TERRORISMO FISCAL
O Direito Penal do “quinto dos infernos” De todos os fatores que determinaram insurreições e revoluções na história da civilização ocidental, nenhum deles teve tanta relevância quanto às questões que envolvem a sobrecarga de impostos. As desavenças a respeito de convicções políticas e religiosas serviram apenas como pano de fundo para as mais variadas declarações de guerra. A certeza quanto ao injusto cometido por aqueles cujos desígnios deveriam voltar-se para o bem comum já inspirou multidões na luta contra os seus governantes. Os romanos foram responsáveis pelo aperfeiçoamento do sistema tributário desenvolvido com bastante propriedade pelos egípcios. Os publicani desempenhavam com maestria o papel de cobradores de impostos em favor de uma nação que a tudo sobretaxava. Até mesmo objetos como portas (ostiarium) e janelas (vectival sericum) não escapavam da tributação, e só perderam o destaque quando a ganância arrecadatória do Império recaiu sobre fezes e urinas dos cidadãos. Apesar da coincidência, não foi esse o motivo da conclusão de Vespasiano sobre o aspecto inodoro do dinheiro (pecunia non olet). O referido Imperador, cuja lição subsiste até hoje em nossa Constituição, pretendia apenas demonstrar sua indiferença quanto à origem do bem passível de tributação, se lícita ou ilícita. Levando em conta toda essa volúpia em subtrair dinheiro alheio, fica fácil compreender o porquê de os publicani terem sido tão odiados durante a dominação romana, especialmente pelos povos estrangeiros que capitularam diante do exército mais eficiente do mundo. A repulsa era tão grande que dos doze seguidores de Jesus de Nazaré nenhum foi recebido com tanta desconfiança quanto Mateus, o cobrador de impostos. Eram tão desprezados pelos judeus que nem seus dízimos e ofertas eram aceitos nas sinagogas. Entretanto, o que mais desperta curiosidade está na queda do Império Ro-
mano do Ocidente ocorrida na segunda metade do século V, posto que sua derrocada ocorreu graças a execução dos mesmos métodos que costumavam utilizar contra os seus inimigos. Os povos bárbaros que tanto combatiam igualmente desenvolveram a técnica de fragilizar e subjugar uma nação inteira por intermédio da cobrança de impostos. Átila (406 – 453), conhecido como a “Praga de Deus”, não se destacou somente por ceifar impeduosamente a vida dos seus opositores, mas principalmente por ter promovido um gigantesco saque ao tesouro imperial mediante acharques sucessivos em troca de segurança. Contudo, foi a Genserico (428 – 477), Rei dos Vândalos, que o destino concedeu a glória de marchar sobre Roma depois de numerosos assaltos aos cofres romanos com suas aleatórias e exorbitantes tarifas aduaneiras. Para a glória de alguns e desgraça de outros, havia chegado o momento de Roma provar do seu próprio veneno. As gerações seguintes, que sobreviveram às trevas da Idade Média, não obstante os intermináveis conflitos armados seguidos de pestes avassaladoras, igualmente sentiram o dissabor de ver suas riquezas serem expropriadas de forma legítima pelos seus senhores. E nesse período em que a Igreja Católica despontava como uma grande força política, clérigos e nobres mantinham uma união promíscua que mais tarde resultaria nas chamadas Monarquias Absolutas do Direito Divino. Obviamente, a montagem de uma estrutura burocrática muito bem organizada, acompanhada da unidade monetária, bem como do sistema de pesos e medidas, os métodos de arrecadação se aprimoraram de forma espetacular. O montante angariado era mais do que o suficiente para cobrir os custos da uma nobreza pródiga e ainda financiar os projetos expansionistas dos grandes reinos. Foi assim que o tráfico negreiro se destacou como o negócio mais lucrativo da época. Mesmo com os impos-
A R T I G O
Sergio Ricardo do Amaral Gurgel (*)
tos incidentes sobre cada escravo, as castas representadas no ápice da pirâmide social podiam enriquecer do jeito como outrora haviam ousado sonhar. O sangue derramado de milhões de negros não passava de um detalhe desagradável, mas nada capaz de tirar o sono. Para os senhores de engenho o que realmente importava era saber se conseguiriam burlar o fisco omitindo o número real de cativos em suas declarações de renda. Ao mesmo tempo, na América Espanhola, a encomienda teve um papel fundamental na consecução do maior genocídio da história da humanidade. Indígenas quedavam brutalmente assassinados quando se recusavam a pagar os impostos cujo fato gerador era a simples impotência frente às armas do homem branco europeu. Apesar de toda a opulência do período, não demorou muito para que o Antigo Regime entrasse em total contradição, criando dentro de si mesmo o gérmen que o conduziria à destruição: a burguesia mercantil. Com ela veio a Fisiocracia, sob a liderança de François Quesnay, que se opunha aos exageros tributários do Mercantilismo, no qual os impostos tinham papel exponencial. Os arranjos políticos promovidos pelos Déspotas Esclarecidos não foram suficientes para conter o inevitável. Os ideais do laissez-faire e laissez-passé eram, indubitavelmente, incompatíveis com o modelo vigente.
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