DO SEU PAI
PEDRO FONSECA
DO SEU PAI
2016
pedrinhofonseca@rosari.com
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP).
Câmara Brasileira de Livros, SP-Brasil.
Pedro Fonseca.
Fotos Pedro Fonseca. São Paulo.
Editora Rosari, 2016.
ISBN 85-7402-312-3.
2016
Todos os direitos desta edição são reservados a Editora Rosari Ltda.
Rua Apeninos 930, 5º andar, sala 51,
CEP 04104 020, São Paulo-SP-Brasil.
SUMÁRIO
Filhos 4 Teresa, Irene e João
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Irene 8
João 10 Teresa 12 Um par de meias
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Filhos, como nascem os adultos? Por que se aprende a
caminhar e não a voar? Por que falar tanto e escutar
menos? Por que o olhar para o espelho – e umbigo? Onde se ganha a frieza, onde se perde o afeto gratuito?
De onde vem a consciência? E a onisciência? Onde co-
meçamos a abandonar os erros como a melhor parte das conquistas? Por onde se esvai a curiosidade? De
onde vem o medo do desconhecido? Quem nos faz crer em um deus que não é, simplesmente, o Outro? Quem
tenta nos ensinar a nadar sem antes nos apresentar
ao mar? Que lugar é esse que prometem tanto, o futu-
ro? Que distância é essa, que nunca chega mais perto, a saudade? Que força é essa que nos rege, a necessi4
dade? Qual a razão (ração) que move um carro? Qual
a ração (razão) que move um ódio? O que nos pede devoção? O que nos rouba emoção? O que nos separa
dos irmãos? É doença, pandemia, miopia? É fraqueza,
malvadeza, avareza? Como nascem os adultos, filhos? Não descubram. Não descubram. Não descubram.
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Teresa, Irene e João, para que serve a coragem, essa coceira que bate
no miolo da vontade? Coragem serve para aceitar um convite. Serve para fazer as pazes com quem, por al-
gum motivo menor, nos distanciamos. Serve para en-
tregar o bilhete aéreo e deixar para trás um amor, aos prantos, no saguão do aeroporto. Serve para queimar
os dedos no azeite quente ao colocar as cebolas para dourar. Serve para trabalhar com algo que nunca se trabalhou antes. Serve para carregar uma bandeira.
Serve para o nosso exercício político diário, serve à
ética. Serve para sentar no Estelita e dizer daqui não saio, daqui ninguém me tira. Serve para o diálogo. Co-
ragem serve para banhos: de chuva, de cachoeira, de mar, de rio. Ela está lá no instante em que dizemos sim ao novo. E quando estamos abertos ao novo, ele
entra sem bater. O novo, quando é de casa, chega no
meio da noite, na hora do almoço, logo cedo, em pleno final de semana. O novo, se for bem recebido uma vez, volta. Ele voltou. Chegamos em Barbacena no dia 2
de agosto de 2015 com duas certezas: que ficaríamos aqui pelo menos um ano; que nada poderia nos fazer
mudar daqui antes disso. O novo, filhos, é o maior inimigo das nossas certezas. Daqui a uma semana, no dia 26 de fevereiro de 2016, pegamos a estrada para 6
nossa nova casa, nosso novo destino, mais uma eta-
pa do nosso percurso de vida. Sabíamos que, ao sair de São Paulo, havíamos começado um caminho sem volta, o caminho do desapego, algo entre o nomadis-
mo e o inconformismo. Aqui está ele. O novo. De novo. Vamos sentir falta de algumas coisas em Barbacena. Vamos sentir muita falta de alguns amigos. Muita
falta mesmo. Gente que veio para reforçar nossa hipótese sobre as melhores relações: aquelas que têm o amor como norte. Nosso norte, agora, aponta para
o centro-oeste. Brasília, aí vamos nós. Vamos nessa, filhos. Apertem os cintos. O amor é mesmo uma bús-
sola quebrada. Que sempre indica um caminho desconhecido, mas com a paisagem mais surpreendente.
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Irene, sabia que o mundo gira em torno do Sol? Funcio-
na assim: o Sol, todo poderoso, tem uma energia tão forte, tão forte, que atrai os outros astros que estão
por perto (perto é jeito de dizer – tem planeta que está a 5 bilhões de quilômetros dele; e isso é mais longe que ir de Barbacena a São Paulo de carro). Assim, começa um balé galáctico, uma dança estelar, com uma
música de silêncio fazendo planetas bailarem numa
pista de dança gigante. Mas não para por aí, filha. Ao
mesmo tempo em que a Terra dá voltas e voltas em torno do Sol, faz um outro movimento. Gira em tor-
no do seu próprio corpo. Um rodopio moroso, suave. 8
Como se o planeta tivesse cócegas do vento cósmico e fosse entortando o corpo para esquivar-se do dia – até que chega a noite. Esse é o ciclo fabuloso que nos faz
ver a tarde cair, o dia raiar, as estrelas luzirem, o galo cantar. Que nos faz precisar tanto de um pijama – para
as noites – quanto de um biquíni – para os dias. Ou um
biquíni, se a noite for na praia. E um pijama, se o dia
for no campo. A gente vive para girar, filha. Em torno da nossa própria alma, sensível às cócegas do amor. Em torno daqueles grandes astros que nos cercam,
amigos. Quando eu canto baixinho, para você dormir,
aquela canção que diz “todo dia o sol levanta e a gente canta o sol de todo dia/fim da tarde a Terra cora e a gente chora porque finda a tarde/quando a noite a lua
mansa e a gente dança venerando a noite” é um jeito
de te contar quase no mesmo silêncio sem gravidade, que dias e noites existem porque a gente flutua, gira,
orbita em torno do amor. E sente cócegas por isso.
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João, esse ano precisa de um bom banho. Daqueles
de esfriar a cabeça e os raciocínios. Banho para de-
sa-goniar. Pensar no nada. Cantar desatinado, ainda
que afinado – em respeito ao vizinho seu Geraldo,
que é um senhor tão simpático quando passeia no fim de tarde pela nossa calçada e sempre pergunta:
essa casa é uma casa mesmo ou é uma festa? Uma festa, seu Geraldo. E lentamente ele escorre sem pa-
rar pela rua, enquanto a água escolhe passear pelo
seu rosto. Você odeia banho até entrar nele, filho. Acho que eu era assim. Era, mãe? Talvez esse ano
também não esteja preparado para enfrentar esse momento quase-doloroso, mas penso que é o único jeito. 2015 precisa de um bom banho para terminar. Frio. Deixar o ralo beber as decepções. O chão inun-
dar um dedo de altura com as frustrações. As pare-
des suarem gotas de saudades do que perdemos. A uma certa altura do banho, você esquece que
nem queria entrar. Começa a conversar animada-
-mente sobre a tarde que virá. A casa de Dario, seu amigo-craque. Que alegria receber um convite as-
sim. Começa a falar sobre a vinda das suas avós, do seu avô, da sua tia. Lembra que o pedido feito para
Papai Noel já foi atendido, o campinho gramado, fei 10
to à mão e coração no quintal. Pergunta se mandei a foto do Carlitos pintado no muro para seu avô. Diz que a viagem para Goiás vai ser diverti-da, que não
vê a hora de pegar a estrada. Fala que essas férias vieram para você me ensinar a jogar Minecraft – preciso mesmo aprender. E fala, conta histórias, ri, pensa, fala mais, pergunta (e pergunta e pergunta e pergunta –
mas nem espera que eu responda, faz isso sozinho).
Apenas escuto, por um longo tempo, as suas palavras molhadas de alegria. Para quem não queria entrar no banho, sair é que é mesmo difícil. Preciso insistir. Agora é sua vez, 2015. Vai lá. Entra no chuveiro
que daqui a pouco trago sua toalha.
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Teresa, ando me sentindo pequeno diante de você.
Diante dessa sua capacidade gigantesca de aprender.
João e Irene já haviam me mostrado que isso acontece. Acontece que, depois de dois filhos, a gente (que nunca sabe de nada nessa vida) acha que sabe tudo. Vem você e me surpreende de novo. São palavras, 12
caminhos, olhares, repetições imperfeitas de outras imperfeições (nossas) e, assim, novas palavras, caminhos e olhares (só seus). A chave que você usa para
abrir as portas e janelas é um sorriso. O seu jeito de se fazer bem-vinda é abrir os braços para os abraços. A descoberta que você fez (tão cedo, filha) é que o
mundo fica melhor quando a gente entrega carinho sem sequer saber o que vai receber. Que começa na
gente mesmo – e não na expectativa sobre o outro. Pausa.
Viemos passar o feriado da Semana Santa em
Brasília, com sua avó. Ontem à noite, sua mãe resolveu cortar seu cabelo. Um daqueles momentos de renovação – sua e dela (sua quando, ao olhar no
espelho, se estranha mas se reconhece; da sua mãe quando, ao terminar o corte, não diz que você está
linda, mas sim que está feliz – então está tudo bem). Voltemos.
Você parece já ter entendido, filha, que receber o
outro com um abraço é brincar na frente do espelho:
quem vem de lá repete o seu gesto, também abre os braços. Você já parece ter percebido que existe uma beleza
maior em quem sorri gratuitamente para quem vem lá.
Ando me sentindo pequeno diante de você.
Diante dessa sua capacidade gigantesca de ensinar.
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Um par de meias. Pela primeira vez na vida, você me pe-
diu um par de meias emprestado. No futuro, isso será mera estatística na nossa história. Mas hoje é um dado e tanto. A primeira vez que você me pe-
diu um par de meias emprestado – e pelo celular: “pai, tudo bem, você pode falar? É que minha meia preta está molhada e hoje tem futebol na
escola, posso pegar uma meia sua emprestada?”.
As relações humanas quase sempre são pau-
tadas em subtrações. O espaço dele termina onde o
espaço dela começa. O cargo dela está acima, o car-
go dele está abaixo. O dinheiro dele aqui, o dinheiro dela ali. A casa dela é grande, o apartamento dele é
pequeno. Vão nos colocando métricas e limites que reduzem horizontes, assuntos e gestos. Que determinam fronteiras (visíveis ou não) e tornam o senso
de propriedade mais importante que o valor da existência – as pessoas por vezes querem se apropriar,
como se “ter” fosse mais importante que “ser”. O ser
humano se reduz. Da metade para cá é o meu espaço, da metade para lá é o seu. Assim, meio a meio. Meia
a meia. Penso que as relações humanas precisam de menos aquilo, mais isto: é hora do nosso, filho. O es-
paço, quando verdadeiramente coletivo, divide-se. 14
As vontades, somadas, potencializam as chances da
gente chegar juntos a um lugar (bem) melhor. Matemática é emoção. Tenho aprendido que a melhor herança que poderia imaginar para você já existe. São
Irene e Teresa (e a melhor para Teresa: Irene e você; e a melhor para Irene: Teresa e você). Juntos, vocês
multiplicam amor (a decisão de ter mais de um filho foi impensada – e a mais acertada). Solidão é lava
(obrigado, Paulinho) que cobre tudo. E quando minhas meias já não existirem mais, filho, vocês ainda terão um ao outro para dividir, multiplicar e somar.
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Formato: 100 mm x 150 mm Nº de páginas: 16
Capa e Miolo: Couchê 180 g/m²