Folder da exposição À Nordeste

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NORDES T à E REFERENCIAIS DESLOCADOS Ao se perguntar a origem de algo ou alguém, comumente a resposta vincula-se à sua localização geográfica. Por meio da intersecção de paralelos e meridianos, é possível identificar as coordenadas geográficas exatas para se encontrar um ponto específico no globo; contudo, serão elas suficientes para indicar as inúmeras circunstâncias que propiciaram a constituição de tal lugar? Posicionar-se requer mais informações que a cartografia pode oferecer. Para tanto, é

À NORDESTE Memes, GIFs, jornais, pesquisas eleitorais: em 2018, o mapa do Brasil teve sua suposta unidade nacional cindida pelo resultado das urnas. A região Nordeste, quase sempre pintada de vermelho nessas cartografias, desvelou o mito da coesão política, social e cultural brasileira, dando a ver que qualquer região do país se constitui por um processo histórico de posições, contraposições e reposicionamentos. A própria ideia de Nordeste, surgida na virada do século XIX para o XX, é índice dessa luta geopolítica. Antes chamada de “Norte”, a parte a nordeste do país é assim batizada quando deixa de ser, com a derrocada do ciclo nordestino do açúcar e a ascensão das economias da mineração, do café e da in-

fundamental conhecer os aspectos contextuais que corroboraram a formação de uma localidade, contribuindo para o entendimento das referências presentes em seu cotidiano. E, nesse sentido, a arte não é diferente. Suas produções portam em si, potencialmente, características reveladoras das condições sociais, econômicas, políticas e culturais que convergiram para sua elaboração. Nesse cenário, a exposição À Nordeste apresenta uma variedade de obras que, a partir das especificidades de seus artífices, instigam reflexões e visões diversas sobre um mesmo universo, dilatado em suas fronteiras e rico em sua heterogeneidade. Registros que convidam o espectador a deslocar seu olhar das habituais perspectivas, ampliando seus horizontes além das convenções geopolíticas, considerando que a presença nordestina extrapola as delimitações de seu território. Exercitar novos olhares incita repensar as influências constituintes de determinado espaço ou identidade, oferecendo também a

dustrialização do Sudeste, o centro político da nação. O Nordeste que então se inventa e se afirma cultural e ecologicamente enquanto região, o faz ao ocupar uma posição identitária que é, por sua vez, contraposição a essas hegemonias. A história social das identidades – supostamente regionalistas – e suas estratégias de luta é o que o Nordeste encarnado das últimas eleições traz à cena. Ecoa, assim, a instigante pergunta do artista cearense Yuri Firmeza: “a nordeste de quê?”. Movida por essa indagação, esta exposição é um recorte da recente produção artística que, criada desde o Nordeste e em fricção com suas imagens, aqui é convocada para um diálogo trans-histórico entre autores e interesses diversos, organizado em núcleos: futuro, (de)colonialidade, trabalho, cidade, insurgências, linguagem, natureza, desejo. Craseamos a expressão “À Nordeste” para desfixá-la geográfica, identitária e linguisticamente: desobedecemos a norma culta pelo imprevisto uso de uma crase que poli-

oportunidade de se posicionar criticamente diante da sociedade. Como instituição socioeducativa, o Sesc proporciona a seus públicos, por meio da arte e da cultura, atividades que estimulam a percepção da alteridade, atentando para suas particularidades, pois reconhece a importância dessas ações para o fortalecimento da cidadania. Danilo Santos de Miranda Diretor do Sesc São Paulo

tiza e sublinha a dimensão de posição que é inerente (ainda que muitas vezes invisível) à ideia de região. A crase torna ambivalente o estereótipo regionalista, pois evita o artigo definido “o” – e, com ele, uma identidade unívoca – de “o Nordeste”, gramaticalmente indicando movimento: trânsitos que questionam estigmas e destinos. Ao indagar em que posições se encontram nossas identidades e valores, a pergunta autorreflexiva “a nordeste de quê?” evidencia também preconceitos. Confrontadas com corpxs e subjetividades que se deslocam e se reposicionam politicamente, nossas convicções são surpreendidas por um Nordeste craseado que, insurgindo-se contra as normatividades vigentes, ativa a linguagem – e a arte – como armas de luta e de gozo. Curadorxs

curadoria BITU CASSUNDÉ CLARISSA DINIZ MARCELO CAMPOS

Agendamento de visitas educativas: agendamento@24demaio.sescsp.org.br SESC 24 DE MAIO Rua 24 de Maio, 109 Tel: (11) 3350-6300 República | Anhangabaú /sesc24demaio sescsp.org.br/24demaio

visitação 16 MAI — 25 AGO 2019

terças a sábados, das 9h às 21h domingos e feriados, das 9h às 18h


(DE)COLONIALIDADE

Cristiano Lenhardt, Polvorosa, 2012, videoinstalação. Cortesia Fortes D'Aloia & Gabriel, SP e RJ.

FUTURO

A colonização do que hoje chamamos Brasil se iniciou pela porção a nordeste desse território. Talvez por isso seja comumente atribuído ao Nordeste um imaginário de traços arquetípicos, remetendo-nos a narrativas originárias. Contudo, essa região constantemente produz futuro, reimaginando a história e compondo outras políticas. Não faltam aos atravessamentos do Nordeste visões e hipóteses sobre sua existência não enquanto periferia, mas enquanto centro, como se vê na pintura de Cícero Dias, “Eu vi o mundo… e ele começava no Recife” (1926-1929), no reino inventado por Bispo do Rosário e nas cartografias produzidas por artistxs de várias épocas, que afetivamente reorganizam as ordens geopolíticas vigentes. A torção das tradições e de seus ícones também é provocada por artistxs que os reinterpretam ao inscrevê-los em novos contextos sociais, conferindolhes novos usos, como a carranca de fibra de vidro e LED na dianteira da moto de Tadeu dos Bonecos. O artista nos ensina que manter o sentido cosmopolítico das carrancas é, necessariamente, reinventar sua presença em todos os campos da vida e que encontra, na criação, um território profícuo.

A formação social do Brasil, estruturada pela colonização, tem um profundo lastro na formação do Nordeste: por trás de cidades tingidas de ouro, a região foi também lócus de dimensões violentas e subalternizantes, como a escravidão e a monocultura. Porém, entre os séculos XVIII e XIX, o Nordeste alterou sua centralidade econômica, social e política, tornando-se, já no século XX, sinônimo de miséria e vulnerabilidade social, lançando sobre seus sujeitos mais uma dura camada de preconceitos diversos. O desejo sempre foi o de romper com esse processo. Signos de uma elite gestada pela violência do passado colonial continuam sendo reapropriados em processos híbridos de resistência política, ao tensionar preconceitos como “alta e baixa cultura”, “popular e erudito”, “arte e artefato”. Tradições e patrimônios antes desprestigiados são recriados, quando não suprimidos por um regime pautado na exploração e no extrativismo sociocultural. Xs artistxs evocadxs aqui evidenciam essa quebra de estigmas e estereótipos, lutam pela visibilidade de corpxs negros, indígenas, trans, não binários, e devolvem-lhes a soberania cultural, ética, social, moral e estética saqueada pela colonização.

TRABALHO

INSURGÊNCIAS

Em revoltas e resistências – tantas delas protagonizadas por mulheres como Maria Quitéria, Anna Nery, Luiza Mahin, Dandara, Maria Felipa, Esperança Garcia, Bárbara de Alencar, Nísia Floresta –, nas decisões políticas sobre tornar-se independente ou abolir a escravidão, nos grupos revolucionários (cangaço, Canudos ou ligas camponesas), por meio de messianismos ou em organizações políticas e religiosas, insurge-se o Nordeste. O feminismo e as lutas negra e indígena travam também batalhas contra a invisibilidade e a desigualdade, movimentos dos quais a arte participa com produção simbólica, militância e debate crítico. Resistentes, as sociabilidades experimentadas nas ruas, em comunidades diversas e em ambientes de tradições matrilineares, como os terreiros de candomblé – lugares de culto, escola, quilombo –, produzem uma arte que se insurge entre tradições e ancestralidades, eclodindo nos muros, nas feiras, nas festas e em famílias que salvaguardam e a cada dia transformam conhecimentos e ofícios. Nesse contexto de diversidade cultural e política, insurgir-se é um gesto irredutível para comportamentos cívicos. Corpxs insurgentxs questionam regras que inventam e negociam proibições sociais, fazendo-se notar em manifestações e imagens que desmistificam dicotomias como “o Bem e o Mal” ou atualizam lutas históricas. O carnaval, as procissões, as passeatas vociferam urgências sociais e sublinham o desbocado grito que reivindica, como corpx coletivx, o que já deveria ser de direito.

Tiago Sant’ana, Refino #2 (banho), 2017, vídeo. Acervo do artista.

CIDADE

As primeiras capitais do Brasil – com suas universidades, seus jornais e portos –, situavam-se a nordeste de seu território. Cosmopolitas, as cidades da vasta região buscaram conexões por terra, abrindo estradas, algumas inacabadas, que se tornaram cicatrizes nos mapas e na história política do país. As rodovias (BRs) quase fazem perder de vista aquilo que se vê nas grandes cidades: a desigualdade social de uma arquitetura da violência, um urbanismo racista e formas de organização social que isolam aqueles que nunca cessaram de borrar as margens que os centros insistem em fortificar. Em territórios antes destinados às atividades rurais, as cidades proliferam no Nordeste, criando estéticas que acompanham a agressiva especulação imobiliária. Prédios espelhados, porcelanatos, morfologias arquitetônicas híbridas reinventam a imagem colonial do Nordeste, tensionando as políticas e as memórias patrimonialistas com referências contaminadas pela globalização, pela internet e pela pujante produção cultural contemporânea: do brega ao frevo, do forró ao funk, do maracatu à swingueira.

DESEJO

Paula Sampaio, Série “Nós”, 2004, fotografia. Acervo da artista.

Marcelo Gandhi, Nephilim, 2018, tinta acrílica sobre papel couché. Acervo do artista.

Bárbara Wagner e Benjamin de Burca, Edifício Recife, 2013, jato de tinta sobre papel de algodão. Coleção Eliana Finkelstein, São Paulo.

“A Grande Seca” (entre 1877 e 1879) gerou impactos políticos e sociais. O momento de fragilidade produzido pela ausência de chuva tanto colaborou para afirmar, diante da nação, a ideia de “sertão” e de “Nordeste”, como forçou migrações de suas populações rumo ao sul do país. Em grandes massas de trabalhadores – na maioria, empregados em condições precárias, quando não desempregados e em vulnerabilidade social –, xs “nordestinxs” chegam ao século XX quase como sinônimo, para as forças hegemônicas do país, de “mão de obra”. Um trágico exemplo disso são os “soldados da borracha”: 60 mil trabalhadores nordestinos compulsoriamente alistados pelo Serviço Especial de Mobilização de Trabalhadores para a Amazônia (SEMTA) a partir de 1943, para extrair borracha para envio aos Estados Unidos da América. Calcula-se que menos de 6 mil deles tenham retornado a suas origens. Em outros territórios, esses trabalhadores produzem uma economia de resistência. Feiras e centros de tradições nordestinas, o comércio de valores simbólicos e práticas culturais, a disseminação da música e da culinária dessa região indicam processos complexos e altamente políticos de resistência por meio da cultura e das formas de organização social dessas comunidades.

É patente que o desejo foge à norma. Um Nordeste desejante perturba seu patriarcado e incomoda as viris nordestinidades. Do carnaval aos motins, do sexo à poesia, desejar é um exercício de liberdade e se dá na prática dxs corpxs, das ruas, dos livros, das assembleias, das paisagens. Numa região de profundo machismo e de altos índices de homofobia, transfobia e feminicídio, o desejo é disputado por violências e abusos e por seu avesso: um desejar emancipatório, que reelabora identidades, transiciona gêneros, transubstancia matérias. Desejar é um ato político bastante explorado também pelxs artistxs cuja obra se faz a nordeste. Marcado pela imigração, o desejo por um outro lugar atravessa a região. A economia que força deslocamentos em busca de uma vida melhor acompanha o imaginário historicamente construído por todos aqueles cujas vidas – simbólica e politicamente – ampliaram, porque dissolveram, as fronteiras do Nordeste. Ao passar, esse contínuo ir semeia, por sua vez, o desejo de retornar: no embalo da saudade, a nordeste, o desejo suspende o tempo.

Gilvan Samico, Comedor de folhas, 1962, xilogravura. Acervo Museu de Arte Moderna Aloisio Magalhães.

Davi Rodrigues, Bichos e frutas do Recôncavo Baiano, 2010, tinta acrílica sobre papel. Acervo do artista.

NATUREZA

Banhado pela luz equatorial, o Nordeste está na parte mais luminosa do planeta e converte seu contexto ecológico em gestos políticos, iluminando urgências da história – no Ceará, a abolição da escravidão deu-se 4 anos antes da Lei Áurea, e o Recôncavo Baiano iniciou a luta pela independência antes do resto do país. Pensar a natureza dessa região é encarar todas as perspectivas produzidas sobre ela – da ideia do sertão e seus flagelos aos conceitos de tropicalidade inextricáveis à experiência de uma vida litorânea. Xs artistxs reunidxs neste núcleo politizam e recriam os sentidos da natureza – seus biomas, suas linguagens, as relações entre a espécie humana e outras formas de vida. Dissolvem alguns dos limites identitários ligados ao Nordeste e indicam dimensões tecnológicas, ficcionais, conflitivas, surrealistas, ornamentais, estéticas, eróticas e subjetivas de suas naturezas. Não fixam a região em uma única paisagem, mas preservam as formas de pertencimento às suas naturezas nxs corpxs, nas memórias, nos afetos, nas melodias e na oralidade que as perfazem para além de qualquer biologia.

LINGUAGEM

A alfabetização é um instrumento de poder. Uma linguagem compartilhada pode ser uma ambiguidade à qual os indivíduos colonizados tiveram de se submeter para negociar e reivindicar, aos opressores, suas singularidades. Recentemente observamos o ressurgimento e a reinvenção vocabular e gramatical de línguas destruídas pelos genocídios e epistemicídios da colonização – gírias, sotaques, pajubás e línguas indígenas reescrevem e reinscrevem, a nordeste, as narrativas hegemônicas. Pela dimensão política da linguagem, tão opressora quanto libertária, referências de “culturas africanas” e “indígenas” serviram como motrizes para questionar e potencializar a arte europeia, numa reversão da cultura do colonizado em favor do capital (simbólico e financeiro) do colonizador. Nesse gesto de apropriação e tradução, a eurocêntrica arte moderna, além de invisibilizar seus autores originários, neutralizou expressões como a pintura corporal, performances ritualísticas, marcas e incisões em estetizações geometrizantes. Para além da arte, essas referências são atualizadas criativa e criticamente em festas populares, tatuagens, padronagens étnicas, figurinos, designs, arquiteturas e poéticas de tipos diversos.

[Nos textos de À Nordeste foram suprimidas as letras que condicionam algumas de suas palavras-chave (como corpxs, artistxs, nordestinxs) ao binarismo de gênero. A escolha por grafá-las com um x destaca a diversidade das formas de existir que constitui a exposição.]


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