trecentésimo de sua capacidade, poderia escrever sobre o tema: Amaral Gurgel sob a ótica de um neto que fez dele um dos seus maiores mistérios ou um simples cidadão que fez do som de sua máquina de escrever um solo de violino. Não importa se com talento ou não, sinto-me pronto para escrever sobre o maior novelista da história do Brasil, Francisco Ignácio do Amaral Gurgel, Amaral Gurgel para o público, Vovô Amaral para os seus sete netos; Duke para sua esposa. Virtuoso não precisa ser quem fala, mas aquele sobre quem se fala. Sei que não conseguirei uma IBM eletrônica para “entrar no clima”, mas pelo menos já tenho o prefácio! O resto é fácil, pois estou certo de quem guiará meus dedos até a última palavra. Essa humilde obra é o registro de longas conversas com o meu pai, que subscreve todos os textos à margem dos capítulos. Brincamos de rir e chorar com os nossos próprios escritos e, com isso, ressuscitamos o pai do meu pai por alguns momentos de profunda ternura, e que também não voltam mais. Que a locomotiva passe, mas dure para sempre.

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Capítulo 1 UMA ESTRADA DE FERRO.

Muito pouco sei sobre a infância do Duke e acho que nunca saberei o bastante. Nas longas conversas que tínhamos depois do almoço ou no final da tarde, em que observávamos da varanda a passagem do vendedor de algodão doce, nenhuma história da infância era contada. Os pequenos detalhes de que tomei ciência foram relatados pela minha avó e pelo próprio Duke em entrevista à Rádio Nacional, que só tive acesso dez anos após a sua morte. Ainda que estivesse aqui para contar, não lhe perguntaria nada a respeito desse momento de sua vida, pois é fácil deduzir que as melhores lembranças deveriam estar guardadas em outras gavetas da memória, bem distante da infância. Provavelmente, todos os detalhes tenham sido contados em suas novelas por intermédio das personagens envolvidas. Quisera eu ter aprendido esse truque: criar alguns contos para atribuir aos protagonistas tudo aquilo que eu desejo desapegar da alma. A perda prematura do pai em razão da Gripe Espanhola e a necessidade de trabalhar desde os oito anos de idade para ajudar no sustento da família tornaram o passado duro demais para uma conversa de avô para neto. Por sua vez, seus irmãos Tio Zeca e Tia Antônia, que tive a sorte de conhecer, também nada puderam me contar a respeito. Minha bisavó, Dona Sebastiana, já era muito idosa quando despertei para tantas curiosidades. Presa a uma cadeira de

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rodas, limitava-se a contemplar os netos e bisnetos com um sorriso sereno e os olhos cheios d´água (impossível esquecer do dia em que nos mandou para todos os lugares por termos lhe desejado muitos anos de vida na hora dos parabéns de noventa e dois anos de idade). Naquela época também, como eu ainda era um adolescente, em vez de sentar para conversar com a minha “bisa”, ficava no quintal travando guerra de fogos de artifício com os meus primos. Quando acabava o arsenal, os participantes do conflito abdicavam de qualquer regra, e até arremesso de fósforo aceso e pedaços de telha era admitido. E, assim, ignorante eu era sobre a infância do Duke, e no mesmo estado fiquei. O amor do Duke pela mãe era de impressionar. Quantas vezes pegou o saudoso Trem de Prata, que ligava o Rio de Janeiro a São Paulo, exclusivamente para vêla... Se o amor se preservou tão verdadeiro até o fim, então as dificuldades daqueles tempos em Araraquara não prevaleceram sobre os valores familiares. No tempo em que viveu naquela cidade, onde há uma praça com o seu nome, o Duke precisou trabalhar coletando vidros para a reciclagem empreendida pelas indústrias farmacêuticas. Diante desse fardo, foi obrigado a abandonar o ensino fundamental ainda na terceira série. Não obstante o ônus de servir de arrimo de família, extraordinariamente, graças ao autodidatismo inerente aos gênios, conseguiu dar continuidade ao processo de alfabetização, estudando por intermédio dos cadernos dos colegas que compartilhavam as lições da escola, até que o seu ordenado pudesse cobrir os custos das aulas particulares. Se esse feito fosse meu, iria me vangloriar nessa e em outras vidas, ainda mais após tantas homenagens no meio acadêmico. Todavia, o Duke quase não falava sobre o assunto, e, quando o tema vinha à tona, era muito rápido e rasteiro.

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Diante de todo o esforço, acabou arrumando um emprego junto à Companhia Ferroviária de Araraquara. Tento imaginar que outra “companhia” poderia haver em uma cidade tão pequena como era a charmosa Araraquara naquele período. Obviamente, também imagino o quão entediado deveria ficar no desempenho de um trabalho burocrático. Creio que os louros dessa época tenham sido as pessoas que por ali passaram para inspirar dezenas de personagens que mais tarde brilhariam nas radionovelas. Concomitantemente ao emprego na Estrada de Ferro, conseguiu trabalho em um pequeno jornal da região. A vocação que tinha para as letras aflorava nas linhas que escrevia. E foi se escondendo por detrás de seus escritos, que tomou coragem de declarar o amor platônico que cultivou pela musicista da cidade, Amélia D’Alva Mattos, que dez anos mais tarde viria incluir o Gurgel entre os seus apelidos. Sempre me espantei com esses dez anos de noivado, ainda mais na época do chamado “namoro de portão”, mas me parece ter valido muito a pena, porque a minha avó guardou um caderninho que trazia colagens de fotos e poemas da época, pedindo à minha irmã Verônica que o colocasse junto ao seu corpo no velório. A promessa foi cumprida com todo o requinte, digno das grandes peças teatrais. Sorte do Duke por ter sido muito amado, considerando que essa dádiva não se vincula de forma alguma ao temperamento, intelecto ou qualquer outra qualidade do felizardo. Há quem diga que a vida não é uma máquina na qual se coloca virtude e se colhe felicidade. Concordo! O homem culto não é mais amado, nem em termos potenciais. Quando somos contemplados com o amor, não há razão para isso, é totalmente sem explicação. A pessoa que nos ama não lança os olhos para ninguém,

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somente precisa e se contenta com os nossos; não nos transforma em trampolim para atingir metas das quais não participamos; quer contar e recontar as histórias melosas de como se olharam da primeira vez; deseja estar perto o tempo todo, porque nada tem muita graça sem o outro. A maioria passa por essa vida sem provar tal sensação. Hoje, tenho a absoluta certeza de que casais assim não existem mais, nem nas novelas. O amor perdeu de goleada para o dinheiro. No hospital, minha avó disse que o Duke, que já havia falecido, estava lá para buscá-la. Não duvido... Ele a esperou nascer por dez anos; por dez anos também tiveram de esperar para casar; e pelo mesmo tempo ele esperou para resgatá-la. A minha avó contava que na época de recém-casados vivenciaram os dias mais difíceis. Com dois filhos pequenos, Luiz Carlos do Amaral Gurgel e o caçula, meu pai, José Sergio do Amaral Gurgel, que subscreve esse livro, o Duke não tinha como recusar a proposta de migrar para a Cidade Maravilhosa (na época devia fazer jus ao rótulo). Não sei quantas vezes eu ouvi duas histórias que ganharam nova versão em minha própria realidade na fase adulta: “seu avô tinha que ir andando do bairro da Glória à Praça Mauá, porque não tinha dinheiro para o bonde e muitas vezes só possuíamos banana para a refeição, e em quantidade mínima, suficiente apenas para os nossos filhos.”. As caminhadas iriam fazer falta na terceira idade, quando os problemas circulatórios atingiram seriamente as pernas do Duke, mas as bananas, creio que tenham servido somente para agradecer a Deus pelo privilégio de ter uma mesa farta, principalmente nas ceias de Natal. Uma vez ouvi que o início, quando visto do final, é totalmente diferente. Apesar de tudo, valeu a pena. Com trabalho árduo, produzindo novelas e peças de

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teatro em escala industrial, o Duke conseguiu se firmar profissionalmente, ganhando dinheiro com as letras em um paĂ­s de analfabetos.

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LOCOMOTIVA.

“Café com pão, café com pão...”.

Manoel Bandeira

Assim também era de café com pão que vivia homem que trabalhava na Estrada de Ferro Araraquarense sonhando que um dia pudesse transformar em histórias aquele barulho repetido do trem que chegava e do trem que partia, do apito doído da máquina anunciando: – Já vou! Entrem, desembarquem, agora... E daí voltava o café com pão que já se grudava aos ouvidos dos homens do escritório como se fizesse parte do seu corpo. E meu pai me contou um dia que, na plataforma, trabalhava um velhinho cuja função não se sabia tudo, apenas que ele era responsável por verificar se ninguém tinha esquecido nada nos vagões, se as fornalhas tinham carvão suficiente para a volta e coisas assim. Um dia, disse meu pai, como sempre acontece, chegou o momento em que o velho da estação teve que se aposentar, um merecido descanso depois de muitos anos andando de um lado para o outro e executando com grande cuidado o seu trabalho. Então só restava pescar na pequena cidade algum moço disposto a substituir o velho funcionário. Não era uma tarefa difícil e logo alguém se apresentou para o posto. Do jeito de todo marinheiro de primeira viagem, perguntou ao seu chefe o que teria de fazer. E o patrão olhou para ele e disse:

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– É fácil! Acompanhe o velho nesta última semana e observe tudo o que ele faz! Será exatamente o que você terá que fazer a partir da próxima semana! É claro que, talvez, apenas por curiosidade, as pessoas começaram a conferir o que o rapaz ia fazendo a cada aproximação do café-com-pão e do apito antes da parada. Ele verificava a fornalha, entrava em cada vagão, anotava não sabemos o quê num bloco pequeno e, enquanto caminhava na sua vistoria, ia com um pedaço de ferro batendo em todas as rodas da composição. Um dia, e a vida é sempre cheia de “um dia”, alguém se lembrou de perguntar, talvez por pura curiosidade, por que ele batia com aquele ferro nas rodas do trem. E o rapaz respondeu imediatamente: – Não sei. O velho fazia... Ali estava o perigo de aprender as coisas pela metade, pois o velho batia nas rodas, porque, pelo som ele saberia perceber uma simples fissura no aço. Creio até que tudo na vida do meu pai ganhou o ritmo repetido do trem, transportado mais tarde para a sua máquina de escrever. Para reforçar o que a minha imaginação compõe numa lógica bastante simplista, lembro que meu pai me contou que, na escola onde estudou até a terceira série, o Mestre-­ ‑Escola, como era chamado na época o professor, passou para a turma um problema de aritmética. Disse a todos que, pela dificuldade que aquela Matemática continha, iria escrever o nome do único aluno que ele tinha quase certeza iria chegar ao resultado correto. E, por estranha e infeliz armação do destino, colocou no papel o nome de quem ele supunha ser o aluno mais aplicado: Francisco. Meu pai, por preguiça ou medo, nem começou a dar solução, não fez nem a primeira soma... Acabado o tempo, o mestre-escola perguntou: – Quem achou o resultado?

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Silêncio absoluto. – E você, Francisco? Meu pai apenas respondeu: – Nem comecei, é difícil demais... – Muito bem – disse então o mestre – a turma está dispensada, menos o Francisco. A primeira imagem que veio na cabeça de meu pai foi da palmatória, instrumento usado na ocasião para castigar os alunos que não se comportavam bem ou que não cumpriam as tarefas de casa. Todos saíram e, então, aquele homem que sempre parece um gigante para as crianças de escola, olhou para o meu pai e perguntou: – Francisco, escrevi seu nome e fiquei triste. Você já foi à estação, não foi? Meu pai, acabrunhado, balançou a cabeça e disse: – Muitas vezes, muitas vezes... – Você já olhou a locomotiva? – Já! – respondeu o menino assustado. – Quantas rodas você vê do lado dessa máquina? Uma? Duas? Quantas? – Uma porção! – respondeu meu pai. – E todas são do mesmo tamanho? – Não, tem umas grandonas, outras menores, e algumas pequeninas. – Muito bem, menino! Então me diga: quando a grande dá uma volta, a pequenina também dá uma só volta? – Não, a pequena tem que dar um monte de voltas. E veio a conclusão do mestre: – Então, quer dizer que a roda maior chega à estação antes da pequena? – Não – disse meu pai – todas chegam juntas! – Pois é, menino, assim é a vida. Nada é tão difícil que a gente não possa fazer, nada é tão longe que a gente não possa chegar. Alguns precisam apenas de uma volta, um

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pequeno esforço, outros têm que rodar muito, girar num trabalho intenso... Porém, preste atenção! Na vida, todos também podem chegar juntos! Meu pai na certa aprendeu a lição da locomotiva e, café-com-pão, café-com-pão, piuí de vez em quando, foi chegando onde queria, ou melhor, como ele mesmo dizia, muito mais longe do que poderia imaginar. E o homem da contabilidade da Estrada de Ferro, o Duke que escrevia para o jornalzinho da cidade, que tentava a poesia na sua paixão pela pianista, filha da Dona Helena e do Senhor Ataliba, farmacêutico da cidade, casou, ganhou prêmios do Teatro Nacional de Comédias, foi representado por Jayme Costa, Procópio Ferreira, Bibi e tantos outros. Veio a conquistar o Rio com as histórias acumuladas pela vida, contadas nos microfones da Rádio Globo, da Rádio Nacional, da Mayrink Veiga, Mundial, Piratininga de São Paulo etc. Foi diretor artístico da Rádio Globo e da Rádio Nacional e, antes de tudo, um pai maravilhoso que, mesmo deixando as principais fases da nossa educação para a Dona Amélia, nos ensinou sempre com seu exemplo e com a dureza do seu espírito crítico. Lembro que no tempo em que meu pai escrevia algumas fotonovelas para a revista Sétimo Céu da Manchete e traduzia outras, fui o ghost (fantasma) para algumas histórias. Era uma dupla expectativa, com sensações extremas: a primeira quando eu entregava o texto para ele ler, o que me deixava com uma tensão incalculável; a segunda, bem agradável, quando eu via aqueles diálogos publicados. Não raramente eu entregava os papéis cuidadosamente datilografados, disfarçando o meu desespero, e ele lia na mesma hora. Em certas ocasiões, jogava tudo na lixeira ao lado de sua mesinha de ferro – o que me fazia chorar escondido - e denunciava: – Não aconteceu nada! Escreva outra!

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Foi duro, obviamente, mas assim aprendi o pouco que eu sei da arte de dizer com alguma objetividade e graça. Claro que fugi das novelas e do teatro, apesar de ter concorrido com um texto em dois atos num concurso realizado pelo Banco do Brasil e, como qualquer um podia esperar, perdi. Mas isso não me abalou, lembrei que Degas, certa vez, recebeu uma crítica ao seu quadro: – Não irão aceitar o seu trabalho no Salão. E ele respondeu: – Quem disse que eu pinto para os salões? Eu pinto para mim! E eu gostei! Digo a mesma coisa: escrevi para mim! Foi um desafio e fiz todo o trabalho sabendo que eu era a menor roda daquela locomotiva.

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