Dias Ímpares, set/out, 2021
EDITORIAL
chance do contato com o outro que, talvez, não se realizasse de outra for-
O terceiro número do Suplemento
ma. Os numerosos poemas recheiam
Literário Dias Ímpares fortalece a ini-
nossas páginas com variados eulíricos,
ciativa de colocar, como conteúdo de
transbordando possibilidades de utili-
suas páginas, a diversidade de vozes
zação da palavra na poesia.
que faz parte da literatura nacional.
Como primeiro ensaio, com as pos-
O resultado, publicado nessa edição,
sibilidades do niilismo e do cômico na
é uma junção de uma voz acadêmica,
obra de Joanin Pepperoni, temos Caio
na exploração ensaística do texto li-
Passamani. Em seu manifesto, Ian
terário, com um ensaio de voz mais
Pereira Silvares como Reichenbach, re-
própria, metalinguística, que coloca
flete sobre a brasilidade e sua cultura,
na própria relação com a palavra no
numa multiplicidade de vozes dotadas
texto o seu conteúdo.
de uma ironia ácida.
Esses modelos, mais voltados para experimentação ou dissertação de
EXPEDIENTE CENTRO CULTURAL SESC GLÓRIA
Gerência - Centro Cultural Sesc Glória Carlos Bermudes
Coordenação de Cultura – Centro Cultural Sesc Glória Rita Sarmento Costa
SUPLEMENTO LITERÁRIO DIAS ÍMPARES
A ficção tão contemporânea de Carlos Abelhão, nos narra um episódio
ideias e análises, vem ao lado de fic-
que é atravessado, agora, pela pande-
ções que, na apropriação de uma voz
mia, mas que sabemos ser tão presen-
narrativa, conquistam o território da
te. Os poemas ficam por conta de Ana
literatura enquanto diálogo: diálogo
Claudia Marchetti, Caroline Carvalho e
de compartilhar a si mesmo e dar a
Francis Kurkievicz.
Produção Bianca Sizini Faller Gabriel do Nascimento Barbosa Thiago Arruda
Imagem de Capa Favela Wiring de Anthony Goto, dialogando com as conexões dos múltiplos espaços representados,
COLABORADORES Colaboram com textos
Colaboram com imagens
Caio Passamani; Ian Pereira Silvares;
Antti Simonen (p. 4); Inwit (p. 17);
Carlos Abelhão; Ana Cláudia Marchetti; Caroline Carvalho; Francis Kurkievicz
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nesse número, pela extensão entre o discurso universitário e a periferia
Dias ímpares, set/out, 2021
Humor como antídoto O riso na obra de Joanim Pepperoni, PHD Caio Passamani Mestrando em Letras pela universidade Federal do Espírito Santo As considerações filosóficas tecidas e, até mesmo, estórias pertencentes ao lógica do termo “cocanha”, malgrado as neste ensaio preparam terreno para imaginário infantil. Em se tratando da tentativas filológicas de associá-la à coum novo enlace: relacionar o humor na escrita criativa, detalhe algum do quo- zinha. Segundo a estória, certo viajanObra reunida, de Joanim Pepperoni, ao tidiano banal, dos usos e costumes da te, a fim de pagar uma penitência papal, niilismo. O objetivo é discutir sobre a chamada “Terra da Cocanha” parece lhe deu com essa terra maravilhosa, na qual produção de riso como antídoto cria- escapar. Trata-se de uma sátira da re- quem mais dorme, mais ganha – uma tivo contra as dolorosas e ameaçado- gião de imigração italiana no Rio Gran- possível crítica à figura do usurário, hisras incongruências da vida (MARMYSZ, de do Sul (a Serra Gaúcha) que, através toricamente polêmica, que “engorda” 2003, p. 04), isto é, contra o desespero da verve humorística de Pepperoni, enquanto dorme. Para além das noções em potencial diante da caducidade dos transfigura-se nessa “terra maravilhosa” acima atribuídas à Terra da Cocanha, grandes e últimos valores, como a mo- em que tudo que se planta dá, a fartu- o historiador francês salienta: nela, diral, a religião e a política.
ra alimentar é sempiterna – as próprias nheiro tinha pouca serventia, porque
O escritor Joanim Pepperoni, PhD moradias são feitas de guarnição –, há “tudo é gratuito neste país onde nada
recentemente reuniu suas obras – uma rios de vinho, o clima é sempre agradá- se compra e nada se vende” (LE GOFF, somatória de onze títulos distribuídos vel, seus habitantes são valentes e cor- 2013, p.65). em 396 páginas – em uma antologia de teses e todos permanecem jovens para título sugestivo: Obra reunida. Observa- sempre (LE GOFF, 2013, p. 64).
Sonho utópico de fartura e sereni-
dade, o imaginário da terra cocanhae é
Créditos a Le Goff, a narrativa solo fértil para discorrer sobre as gran-
Vento sul
-se, em sua escrita altamente humorís-
tica e satírica, uma presença perene de acerca deste país das maravilhas remon- des mazelas da humanidade; afinal, a trocadilhos, uma comicidade anafórica ta a um conto versificado, escrito em generosa descrição dessa terra mitolóque retoma conjunturas sócio-políticas francês antigo por volta do século XIII. gica faz dela um arquétipo avesso da atuais, cânones da literatura mundial Não há consenso frente à origem etimo- realidade tal como se apresenta – isto
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Dias Ímpares, set/out, 2021 é, falha. Joanim Pepperoni soube dis-
que expele ininterruptamente fiorins
cabeça contra uma pedra de moinho”.
so e usou tal percepção como ferra-
de ouro; rio cujas águas são feitas de
Na peça teatral A revolta do moinho, o
menta para suas críticas bem-humo-
molho de tomate; montanha de farinha
autor flerta com uma comicidade ab-
radas.
coberta com queijo parmesão; empre-
surda porque altamente inverossímil: o
Na introdução ao seu primeiro li-
endedorismo; vida de aparências; es-
personagem principal da peça – e már-
vro, A fantástica máquina de ensacar
perteza; fortuna fácil; ócio; quem mais
tir da revolução – é nada mais que um
berros (2013), o autor apresenta uma
pega, mais possui; etc. etc.; (PEPPERO-
debulhador de milho maneta, como se
bem-humorada descrição para o ver-
NI, 2020, p.15)
fosse possível tal proeza com uma só
bete “Cocanha”, misturando dados
As obras reunidas em sua anto-
mão. Joanim e a lâmpada de querosene
logia são de gêneros literários distin-
surge no horizonte como uma emula-
A palavra Cocanha: o mesmo que
tos: o autor transita pela poesia, nove-
ção bem-humorada de Aladdin e a lâm-
Cocagne, Cockaygne, Cuccagna, Cha-
la, teatro e pelo conto infantil. Em seus
pada maravilhosa – célebre conto pre-
cona; também conhecida como Mé-
textos, o leitor conhece um universo
sente na coletânea árabe As mil e uma
rica; corruptela da palavra calcanhar
particular cujo fio condutor é a cultura
noites. Na adaptação de Pepperoni, o
(colcanhar, cocanhar, cocanha); por
da imigração italiana em terras verde-
protagonista, em cuja casa “tudo o que
alguns hábitos, colônia; terra maravi-
-e-amarelo. A antologia é aberta com a
amealhava nos negócios durante o dia
lhosa em que se verifica uma inversão
chistosa Palavras do autor, em que Jo-
era totalmente consumido pela família
violenta da realidade vivida; pau-de-
anim faz alegações fantasiosas de cé-
no jantar” (PEPPERONI, 2020, p. 295),
-sebo para os vizinhos caipiras; ar-
lebres escritores: “Disse Cervantes que
recorre à figura do gênio para se casar
busto em cujos galhos crescem toda
escreveu Dom Quixote após violenta
com a filha do rei Napolentão: a prince-
sorte de salames e queijos; vulcão
batida do hemisfério esquerdo da sua
sa Dulcimilha. A obra poética A fantás-
Vento sul
reais com inventados:
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Dias Ímpares, set/out, 2021 tica máquina de ensacar berros abarca O NIILISMO
tico que, por sua vez, leva a interpre-
criativas adaptações de grandes versos
tações equivocadas – daí a importân“Vanitas vanitatum et omnia vanitas”
cia da revisão bibliográfica frente aos
“Sobre a saudade” e “As vantagens da (Ec, 1:02) – eis o adágio salomônico que
impulsos de defini-lo em palavras.
Cocanha” – claras referências à “Canção serve de força centrípeta para toda a re-
Dentre outras tentativas de igual ser-
do Exílio” e a “Vou-me embora pra Pa- flexão sapiencial do livro do Eclesiastes.
ventia para o entendimento do fenô-
sárgada”, de Gonçalves Dias e Manuel O texto, cuja escrita é comumentemen-
meno, arrisca-se uma possível apre-
Bandeira, respectivamente. Essa obra te atribuída ao filho de Davi, versa sobre
ciação do vocábulo: niilismo é um
termina com duas adaptações diverti- a vacuidade da existência humana num
conceito filosófico segundo o qual o
díssimas das orações do “Pai nosso” e mundo em que não há nada de novo
devir histórico não apresenta uma or-
da “Ave Maria” – seguindo a apologia sob o sol. Nessa chave interpretativa,
dem providencial que sirva como an-
humorística à culinária italiana, têm-se o sábio rei de Israel lança mão de uma
coradouro para os valores últimos da
o “Polenta nossa” e o “Ave Polenta”. Seja indagação seminal para se conceber o
vida, tais como os religiosos, os polí-
em prosa, seja em verso, a criação de niilismo; afinal, “que proveito tiraria o
ticos e os morais. De forma prática, a
Pepperoni faz insistentes referências à culinária italiana – um dos pontos em que mais pesa a profunda comicidade de sua escrita. O riso em Pepperoni parece habitar a pretensa seriedade com que lança suas assertivas descompromissadas. Suas humoradas confabulações passam credibilidade ao leitor por se revestirem de ares doutos (ele se diz PhD) e emularem os patronos da literatura ocidental e brasileira. Entre suas criações, há também
niilismo é um conceito filosófico segundo o qual o devir histórico não apresenta uma ordem providencial que sirva como ancoradouro para os valores últimos da vida, tais como os religiosos, os políticos e os morais.
contingência abissal que deriva desse entendimento engendra, como salienta John Marmysz, indagações sobre o sentido do esforço humano frente à impossibilidade humana de conceber respostas sólidas, plausíveis, para suas grandes indagações (MARMYSZ, 2003, p. 02). Acontece que, em função da ênfase sobre a inutilidade de qualquer apreensão dos fins últimos da existência (pois nada serviria se sustentáculo), o niilismo é tomado
aquelas que fogem à sombra da Coca- homem de todo o trabalho com que se
frequentemente como uma constata-
nha e, nem por isso, são menos engra- afadiga debaixo do sol?” (Ecl, 1:03).
ção que invariavelmente levaria ao de-
çadas do que todo o restante da obra. É
sespero e à decadência – o que enseja
A inclinação humana por clarivi-
o caso de algumas adaptações em Rapa dência é de um atavismo que remonta a de panela: e.g., o poema “Da Dama- tempos imemoriais. Essa constante do
certa observação elucidativa.
Com uma percepção vocabular
res” retoma, numa criatividade única, a pensamento revela o quão cara é a no-
mais sutil, os termos “insignificante”
atávica cantiga “A barata diz que tem”. ção de propósito para a espécie pensan-
e “sem valor”, tidos geralmente como
Além disso, nem mesmo os elementos te em seu clamor por lucidez. Não obs-
intercambiantes nos discursos quoti-
paratextuais escapam aos trocadilhos e tante, assim como apregoa Salomão,
dianos, deixam de ser sinônimos. O
às galhofas: o carimbo de identificação muitos que se dedicaram à análise dos
uso indiscriminado dos dois vocábu-
ex libris (Polenta com Pissacàn), o nome últimos porquês constataram a fugaci-
los leva a crer que o signo, o sentido,
da editora que publica a obra (Prensa dade da vida, segundo a qual a busca
é condição sine qua non para a con-
dos Torresmos), a ficha catalográfica por unidade é “correr atrás do vento”.
cepção de valor. Não obstante, alegar
indicando publicação em Polentawood,
É em meio a tal cenário que o nii-
que algo carece, em seu interior, de
a classificação da obra como literatura lismo ganha seus contornos. O termo,
significado claramente determinado
cocanhesa, ou mesmo a criativa descri- quando
indiscriminadamente,
não implica que ele não tenha valor;
ção do conselho editorial (em verdade, passa por um empobrecimento semân-
isto é, o processo valorativo das coi-
conselho “naneditorial”).
sas e, em última instância, da vida,
usado
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Vento sul
da literatura brasileira, com os poemas
Vento sul
Dias Ímpares, set/out, 2021 não necessariamente pressupõe um entre mundo sensível e suprassensível
mana não é tarefa simples. Em verda-
significado para tal. Trata-se, aqui, de (ARALDI, 1998, p. 77). O filósofo cri-
de, um dos mais célebres aforismos
um esforço hermenêutico para sugerir tica tal discriminação, afirmando que
nietzschianos afirma: “[...] se você olha
certa analogia a Camus quando, em O “cristianismo é platonismo para o povo”
longamente para um abismo, o abis-
mito de Sísifo, alega que a proposição (NIETZSCHE, 2005, s/p) e alegando que
mo também olha para dentro de você
“a vida não tem sentido” não implica “em todos os cantos da Terra existem
(NIETZSCHE, 2005, §146)”. Voltado à
necessariamente conceber que ela aqueles que esperam, mal sabendo
metáfora, tal excerto abre precedente
“não vale a pena ser vivida” (CAMUS, em que medida esperam, e menos ain-
para uma série de interpretações, den-
2013, p. 22).
da que esperam em vão” (NIETZSCHE,
tre elas, a de que o “abismo” pode ser
Assim, assentir à visão do mun- 2005, §274). A seu ver, transferir o cen-
compreendido como essa ausência de
do que o niilismo oferece – de que a tro de gravidade vital do campo do sen-
sustentáculos para os grandes valores
condição humana carece de ancora- sível para o do suprassensível tem suas
tradicionais. Nietzsche entendeu como
douros honestos que sustentem elu-
niilismo passivo aquele que implica de-
cidações para os grandes dilemas da existência – não implica obrigatoriamente tomá-lo como uma filosofia anti-humanista, apologética do declínio. Ou seja, nem todo aquele que versa sobre o niilismo, salienta Marmysz, seria um niilista na acepção destrutiva do termo.
NIILISMO & NIETZSCHE
Clademir Luís Araldi revela que o niilismo possui um lugar destacado na obra de Friedrich Nietzsche. O filósofo do martelo identificou o niilismo como uma questão fundante para o entendimento da modernidade – pois é nela que, frente a uma crise axiológica decorrente de uma visão de mundo mecânico-científica, o fenômeno se radicaliza (ARALDI, 1998, p. 75). O pensador do século XIX compreendeu o fenômeno como o ponto de vista que toma como “infundados os valores tradicionais, negando qualquer sentido para a vida humana” (CEI, 2016, p. 16). De acordo com Nietzsche, a tradição metafísica e religiosa – aquela a que recorre a moral vigente na sociedade – está pautada em clara divisão
O filósofo do martelo identificou o niilismo como uma questão fundante para o entendimento da modernidade – pois é nela que, frente a uma crise axiológica decorrente de uma visão de mundo mecânico-científica, o fenômeno se radicaliza consequências: “tudo de benéfico, promovedor de vida, garantidor de futuro nos instintos passa a despertar suspeita” (NIETZSCHE, 2016, §43). Isso sem considerar que o “além”, tomado como confabulação, teria o mesmo valor que “nada” e, portanto, acreditar nele engendraria certa decadência: acaba-se por negar os prazeres da vida em si em
cadência, ressentimento, regressão e declínio (CEI, 2016, p. 18). Diante do abismo, o filósofo alemão diz ser necessária uma postura ativa, afirmadora da vida, para uma transvaloração dos antigos valores tradicionais – doravante caducos e nada úteis. Tal postura proativa em face da vida como ela é foi chamada de niilismo completo. Em suas palavras, “a vida maior, mais múltipla e abrangente vive além da velha moral” (NIETZSCHE, 2005, §262). Entretanto, nem todos apresentam coragem para levar uma vida sem muletas ou ancoradouros do suprassensível; tais pessoas necessitam de se ater a seus valores porque não conseguem suportar a ideia de um mundo relegado à contingência. Para tanto, ele afirma em Além do Bem e do Mal: “Independência é algo para bem poucos - é prerrogativa dos fortes” (NIETZSCHE, 2005, §29).
função dos supostamente vindouros. O autor entende que não há nada além do
NIILISMO & CAMUS
campo do sensível (a faculdade dos cinco sentidos humanos) para sentir e julgar o mundo. Entende-se: não há lugar em Nietzsche para o transcendente. Encarar o niilismo enquanto espectro que paira sobre a condição hu-
Nos escritos de Albert Camus, o termo “niilismo” sugere – como em Dostoiévski – decadência e terror. Em seu ensaio O homem revoltado, o pied-noir afirma que “o niilismo [...] afoga então a força de criação (e) acrescenta ape-
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Dias Ímpares, set/out, 2021 nas que se pode construí-la por todos valores da vida está na base de pensa- franco-argelino alega que, se, por um os meios disponíveis (CAMUS, 2017, p. mento do escritor franco-argelino; ou lado, o absurdo aniquila minhas pos126)”. É preciso elucidar a expressão seja, suas ideias estão, de certa forma, sibilidades de liberdade eterna, por “todos os meios disponíveis”.
imbricadas com a acepção nietzschiana outro, exalta minha liberdade de ação
Publicado em 1951, O homem mais ampla de niilismo. Camus também neste mundo (CAMUS, 2013, p. 68). A revoltado marcou o término do com- se mostra afeito, em sua obra, à pos- escolha para a epígrafe do ensaio O panheirismo entre Camus e Sartre, na tura afirmadora e ativa da vida como Mito de Sísifo não foi aleatória, pormedida em que este – enquanto pensa- ela é; em outros termos, contingente, que trata de uma fala do poeta grego dor público – tentava aproximar sua fi- gratuita. Trata-se da noção camusiana Píndaro: “Oh, minh’alma, não aspira à losofia do marxismo, e aquele o criticou de absurdo: “a oposição entre nosso vida imortal, mas esgota o campo do duramente, alegando que “a filosofia desejo de compreender e de durar e a possível”. pode servir para tudo, até mesmo para opacidade e finitude do mundo” (PINTO
O título de seu ensaio remonta
transformar assassinos em juízes” (CA- In: CAMUS, 2020, p. 09). O autor me- à representação alegórica da sua re-
desse ensaio camusiano garantiu-lhe, assim, uma espécie de ostracismo até 1960, ano em que morreu em um acidente de carro.
A questão é que, para Camus, a
constatação do “nada de qualquer moral” (CAMUS, 2017, p. 122) levou o ser humano a diversas direções, inclusive a tiranizar a vida humana, o que ele abominava. Daí niilismo aparecer, em Camus, com uma conotação depreciativa. O autor afirma que “se o nosso tempo admite tranquilamente que o assassinato tenha suas justificações, é devido a essa indiferença pela vida que é a marca do niilismo” (CAMUS, 2017, p. 15) e, posteriormente – nas últimas páginas do mesmo ensaio – que “para além do niilismo, todos nós, em meio aos escombros, preparamos um renascimento. Mas poucos sabem disso” (CAMUS, 2017, p. 394). Camus pareceu demonstrar aversão ao “niilismo”, compreendendo-o como “uma violenta radicalização da vontade de destruir” (CEI, 2016, p. 18).
Malgrado Nietzsche entender nii-
lismo como uma causa e Camus, como uma consequência desastrosa, a noção de que nada fundamenta os grandes
Os seres que compreendem o absurdo da vida, “a razão lúcida que constata seus limites” (CAMUS, 2013, p. 61), escolhem não eludir o grande problema semântico da existência humana, mas encará-lo em todas as suas consequências. diterrâneo coaduna-se com uma noção mais holística de niilismo ao dizer que “nenhuma moral, nenhum esforço são justificáveis a priori diante das matemáticas sangrentas que ordenam nossa condição” (CAMUS, 2013, p. 30).
Os seres que compreendem o ab-
surdo da vida, “a razão lúcida que constata seus limites” (CAMUS, 2013, p. 61), escolhem não eludir o grande problema semântico da existência humana, mas encará-lo em todas as suas consequências. A priori potencialmente desalentadora, a descoberta do absurdo revela-se uma apologia aos frutos da terra, à beleza da vida sob uma perspectiva lúcida que não trapaceia. O escritor
flexão: créditos a Homero, Sísifo foi condenado pelos deuses a empurrar uma rocha do sopé aos cumes de uma montanha, de onde tornava a cair por seu próprio peso ad infinitum. Não haveria castigo mais terrível que tal trabalho – inútil e sem esperança; nas palavras de Camus, “absurdo”. Não obstante, o autor revela: “é preciso imaginar Sísifo feliz” (CAMUS, 2013, p. 141), pois “a própria luta para chegar ao cume basta para encher o coração de um homem” (CAMUS, 2013, p. 141) – tal é o desenlace de sua alegoria, cujo sentido está assentado na seguinte noção: o homem absurdo, assim como Sísifo – o herói absurdo –, é dono de seu próprio destino, aterrador por excelência. Ao descer pela enésima vez ao sopé da montanha para buscar sua rocha, despreza sua sina (CAMUS, 2013, p. 139), manda os ídolos se calarem (CAMUS, 2013, p. 140) e escolhe aproveitar o trajeto.
Tal verve do pensamento camu-
siano aproxima suas ideias às de Nietzsche quando este versa, por exemplo, sobre o amor fati: “Minha fórmula para a grandeza no homem é amor fati: nada querer diferente, seja para trás, seja para frente, seja em toda a eter-
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Vento sul
MUS, 2017, p. 11). A polêmica recepção
Vento sul
Dias Ímpares, set/out, 2021 nidade. Não apenas suportar o neces- 2013, p. 114) e não se entrega à resig-
te tomada como
sário, menos ainda ocultá-lo [...] mas nação; afinal, não há arte onde não há
desespero, como angústia. No entan-
amá-lo...” (NIETZSCHE, 2008, §10). A nada a ser vencido (CAMUS, 2020, p.
to, defende-se aqui a seguinte ideia:
despeito de não usar esse termo ipsis 20). O criador absurdo jamais se desvia
ausência de esperança no porvir não
litteris, a obra camusiana enseja um da dor humana e, por isso, não pode-
conduz obrigatoriamente ao desalento
convite para o usufruto do que a vida ria ser compreendido sem uma paixão
angustiante conhecido como desespe-
nos guarnece, sugerindo recepcionar profunda pelo homem (CAMUS, 2020,
ro. Assim como entre “insignificante”
a vida com todos os seus prazeres e p. 42).
e “sem valor”, não há nexo causal sine
percalços. Influenciados pelo texto Os frutos da terra, de André Gide (1897), seus escritos refletem, sob a égide das sensações e da natureza, uma superação dos revezes que marcam a condição humana. Em suas palavras, a clarividência de uma realidade esmagadora, que deveria ser o seu tormento, consuma sua vitória.
SENTIR E DESCREVER
Camus dedica uma secção completa d’O Mito de Sísifo para versar sobre a criação absurda. Partindo da máxi-
ausência de esperança no porvir não conduz obrigatoriamente ao desalento angustiante conhecido como desespero. Assim como entre “insignificante” e “sem valor”, não há nexo causal sine qua non entre as duas proposições em análise. HUMOR COMO ANTÍDOTO: O RISO NA OBRA DE JOANIM PEPPERONI
ma nietzschiana de que temos a arte para não morrer ante a verdade, o pied-noir afirma que “há uma felicidade metafísica em sustentar a absurdidade do mundo” (CAMUS, 2013, p. 109). A criação artística, entendida como viver duas vezes, apresenta um papel fundante nessa empreitada. Segundo o pensamento camusiano, o autor absurdo não se preocupa em explicar e resolver, mas em sentir e descrever (CAMUS, 2013, p. 110). Sob a conduta de uma lucidez vertiginosa que nada elude, sabe-se incapaz de sugerir fim, consolo ou sentido último (CAMUS, 2013, p. 113); sabe-se dono de uma racionalidade que constata seus limites. Dessarte, a expressão artística cobre de expressão descritiva aquilo que carece de razão (CAMUS,
qua non entre as duas proposições em análise. Pelo contrário, a tal privação de esperança e de futuro pode significar um crescimento na disponibilidade do homem (CAMUS, 2013, p. 68).
De um modo geral, pode-se afir-
mar que o riso é o enlace último dos textos que compõem Obra reunida, de Joanim Pepperoni, PhD. Como sua produção é múltipla e extensa, atem-se aqui a uma apreciação de certos poemas da obra poética A fantástica máquina de sacar berros (2013), numa chave hermenêutica a relacioná-los com o niilismo e o absurdo. Essa poética, carregada de gra-
Como foi visto, esse possível desespero – somado ao ressentimento e ao declínio (CEI, 2016, p. 18) –, foi identificado por Nietzsche como niilismo passivo; trata-se da decadência que possivelmente emergiria frente à doravante “não-fundamentação” dos valores tradicionais para se agir no mundo. Diante desse panorama, é preciso esclarecer certa nuance, nem sempre evidente, sobre a ausência de esperança. Numa perspectiva axiológica, parece pouco prudente tomar os termos “desesperança” e “desespero” como equivalentes. Novamente, trata-se aqui de uma ressalva frente à generalização vocabular, nem sempre benéfica para o esclarecimento conceitual das palavras. A falta de esperança – a desesperança – é mormen-
cejos nas linhas e nas entrelinhas, tem como subtítulo “relatório de pesquisa” – o que, em si, é um cômico disparate por destoar da ludicidade que pauta suas críticas sociais. Motivo de riso, a pretensa seriedade de que se vale Pepperoni jamais sai de cena. O PhD de Polentawood não perde a compostura: retoma a importância dos grandes tratados filosóficos ao intitular vários de seus poemas “De”, ou “Sobre”.
Esses
disparates derrisórios aproximam a literatura de Joanim Pepperoni do que Albert Camus identificou como criação absurda. De caráter descritivo, eles se demonstram despretensiosos porque contingentes; isto é, há zero aspiração de se explicar – suas assertivas desprezam pretensões de exatidão e acurácia científicas; está além delas. E é exata-
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Dias Ímpares, set/out, 2021 mente por isso que a obra é tida como ni, o campo do fictício –, faz lembrar o uma espirituosa emulação do hino “relatório de pesquisa” – Joanim flerta a “jeitinho brasileiro”, da busca nacional nacional que enseja alguns comentodo o momento com o avesso para co- pelo lugar ao sol através de meios in- tários. Abrir a obra com esse poema locá-lo em posição de escárnio.
sidiosos. Os cocanheses engravidam não parece ser escolha contingente.
Suas dedicatórias e agradecimen- suas esposas e depois vão para “casas De forma tácita, é retomada a figura
tos retomam a importância da cultura de massagem” (PEPPERONI, 2020, p. dos documentos oficiais de uma naitaliana em terras brasileiras – a reite- 16); isto é, relegam a figura feminina a ção – sempre a apresentar, no início ração doentia dessa cultura é um dos uma maternidade solitária, reforçando ou no fim, os versos incumbidos de altos pontos de sua comicidade: tudo a ideia de que “o filho é da mãe, não do exaltar as próprias terras. Atribui-se é motivo para consoantes duplicadas (“nn”, “ll”, “ss”, “tt” ...); e nomes e sobrenomes sempre a retomar guarnições típicas, ou frutos desta terra benquista. Veja-se:
Sinceros agradecimentos aos meus interlocutores (n)ativos: Crocefissa e Cherubinno; Ecclesio e Immacollatta; Veneranda e Seraffino; Salvattore e Illuminatta (PEPPERONI, 2020, p. 13).
os habitantes da Terra da Cocanha são tidos como desonestos, à medida que consideram seus detratores preguiçosos. Buscam atalhos para o enriquecimento – preferem imitar os feitos passados, ao conhecimento formal.
a tais odes nacionais um valor inestimável, o que habitualmente as coloca em um patamar extraordinário. A população reverencia-as com ares do sagrado – terra fértil para o pândego autor, que coloca em xeque o banal e o etéreo indiscriminadamente. Como dito anteriormente, detalhe algum do quotidiano parece lhe escapar. Audacioso, Joanim vai lá e parodia o hino nacional brasileiro – com direito à parte I e parte II, como demonstram os excertos:
pai”. Por trás do véu, o cômico denuncia
Na “Apresentação” da obra, o autor o trágico: negligência e irresponsabili-
Parte 01
dispõe de “informações científicas e his- dade como marcas dos inconsequentes.
[...]
tóricas da ‘Terra da Cocanha’” (PEPPE- Na vida pública, a aparência ludibria.
Pujante pela própria natureza,
RONI, 2020, p. 14), como coordenadas Confrades e comadres ostentam vesti-
és farta de materno colostro,
geográficas e altitude, etimologia e mentas que não condizem com a reali-
e o teu ravióli espelha essa grande-
fundação histórica. A secção também dade – são seus “frufrus que cheiram ao za. apresenta constatações pretensamen- mofo dos porões misturado à naftalina”
Terra adorada,
te antropológicas que revelam críticas (PEPPERONI, 2020, p. 16).
entre outras mil
contundentes aos nativos de sua terra.
tu és fiorim,
Explica-se: os habitantes da Terra da
O endereçamento, mais uma vez,
Cocanha amada!
Cocanha são tidos como desonestos, à é sutil. O cômico em Pepperoni reside
Do milho deste solo é mãe gentil,
medida que consideram seus detratores também aí: suas críticas são sugestivas.
p’lenta assada e
preguiçosos. Buscam atalhos para o en- O autor se resguarda de réplicas acu-
febril!
tos passados, ao conhecimento formal. específico se ofender; afinal, o autor só
Parte 02
Dessa forma, sabem um pouco de tudo estava se referindo aos habitantes da
[...]
e nada em profundidade; nas palavras terra cocanhae...
Mas, se ergues da cobiça a clava
do autor, “todos ‘mexem’ com alguma
forte,
coisa (PEPPERONI, 2020, p. 16)”. Tal in-
A obra poética em questão ini-
dolência – embora habite, em Peppero- cia com o “Hino da Terra da Cocanha”,
verás que um filho teu não foge à luta, nem treme quem revende a própria
9
Vento sul
riquecimento – preferem imitar os fei- satórias. Não há razão para um grupo
Vento sul
Dias Ímpares, set/out, 2021 Mama.
cheias de moedas, inclusive moedas
aquele
Terra adorada,
de ouro estrangeiras, os morabitinos
mais fatura
entre outras mil
e os besantes, mas elas não servem de
é quem mais barganha. (PEPPERONI,
tu és fiorim,
nada, pois tudo é gratuito neste país
2020, p. 22)
Cocanha amada!
onde nada se compra nem se vende” (LE
Do milho deste solo é mãe gentil,
GOFF, 2013, p. 64). No contexto da nar-
p’lenta cortada
rativa medieval, a crítica era voltada “à
eu-lírico – “galhofo e cheio de senões”
com fio! (PEPPERONI, 2020, p. 16-17)
grande explosão monetária do século
(PEPPERONI, 2020, p. 23) –, compara o
A noção de que qualquer ajuda
XIII” (LE GOFF, 2013, p. 65). Em Peppe-
trabalho realizado em sua terra bem-a-
pressupõe pagamento é o cerne do po-
roni, diferentemente da narrativa mara-
venturada a “uma colmeia de esfomea-
ema “O espírito de cooperação” – uma
vilhosa tradicional, a ganância incorpo-
dos zangões” (PEPPERONI, 2020, p. 23).
paródia de “Cidadezinha qualquer”,
ra a noção dos habitantes da Cocanha
Relembram-se aqui alguns incipientes
de Carlos Drummond de Andrade. Em
– barganham para faturar, malgrado
conhecimentos biológicos: dentro de
Pepperoni, o retrato drummondiano
As obras de Joanim Pepperoni são como córregos que desaguam num só oceano: o da conduta humana. A abundante terra cocanhae é lugar fértil para a sedimentação dos vícios humanos – afinal, como apregoa o dito popular, “mar calmo nunca fez bom marinheiro”.
uma colmeia, a função do zangão é uni-
do marasmo cede lugar para uma crítica às relações interpessoais por interesse. Uma breve consulta ao dicionário, e “cooperação” revela-se como operar simultânea e coletivamente; trabalhar, laborar, em conjunto. Absurdo ou irônico, o insólito marca esta sociedade em que a paga é condição sine qua non da ação coletiva. O espírito de cooperação
Casas entre parreiras... mulheres sob videiras... podar colher pisotear...
“nunca lhes faltar banha” e tomarem “as
que
No poema “Sobre o trabalho”, o
camente reprodutiva. Cabe às abelhas operárias a responsabilidade de alimentá-los. Assim, eis possível interpretação para estes versos: trata-se de criativa alegoria da indolência característica de alguns homens.
Sobre o trabalho
Um poeta certa vez cantou desta aldeia: “Pelo trabalho laborioso sem sombra de talvez a uma colmeia semelha”.
nuvens por lasanha”. Um homem vai ajudar.
Sobre a fartura
Um cachorro vai ajudar. Um burro vai ajudar.
galhofo e cheio de senões: Nesta Terra da Cocanha, tomam estrelas por pepitas,
Ajudar... os vizinhos até ajudam. – Mas quanto tu paga, bestia!? (PEPPE-
No entretanto, canto eu,
por fiorim de ouro a lua e as nuvens por lasanhas.
“Pelo trabalho aqui obrado trata-se de uma colmeia de esfomeados zangões”. (PEPPERONI, 2020, p. 23)
RONI, 2020, p. 22) Nesta Terra da Cocanha, “Sobre a fartura” é poema que enseja retomar uma das prédicas que Jacques Le Goff atribui à Terra da Co-
produzem água em pipas, colhem radicci nas ruas e nunca lhes falta banha.
canha. De acordo com o historiador francês, “este país é tão rico que se encontram nos campos muitas bolsas
Já no poema “Sobre o empreen-
dedorismo”, o poeta brinca com o típico cocanhês: avaro, que trabalha de tamancas para não gastar a sola de suas botas e come casca de mandioca para
E por incrível que pareça, nesta Terra da Cocanha,
poupar a farinha (PEPPERONI, 2020, p. 41). E justamente por causa da avareza, combinada com a esperteza, que o
10
Dias Ímpares, set/out, 2021 “Nane” inventou uma “macchina de en-
pra “chover no deserto”
do egoísmo.
sacar berros” (PEPPERONI, 2020, p. 41). Máquina de ensacar berros? Sim. Tra-
Um invento, por suposto,
ta-se de uma metáfora hiperbólica da
de muito lucro e sincero:
ganância: ao trabalhar no abate de ani-
enquanto ele esfola o porco
Nas toscas avenidas
mais, faz-se premente aproveitar tudo.
a macchina ensaca o berro (PEPPERO-
os cocanheses ao volante
Do porco esfolado, dá pena desperdiçar
NI, 2020, p. 41)
são dignos de nota
os seus gritos – numa corrida lunática pelo lucro, inventar-se-ia uma máquina
Nota sobre o trânsito
por sinal interessante
A denúncia de um contrassenso
para ensacá-los. Empreendedorismo vi- comportamental é a marca de “Nota so-
Ninguém tem hora marcada
bre o trânsito”. O poema revela que, ao
nem sabe aonde vão os outros
volante, os cocanheses – malgrado não
Mas por questão de princípio
saberem aonde ir ou sequer terem hora
ninguém quer chegar atrasado
marcada – não querem “chegar atrasa-
nem chegar depois dos outros
Pra não gastar as botinas,
dos / nem chegar depois dos outros”
(PEPPERONI, 2020, p. 46)
de tamancas vai pra roça
(PEPPERONI, 2020, p. 46). Mais uma pré-
E pra poupar na farinha
dica de declínio para os habitantes da
come casca de mandioca
Cocanha: caracterizados por uma com- quarta estrofe do poema “Anotações
sionário.
Sobre o empreendedorismo
O riso, por fim, é garantido na
petitividade automatizada, não sabem sobre o chutebol”, em que, assistindo Mas o que tem de sovina
lidar com contratempos, perdas e fra- a uma partida esportiva, o impetuoso
o Nane tem de esperto:
casso. Reflexo dos dias correntes, essa “Pepe já desfia seu rosário / mandan-
inventou una macchina
população desconhece a linguagem da do a Madonna ao Diabo (PEPPERONI, alteridade. Nada mais que outra faceta 2020, p. 47)”. Contudo, são as duas últimas estrofes que apresentam o porquê do vocábulo “chutebol” – discordâncias quanto à questionável imparcialidade do juiz (foi ou não foi logrado?) acabam em conflitos físicos. Nas palavras de Joanim,
[...] a torcida invade o campo, desce a colher da polenta voam tampinhas de joelhos cabelos, dentes e orelhas (PEPPERONI, 2020, p. 47).
O exagero encontra o cômico
leitor. Nesta altura da discussão, e diante dos exemplos trazidos a lume, tem-se claro isto: a obra de Joanim Pepperoni enseja riso. Resta eluci-
11
Vento sul
no imaginário que o autor sugere ao
Vento sul
Dias Ímpares, set/out, 2021 dar a possível
autor opta por uma postura afirmativa
outro lado, sugere uma compreensão
medida em que este humor se insta-
da vida: supera o niilismo na medida em
do mundo mais equilibrada e filosofica-
la como um antídoto para o niilismo.
que descreve de forma espirituosa esta
mente enriquecedora, desafiando o ser
Primeiramente, faz-se prudente uma
sina indelével. É rir pra não chorar.
humano a conceber diferentes maneiras
breve nota: analisar o riso em Pepperoni como um contraveneno ao niilis-
de pensar a vacuidade que se encontra CONCLUSÃO
mo é um mero esforço hermenêutico,
to (MARMYSZ, 2003, p. 164).
isto é, interpretativo. Não se pretende
O indivíduo que adota uma postura
aqui galgar ares de totalidade analíti-
bem-humorada perante os percalços
ca – muito ao contrário: tem-se bem
da vida inova. O humor traz um quê de
clara a gama de possibilidades para
inesperado à forma como respondemos
se observar tanto o humor na obra do
às adversidades, uma nova perspectiva
PhD de Polentawood, quanto o fenô-
para se enxergar a pedra no meio do
meno do niilismo enquanto chave in-
caminho. Face à conjuntura vigente, em
terpretativa da modernidade. Ressal-
que a seriedade e a casmurrice balizam
va devidamente feita, passa-se para o
a forma como lidamos com a dor e com
enlace final.
as frustrações em geral, a alternativa
As obras de Joanim Pepperoni
cômica configura-se como saída criativa
são como córregos que desaguam
e inteligente, criando pontes que ligam
num só oceano: o da conduta hu-
o comum e o banal ao incomum e ao
mana. A abundante terra cocanhae é
surpreendente (MARMYSZ, 2003, p. 04).
lugar fértil para a sedimentação dos
Recepcionar a visão do mundo oferecida
vícios humanos – afinal, como apre-
pelo niilismo pode, sim, num primeiro
goa o dito popular, “mar calmo nunca
momento, parecer desalentador. Seria
fez bom marinheiro”. Tal é o cenário
preciso certo distanciamento da ques-
para o autor tecer suas considerações
tão e dos próprios sentimentos para
críticas e bem humoradas sobre os
não se afetar negativamente com isso.
comportamentos sociais. O comodis-
A atitude humorística permite esse tipo
mo, o egocentrismo e a lassidão da
de distanciamento (MARMYSZ, 2003,
Cocanha reverberam e fazem morada
p. 162). Embora as incongruências do
nos quatro cantos do mundo – prin-
mundo e a carência de porquês para
cipalmente em terras verde-e-amare-
nossa claudicante condição axiológica
lo. Aqui, como na terra mitológica da
nunca saiam de cena, o riso possibilita
fartura, vale a máxima “farinha pouca,
analisar a situação por outra óptica, ou-
meu pirão (minha polenta) primeiro”.
tro prisma e, assim, conceber as mais
Em verdade, a “farinha” nem precisa
duras experiências como oportunidades
ser pouca para a perpetuação da con-
construtivas que afirmem a vida.
duta reprovável.
É inegável o ar de tristeza que pai-
Este é o niilismo em Pepperoni:
ra sobre a grande parte das discussões
seus textos não indicam valores e an-
sobre niilismo. Entende-se que isso ad-
coradouros eternos para remediar os
vém da ênfase sobrecomum nos aspec-
vícios que marcam a conduta huma-
tos negativos das adversidades, tornan-
na. Diante dessa (des)conjuntura, o
do-as superestimadas (MARMYSZ, 2003, p. 163). A atitude bem-humorada, por
12
a meio caminho entre o finito e o infini-
REFERÊNCIAS RALDI, C.L. Para uma caracterização do niilismo na obra tardia de Nietzsche. Cadernos Nietzsche 5, p. 75-94, 1998. BÍBLIA. Português. Bíblia Sagrada Ave-Maria, 105.ed. São Paulo: Editora Ave-Maria, 1957, (impressão 2019). p. 816 CAMUS, Albert. A inteligência e o cadafalso. Rio de Janeiro: Record, 2020. ______. O homem revoltado. Rio de Janeiro: BestBolso, 2017. ______. O mito de Sísifo. Rio de Janeiro: Record, 2013. CEI, V. A voluptuosidade do nada: niilismo e galhofa em Machado de Assis. São Paulo: Annablume Editora, 2016. LE GOFF, Jacques. Heróis e maravilhas da Idade Média. Petrópolis, RJ: Vozes, 2013. MARMYSZ, John. Laughing at nothing: humor as a response to nihilism. Albany: State University of New York Press, 2003. NIETZSCHE, Friedrich. Além do bem e do mal: prelúdio a uma filosofia do futuro. São Paulo: Companhia das Letras, 2005. ______. O anticristo. São Paulo: Companhia das Letras, 2016. ______. Ecce Homo. Trad: Paulo César de Souza. São Paulo: Cia das Letras, 2008 PEPPERONI, Joanim. Obra reunida. Polentawood: Editora Prensa de Torresmos Cantina do Frei, Anno Domini MMXX. PINTO, Manuel da Costa. Apresentação. In: CAMUS, Albert. A inteligência e o cadafalso. Rio de Janeiro: Record, 2020.
Dias ímpares, set/out, 2021
Manifesto da Inconfidência Bossanovista e do Jaguadarte Antropofágico ou Manifesto Amor e Antropofagia ou O Brasil Antropofágico é o meu país ou Brasil Antropofágico, ame-o ou deixe-o ou Para ler ouvindo o segundo disco dos Novos Baianos 2019 Reichenbach Reichenbach é Ian Pereira Silvares, morador do Santos Dumont, Vitória - ES I.
o Brasil é o país Cultural por exce-
o presente, o passado, e o futuro do
lência, aqui há de Culturalmente tudo. Brasil. Antropofagia. o Brasil tem Cultura. o Brasil não tem aqui, apesar de toda intolerância e pre-
enquanto se negar isso, não se have-
Cultura. o Brasil tem e não tem Cultura. conceito, ainda sinto como coração de rá um Brasil de fato Brasil. se haverá um o Brasil não tem e tem Cultura.
mãe. sempre cabe mais um. sempre dá braziu no mínimo. pra botar mais água no feijão.
II.
o Brasil tem uma benção ou um po-
III.
der, como queira. o poder de misturar, o Brasil tem Cultura, é mentira dizer agregar, juntar o Brasil e o outro, para
não
queremos
braziu.
queremos
o contrário, e é cego por vontade pró- mudar, transformar em novo e o novo Brasil e todas as suas cores e todos os pria quem não vê, nos quatro cantos acontecerá e se modificará, pois o que sons e todas as suas raças e toda sua dos cinco continentes Brasileiros, mi- estagna morre e, no Brasil, cultura não sua desigualdade criativa e toda palavra lhões de pessoas estão a fazer Cultura.
se morre, não se mata, e sim, se trans- saudade que não se pode ser traduzida
da nascente do rio ailã ao chuí, da forma, se mistura, se junta, se neolo- para nenhuma outra língua. ilha do sul à nascente do rio moa, do gisa e se neoculturiza, se modifica, se pico da neblina ao atlântico, e também refaz, mais belo, mais forte, mais boni- queremos B. queremos Pindorama. queremos R. queremos Ilha de vera cruz.
que se faz é unicamente e somente Cul-
o Brasil é a mistura.
queremos A. queremos Terra nova.
tura. porque isso é o que o Brasileiro
à isso, o nome de Antropofagia, An- queremos S. queremos Terra dos papagaios
faz e reproduz, mesmo instintivamente. tropofágico, Antropo Fagos. Cultura. é inconsciente. é o que nos conecta como de um único país.
queremos I. queremos Terra de vera cruz.
Brasil é Antropofagia... negar isso é queremos L. queremos Terra de santa cruz negar o Brasil.
13
Vento sul
na criosfera e na comandante ferraz, o to... mais Brasileiro.
Vento sul
Dias Ímpares, set/out, 2021 o brigadeiro é Brasileiro?
queremos Terra santa cruz do Brasil queremos Terra do Brasil.
a bossa nova é Brasileira?
tchubi tupi or notchubi tupi? -
queremos Bracir, Bracil, Brazille, Bersil, rripe jão gilberto Braxili, Braxill, Bresilge queremos Brasil.
sem erros sem vírgulas sem pontos e
o zé carioca é Brasileiro?
com muita Cultura e Antropofagia.
a feijoada é Brasileira? a umbanda, o candomblé, a quimbanda são Brasileiros? os mulatos as mulatas os bambas
quando surgiu o Brasil?
Tupi.
o guaraná é Brasileiro? o açaí é Brasileiro?
IV.
por favor respondam:
são Brasileiros?
V.
o Brasil não tem cultura. tudo que temos como nosso não é nem um pouco nosso. tudo é resultado da mistura, da fusão, da globalização e da Antropofagia desenfreada e sem ordenação. foi
quando o Brasil se tornou o Brasil?
a coxinha é Brasileiro?
um tomando do outro sem pedir, sem
com os povos vindos pelo estreito de
o cinema novo é Brasileiro?
permitir, só agregando e tornando seu.
bering? com a chegada dos portugalenses e sua relação com os povos vindo pelo estreito de bering? com a vinda forçada de africanus e sua relação com os portugalenses e com os povos vindos pelo estreito de bering? e além disso, e as influências de cada região, de cada lugar? como separar pernambuco de holanda? rio grande do sul e seus pampas e sua conversa com a argentina, o uruguai e seus respectivos pampas? os estados aquem das frontreiras, os estados estrangeiros além das fronte eiras?
a carmem miranda é Brasileira?
o Brasil não tem cultura. tudo que temos como nosso não é nem um pouco nosso. tudo é resultado da mistura, da fusão, da globalização e da Antropofagia desenfreada e sem ordenação. foi um tomando do outro sem pedir, sem permitir, só agregando e tornando seu.
grantes? as forças latinas em geral que aparecem aqui ou ali em maiores ou menores quantidades? qual o cerne do Brasil? se retira tudo, qual centro, o que básico Brasileiro? o que é Brasileiro de fato, o que é Brasileiro por natureza? o samba é Brasileiro? o futebol é Brasileiro?
são Brasileiros. é tudo importado e Antropofagizado - e por se Antropofagizarem se tornam Brasileiros -. nossos esteriótipos não são nossos mas os aceitamos, os tornamos nossos, nos apropriamos das ideias de outros sobre como devemos ser nos deixamos levar pelas mãos dos colonizadores somos apesar de toda resistência e ‘liberdade’ ainda a ideia de outros. não somos o melhor que podemos ser, não somos ainda Brasil mas mesmo assim inconscientemente nos rebelamos de algum modo a tudo que nos é imposto.
o sul da germânia? são paulo e sua extensa leva de imi-
os maiores símbolos Brasileiros nem
o café é Brasileiro?
esse modo, Antropofagia.
o modernismo é Brasileiro? o pão de queijo é Brasileiro?
VI.
a cachaça é Brasileira? os índigenas Brasileiros são Brasileiros?
o Brasil é extremamente múltiplo. o Brasil é na verdade cinco continen-
o jeitinho Brasileiro é Brasileiro?
tes completamente distintos um dia uni-
o deus é Brasileiro?
dos pelo acaso - ou pelo divino, ou por
o brasileiro é Brasileiro?
portugal, como queira - e jamais (serão)
o Brasil é Brasileiro?
separados pelo humano.
.
as diferentes pessoas os diferentes
.
climas e vegetações os diferentes imi-
.
grantes e descendentes de imigrantes
Dias ímpares, set/out, 2021 em diferentes regiões as diferentes um Brasil amarelo um Brasil cinza ideologias e religiões as diferentes se- um Brasil vermelho... xualidades as diferentes expressões e
eu tinha uma professora de inglês
Brasis! infinitos Brasil! infinitas ideias que um dia viajou para a inglaterra, por
manifestações artísticas as diferentes infinitos pensamentos infinitas memó- que não sei não interessa e ela disse formas de se relacionar com as coisas rias infinitos segmentos. com a natureza com a política com os
o brasil é o ponto de encontro do presumo que um desses táxis pretos ou
políticos com a diversidade com o Brasil mundo. e isso é incrível. com a cultura Brasileira com a cultura estrangeira com a Antropofagia.
sei lá, e então o taxista começou a con-
mas não quando o que é diferente é versar com ela e num dado momento ridicularizado, negligenciado ou sofre ele perguntou de onde ela era “Brézil”
não dá para separar o brasil da diver- tentativa de assassinato. sidade e das diferenças. e isso é bom. e
que nessa viagem ela tomou um táxi,
ela disse e a resposta do motorista veio
a todos aqueles que esperam um dia como uma pergunta “oh, in Brézil you
isso é ruim. e isso é múltiplo e ao mes- calar o Brasil, nós ainda não estamos live in trees arent you?” mo tempo unicamente nacional- Brasi- prontos pra deixar você assumirem o leiro.
controle.
por isso o Brasil é tão desigual, intolerante e dividido, pois existem muitos Brasis.
e para finalizar uma pequena historinha qualquer:
um Brasil português, um Brasil africa-
All you need is love Love is all you need Amor e Antropofagia a todos
no um Brasil indígena um Brasil holandes um Brasil homem um Brasil mulher um Brasil trans um Brasil gay um Brasil litoral um Brasil floresta um Brasil pampa um Brasil católico um Brasil protestante um Brasil ateu um Brasil umban-
por isso o Brasil é tão desigual, intolerante e dividido, pois existem muitos Brasis.
Em Guananira Ano 465 da deglutição do Bispo Sardinha
Vento sul
dista um Brasil branco um Brasil preto
15
Ulpiana
Dias Ímpares, set/out, 2021
Café, Covid e o Mandela Carlos Abelhão
Escritor, poeta, militante do movimento Hip Hop e integrante de diversos movimentos sociais pela comunidade negra e pela livre manifestação de culturas e saberes
Café é um adolescente de aproxima- Já é quase 6:40, você vai se atrasar pra que é meu, e aproveita que você tá todo damente 14 anos de idade, nasceu no escola.
sabichão,
vai buscar água porque já
interior da Bahia, em uma cidade que
- Aaa!!!! Tio, dá sossego.
faz quase uma semana que não cai uma
faz divisa com Nanuque (Minas Gerais).
- Dá sossego é os cambal. Pode le- gota... Vai, vai... Agora pede o governo
Atualmente está morando em um morro vantar. Você vai pra escola ou você quer pra manda água. Ah! Quando você volde Vitória-ES com seu tio Marcos mais ficar igual eu? conhecido por MEÓTA por beber muita cachaça.
- Meota, você se esqueceu que não dois real de salame e uma garrafa de estou tendo aula por causa da pande- pinga.
Café tem 1,65 de altura, torce para o mia do corona vírus ? Maré Cheia time da terceira divisão do
tar, passa na Padoca e compra seis pão,
Café levanta puto da vida. Ele ainda
- Em primeiro lugar: MEOTA NÃO, é está meio sonolento pois não conse-
futebol capixaba, Ela adora funk , é fã tio. Em segundo lugar: eu tinha me es- guiu dormir direito devido aos pesadedo Dj Lindão, Dj Scoob e do Dj Natam quecido. rsrsrsrsrs do SB, seu passatempo favorito é jogar Free Fire. Café é apaixonado por sua vizinha
los e sonhos estranhos. Isso o tem dei-
- Você se esqueceu ou já está bêba- xado bastante mal-humorado. Ele vai do?
até o banheiro, lava o rosto, escova os
- Café, da minha vida cuido eu tá? Eu dentes, dá uma ajeitada no cabelo, volta
Amanda ou Amandinha como é conhe- bebo com meu dinheiro... (Café o inter- para o quarto, veste sua camisa favoricida no bairro e seu melhor amigo é Co- rompe) cão um garoto esperto demais para sua idade e quase envolvido no tráfico.
- Seu dinheiro nada, dinheiro do go- seu cordão de prata, bota seu boné da verno, do auxilio emergencial... (Meota Nike e sua mascara do V de vingança. fica puto com Café e começa a gritar)
Sexta feira ( manhã )
ta do time do coração Maré Cheia, pega
- Governo é o carai, esse dinheiro é
- Meota, cadê os baldes? - Está na cozinha, debaixo do tanque,
Café, o Café, Caaafééé!!! Acoorrdaaa, meu sim. Eu só to pegando de volta o perto dos litros de cloro.
Dias Ímpares, set/out, 2021
- Tá bom, to indo.
o salame e o litro de pinga. Café pega os baldes e sai em direção à casa de Dona Merinda, onde tem um poço artesiano e todos do bairro recorrem a ele quando está faltando água. Dona Merinda é uma das moradoras mais antigas do bairro. Ela já tem quase oitenta anos. É muito conhecida pela sua bondade, pelo seu poço artesiano que nunca parou de brotar água e por ser uma parteira e benzedeira de mão cheia.
Dona Merinda é uma das moradoras mais antigas do bairro. Ela já tem quase oitenta anos. É muito conhecida pela sua bondade, pelo seu poço artesiano que nunca parou de brotar água e por ser uma parteira e benzedeira de mão cheia.
Café chega na casa de Dona Merinda - Dona Merinda. Ôôô Dona Merinda. Dona Merindaaaaaaa!!!! Dona Merinda aparece na porta com sua saia rodada de chita, com seu turbante nos belos cabelos branco e com seu cigarro de palha na boca. - Oi, meu filho, o que foi? Morreu alguém?
lhas e começou a rezar por Café. Em determinado momento, entre uma reza e outra, ela começou a chorar. Café não acreditava em nada daquilo, mas respeitava Dona Merinda e queria pegar a água. Ela olhou pra Café como se tivesse adivinhando o futuro e falou: - Meu filho, Deus é contigo. Ele te protege e te guia, ele tem te guardado, mas suas escolhas têm te levado a portas que não foi Ele que abriu. Se cuida, Deus é amor e ainda hoje o amor vai te salvar.
- Não! Dona Merinda, eu só vim pegar água... - Ô Café, é você né meu filho? Nem te conheci. Você tá tão grande... Café, antes de você pegar a água vem cá. Você tá com uma energia carregada, eu vou te benzer. Dona Merinda levou Café pra uma
Café ficou bolado, mas não ligou pras palavras de Dona Merinda. Foi até o poço encheu os baldes e voltou pra casa. Quando chegou, percebeu que tinha esquecido de passar na Padoca. Seu tio Meota começou a reclamar que Café não fazia nada direito. Café sai novamente pra ir até à Padoca.
17
Ulpiana
- Tá, tá, vai logo. Não esquece o pão
parte do seu quintal, pegou umas fo-
Ulpiana
Dias Ímpares, set/out, 2021 - Está na cozinha, debaixo do
Padaria Padoca
Café, o Café, Caaafééé!!! Acoorrdaaa, tanque, perto dos litros de cloro.
água... - Ô Café, é você né meu filho? Nem te
Já é quase 6:40, você vai se atrasar pra
- Tá bom, to indo.
conheci. Você tá tão grande... Café, an-
escola.
- Tá, tá, vai logo. Não esquece o pão
tes de você pegar a água vem cá. Você
- Aaa!!!! Tio, dá sossego. - Dá sossego é os cambal. Pode le-
o salame e o litro de pinga. Café pega os baldes e sai em direção
tá com uma energia carregada, eu vou te benzer.
vantar. Você vai pra escola ou você quer à casa de Dona Merinda, onde tem um
Dona Merinda levou Café pra uma
poço artesiano e todos do bairro recor-
parte do seu quintal, pegou umas fo-
ficar igual eu?
- Meota, você se esqueceu que não rem a ele quando está faltando água.
lhas e começou a rezar por Café. Em de-
Dona Merinda é uma das moradoras
terminado momento, entre uma reza e
mais antigas do bairro. Ela já tem qua-
outra, ela começou a chorar. Café não
- Em primeiro lugar: MEOTA NÃO, é se oitenta anos. É muito conhecida pela
acreditava em nada daquilo, mas res-
estou tendo aula por causa da pandemia do corona vírus ?
peitava Dona Merinda e queria pegar a
tio. Em segundo lugar: eu tinha me esquecido. rsrsrsrsrs - Você se esqueceu ou já está bêbado? - Café, da minha vida cuido eu tá? Eu bebo com meu dinheiro... (Café o interrompe) - Seu dinheiro nada, dinheiro do governo, do auxilio emergencial... (Meota fica puto com Café e começa a gritar) - Governo é o carai, esse dinheiro é meu sim. Eu só to pegando de volta o que é meu, e aproveita que você tá todo sabichão,
vai buscar água porque já
faz quase uma semana que não cai uma gota... Vai, vai... Agora pede o governo pra manda água. Ah! Quando você voltar, passa na Padoca e compra seis pão, dois real de salame e uma garrafa de pinga. Café levanta puto da vida. Ele ainda está meio sonolento pois não conseguiu dormir direito devido aos pesadelos e sonhos estranhos. Isso o tem deixado bastante mal-humorado. Ele vai até o banheiro, lava o rosto, escova os dentes, dá uma ajeitada no cabelo, volta para o quarto, veste sua camisa favorita do time do coração Maré Cheia, pega seu cordão de prata, bota seu boné da Nike e sua mascara do V de vingança. - Meota, cadê os baldes?
Café ficou bolado, mas não ligou pras palavras de Dona Merinda. Foi até o poço encheu os baldes e voltou pra casa. Quando chegou, percebeu que tinha esquecido de passar na Padoca. Seu tio Meota começou a reclamar que Café não fazia nada direito. Café sai novamente pra ir até à Padoca. sua bondade, pelo seu poço artesiano que nunca parou de brotar água e por ser uma parteira e benzedeira de mão cheia. Café chega na casa de Dona Merinda - Dona Merinda. Ôôô Dona Merinda. Dona Merindaaaaaaa!!!! Dona Merinda aparece na porta com sua saia rodada de chita, com seu turbante nos belos cabelos branco e com seu cigarro de palha na boca. - Oi, meu filho, o que foi? Morreu alguém? - Não! Dona Merinda, eu só vim pegar
água. Ela olhou pra Café como se tivesse adivinhando o futuro e falou: - Meu filho, Deus é contigo. Ele te protege e te guia, ele tem te guardado, mas suas escolhas têm te levado a portas que não foi Ele que abriu. Se cuida, Deus é amor e ainda hoje o amor vai te salvar. Café ficou bolado, mas não ligou pras palavras de Dona Merinda. Foi até o poço encheu os baldes e voltou pra casa. Quando chegou, percebeu que tinha esquecido de passar na Padoca. Seu tio Meota começou a reclamar que Café não fazia nada direito. Café sai novamente pra ir até à Padoca.
Sexta feira (a tarde) Café já tava no pique do Mandela. Já tinha esquecido que estava no meio de uma pandemia. Ele só pensava em Amandinha, sua paixão. Ele decidiu treinar uns passinhos pra tirar onda no baile: pegou o celular e botou podcasts do DJ Scoob. Músicas tocando (Café começa a treinar os passinhos). Passinho do romano, passinho do maloka, sarrada no ar, quadradinho, Café tava no pique quando alguém bate na porta. - Ei, Café!
Dias Ímpares, set/out, 2021 Era Amandinha. Café ficou sem graça.
- Café! Café! Ô Café, carai! Cadê você, viado?
Horário e local marcado. Lá estava Café esperando seu primeiro amor.
- Ei Amandinha.
- O que foi, Cocão?
- Café, minha mãe mandou pedir um
- Carai! tá bonitão. Que isso em pai, dinha, linda, toda produzida. Café dá
pouco de açúcar. Você tem pra arrumar? vai casar? - Sim, tenho. Açúcar, né?
um sorriso. Ela chega bem perto dele
- Ih mano, da gelo. Kkk. Qual foi? e fica parada na sua frente esperando
- É. Rsrsrsrsrsrs. ( Amanda sabia que Qual a boa? Café era apaixonado por ela e ela tam-
Após alguns minutos, chega Aman-
- Então, nós vamos fazer um esquen-
algo. Café lhe dá um abraço apertado. Os dois começam a conversar e o
bém gostava dele, mas sua mãe falava ta lá em casa. Só diretoria. Eu vim te tempo parecia ter parado. Nada mais que ninguém do morro servia pra na- buscar.
- Porra, Cocão. Eu te falei que vou me momento. Era uma mistura de euforia,
Café pegou o açúcar e entregou pra encontrar com Amandinha.
medo, paixão e descobertas. Amandi-
Amanda. Os dois falaram ao mesmo
- Aaa, dá gelo nela. Você fica com ela nha pegou a mão de Café e começou
tempo:
Meu filho, Deus é contigo. Ele te protege e te guia, ele tem te guardado, mas suas escolha tem te levado à portas que não foi Ele que abriu. Se cuida. Deus é amor e ainda hoje o amor vai te salvar.
- Você vai no baile? Eles riram e ficaram se olhando. - Eu vou. E você? Sua mãe vai deixar você ir? - Eu vou falar que vou dormir na casa da minha tia. - A gente podia ir juntos, né? O que você acha? - Ta bom. Você me encontra lá na pedra perto da casa da minha tia às oito horas, aí a gente pode ficar conversando um pouquinho e depois vamos. - Beleza. - Tá, tchau. Os dois saíram cheios de vergonha e muito felizes por terem marcado pra se encontrar a noite. Café pega o telefone e liga pra Cocão pra contar a novidade. Cocão fala que hoje o Mandela vai tá foda. Que vai vir gente pra carai e que hoje Café iria se dar bem.
depois no Mandela. - Não, Cocão. Tá doido? Essa é minha chance de falar que eu quero ficar com ela. - Porra, Café! Vai se fuder, carai. Eu to aqui te chamando pra um rock exclusivo lá no barraco e você falando de amor?! Aaa, dá gelo. (Cocão fica bolado com Café) - Cocão, na moral. Eu já marquei com ela, mano. A gente vai se vê daqui a pouco. - Então tá, vacilão. Quando ela te es-
Sexta ( A noite) Já passava das sete da noite. Café tava no pique, ansioso, inquieto. Já tinha trocado de roupa uma cinco vezes, decidiu que iria de calça jeans, camisa da quiksilver e seu tênis adidas. Cocão aparece gritando Café
culachar, você vai vim me procura. Ai
a fazer carinho. Café olhou em seus olhos e quando ele ia falar que a amava, começou um grande foguetório e muita gente correndo. Do nada, começou os barulhos de tiro. É a policia, é a policia! Gritavam as pessoas. Tem morador aqui! Café e Amandinha correram e entraram na primeira casa que encontram aberta. Era a casa de Tina, neta de Dona Merinda. Todos dentro da casa ficaram em silêncios e com muito medo. Era muito tiro lá fora. Depois de quase uma hora os tiros pararam e começou uma grande choradeira. Café, Amandinha e Tina saíram pra ver o que estava acontecendo. Perto da Padoca tinha um corpo caído no chão, era muito sangue, tinha muita gente em volta. Quando Café chegou perto era Cocão, seu melhor amigo. Ele abraçou Amandinha e começou a chorar. Na hora veio as palavras de Dona Merinda:
agente conversa. Cocão saiu bolado Café ficou preocupado com sua amizade e com sua relação com Cocão, mas tava decido a encontrar Amandinha.
Meu filho, Deus é contigo. Ele te protege e te guia, ele tem te guardado, mas suas escolha tem te levado à portas que não foi Ele que abriu. Se cuida. Deus é amor e ainda hoje o amor vai te salvar.
19
Ulpiana
morar)
importava. Tudo se resumia àquele
Dédalo
Dias Ímpares, set/out, 2021
A Última Lágrima Ana Claudia Marchetti Ana Claudia Marchetti é mulher, 40 anos, e esse é seu primeiro poema publicado
Hoje em mim uma gota se formou Não se sabia se era ou não suor Só sei que era diferente O que meu coração sentia. Meus olhos pareciam não brilhar Meus lábios pareciam não sorrir Tudo em mim era vago Só havia uma única lagrima A ser derramada dos meus olhos. Olhar pequenino, doce, meigo, sereno E puro de criança Que não consegue entender O significado da palavra saudade. Agora vão as lágrimas
Porque a ultima que derramei Também era a única Que tinha para ser derramada. Meu olhar me aperta querendo sufocar-me As vezes quero chorar mas não posso Porque a última gotícula Que sustentava essas lágrimas Foi embora com a única Que foi derramada do meu olhar.
Dias ímpares, set/out, 2021
Amor em três atos Caroline Carvalho
Produtora cultural e poeta
Ato I – Atraindo/Repelindo Te vejo, desejo Paro, nego, penso Zero defeitos? Que jeito? Uma vez homem, sempre homem Ah, mas o destino, perverso, ou seria Nos rimou como um verso E me tirou pra dançar
Ato II – Em Chamas Parei de dançar Me perdi no teu olhar Fundo, úmido, quente, desnudo Desejo Teu beijo Teu toque
Ato III – Cais no Caos
Teu sabor
Me lancei
Me perco
Mergulhei fundo
Me lanço Me pega, me alcança Meu corpo em chamas Entre minhas coxas você E falo – passado, presente e futuro num raio
Profundo Visitei lugares jamais imaginados Sequer desejados No mar respirei Vislumbrei
Desejo arrebatá-lo
Amei
Enquanto me lanço ao mar
Me libertei Você segurando a minha mão Me levou ao cais Em meio ao caos Se tornou amigo Abrigo Casa Dengo
21
Dédalo
o inverso
Dédalo
Dias Ímpares, set/out, 2021
Blankianas Francis Kurkievicz
Poeta libriano autor de Meninices e B869.1 k96
BLANKIANA I
BLANKIANA II
O nome que se inscreve no juízo de Salomão
A minha letra – risco em silêncio
Para mim – nos rastros do meu quarto – é verbo mal conjugado
Mas a solidão não é adjetivo nestas bandas
Nestes sonhos datados
E sim, ah mas claro que sim: óbvio
Fragrância primaveril que me que causa enjoos e vertigens
Com pontos de interrogações que aparecem em minha pele
Não faz a diferença à minha fome flamber
Os músculos não contam
Sob as nuvens cor de cravo na manhã de estopa e cinza
A todos os tombos escolho entre um blues de Clapton ao [trecho que Chopin
Vivo da letra rubra que escreve as dezenas e as quinzenas de avemarias Dor à porfia com a sombra do sonho - sopor infeliz Contra a minha vontade a ventania põe ciscos Só quando a noite cai ao tropeçar nos degraus de minha casa E eu caio sem me ater a nada Na noite que me resta e basta Visto um fato e busco o sereno Mas a pele com mau-olhado fica com quebranto No ígneo fluxo do dedo de interrogação.
O sentimento estopim: a artilharia da dor Mesmo assim leio o tetrassílabo cruel: escarlate E o nada devolve às pressas – meu tudo – ao nada E este sentimento cheio de nós pelas costas Quis e escreveu assim – o deus deles não é poeta Estas letras que - juntas – pretendem vir a ser um poema Duelos de letras: o luto e a luta Não diz o risco exato da régua: horizonte dos sem ritos e frutos Uma esperança a mais ou a menos E calo o canto – quieto Com os olhos retidos e em brasa.