Entrevendo - Cildo Meireles. Livreto Educativo

Page 1


Publicação educativa recomendada para pessoas que buscam por práticas humanizadoras na educação com as artes


Anotações para a educação lembrar-se arte e política (e a arte lembrar-se política e educação – e a política lembrar-se arte e educação)

Propostas artístico-pedagógicas em diálogo com a exposição Entrevendo – Cildo Meireles


AO EDUCADOR

SESC POMPEIA

Com a perspectiva de expandir as potencialidades advindas da arte e da educação – compreendida como um permanente aprendizado para os saberes necessários ao longo da vida – o Sesc propõe iniciativas que motivam o entrelaçamentos de diálogos entre educadores, estudantes, curadores e artistas. Tal iniciativa vislumbra uma sociedade que encontre nas práticas transformadoras da educação e da arte caminhos para acolher, difundir e valorizar as experiências simbólicas sob os mais variados aspectos seja no campo da criação ou fora dele. A criação de universos simbólicos mobiliza ideias, utopias e sonhos. Estratégias de resistência e modelos de experimentação que levam o artista a conduzir escolhas e construir sua poética, que ao ser exposta e convocar o público à contemplação, dilata-se em sentidos e significados. Ao acionar um processo que não se esgota, na medida em que é parte inerente do desenvolvimento humano, compartilhamos os mais diversos modos de existir, e assim a educação acolhe as oposições, transformando afetos e ideais, estabelecendo novos pactos sociais que propiciam a horizontalidade de relações e construção coletiva de saberes.

Entre os dias 26 de setembro de 2019 e 02 de fevereiro de 2020, o Sesc Pompeia apresenta Entrevendo – Cildo Meireles. Uma antologia poética e histórica com mais de 150 obras produzidas pelo artista desde a década de 1960, com curadoria de Júlia Rebouças e Diego Matos. Cildo Meireles é um artista brasileiro icônico para a arte contemporânea mundial, possuindo uma produção diversa e nos mais variados suportes, sendo reconhecido por suas instalações, mas também por sua produção em desenho, escultura, pintura, trabalhos sonoros, performances, entre outros. Convidando professores, estudantes e demais interessados a visitarem a mostra, este material se dispõe a colaborar para que os conteúdos dessa exposição sejam trabalhados em salas de aula, e onde as mais diversas ações educativas possam ocorrer. O agendamento de visitas pode ser feito pelo telefone 11 3871 7790 ou pelo e-mail: agendamento@pompeia. sescsp.org.br. As visitas acontecem de terça a sexta, das 10h às 20h30.


12. ARTE 14. ANOTAÇÕES 18. DEFLAGRAÇÃO 22. ESPAÇO 26. ESTUDO 30. GUETO 34. LINGUAGEM 38. MEDIDA

42. MEMÓRIA 46. MODO E MEIO 50. REDE 54. RESISTÊNCIA 58. REPRESENTAÇÃO 62. SENTIDO 68. SITUAÇÃO 72. TEMPO


8

UMA PUBLICAÇÃO PARA PROFESSORES E EDUCADORES QUE SE SABEM ARTISTAS E POLÍTICOS

VALQUÍRIA PRATES FÁBIO TREMONTE

9 Este caderno tem o objetivo de apresentar alguns caminhos possíveis para o trabalho pedagógico com artes em programas de educação em artes visuais de escolas e instituições culturais a partir da produção do artista Cildo Meireles. Buscando constituir chaves de aproximação com diferentes aspectos da produção contemporânea a partir de sua obra, exposta na mostra Entrevendo, os fragmentos e proposições de trabalhos aqui reunidos partem de verbetes que relacionam comentários do artista, trechos de textos de diversas áreas do conhecimento e convites para a realização de proposições artísticas, considerando em cada abordagem a possibilidade de experimentar algumas das diferentes maneiras de pensar a sociedade e a arte na atualidade. Acreditamos que a reflexão em torno dos temas aqui apresentados possa favorecer a percepção das diversas relações possíveis entre a arte e a vida, estimulando uma aproximação mais complexa com a conexão não apenas com a obra de Cildo Meireles, mas também com suas próprias visões de mundo sobre a arte e a vida. A intenção principal dos convites lançados nas próximas páginas é tornar visíveis e nomeáveis a existência de outros meios pelos quais seja possível acessar informações e leituras variadas em artes visuais para ampliar a potência da construção de relacionamentos com a arte.

Por isso buscamos disponibilizar nesta publicação o contato com narrativas de processos, referências e outros textos relacionados à produção de Cildo Meireles e suas obras presentes na exposição. A proposta tem origem na vontade de convidar educadores e professores com pessoas de todas as idades a participarem de vivências artísticas, em processos de conversa, exercícios de observação e pesquisa, caminhando sempre que possível em direção a processos criativos de formação. Cada verbete pode ser explorado em aulas de artes visuais, literatura, história, geografia, filosofia, escrita, sociologia – e não há nada que inviabilize seus usos intencionais em aulas de matemática, física ou biologia. Também podem ser explorados em conversas em exposições de outros artistas, em centros culturais, bibliotecas ou museus de história. Considerando a importância da arte como forma de compreender o pensamento e as manifestações culturais da sociedade contemporânea, cabe-nos agir para promover práticas pedagógicas que, nas palavras do educador Paulo Freire, sejam intencionalmente estéticas e políticas, estimulem e incentivem a imaginação, a invenção e a criação de sociedades que reconheçam na cultura a fonte dos valores essenciais à manutenção da vida: diversidade, acesso e participação.


10

MATERIAL EDUCATIVO: POSSÍVEIS MODOS DE USAR

11 Esta publicação apresenta 14 conceitos chave destacados pelos curadores Júlia Rebouças e Diego Matos como caminhos interessantes para a realização de aproximações pedagógicas da mostra: deflagração, espaço, estudo, gueto, linguagem, medida, memória, modo e meio, rede, representação, resistência, sentido, situação, tempo. Em um exercício de diálogo com a produção do artista Cildo Meireles e a pesquisa curatorial para a realização da exposição Entrevendo, tomamos cada uma dessas palavras como unidades temáticas, que chamamos de verbetes. Em todos os verbetes estão reunidas e organizadas seleções de: — trechos de entrevistas e depoimentos do artista, — citações e trechos de textos, livros e outras referências de pesquisadores, escritores, filósofos, educadores e especialistas em artes. Os textos disponíveis têm como intenção principal a possibilidade de promover trocas e partilhas entre pessoas de diversas idades interessadas em conversar sobre os assuntos elencados, justapondo, contrapondo ou somando as opiniões e colocações do artista às de outras pessoas que comentam um mesmo tema, seja em diálogo com a arte ou com outros campos também férteis da vida.

Por fim, elaboramos 14 propostas de vivências artístico-pedagógicas que podem ser adaptadas para uso na realidade escolar (aulas, encontros, saraus e outros formatos de encontro) ou para experiências de criação em quaisquer exposições de arte. Os dois primeiros verbetes, que abrem a publicação, são uma espécie de introdução aos outros verbetes, e podem ser disparadores para conversas sobre Arte e processos de criação na produção de Cildo Meireles. Neles, não há seleção de obras ou de referências a outras pessoas, já que a este material é possível acrescentar quaisquer outras menções que fizerem sentido para os professores e educadores interessados em utilizar coletivamente este material. Os fragmentos de cada verbete, bem como as imagens disponíveis neste material, podem ser copiados, destacados, projetados, lidos de forma individual ou coletiva, em voz alta ou em silêncio. As práticas podem ser registradas e partilhadas com outros leitores por meio da postagem no instagram pela hashtag #entrevendocildomeireles.


12

ARTE

13

“A arte, cuja função é não ter função, é imprescindível para a caminhada no planeta.”

Cildo Meireles em entrevista a Maria Emilia Alencar, programa As vozes do mundo, Radio França Internacional, 2 de setembro de 2017


14

ANOTAÇÕES

15

“Eu trabalho muito com anotações. Eu anoto o que me chama a atenção por alguma particularidade. (…) Eu costumo dizer que não existe um processo de produção dos trabalhos, o que existem são microbiografias, cada peça tem mais ou menos uma origem, um ponto de partida, que pode ser uma cena absolutamente anódina, bizarra, ou pode ser uma coisa, sei lá, impactante. (…) Eu gosto de trabalhar sempre que possível usando o princípio da decantação, ou seja, anotar, esperar um tempo e aí você vai acrescentando, vai pensando, vai convivendo com o trabalho e num momento, se alguém pede ou sugere uma exposição, daí eu procuro essa nota e vou procurando detalhar.”

Cildo Meireles em entrevista a Maria Emilia Alencar, programa As vozes do mundo, Radio França Internacional, 2 de setembro de 2017


17

Em grupo, conversem sobre as afirmações de Cildo Meireles. Anotem as definições e opiniões dos participantes sobre os processos, funções e usos da arte na vida cotidiana. Guardem as anotações para posterior uso em outras vivências sugeridas neste livro.


18

DEFLAGRAÇÃO

19

“Em grande parte da minha obra há uma interpenetração entre o trabalho de a arte e a vida diária, e isso afeta a escolha do material. Estou interessado em materiais ambíguos, que podem simultaneamente ser símbolo e matéria prima, assumindo status de objetos paradigmáticos. Os materiais que podem conter ambiguidade vão de fósforos a garrafas de Coca-Cola, de moedas a cédulas ou a uma vassoura, com em La Bruxa (1979-81). Estão no mundo cotidiano, próximos de suas origens, ainda impregnados de seus significados.”

Cildo Meireles Cildo Meireles. São Paulo: Cosac Naif, 1999. p.17


20

“A diversidade de formas, materiais e objetos empregados bem como a suspensão de um estilo unificador não prejudicam o conjunto de sua obra. Há nela coerência – mas, aberta, inteligente. Questões que aparecem em determinadas obras reaparecem em outras, criando um encadeamento de ideias ou, mais que isso, um pensamento plástico-visual, o que nos permite agrupálas em séries ou sequências mais amplas, como nos trabalhos que Cildo denomina, ironicamente, Objetos definidos, nos quais, partindo de objetos comuns que habitam nosso cotidiano, ele neutraliza, por oposição e/ou adição, as funções pragmáticas originais, tornando-os disfuncionais.”

Frederico Morais A arte como trabalho sedutor de contrainformação industrial, cultural e ideológica. Cildo - estudos, espaços, tempo (Org. Diego Matos e Guilherme Wisnik). São Paulo: Ubu, 2018. p. 173

21

Como, no seu entendimento, o deslocamento de objetos cotidianos para uma esfera da arte pode gerar alguma transformação na maneira como olhamos esses objetos e nos usos que damos para eles? Como esses deslocamentos podem, também, gerar uma mudança, transformação no mundo que o cerca e de que faz parte?


22

ESPAÇO

23

“O trabalho que fiz chama Atlas, que sou eu plantando bananeira em cima do Socle du Monde (pedestal do mundo, obra feita pelo artista Piero Manzoni). É um lightbox de uma foto grande, feita por um fotógrafo sueco. Quer dizer, é uma brincadeira, como se você tivesse segurando um pedestal que sustentasse o mundo. O Socle du Monde fica no lugar onde foi produzido. Que era uma fábrica de camiseta nos anos 50, e esse cara (o industrial dinamarquês Aage Damgaard) comprou. Mas era um desses esses empresários loucos através do qual a arte sempre avança, né? O apelido da fábrica era The Black Factory (a fábrica preta), porque era toda escura. Primeira coisa, ele resolveu chamar os artistas da época, que eram chamados pelo nome genérico Futurismo, mas não era o Futurismo italiano clássico, eram assim aquelas linhas que delimitavam áreas em amarelo, vermelho, aquele carnaval de cores. Ele organizava concertos de jazz para os operários da fábrica na hora do almoço, hora do lanche… (risos) E possivelmente teria sido o primeiro cara que estabeleceu um programa do que hoje é conhecido como residência de artista. Convidava um artista pra ficar lá, produzindo, usando equipamento, fazendo o que quisesse. E um desses artistas foi justamente o Piero Manzoni. Que ficou lá oito meses ou um ano, e fez vários trabalhos fundamentais lá, o da linha de 7200m, Merda de Artista, e esse pedestal, que está lá no jardim. Só que hoje é um museu.”

Cildo Meireles em entrevista a Marina Fraga e Pedro Urano para a Revista Carbono em agosto de 2013


24

“O espaço deve ser considerado como uma totalidade, a exemplo da própria sociedade que lhe dá vida (...) o espaço deve ser considerado como um conjunto de funções e formas que se apresentam por processos do passado e do presente (...) o espaço se define como um conjunto de formas representativas de relações sociais do passado e do presente e por uma estrutura representada por relações sociais que se manifestam através de processos e funções.”

Milton Santos Por uma Geografia Nova: da crítica da geografia a uma geografia crítica. São Paulo: Edusp, 1978. p.122

25

A fotografia Atlas, de Cildo Meireles, mostra o artista se equilibrando na obra Socle du monde (pedestal do mundo), feita pelo artista italiano Piero Manzoni, em 1961. A obra é uma homenagem de Cildo Meireles a Piero Manzoni (1933-1963), que por sua vez homenageou o físico, matemático e astrônomo italiano Galileu Galilei (15641642), que foi perseguido por tentar provar que a Terra não é o centro do universo. Conversar publicamente sobre espaço junto de Atlas implica em: — lembrar que em 1961, quando Pedestal do mundo foi criada, havia um acordo comum de que a Terra é esférica e, portanto não é plana; — questionar a posição que o artista ocupa em relação ao pedestal; — refletir sobre as relações entre pedestal, artista, planeta esférico, galáxia finita e universo infinito em movimento.


26

ESTUDO

27

“Devo ter um gene artístico anarquista. Talvez a humanidade venha perseguindo o Estado utópico desde sua origem. Talvez uns três ou quatro homens de Neandertal tenham começado a pensar em códigos para normatizar as relações. As religiões também: os dez mandamentos foram criados para organizar a sociedade, visando atingir o céu. Mas se o seu pai for cumpri-los todos é possível que você nem nasça! Por isso considero válida a tentativa de Jesus Cristo de reduzi-los a uma plataforma mais exequível: apenas dois mandamentos.”

Cildo Meireles em entrevista concedida para o curador Guilherme Wisnik em ocasião da Ocupação Cildo Meireles, no Itaú Cultural, 2011


28

“Pode-se afirmar, justamente, que o conceito de estudo é um dos eixos estruturais da obra de Cildo Meireles. Pois, para ele, inclui tanto a ideia de um esboço que demarca um projeto cuja realização efetiva se dará no futuro, como também, pela via conceitual, a noção de um trabalho que já se realiza plenamente enquanto estudo, como um conjunto de instruções para ações. Ou, ainda, uma forma de notação que procura dar conta da irrepresentabilidade de escalas incomensuráveis, tais como as que estão presentes na noção de Arte Física.”

Diego Matos Cildo: estudos, espaços, tempo (Org. Diego Matos e Guilherme Wisnik). São Paulo: Ubu Editora, 2017. p. 12

29

“Desenho de instrução Desenho técnico, guia o manuseio de algo existente cuja manipulação deve obedecer a uma receita ou a um conjunto de regras precisas; mostra os gestos necessários para a execução de exercícios ou tarefas ou, ainda, para a construção de objetos – da jangada ao bolo de casamento. (…) Capaz de conduzir habilmente as ações humanas, o desenho de instrução pode ou não vir acompanhado de um texto, geralmente, carregado de números, abreviações e verbos no infinitivo ou no imperativo. Indica sempre como fazer: como montar e desmontar uma caixa, como encaixar as peças de um brinquedo novo, como abrir e voltar a fechar a embalagem de leite ou de sabão em pó, como construir uma jangada ou confeitar um bolo.”

Carla Zacagnini Onze desenhos. Desenho de A - Z. Ilha da Madeira: Coleção Madeira Corporate Service, 2006. p. 196-197

Para além de apenas instruções, os estudos de Cildo Meireles propõem projetos realizados, ainda que em formato de anotação. Considerando os trabalho do artista relacionados ao estudo e à instrução e relacionando-os aos comentários de Carla Zacagnini sobre o desenho, proponha a um grupo de colaboradores, por meio de instruções, uma série de ações que possam ser desenhadas ou realizadas.


30

GUETO

31

“A crise nos envolve, mas é secundária: há coisas mais importantes, como a própria sobrevivência do planeta.” “Exatamente. Quando eu era criança, nós circulávamos livremente entre os espaços internos e a rua. As portas das casas ficavam abertas o dia inteiro, e as pessoas entravam sem avisar. Isso era o normal. Como nas casas de praia, onde íamos jogar bola na rua e, para beber água, entrávamos na primeira casa cuja porta estivesse aberta, voltando depois normalmente para o jogo. Chegou um momento, no entanto, no qual as portas se fecharam. Em seguida, já precisavam ser trancadas. Em seguida, os vizinhos, e também a minha mãe, colocaram grades nos alpendres. Aí essas grades avançaram para as calçadinhas de circulação. Por fim, hoje em dia, quando passamos por onde eu morava, vemos as grades chegando até quase a rua. No Rio de Janeiro também, a partir dos anos 1970, começaram a pôr grade em tudo. A cidade acaba ficando muito feia, quase repugnante, absurda.”

Cildo Meireles em entrevista concedida ao Jornal Estado de São Paulo em 2008; em entrevista concedida para o curador Guilherme Wisnik em ocasião da Ocupação Cildo Meireles, no Itaú Cultural, 2011


32

“Seu gesto de amassar o círculo cria a Terra – esfera e planeta.(…) Em um gesto semelhante, até mesmo um diminuto cubo de madeira, Cruzeiro do Sul, pode se tornar um emblema da condição moderna, gerando reflexões sobre o sentido do conhecimento, seus mitos e os grande discursos da modernidade. Medindo apenas 9 x 9 x 9 mm, Cruzeiro do Sul é feito de duas seções: uma de pinho, madeira macia, e uma de carvalho, madeira rígida. Essas duas árvores são sagradas para povos indígenas do Brasil; ao friccionar o pinho contra o carvalho, os índios brasileiros adquiriram o conhecimento do fogo.”

Paulo Herkenhoff Cildo Meireles. São Paulo: Cosac Naif, 1999. p.17

33

“O povo original da floresta é o povo indígena. As nossas tribos são a gente que sempre viveu na floresta, mesmo os povos que vivem em região que não é de floresta grande como a da Amazônia, os que são do cerrado, os que são de região de capoeira, são povos da floresta, são povos do mato, e a cultura do nosso povo é uma cultura que tem economia, que tem toda a organização dela em cima do que a natureza oferece, em cima do que a natureza dá para os homens.”

Ailton Krenak A Aliança dos Povos da Floresta, Encontros. Rio de Janeiro: Azougue Editorial, 2015. p. 17

Converse com outras professoras e professores, com alunas e alunos, e descubra que outros conhecimentos eles possuem, que outros lugares e pessoas querem descobrir, que aprendizados fora da escola integram aquilo que sabem. Faça uma espécie de mapa do conhecimento afetivo, sem hierarquias, localizando a origem dos saberes existentes entre seu grupo de convívio.


34

LINGUAGEM

35

“Rio Oir é um palíndromo – verbo ou frase que tem o mesmo sentido da esquerda para a direita ou o contrário –, que nasceu de uma ideia “pretensamente poética”, afirma o artista. Desde o início, o trabalho não estava relacionado a “ambientalismo”, frisa Cildo Meireles, mas ser uma obra de sutileza, criada a partir de jogo e articulação entre palavras e conceitos. “Ia ser muito simples, um vinil que teria de um lado as águas e de outro, risadas. Queria fazer um rio virtual, com sons já existentes”.” “(…) O Brasil tem três bacias hidrográficas – Tocantins/ Amazonas; São Francisco; Paraná/Prata – e essas águas se encontram no Oceano Atlântico, mas existe outro ponto em que elas também se encontram, que fica perto de Planaltina, a cerca de 40 ou 50 quilômetros da rodoviária de Brasília. Quando morei lá, na década de 1970, eu ia bastante a este lugar, uma nascente para as três bacias – tem um filete que corre para um pequeno córrego, etc. O nome é Águas Emendadas e sempre achei bonita essa ideia.”

Cildo Meireles em entrevista para Camila Molina, Jornal Estado de São Paulo, Caderno de Cultura, 21 de agosto de 2011


36

“Para aprender é necessário desacelerar. Sair do ritmo urbano e se colocar como todo o corpo, a mercê de outras lógicas do tempo, dos intercâmbios pessoais e afetivos, do que ocorre como possibilidade quando um plano pré-desenhado falhar ou – afortunadamente – não se cumprir como o previsto. O tempo não produtivo. O tempo centenário. O tempo fora do calendário gregoriano. O tempo não ditado pelo trabalho humano.”

Sofia Olascoaga Desaprender, perguntar-se, escutar: Uma pedagogia da incerteza? Dias de Estudo: pesquisas para a 32ª Bienal em Santiago, Acra, Lamas, Cuiabá e São Paulo. São Paulo: Fundação Bienal de São Paulo, 2016. p. 91

37

Que tipo de LP poderia ritmar resistências? Reúna pessoas e seus LPs preferidos para conversar sobre bem viver, começos e fins de mundo. Vocês podem evocar a presença do artista lendo uma de suas frases: “Se existe poesia nesse trabalho, é a da resistência diante da vida”.


38

MEDIDA

39

“É, as pessoas continuam sendo mortas pelas mesmas pessoas, os mesmos motivos e quase nos mesmos lugares. Isso é o absurdo do Brasil, essa hipocrisia. Por exemplo, agora, essa semana, começou a prática de mais uma lei. O Brasil é o país que tem mais leis. E quanto mais leis você tem, mais desobediência à lei você tem. O futebol você tem 17 regras. Você não tem como sair daquilo ali. Tanto que quando o juiz inventa alguma coisa, perigo de gol, essas brincadeiras, você diz que o cara está aplicando a regra 18. Mas agora começou a lei do sujismundo, de jogar lixo na rua. Estão multando aí, um palito de fósforo dá quase 200 reais. Para a maioria das pessoas é quase meio salário. E, ao mesmo tempo, essa lei foi implantada sem nenhum tipo de programa educativo. Tinha que pelo menos, sei lá, dois meses os fiscais na rua falando: olha, a partir de novembro, se você fizer isso…” “Com naturalidade fui me encaminhando para peças que trabalham em grande escala, que se destinavam a indivíduos com total liberdade espacial e de tempo para desfrutar o trabalho. Queria tirar a pessoa daquele lugar e daquele momento; arrebatar, seduzir mesmo.”

Cildo Meireles em entrevista a Marina Fraga e Pedro Urano para a Revista Carbono em agosto de 2013


40

“A configuração territorial não é o espaço, já que sua realidade vem de sua materialidade, enquanto o espaço reúne a materialidade e a vida que a anima.”

Milton Santos Natureza do Espaço: técnica e tempo, razão e emoção. São Paulo: Edusp, 1996. p.51

41

Crie uma coleção de palavras relacionadas ao ato de medir a partir de uma coleta de verbos, substantivos e adjetivos presentes em notícias sobre política, economia e páginas policiais.


42

MEMÓRIA

43

“A memória é a maior de todas as realidades.”

Cildo Meireles citado pelo curador Diego Matos em material de pesquisa para realização da exposição Entrevendo no Sesc Pompeia, em 2019


44

45

“Entrevendo (…) obra “A memória, por definição, representa de 1970/1994, e que se a capacidade de recordar, conservar constitui numa instalação e lembrar estados de consciência e em que o visitante é experiências vividas. Duas formas de entrelaçamento da memória na razão convidado a adentrar humana são caros à arte de um modo uma estrutura circular de madeira, sem saída, geral: em primeiro lugar, a relação imediata e orgânica entre sentido e em direção a uma fonte de vento quente, enquanto memória e, em segundo, a construção derretem dentro da de conhecimento pelo cruzamento entre memória e história. As ciências – como boca pedaços de gelo de água doce e salgada. a história, a sociologia e a antropologia – (…) promove imediato e as técnicas humanas apropriam-se da engajamento do público memória de forma crítica, o que não seria e ao mesmo tempo o diferente nos modos de produção da arte. envolve numa diversificada (…) Cildo costuma afirmar que a memória trama de possibilidades é o ponto de partida para toda ação do de experiência.” artista, sendo ela também catalisadora de ideias. É ela que lida com a realidade implacável do tempo. (…) A origem da grande maioria de seus trabalhos está nas reminiscências do artista, recontadas e traduzidas em desenhos e projetos, objetos e instalações (…).”

Júlia Rebouças trecho do material de pesquisa para realização da exposição Entrevendo no Sesc Pompeia, em 2019

Diego Matos trecho de material de pesquisa para realização da exposição Entrevendo no Sesc Pompeia, em 2019

Escolha um trajeto comum a um grupo do qual você faz parte e convide aos integrantes a desenharem de memória, a partir de suas vivências: elementos visuais, aspectos do movimento, características do espaço, sensações físicas, compreensões, percepções sensoriais, pontos de vista, posicionamentos, alvos, fins, propósitos. Não tenham pressa. Valorize cada etapa do exercício de desenhar a partir de experiências vividas individualmente em coletivo.


46

MODO E MEIO

47

“Duchamp pagou seu dentista com o desenho de um cheque no valor de US$115, como escambo com uma “representação” do valor (Cheque Tzank, 1919). Supera a ironia com o anacrônico escambo porque torna visível aquilo que é abstraído no valor de troca: espécies e diferenças no trabalho. Na sua transação com o dentista Tzanck, Duchamp propõe dúvidas: qual o estatuto disso, cheque ou obra de arte? Qual o valor de troca disso? Quais são seus resíduos dos produtos de trabalho?” “Se a interferência de M. Duchamp foi ao nível da Arte (lógica de fenômeno), vale dizer da estética, e se por isso preconiza a libertação da habitualidade de domínio das mãos, é bom que se diga que qualquer interferência nesse campo. Hoje (a colocação de Duchamp teve o grande mérito de forçar a percepção da Arte não mais como percepção de objetos artísticos mas como um fenômeno do pensamento), uma vez que o que se faz hoje tende a estar mais próximo da cultura do que da Arte, é necessariamente uma interferência política. Porque se a Estética fundamenta a Arte, é a Política que fundamenta a Cultura.”

Cildo Meireles Escritos de artistas. São Paulo: Cosac & Naify, 1996. p. 265; p. 43


48

“A reflexão crítica sobre minha experiência como aluna em salas de aulas tediosas me habilitou a imaginar não somente que a sala de aula poderia ser empolgante, mas também que esse entusiasmo poderia coexistir com uma atividade intelectual e/ ou acadêmica seria, e até promovê-la.”

Bell Hooks Ensinando a transgredir: A educação como prática de liberdade. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2017. p. 17

49

Considere de que formas os modos de produção, circulação e interpretação da arte aparecem na produção de Cildo Meireles. Converse com alguém sobre como vocês percebem relações possíveis entre arte, política e educação, tanto em trabalhos do artista quanto em obras de outras pessoas.


50

REDE

51

“Nos anos 60, eu estava rabiscando, como qualquer um que esteja entediado. Primeiro desenhei uma secção de linha, depois outra que a intervencionava, e assim por diante, até que fiz uma grade. Em 1976 decidi fazer a mesma coisa com materiais mais rígidos. Não era mais questão de linhas sobre linhas; a segunda linha estava num plano inteiramente diferente. Essa é a origem de Malhas da liberdade, da qual a grade (ou as redes de pesca) é apenas uma manifestação. A obra consiste em um módulo e em uma lei de formação: como o módulo intersecciona o módulo anterior, determina então como ele é interseccionado por um terceiro, e assim por diante. A composição cria uma grade que se espalha sobre um plano, mas começa também a crescer no espaço, a criar um volume. Teoricamente, esse princípio estrutural poderia ser usado para fazer uma variedade infinita de formas, de estruturas cúbicas a esféricas e aleatórias. Não tem limitações formais e consiste, antes, na passagem de uma parte de uma estrutura a outra, em qualquer ponto no tempo e no espaço.”

Cildo Meireles Cildo Meireles. São Paulo: Cosac Naif, 1999. p. 21-22


52

“O universo (que outros chamam a Biblioteca) compõe-se de um número indefinido, e talvez infinito, de galerias hexagonais, com vastos poços de ventilação no centro, cercados por balaustradas baixíssimas. De qualquer hexágono, vêem-se os andares inferiores e superiores: interminavelmente. A distribuição das galerias é invariável. Vinte prateleiras, em cinco longas estantes de cada lado, cobrem todos os lados menos dois; sua altura, que é a dos andares, excede apenas a de um bibliotecário normal. Uma das faces livres dá para um estreito vestíbulo, que desemboca em outra galeria, idêntica à primeira e a todas. A esquerda e à direita do vestíbulo, há dois sanitários minúsculos. Um permite dormir em pé; outro, satisfazer as necessidades físicas. Por aí passa a escada espiral, que se abisma e se eleva ao infinito. No vestíbulo há um espelho, que fielmente duplica as aparências. Os homens costumam inferir desse espelho que a Biblioteca não é infinita (se o fosse realmente, para que essa duplicação ilusória?), prefiro sonhar que as superfícies polidas representam e prometem o infinito... A luz procede de algumas frutas esféricas que levam o nome de lâmpadas. Há duas em cada hexágono: transversais. A luz que emitem é insuficiente, incessante.”

Jorge Luis Borges A Biblioteca de Babel. Ficções. São Paulo: Companhia das Letras, 2007. p. 62

53

A criação de redes é essencial para as relações humanas: criamos redes familiares, redes de amigos, de colegas de escola, de professores, de colaboradores. Também podemos pensar na configuração das cidades como uma malha ou rede que conecta, possibilita relações, expande. A partir dessa ideia, pense sobre formas de criar, instaurar ou participar de outros tipos de redes, afetivas ou sistêmicas. Registre as possibilidades em uma lista.


54

RESISTÊNCIA

55

“Muito de minha obra se ocupa da discussão do espaço da vida humana, o que é tão amplo e vago. O espaço, em suas várias manifestações abrange arenas psicológicas, sociais, políticas, físicas e históricas. Em muitas obras isso está perfeitamente claro, como se eu estivesse trabalhando com a ervilha sobre a pilha de colchões, como diz o provérbio. Não importa realmente se ocorre ou não uma interação entre espaço utópico e espaço real. Acho que há um aspecto quase alquímico: você também está sendo transformado pelo que faz. Muitas dessas transformações se dão num nível oculto, sutil.”

Cildo Meireles Cildo Meireles. São Paulo: Cosac Naif, 1999. p. 19-20


56

“(…) artistas estão produzindo escolas como (se fossem) escolas de arte, mas escolas que não são de arte. Há nisso, ao mesmo tempo, uma dose interessante de desobediência civil – com relação à arte – e um alto grau de imaginação institucional – no que diz respeito a educação –, e vice-versa.”

Julián Fuks A resistência. São Paulo: Companhia das Letras, 2015. p. 52

57

“É preciso aprender a resistir. Nem ir, nem ficar, aprender a resistir. (…) Resistir: quanto em resistir é aceitar impávido a desgraça, transigir com a destruição, cotidiana, tolerar a ruína dos próximos? Resistir será aguentar em pé a ruínas dos outros, e até quando, até que as pernas próprias desabem? Resistir será lutar apesar da óbvia derrota, gritar apesar da rouquidão voz, agir apesar da rouquidão da vontade? É preciso aprender a resistir, mas resistir nunca será se entregar a uma sorte já lançada, nunca será se curvar a um futuro inevitável. Quanto do aprender a resistir não será aprender a perguntar-se?”

Mônica Hoff Fábrica de Conocimiento. Bogotá: Escuela de Garaje, 2016. p. 174

Como podemos olhar com atenção e sensibilidade o mundo ao nosso redor e perceber os aspectos que o formam e o deformam? Neste exercício de atenção e investigação, que perguntas poderiam nos levar a propostas coletivas de transformações psicológicas, sociais, políticas, físicas e históricas?


58

REPRESENTAÇÃO

59

“Dos movimentos que surgiram nos últimos cem anos, desde o impressionismo, a arte conceitual talvez tenha sido a mais genuinamente democrática, ampliando ao infinito a quantidade de materiais e procedimentos.”

Cildo Meireles no artigo O fio da meada, de Maria Hirzman para a revista de pesquisa da Fapesp, edição 189 / nov. 2011


60

“O entendimento tem seus preconceitos, os sentidos, suas incertezas, a memória, seus limites, a imaginação, seus vislumbres, os instrumentos, suas imperfeições. Os fenômenos são infinitos; as causas, ocultas; as formas, talvez transitórias. Contra tantos obstáculos que encontramos em nós, e que a natureza nos impõe de fora, temos apenas uma experiência lenta, uma reflexão limitada. Eis as alavancas com as quais a filosofia se propõe a mover o mundo.”

Arthur McCandless Wilson Diderot. São Paulo: Perspectiva, 2012. p. 223

61

“Horizontalidades e verticalidades, tecnosfera e psicosfera, o novo e o velho, o externo e o interno permitem reconstruir uma dinâmica espacial como arena de antagonismos e complementaridades (...). Razão global e razão local, espaços inteligentes e espaços opacos, solidariedade orgânica e solidariedade organizacional, são fenômenos qualificados a partir de uma oposição, que se confundem e, ao mesmo tempo, se distinguem e se distanciam.”

Milton Santos Natureza do Espaço, p.57

Pergunte para uma criança o que é representação. Confirme a resposta com alguém mais velho que você. Escute o que eles têm a dizer. Confronte as respostas.


62

SENTIDO

63

“Enquanto o museu, a galeria, a tela, forem um espaço sagrado da representação, tornam-se um triângulo das Bermudas: qualquer coisa, qualquer ideia que você colocar lá vai ser automaticamente neutralizada. Acho que a gente tentou prioritariamente o compromisso com o público. Não com o comprador (mercado) de arte. Mas com a plateia mesmo. Esse rosto indeterminado, o elemento mais importante dessa estrutura. De trabalhar com essa maravilhosa possibilidade que as artes plásticas oferecem, de criar para cada nova ideia uma nova linguagem para expressá-la. Trabalhar sempre com essa possibilidade de transgressão ao nível do real. Quer dizer, fazer trabalhos que não existam simplesmente no espaço consentido, consagrado, sagrado. Que não aconteçam simplesmente ao nível de uma tela, de uma superfície, de uma representação. Não mais trabalhar com a metáfora da pólvora – trabalhar com a pólvora mesmo.”

Cildo Meireles depoimento para Antônio Manuel em Ondas do corpo. Rio de Janeiro: Azougue, 2016


64

65

“Acostumados com a ideia de que um “O cego vê com as mãos.” espelho devolva nossa imagem tal como é, vivemos situação similar à do protagonista do conto “O espelho”, de Guimarães Rosa. (...) A obra não apenas sugere que o espelho seja cego por ser incapaz de retribuir como esperado pela retina. É a própria visão do espectador que, pela vivência do choque, se vê ameaçada por uma contemplação que provoca tensão na estabilidade do olhar. (...) O espectador, se sustentar o olhar, se perguntará pelos limites da própria percepção, limites que estabelecem uma impossibilidade de deixar fluir a visão. O que está sendo visto, o que pode ser visto? É a própria visão do espectador que percebe seu limite, sua incapacidade de ver. A obra aponta para uma forma de subjetividade que exige atenção. Contrariando as heranças vindas do pensamento cartesiano e do Iluminismo, encontramos aqui a projeção da imagem de um sujeito que não tem condições de organizar a produção do conhecimento. Essa limitação faz com que se volte sobre si, atingido pela própria incompreensão. É um sujeito que, descobrindo uma distância entre sua auto-imagem habitual e inesperadas imprecisões, está aquém de si mesmo.”

Jaime Ginzburg Cegueira e literatura. Revista de Estudos de Literatura, vol. 10/11, 2003/2004, p.89-90

Descartes O discurso sobre o método. São Paulo: L&M Pocket Editions, 2005. p. 51

Cobrindo palavras do texto da página seguinte com caneta preta, escreva por apagamento (ou subtração) um novo texto, que deve então ser lido em voz alta:


67

João Guimarães Rosa O Espelho. Primeiras Histórias. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editora, 1962. p. 74

Se quer seguir-me, narro-lhe; não uma aventura, mas experiência, a que me induziram, alternadamente, séries de raciocínios e intuições. Tomou-me tempo, desânimos, esforços. Dela me prezo, sem vangloriarme. Surpreendo-me, porém, um tanto a parte de todos, penetrando conhecimento que os outros ainda ignoram. O senhor, por exemplo, que sabe e estuda, suponho nem tenha ideia do que seja na verdade — um espelho? Demais, decerto, das noções de física, com que se familiarizou, as leis da óptica. Reporto-me ao transcendente. Tudo, aliás, é a ponta de um mistério. Inclusive, os fatos. Ou a ausência deles. Dúvida? Quando nada acontece, há um milagre que não estamos vendo. Fixemo-nos no concreto. O espelho, são muitos, captando-lhe as feições; todos refletem-lhe o rosto, e o senhor crê-se com aspecto próprio e praticamente imudado, do qual lhe dão imagem fiel. Mas — que espelho? Há-os «bons» e «maus», os que favorecem e os que detraem; e os que são apenas honestos, pois não. E onde situar o nível e ponto dessa honestidade ou fidedignidade? Como é que o senhor, eu, os restantes próximos, somos, no visível? O senhor dirá: as fotografias o comprovam. Respondo: que, além de prevalecerem para as lentes das máquinas objeções análogas, seus resultados apoiam antes que desmentem a minha tese, tanto revelam superporem-se aos dados iconográficos os índices do misterioso. Ainda que tirados de imediato um após outro, os retratos sempre serão entre si muito diferentes. Se nunca atentou nisso, é porque vivemos, de modo incorrigível, distraídos das coisas mais importantes. E as máscaras, moldadas nos rostos? Valem, grosso modo, para o falquejo das formas, não para o explodir da expressão, o dinamismo fisionômico. Não se esqueça, são de fenômenos sutis que estamos tratando. Resta-lhe argumento: qualquer pessoa pode, a um tempo, ver o rosto de outra e sua reflexão no espelho. Sem sofisma, refuto-o. O experimento, por sinal ainda não realizado com rigor, careceria de valor científico, em vista das irredutíveis deformações, de ordem psicológica. Tente, aliás, fazê-lo, e terá notáveis surpresas. Além de que a simultaneidade torna-se impossível, no fluir de valores instantâneos. Ah, o tempo é o mágico de todas as traições... E os próprios olhos, de cada um de nós, padecem viciação de origem, defeitos com que cresceram e a que se afizeram, mais e mais. Por começo, a criancinha vê os objetos invertidos, daí seu desajeitado tatear; só a pouco e pouco é que consegue retificar, sobre a postura dos volumes externos, uma precária visão. Subsistem, porém, outras pechas, e mais graves. Os olhos, por enquanto, são a porta do engano; duvide deles, dos seus, não de mim. Ah, meu amigo, a espécie humana peleja para impor ao latejante mundo um pouco de rotina e lógica, mas algo ou alguém de tudo faz frincha para rir-se da gente... E então?


68

SITUAÇÃO

69

“Com Tiradentes… eu estava interessado na metáfora e nos deslocamentos do tema. Queria usar o tema, vida e morte como a matéria-prima do trabalho. O deslocamento é o que importa na história do objeto de arte. Mas, esse trabalho contém um discurso mais explícito, direto, que é meu próprio ponto de vista. Como objeto formal, evoca memórias de auto-imolação, ou de vítimas de explosões ou de bombardeios de napalm. Havia toda a imagística da guerra na época, e eu queria fazer uma referência a isso, de modo que despertasse atenção. A ação foi realizada num cenário deslocado, parecido com uma abertura de exposição num canteiro de obras. Claro que jamais repetiria um trabalho com Tiradentes… Ainda posso ouvir as pobres galinhas em minha memória psicológica. Mas em 1970 senti que aquilo tinha de ser feito.”

Cildo Meireles Cildo Meireles. São Paulo: Cosac Naif, 1999. p.15


70

“A luta política deveria passar por todos os lugares onde se fabrica um futuro que ninguém ousa realmente imaginar, não se restringir à defesa dos sentimentos adquiridos ou à denúncia de escândalos, mas se apoderar da questão da fabricação desse futuro.”

Isabelle Stengers No tempo das catástrofes. São Paulo: Cosac&Naify, 2015. p. 149

71

Faça um exercício de imaginar um outro presente, diferente do que você conhece. Comece por imaginar como poderia ser seu local de trabalho, sua escola, que transformações poderiam acontecer na sala de aula, no programa pedagógico, na arquitetura da escola, nos lugares de encontros, etc. Converse com outras pessoas com quem você convive sobre o que falta para este presente imaginado acontecer em breve, tornando-se um futuro possível.


72

TEMPO

73

“O melhor momento é quando o objeto de arte risca o céu da sua consciência, sem limite, sem definição.”

Cildo Meireles no artigo O fio da meada, de Maria Hirzman para a revista de pesquisa da Fapesp, edição 189 / nov. 2011


74

“O espaço, considerado como um mosaico de elementos de diferentes eras, sintetiza, de um lado a evolução da sociedade e explica, de outro lado, situações que se apresentam na atualidade. (...) a noção de espaço é assim inseparável da ideia de sistemas de tempo.”

Milton Santos Espaço e método. São Paulo: Edusp, 1985. p. 21-22

75

Busque e pratique os estudos para tempo e espaço de Cildo Meireles. Convide alguém importante em sua vida para praticar arte com você.


76

A navegação neste livro pode se dar de inúmeras maneiras, inclusive envolvendo uma mistura de intenção, intuição, acaso e vontade dirigida. As palavras disponíveis a seguir podem ser recortadas e utilizadas como um dispositivo de associação de sentidos. Elencando uma ou mais cartas, educadores, artistas e professores podem imaginar, planejar e vivenciar encontros em que grupos de pessoas são convidados a conversar sobre arte e educação em contextos públicos.

ESPAÇO LINGUAGEM REPRESENTAÇÃO ANOTAÇÃO GUETO SITUAÇÃO DEFLAGRAÇÃO REDE


TEMPO MODO E MEIO MEMÓRIA ESTUDO RESISTÊNCIA SENTIDO ARTE MEDIDA

Ao serem associadas, as palavras podem criar conexões entre os posicionamentos dos participantes e as ideias de Cildo Meireles, Milton Santos, Ailton Krenak, Bell Hooks, Frederico Morais, Sofia Olascoaga, Diego Matos, Julia Rebouças, Jorge Luis Borges, Mônica Hoff, Julián Fuks, Arthur McCandless Wilson, Jaime Ginzburg, João Guimarães Rosa e Isabelle Stengers.


Material educativo – Sesc Pompeia ENTREVENDO – CILDO MEIRELES CURADORIA Júlia Rebouças e Diego Matos AÇÃO EDUCATIVA Quadrado Projetos Culturais CONCEPÇÃO DO MATERIAL EDUCATIVO Fábio Tremonte e Valquíria Prates COORDENAÇÃO DA AÇÃO EDUCATIVA Fábio Tremonte, Juliana Biscalquin e Valquíria Prates SUPERVISÃO Lisa Costa, Luiza Mader Paladino, Mariana Medeiros Porto e Nina Knutson

EQUIPE EDUCATIVA Álvaro Dias Cuba, Amanda Louisi, Amanda Preisig, André Prates, Beatriz Bonifácio, Beatriz Fabri, Bruna Silva, Cadu Gonçalves, Camilla Zarbinati, Carlos Miotto (Ambrosia), Carolina Meyer, Cauhê Fernandes, Cristina Naiara, Dama Valentin, Dan Fittipaldi, Dani Meira, Daniel Barros, Daniel Castilho, Daniel Moreira, Dharlan Teles, Débora Silva, Elaine Melo, Felipe Bittencourt, Felipe Mamone, Fernando Bergamo, Flávio Aquistapace, Flora Valentini, Gabriel dos Santos, Gabriela Melo, Guilherme Fernandes, Isabella Basaglia, Iza Caldeira, Jessica Rocha, João Santos, Jocarla Gomes, Jordan Henrique, Kaique Lucon, Laura Chagas, Letícia Leal, Lígia Rotter, Lili Antonelo, Lorena Marinho, Luan Lima, Luca Bussamra, Lucas Ambraziunas Goulart, Luiani Ferreira, Luiz Gonzaga, Marcelo Moreira, Marcelo Sousa, Marina Verzutti, Matheus Alves, Maycon Prates, Mirian Almeida, Natasha Lars, Pamela Lino, Pedro Pina Furtado, Pitágoras Lemos, Pool Amaral, Priscila Pires, Pyero Ayres, Ramilton Moreira, Raylander Mártis, Renan Reis Braz, Rogério Gonçalves, Stefani Bohatir, Vega Sabrina, Vic Cirino, Victor Hugo De Souza, Victoria Del Mondo e Vitoria Silva

PROJETO GRÁFICO Celso Longo e Daniel Trench ASSISTENTES Luisa Prat Caterina Bloise REVISÃO Aline Rodrigues

FONTE [FONT] GT America PAPEL [PAPER] Offset alta alvura 120g/m2 TIRAGEM [PRINT RUN] 3.000 TRATAMENTO DE IMAGEM E IMPRESSÃO [IMAGE TREATMENT AND PRINTING] Ipsis



Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.