Catálogo | Mostra de Cinema "Mondo Fellini"

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Viver como se estivéssemos em um sonho faz parte da fantasia de muitos de nós. Assim é o cinema de Federico Fellini: uma viagem onírica prazerosa e intensa. Suas obras nos inspiram a encarar a vida de peito aberto, sob uma ótica libertadora para o espírito. Em seus filmes queremos simplesmente estar ali, sentir aquela magia como sendo nossa também, reconhecer no mundo que se apresenta diante de nós uma beleza singular e plural, uma felicidade que antes pensávamos ser inatingível até que a vemos tão perto, refletida pelas lentes sensíveis desse genial diretor italiano. O Sesc vislumbra na arte dos mestres do cinema a oportunidade de vivências múltiplas que estimulam e enriquecem o imaginário da sociedade. Por isso convida todos a viajar nesse pitoresco mundo, o mondo Fellini, com uma mostra que celebra seu centenário e permite ao público se aproximar de cinco de suas obras: Os boas-vidas, A doce vida, Oito e meio, Julieta dos espíritos e A voz da lua. A riqueza de seus filmes está no seu estilo único de se expressar, marcado pela presença significativa dos tipos mais populares, cômicos na maioria das vezes, extremamente humanos sempre, pinçados – sem qualquer filtro – das mais recônditas emoções de sua infância. Federico Fellini pode não ter mudado o mundo com seus filmes, mas o tornou mais encantador aos nossos olhos.

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A realidade recriada, entre o lUdico e a imaginação

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Os tijolos da edificação felliniana:: notas sobre algumas influEncias literárias e cinematográficas

SUMÁRIO

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FellinI,, o homem de rimini e de roma:: o mais felliniano de todos os seres


OIRÁMUS

Fellini e o cinema de seu tempo

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Fellini pelos crIticos

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A voz de fellini à lua

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A REALIDADE RECRIADA, ENTRE O LÚDICO E EA A IMAGINAÇÃO IMAGINAÇÃO ENTRE O LÚDICO RECRIADA, A REALIDADE


Fellini está entre um seleto grupo de diretores que conseguiu criar um mundo cinematográfico à sua imagem e semelhança. Mais do que conceber um estilo, Fellini concebeu um universo facilmente reconhecível. Ao vermos uma obra sua logo sabemos identificá-la e percebemos que estamos pisando no mundo de Fellini, mais exatamente no mondo Fellini. Como poucos, ele soube estabelecer as regras desse mundo de tal maneira que logo ganhou um adjetivo próprio: felliniano. Claro que hoje esse adjetivo se confunde com a própria Itália, afinal muito desse seu mondo tem a cara de seu país de origem. Mas a Itália de Fellini não era propriamente a Itália, e sim uma paralela, minuciosamente reconstruída pelo deus Fellini. Esse mondo felliniano espelhava aquela Itália real, entretanto incorporava lá suas distorções, um quê de grotesco, de tipos exóticos, exagerados, esbarrando aqui e ali em uma ideia estilosamente barroca, com mulheres obesas sensualizadas e personagens com modos extravagantes. Esse mondo tem algo que transita psicanaliticamente entre sonho, delírio ou imaginação. Nele, a música inconfundível de Nino Rota ajuda a compor um clima que o sintetiza, com um toque circense, mágico, onde alegria e tristeza se irmanam de forma comovente e às vezes até espetacular.

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CHANDLER, 1995.


11 O circo, antes de ser uma mera citação ou ilustração em seus filmes, deve ser entendido como parte integrante de sua concepção fílmica. Não era preciso o filme ter um circo por um motivo muito simples: o circo está na própria mise-enscène felliniana, nos corpos, no humor presente nas cenas, na fantasia do ambiente e sempre no desconcerto da câmera, esta sim sempre a bailar como um trapezista, um mágico ou um palhaço. A câmera em Fellini era a própria fantasia e a refirmava incessantemente. Nascido em 1920, Fellini viveu sua infância e adolescência no período fascista de Benito Mussolini (1922-1945). Seu mondo retratou tipos populares que navegaram pela época fascista, que deixou marcas profundas na Itália contemporânea. O cinema de Fellini sempre esteve atento a criticar e ridicularizar esse universo espalhafatoso, salientado por um fascínio decadente pelo grotesco.

Mas os filmes de Fellini evocam sistematicamente a sua Rimini natal. Adentrar em seu mondo é também passear em reminiscências de sua infância e adolescência nessa piccola cidade italiana e também demarcar um peculiar provincianismo de seus habitantes como ponto de partida para refletir sobre o mundo. Assim o Sesc convida todos a embarcar nessa viagem fantástica pelo mondo Fellini, com cinco de suas obras: Os boasvidas (1953), A doce vida (1960), Oito e meio (1963), Julieta dos espíritos (1965) e A voz da lua (1990).


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FELLINI, O HOMEM DE RIMINI E DE ROMA: O MAIS FELLINIANO DE DE TODOS TODOS OS OS SERES SERES MAIS FELLINIANO RIMINI E DE ROMA: O FELLINI, O HOMEM DE


Federico Fellini, como bom italiano que era, gostava de falar, inclusive sobre si mesmo. Sua história, tal como em seus filmes, mistura momentos mágicos e banais. Seus pais eram a síntese da família popular italiana. O pai um caixeiro-viajante, vendedor de víveres. Já sua mãe uma dona de casa insatisfeita com as viagens do marido e os constantes adultérios dele, que aproveitava da vida nômade para ficar longe da esposa e abusar da vida poligâmica. Como o pai trabalhava com o ramo alimentício, Fellini jamais passou perto da fome. Segundo ele, a mesa de sua casa sempre foi abundante em vários tipos de comida. Nas obras de Fellini permanentemente surgiam críticas, algumas ancoradas no mais puro deboche, à igreja católica, à família e à escola. Esse tripé em nada o agradava. Para ele, as três instituições estavam ligadas à repressão, fosse ela em relação à liberdade de expressão (incluindo as manifestações do corpo), opinião e, sobretudo, sexual. Fellini, ainda muito criança, narra grandes fantasias eróticas e a sua dificuldade de se aproximar efetivamente de uma mulher, inclusive um medo mesmo de não saber o que fazer perante uma sem roupa.

A paixão de Fellini pelo cinema muito se deu porque sua mãe adorava ver filmes. Fellini narra sua lembrança de como ela chorava, especialmente vendo os filmes de sua grande referência feminina, a atriz Greta Garbo, pela qual nutria um verdadeiro encantamento. Lembra que desde os dois anos de idade acompanhava sua mãe e sempre considerou o templo do cinema como se fosse sua própria casa. Apesar do medo que Fellini tinha dos palhaços na infância, aos cinco anos de idade ele chegou a passar quase um dia inteiro com uma trupe circense que visitava Rimini. As lembranças desse momento ficaram marcadas nele para sempre, especialmente a sensação inesperada de tocar os pelos de uma zebra, o que não deixa de ser uma visão bem felliniana. O tratamento recebido pelos artistas da trupe foi de tamanha delicadeza e atenção, que ele quase se esqueceu de voltar para casa ao final do dia.

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15 Fellini amava histórias em quadrinhos, e por tabela adorava desenhar. Desde bem criança desenvolveu essa habilidade. Durante as chatas aulas da escola ficava desenhando. Seu maior talento eram as caricaturas. Ele costumava dizer que passava com boas notas porque o pai doava muitos de seus produtos para os professores, que assim, olhavam suas medíocres notas com mais benevolência. Aos dez anos de idade sua mãe precisou visitar um tio em Roma (a família dela era originalmente de lá) e Fellini diz que foi paixão à primeira vista pela cidade. Prometeu a si mesmo que moraria ali o mais cedo que conseguisse: “Vim ao mundo quando vi Roma pela primeira vez”.2 Assim o fez logo que completou 18 anos de idade. E foi vendendo seus desenhos, suas charges e caricaturas para algumas revistas e alguns jornais que começou a sobreviver sozinho em Roma.

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CHANDLER, 1995, p. 47.


Quando já morava em Roma e já namorava Giulietta Masina, a Segunda Grande Guerra Mundial estava em curso e a pressão pelo recrutamento de soldados para servir nas frentes de batalha era imensa. Fellini passou por dois momentos tensos envolvendo um possível alistamento. Ele conta que estava dentro do prédio do alistamento quando começou um bombardeio e uma grande correria. Fellini se aproveitou da confusão para correr e fugir do exército. Nesse caso, ironicamente, ele teria sido salvo da guerra pela própria guerra. A outra oportunidade ocorreu num momento em que o exército passou a realizar várias blitz nas ruas, em busca de pegar jovens em condições de participar da guerra. O risco era iminente e Fellini evitava sair de casa para não ser surpreendido. Bastou uma saída, um mínimo descuido, para ficar encalacrado em um cerco policial que recrutava pessoas para lutar no front. Para a sua sorte, todos os soldados eram alemães. Mas novamente o inusitado aconteceu. Quase na hora de o caminhão partir com todos os civis aleatoriamente recrutados, inclusive o próprio Fellini, ele pula do veículo e abraça um distraído soldado alemão como se o tivesse reconhecido de algum lugar. O soldado ficou tão atônito ao ser chamado efusivamente de Fritz por Fellini, que malandramente se passou por um velho amigo do soldadinho. E foi assim que ele mais uma vez escapou do recrutamento, mesmo tendo corrido o risco de levar um tiro pelas costas de algum assustado soldado alemão. Pode até ser que essas duas inusitadas histórias não sejam verdadeiras, mas não podemos negar o quão engraçadas e pitorescas elas são, e poderiam estar presentes tranquilamente em um de seus filmes.

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Todos os que acompanham ou conhecem minimamente a obra de Fellini sabem do seu apreço em enxertar fragmentos de sonhos nas suas histórias. Mas o que poucos sabem é o quanto o mestre italiano efetivamente sonhava e, impressionantemente, conseguia lembrar com exatidão de todos os seus sonhos. Como muitas vezes acontecia em seus filmes, o erotismo era uma das facetas oníricas mais frequentes desses sonhos, e sempre com mulheres corpulentas que demonstravam autoridade. Daí, podemos calcular o quanto foi fácil para ele criar um filme como A Cidade das Mulheres (1980), onde o tempo todo o personagem de Marcello Mastroianni vivenciava cenas das mais esdrúxulas envolvendo as mulheres mais decididas e vingativas. O medo de mulheres, muitas vezes narrado em suas biografias, parece assombrá-lo até a idade mais madura, e seus filmes, pelo jeito, o ajudavam no exorcismo de seus traumas e assombros vividos desde a infância com o sexo feminino. Não casualmente, as mulheres expressavam nele um sentimento dúbio, um misto de voluptuosidade e temor. Suas inseguranças só foram amainadas no seu encontro com Giulietta Masina, sua musa, esposa e companheira de vida. Não que Fellini fosse o ás da fidelidade, pois sabemos que não era mesmo, mas precisamos reconhecer que, no decorrer de sua vida, essa relação foi um dos pontos mais altos. Giulietta ajudou Fellini a perder ou amenizar o seu pavor pelas mulheres. Essa segurança conquistada a duras penas foi um dos pontos cruciais para que Fellini pudesse deslanchar na complicada carreira de diretor de cinema.


Nos dez primeiros anos da filmografia felliniana, podemos assinalar pelo menos três filmes que dizem muito sobre suas angústias como homem e profissional, obras que espiritualmente são significativas de sua própria trajetória. Trata-se de uma trilogia realmente especial (Os boas-vidas, A doce vida e Oito e meio), nos quais Fellini assume sempre um alter ego para pensar as clivagens ocorridas em sua vida adulta. Em Os boas-vidas (1953), ele aborda o momento incerto de crescimento e de afirmação profissional, aquele momento em que precisa tomar a difícil decisão de sair de uma cidade pequena para tentar viver como jornalista numa cidade grande. Em A doce vida (1960), Fellini se aproveita de suas vivências como jornalista em Roma para refletir o papel da espetacularização da mídia e da sociedade romana como um todo. E por último, em Oito e meio (1963), ele parte de suas angústias como diretor de cinema, as cobranças intermináveis pelo sucesso e a crise de criação, para discutir o fenômeno artístico na contemporaneidade. Estudar essa tríade talvez seja mais importante do que qualquer biografia ou autobiografia já realizada sobre Fellini. O seu eu mais profundo estava ali no somatório dessas três obras. Como bem gostava de dizer, foi nos filmes que ele se despiu por completo, com seus desejos e seus sonhos mais secretos. Assim era Fellini, um artista a expor suas entranhas por meio do cinema.

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Como, então, pensar em Fellini sem lembrar o modo com que ele criou um estilo, uma escrita própria por meio de sua câmera?! A câmera em Fellini funciona realmente como uma caneta. Seu dom para o desenho se transpôs para o manejo da câmera nas cenas, como se com ela desenhasse não só o que vemos, mas também o que sentimos. Depois de realizar essas três obras de caráter mais autobiográfico, seu estilo já estava mais que experimentado, maduro e consolidado. Claro que esse estilo não se encerrava pelo uso da câmera, mas se constituiu em um dos aspectos centrais de sua concepção fílmica. Sem esquecer, porém, da preciosa colaboração da música de Rota, dos diálogos sempre exagerados e pouco reveladores da trama, que muito diziam sobre o vazio da sociedade, e a profusão de personagens sempre a entrar e a sair de cena sem qualquer cerimônia. Muitos críticos demoraram a perceber o quanto Fellini, ao seu modo, atribuiu valor a um formalismo, que seu cinema atenta, e muito, para a criação e recriação da realidade, e que seu cuidado com a mise-en-scène foi de um detalhismo insuportável. Figurino, décors, câmera, atuações dos atores e atrizes, fotografia, roteiro, montagem e música sempre passaram por uma acurada percepção do mundo que Fellini queria construir, o seu mondo. Não casualmente, tudo construía uma identidade artística intensa, a ponto de termos que nomeá-la involuntariamente como felliniana.



OS TIJOLOS DA EDIFICAÇÃO FELLINIANA: NOTAS SOBRE ALGUMAS INFLUÊNCIAS LITERÁRIAS E CINEMATOGRÁFICAS CINEMATOGRÁFICAS LITERÁRIAS E INFLUÊNCIAS SOBRE ALGUMAS FELLINIANA: NOTAS DA EDIFICAÇÃO OS TIJOLOS


Comecemos pelo fim cronológico. Quando se trata de Fellini, o fim pode ser apenas um caminho, um apontamento para se chegar a novos inícios reconstruídos, delineamentos, rabiscos em busca de uma forma. Pode parecer estranho, mas será apenas uma opção de método. Os sonhos também são assim, parecem palpáveis até revelarem-se nuvens, e Fellini era sabedor disso. Mas será que eles são mesmo assim, apenas nevoeiros passageiros? Pode ser que sim, mas o que importa é o dado corpóreo que eles trazem, aquele desenho momentâneo, um modificar constante, um algo de imprecisão calcado sempre em alguma materialidade. Se o cinema de Fellini é enganador, o seu mondo também o é, e essa análise estará em conformidade com ele, em um constante brincar da realidade com o lúdico e o falso.

Mas sim, voltemos ao já enunciado fim. Em 1993, ano de sua morte e um mês após ter sido agraciado por um Oscar pelo conjunto da obra, Fellini conversou sobre sua vida, obra e suas influências com dois jornalistas italianos (Goffredo Fofi e Gianni Volpi). Essa entrevista resultou em um livreto espetacular chamado A arte da visão.3 Pode ser considerada uma de suas últimas impressões sobre seu universo e as artes em geral, e onde consegue, do alto de sua maturidade, falar de diversos temas que lhe são muito caros. A grande revelação deste livro está na sua fala sobre suas maiores influências. Talvez, a palavra influência seja até pesada demais. Seria melhor se disséssemos o quanto algumas obras foram importantes do ponto de vista da estética, do estilo e das narrativas para o estabelecimento e a formação de seu modus operandi como cineasta.

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FELLINI, 2012.


23 Curioso é que, quando Fellini aborda os autores “influenciadores”, ele foge de citar cineastas. O entrevistador fala de Rossellini e Fellini faz uma curva desviando para Homero. Parecendo entender Fellini, a pergunta se encaminha para a literatura e vem então o deslanchar orgástico do diretor sobre diversos literatos. O que é muito comum quando nos defrontamos com cineastas possuidores de um universo fílmico bem próprio, as suas referências mais caras são comumente encontradas fora do cinema e Fellini nos impulsiona para esse lugar, um lugar onde a imaginação é ilimitada, sem fronteiras, com dimensões imprecisas e embrenhadas pela subjetividade. Antes de situar Fellini no cinema é preciso situá-lo primordialmente no campo da cultura, pois é nesse território mais alargado que sua obra está inscrita.

Ao enumerar os autores que o influenciaram, Fellini não detalha onde cada um deles o contagiou nem de que forma. Mas basta analisar um a um para ficar bem evidente. O primeiro citado, surpreende, é Carlo Collodi, com sua obra Pinóquio. A surpresa pode não ser tanta se pensarmos o quanto esse clássico da literatura infantojuvenil dialoga incisivamente com sua obra, o que nos faz pensar no seu lançar-se à imaginação, e de como ela, amalgamada com a realidade, consegue extrair algo de mágico em um jogo subjetivo libertário, no qual apenas o aprendizado irrefreável importa, como situação inerente e involuntária ao ser humano. Irremediavelmente, Fellini estava sempre preocupado com o indivíduo e sua interação com a sociedade. Seu ponto de partida e de chegada sempre foi o indivíduo. O coletivo para Fellini está presente como elemento de interação, não de explicação. Por isso, suas obras, em especial as mais maduras, não se caracterizavam como puramente sociológicas, antropológicas ou históricas (incluindo seus filmes de época), apesar de conterem algumas contaminações desse tipo.


Em rigor, Fellini foi um cineasta essencialmente de cunho psicológico (mesmo que não seja no mesmo sentido de Ingmar Bergman).4 Há que se reconhecer em seus personagens traços decisivos, referenciando aqui as recorrentes cenas de delírios e sonhos evocados em suas obras, sobretudo uma inclinação junguiana, como o próprio Fellini assumiu, o lado contraditório e nebuloso no qual trabalha a ideia de artista, da relação entre sonho, recordação e razão, e quanto tudo isso é caro a nós como indivíduos. Mas uma vez, a resultante está em um embate impreciso, obscuro e sempre trágico entre o sujeito e o mundo, entre o indivíduo e o coletivo. Carl Jung exprime bem o aspecto simbólico desse mecanismo:

Ingmar Bergman foi um cineasta sueco que, em suas obras, trabalhou sistematicamente com o universo onírico, porém enfatizando aspectos angustiantes e soturnos de seus personagens. 4

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Nesse embate, como esquecer então da imensa contribuição de Kafka para se analisar os efeitos materiais provocados nos corpos dentro de uma sociedade onde a experiência humana foi completamente posta abaixo por uma sucessiva mecanização do mundo do trabalho e de nosso cotidiano, colocando-nos em um labirinto de caminhos insolúveis? Outro nome a ser mencionado como importante por Fellini é o de Luigi Pirandello, o famoso dramaturgo italiano, que tão bem traduziu o mal-estar do homem moderno e a sua difícil tarefa de lidar e tentar conciliar socialmente com as máscaras interior e exterior, sempre amparado pelo humor. Um homem que não cabe no mundo que lhe é dado, mas que contraditoriamente é obrigado a viver nele. E um dos pontos da obra felliniana é o da cisão do homem numa sociedade burguesa que preza permanentemente as aparências. Pode-se dizer que Pirandello está sempre a sombrear a obra do mestre Fellini, como uma referência filosófica norteadora. Havia um encantamento de Fellini pela narrativa do escritor Giovanni Verga, autor do clássico Os Malavogliai (1881) e um dos precursores do chamado “verismo”, famoso ao retratar a vida dos camponeses da Sicília, incorporando inclusive seus dialetos à sua escrita. Fellini mostrou-se muito sensível ao modo como a força arrasadora do progresso triturou os mais humildes (no campo e na cidade) e essas contradições socioeconômicas estavam implacavelmente presentes em suas obras. Se pode ser dito que Fellini nunca foi um cineasta político, não se tem como negar o quanto suas obras foram permeadas profundamente por uma visão acurada do social, e Verga tem muito peso nessa direção.

Sempre é muito proferido pela crítica o gosto de Fellini pelo estilo barroco em muitos de seus filmes. Essa influência vem em grande parte das leituras apaixonadas que fazia do escritor Tomasso Landolfi, de cunho existencial e muito influenciado pelos escritores russos como Gogol e Dostoeivski, dos quais traduziu várias obras. O gosto de Landolfi pelo fantástico e pelo grotesco tocou Fellini, que era fascinado pelo seu estilo e também por sua personalidade misteriosa. No final de sua vida, devido a inúmeros problemas de saúde, Landolfi buscou o isolamento.

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27 O escritor, jornalista e poeta Aldo Palazzeschi foi outra alma a passear no imaginário felliniano. Sua obra pode ser caracterizada por uma análise profundamente social, em que o fantástico se encontra sistematicamente com o humor. Uma de suas obras mais significativas, Irmãs Materassi (1934), é um retrato ora engraçado ora terno, traços tão bem incorporados à poética de Fellini. Mas Fellini também enaltece Carlo Emilio Gadda, o célebre escritor antifascista. A admiração era tanta que Fellini não se acanhava ao chamá-lo de Planeta Gadda. Seu romance Quer pasticciaccio brutto de via Merulana (1957) propõe um estudo da sociedade italiana do final dos anos 1920, a partir de um roubo e um posterior assassinato em um prédio localizado no centro de Roma. Pobres e ricos são retratados no decorrer do enredo e com isso Gadda explora as diferenças entre as classes, frisando em especial a peculiaridade de cada linguajar. Tudo no livro se esboça como uma grande confusão, com múltiplos personagens e não há apenas um único ponto de vista, e sim diversos. Essa forma de narrar muito se aproxima do estilo de Fellini, uma profusão de personagens entrando e saindo de cena constantemente, como um documentário social da vida de uma cidade.

Será que aquilo que identificamos de tão original em Fellini vem de outras plagas, de outras narrativas que não as cinematográficas? Essa afirmação pode soar e até mesmo conter alguma dose de exagero, pois não imputar nada ao cinema seria de um absurdo completo; afinal, sua opção para expressar-se artisticamente sempre foi a do cinema. Fellini foi um filho direto do neorrealismo, de certo um parentesco em primeiro grau. Foi roteirista de clássicos dessa tendência cinematográfica, como Roma, cidade aberta (1945) e Paisá (1946), ambos de Rossellini, obras fundamentais para a existência de um cinema moderno da Itália, desgarradas das grandes produções realizadas nos estúdios da Cinecittá. Não à toa, igualmente, seus primeiros filmes possuíram a marca neorrealista, embora fosse um Fellini vivendo ainda a infância de seu cinema. Mas deve-se registrar que desde essa infância ele apresentou sempre elementos para além do neorrealismo, uma dose de lirismo no desenvolvimento dos personagens, um eclodir de subjetividades que já o lançava paralelamente para fora daquela estética dominante, um sinal, um rastro de autonomia a perseguir em suas obras futuras e que explode em A doce vida (1960). Importante mencionar que Noites de Cabíria (1957) é o desfecho magnífico dessa primeira fase, quando a ideia do lírico chega a um patamar dramatúrgico elevado, em grande parte devido ao amadurecimento de Giuletta Masina como atriz.



FELLINI E O CINEMA DE SEU SEU TEMPO TEMPO CINEMA DE FELLINI E O


Popular, crítico, engraçado, nostálgico, autorreferente, circense, emotivo, criativo, lúdico, surreal e vanguardista. Falar que Fellini é um dos artistas mais originais e influenciadores do século XX não é nenhum exagero: ele representava muitos mundos, mas todos estavam profundamente em seu mundo. Daí suas fantasias também parecerem tão nossas. Como tantos cineastas de seu tempo, passou pela Segunda Grande Guerra Mundial, e essa experiência o marcou, assim como toda a sua geração. Fellini fugiu da guerra com valentia, com a força típica de um artista que sabia encarar apenas uma luta: a de sua arte. E se a guerra para a Itália foi uma derrota, para o cinema foi a glória. O cinema italiano do pós-guerra encarnou e simbolizou tudo o que veríamos a seguir. Tornou-se o cinema com mais diretores famosos e demarcou a cisão que estava em curso com as narrativas clássicas ditadas pelo cinema norte-americano, mais precisamente o hollywoodiano.

O neorrealismo italiano tirou as câmeras dos empedernidos e embolorados estúdios da Cinecittá, e, contaminado pelo frescor das ruas, fez delas o palco de suas tristes histórias. As ruínas materiais serviram de cenário e de arcabouço para uma esperança que precisava renascer das cinzas. Uma nova escola ou uma nova forma de conceber o fazer vieram de experiências reais, por isso os atores também precisavam, muitos deles, vir das ruas. Assim, profissionais e amadores se amalgamaram (para utilizar a palavra cunhada pelo crítico francês André Bazin, que escrevia no calor da hora) para fazer o novo cinema italiano. Quando Fellini migrou da imprensa para o cinema, fez isso justamente como roteirista dos diretores mais significativos do neorrealismo, Alberto Lattuada e Roberto Rossellini, dois cineastas com os quais ele muito aprendeu e que por isso reverenciava sempre como mestres. Não à toa, suas primeiras obras ainda traziam as marcas desse significativo e influente movimento. Era impossível, no panorama pós-guerra europeu, não ser manchado por suas tintas viçosas.

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31 Em volta do neorrealismo floresceu não apenas o interesse por fazer cinema, mas também por pensá-lo de maneira mais significativa e veemente. Revistas de cinema, como a Cahier du cinéma, criada em 1951 e até hoje prestigiosa, fomentaram o pensamento crítico sobre o novo cinema italiano, mas sem esquecer o clássico norte-americano. Podemos identificar duas correntes básicas transformadoras no período: a força renovadora de Cidadão Kane (1941), que só chegou à Europa depois do fim da Segunda Grande Guerra Mundial em 1945, e os primeiros filmes neorrealistas de Rossellini, De Sica e Visconti. Da crítica francesa nasceram Godard, Rohmer, Truffaut, Rivette e Chabrol fundadores, no final dos anos 1950, da Nouvelle Vague, que implodiu os ditames clássicos, inclusive os da continuidade narrativa, e além do neorrealismo foi o mais influente movimento estético do cinema do século XX. A partir da década de 1960, o cinema mundial é invadido por novas formas de expressão cinematográfica. A insatisfação com as regras proliferara de tal maneira que, aos poucos, tal reconfiguração foi assimilada pela grande indústria do cinema.

Esse era o clima efervescente do cinema italiano e europeu, no qual Fellini vivia e transitava. Um cinema em franca libertação dos seus códigos e preceitos formadores, inserido num contexto onde havia abertura para inovações e experimentações narrativas e estéticas. Quando Fellini faz os seus primeiros filmes mais ousados (A doce vida (1960) e Oito e meio (1963), os revolucionários Acossado (1961) de Jean-Luc Godard e Hiroshima Mon Amour (1959) de Alain Resnais já estavam circulando indisciplinadamente como obras que viriam a ser cults e futuros clássicos. Em 1961, isto é, logo após A doce vida, Resnais realizou uma das obras mais inaugurais da história do cinema, uma libertação estrutural da literatura, com seu O ano passado em Marienbad (1961), a forma cinema em sua plenitude. Toda essa atmosfera criativa, aberta inclusive ao vanguardismo, muito facilitou Fellini a filmar sua obra-prima, Oito e meio (1963). Podemos dizer que, graças a ela, Fellini torna-se um artista pleno em seu estilo, com uma originalidade inconteste. Ao se deparar brevemente com um filme seu de súbito, a marca já aparecia, era algo prontamente identificável, enfim, felliniano.


OS BOAS-VIDAS 1953

DURAÇÃO 107 min.

ELENCO

Franco Interlenghi, Franco Fabrizi, Alberto Sordi, Leopoldo Trieste, Riccardo Fellini e Eleonora Ruffo.

SINOPSE

Numa pequena cidade da Itália, Moraldo, Alberto, Fausto, Leopoldo e Riccardo são cinco típicos “boas-vidas” (vitelloni): jovens desocupados de famílias abastadas, que desfrutam uma vida boêmia vazia de perspectivas.

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33 O segundo longa-metragem solo de Federico Fellini, Os boas-vidas, é uma obra fundamental em sua filmografia por representar o início da delimitação do seu universo peculiar. Apesar de o título mencionar todos os cinco “boas-vidas” (Moraldo, Alberto, Fausto, Leopoldo e Riccardo), o filme é centrado em Fausto que, por engravidar a bela Sandrina, é obrigado a se casar com ela como reparação do ato. Ainda assim, o casamento, aparentemente feliz, não impede que Fausto continue sendo um mulherengo e um farrista inveterado. Todos os “boas-vidas” possuem um arco dramático específico e traços de caráter complementares no enredo. Alberto é bonachão e beberrão; Leopoldo é o intelectual; Riccardo, um cantor decadente; Moraldo é o mais tímido e o mais sonhador. Eles funcionam como escadas para Fausto, realmente o protagonista do filme, personagem no qual tudo vai fluir e por onde Fellini vai desfiando sua crítica à burguesia decadente do interior. Um dos aspectos mais curiosos de Os boas-vidas é a sua narrativa misteriosa, realizada em terceira pessoa, por alguém que não se identifica até o fim, mas que fala com muita intimidade dos personagens e da cidade. Chegamos até a pensar que, em algum momento, esse personagem se revelaria,


o que não acontece. Friso essa voz porque ela é responsável por uma dose de afetividade e de melancolia existente no filme, mesmo que o humor acompanhe constantemente a trama. Os boas-vidas traz um Fellini em pleno processo de amadurecimento e muito atento à sociedade italiana do pós-guerra. Fellini cria um diálogo interessante com sua origem neorrealista, inverte sua lógica ao trabalhar um ponto de vista a partir de uma camada mais abastada, que vive em uma pequena cidade marítima. Vale ressaltar que a aparição de personagens mais pobres é praticamente irrisória durante todo o filme. Mesmo sendo pontual, a participação dos mais humildes, economicamente, é decisiva para situar socialmente os boas-vidas. Quando os mais pobres aparecem em cena, Fellini cria uma fagulha instantânea, o contraste torna-se gritante. Isso acontece quando Moraldo conversa com o ainda menino Guido, que acorda às três da manhã para trabalhar na ferrovia da cidade. Mas a cena mais impactante e sensacional é aquela em que Alberto insulta, de dentro de um carro, trabalhadores numa obra pública, logo a seguir o carro sofre uma pane e ele apanha dos ofendidos. Fellini nos revela repentinamente uma feroz luta de classes.

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35 É um filme inteiramente construído pelos seus personagens. Por isso, o trabalho dos atores é tão importante para o seu sucesso. Segundo os atores envolvidos, Fellini criava um clima e os deixava à vontade para desenvolver até diálogos. Dava instruções básicas, como caracterização de cada personagem, mas todos podiam até reelaborar suas falas e gestos. Seja como for, Fellini conseguiu um objetivo fundamental nessa obra: retratar a vida vazia de homens boêmios marcados pela falta de perspectiva. O caráter machista dos personagens fica muito evidente em diversas cenas, desde a relação que Fausto impõe a Sandrina até o seu assédio irrefreável a qualquer rabo de saia que passasse diante de seus olhos. Boa parte do filme foi inspirada em histórias vividas por Fellini em Rimini, sua cidade natal. Mas nem tudo é autobiográfico: muito também provém de tantos outros personagens ligados à sua vida. Essa mistura de imaginação e realidade é um dos pontos altos de sua carreira e Os boas-vidas é o primeiro lampejo. Nele já encontramos uma câmera inquieta, sempre em busca dos seus personagens e na elaboração de uma mise-en-scène caótica, ditada pela imprecisão e pelo espírito convulsivo do povo italiano.


Como o próprio Fellini gostava de dizer, o fio tênue que une verdade e mentira é um pouco a característica da italianidade. Os boas-vidas é o primeiro pontapé, mesmo que ainda incipiente, de um grande legado que o cinema de Fellini deixará para a posterioridade: o adjetivo felliniano.

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A DOCE VIDA 1960

DURAÇÃO 160 min.

ELENCO

Marcello Mastroianni, Anita Ekberg, Anouk Aimée.

SINOPSE

Marcello Mastroianni vive Marcello Rubini, um jornalista insatisfeito com sua carreira envolta no mundo de fofocas e boatos da alta sociedade de Roma, e que se vê atropelado por um turbilhão de acontecimentos inusitados.


A doce vida é aquele típico filme no qual a denominação obra-prima se encaixa com exatidão. Sua ousadia narrativa ainda hoje surpreende. Uma obra que consegue definir, a um só momento, um país e o conceito artístico de seu tempo. Mais do que um filme de autor, é um filme do seu autor, que demarca seu território e sua originalidade perante a qualquer outro diretor de cinema, um diretor a construir seu universo, seu mundo, o mondo Fellini. Uma das sínteses mais instigantes sobre essa obra é a do crítico baiano Walter da Silveira, que equipara o brilhantismo cinematográfico do filme com a apreciação da arte dos afrescos nas artes visuais:

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SILVEIRA, 1966, p. 46-47.


A doce vida possui uma estrutura narrativa desafiadora, em especial para os espectadores do início dos anos 1960. Claro que, um ano antes, Godard tinha implodido de vez a narrativa clássica em Acossado, mas a perfídia de Fellini não deixa de ter seu encanto ao nos fazer mergulhar na experiência de Marcello (seu alter ego) em um turbilhão, sem fim e propósito, que só faz sentido quando o analisamos no todo. As partes funcionam como se fossem pílulas que lentamente vão nos entregando um grande mal-estar social e existencial de uma sociedade envenenada por uma ideia de espetáculo tosco da vida burguesa italiana no pós-guerra. O filme se passa em Roma, durante sete dias e sete noites, em referência aos sete pecados capitais. Mas, aceitar simplesmente isso é limitá-lo a um mero jogo de combinações numéricas a ser desvendado. Para muito além dessa analogia, o filme viaja sobre nós, e nos impõe sua estrutura de maneira inconteste. Quando percebemos já estamos imersos no universo de Marcello Ribini, o jornalista que faz para um jornal fascista coberturas de festas de artistas, famosos e ricos em geral. A atuação do ator Marcello Mastroianni no filme é algo até difícil de se analisar à altura, já que ele é nosso guia, um ímã que não nos deixa tirar o

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41 olho da tela. Nem o desfile de várias beldades como Anouk Aimée, Anita Ekberg, Nico, Yvonne Furneaux, Valeria Ciangottini, Magali Noël, Ida Galli, Nadia Gray, conseguem tirar seu brilho. A concorrência é alta, mas Marcello Mastroianni está insuperável e onipresente em A doce vida. Se o filme Os boas-vidas versava sobre a Rimini de Fellini, A doce vida narra muito de sua experiência em Roma, lembrando que ainda bem jovem ele foi morar na capital da Itália. O filme não tem em si uma história que se desenvolve. Ele está calcado muito mais nas experiências do personagem Marcello Ribini e suas relações com a alta sociedade romana. Marcello é um meio, é a forma na qual Fellini adentra em uma Itália que começa a se construir a partir de uma imagem forjada por uma mídia embasada no espetáculo da superficialidade. As peregrinações de Marcello Ribini pelas festas deixam claro que a ideia de Fellini era abordar o vazio transpirado nesses ambientes luxuosos, o quanto a vida nesses ambientes se esvai incessantemente. O bloco em que isso mais se explicita é aquele em que a atriz e musa norte-americana Sylvia se deslumbra pelo exotismo italiano e pelo ambiente festivo. Fellini, a cada nova cena, demonstra a vertigem de uma sociedade urbana do século XX, a hecatombe


de um mundo ditado pelas aparências burguesas e ainda bem assentado nos resquícios de uma nobreza decadente. Um personagem bem importante no fiapo de trama proposta por Fellini é Steiner. Ele tem um papel muito simbólico no filme. É rico, bem-sucedido, mora em uma casa fantástica e tem uma família modelar, com esposa e dois filhos adoráveis. Para Marcello, ele é um exemplo a seguir. Na prática, essa vida perfeita não é tão bem azeitada assim. Em um diálogo entre Marcello e Steiner, este último desabafa sobre seu mundo deveras idealizado: “Às vezes, à noite, esse silêncio, essa escuridão, me oprime. Temo a paz acima de tudo. Parece uma aparência que oculta o inferno. Penso o que verão, amanhã, meus filhos. Dizem que o mundo será maravilhoso. Mas como, se basta um telefonema anunciando o fim de tudo? Deveríamos nos libertar de paixões e sentimentos na harmonia da obra de arte realizada. Naquela ordem encantada conseguiríamos nos amar tanto e viver soltos. Além dos tempos. Soltos!” Esse é o primeiro filme de Fellini em que a mise-en-scène assume uma faceta felliniana, com diversos personagens aparecendo e desaparecendo da tela dentro de uma atmosfera caótica.

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43 Nesse approach narrativo, calcado na perturbação sensitiva, a música climática, a câmera inquieta e a movimentação dos atores no cenário ditavam uma estética essencialmente felliniana. Em todos os blocos, Fellini nos mostra sua visão crítica acerca da sociedade burguesa italiana, a objetificação humana em um mundo sórdido e existencialmente vazio. Não casualmente, Marcello é o cerne do filme. É o elemento destoante, que embora almejando ser, está na esfera do nunca será. Por isso mesmo, as relações se vaporizam, pois os prazeres imediatistas comprazem o homem num determinado momento, mas não completamente, deixando nele um imenso buraco na alma, impreenchível. A cena da sétima noite vislumbra o quanto Fellini tinha como foco a decadência da sociedade romana. A dura realidade de um crime racionalmente inexplicável, executado por um homem rico, aparentemente feliz, que mata seus filhos, assombra a todos. A sociedade não está mais preocupada com as motivações, mas sim com o espetáculo que pode eclodir desse fato inusitado. O absurdo passa a ser a meta social, um fato deve ser superado por algo mais bizarro e assustador. Na mesma noite tudo é possível, o striptease inesperado de uma mulher que até o dia anterior era uma conservadora esposa, as agressões e uma perversidade ao


corpo feminino, a bebedeira sem limite, enfim, uma permissividade sem freio, machista e homofóbica, como se todos os filtros estivessem desativados e qualquer arbitrariedade fosse possível naquele momento. A atmosfera caótica é comandada pela música inventiva de Nino Rota. Como um artista de primeira linha, Fellini consegue terminar essa obra com uma metáfora impressionante. Todos os personagens da sétima noite saem ao amanhecer para fora da casa, à beira-mar, e veem os pescadores retirando um animal monstruoso da água. De repente, Fellini nos oferta do nada a imensa metáfora de um ser monstruoso que surge ali para a perplexidade de todos. O mais curioso é que esse ser monstruoso está morto, mas mantém os olhos abertos, como se os encarasse. Fellini parece nos dizer que o monstro do fascismo ainda está ali, aparentemente morto, porém espreitando a todos.

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OITO E MEIO 1963

DURAÇÃO 138 min.

ELENCO

Marcello Mastroianni, Anouk Aimée, Claudia Cardinale, Sandra Milo.

SINOPSE

Prestes a rodar sua próxima obra, o cineasta Guido Anselmi ainda não tem ideia de como será o filme. Mergulhado em uma crise existencial e pressionado pelo produtor, pela esposa, pela amante e pelos amigos, ele se interna em uma estação de águas e passa a misturar passado com presente, ficção com realidade.


Pensa numa obra incrivelmente lúdica, cinematográfica, inovadora, reflexiva, autobiográfica e perturbadora. Oito e meio é tudo isso e mais um pouco. É o ápice da estética felliniana, com todos seus excessos narrativos, seu barroquismo imagético e a música inebriante de Nino Rota. Uma explosão criativa avassaladora, sem limites em todos os aspectos artísticos imagináveis. Em síntese, um poderoso encontro do Fellini homem com o Fellini artista. O filme faz referência aos seus seis longas anteriores, às duas participações do diretor em filmes coletivos e Mulheres e luzes (1951), seu primeiro longa-metragem, no qual dividiu a direção com Alberto Lattuada. Mais autorreferente impossível. Fora isso, o protagonista Guido (Marcello Mastroianni) é um cineasta que está a realizar um filme e tem a mesma idade de Fellini na época, 43 anos. Guido tem uma esposa, assim como Fellini também o tinha e uma amante, vivida pela atriz Sandra Milo, também amante do diretor por 17 anos, segundo declarações explícitas da própria. O ponto de partida de Oito e meio é a crise de criatividade de Guido e a expectativa em torno do seu próximo filme. O que Fellini nos oferece é um mosaico de imagens que perpassam as angústias, os sonhos e delírios de Guido, o alter

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47 ego de Fellini. Não casualmente, a obra começa com um pesadelo de Guido, que termina com ele voando como se inconscientemente estivesse se esforçando para sumir do mundo. Fellini consolida vez por todas o adjetivo que o acompanharia toda a sua vida, felliniano, e que o afastaria por completo da influência neorrealista do início de sua carreira. A estética ousada de A doce vida não só é reafirmada, mas também aprofundada, em Oito e meio. Fellini implode com a narrativa linear e realista quando não distingue sonho e realidade. Não há um encadeamento entre as cenas. O que efetivamente predomina é uma mise-en-scène complexa, na qual a câmera estabelece um bailado poético que envolve uma movimentação constante dos personagens. A fotografia de Gianni Di Venanzo é um dos pontos altos do filme, com um aproveitamento sintomático das sombras, que colaboram demais para a criação da atmosfera de mistério presente nas cenas. A direção de arte de Piero Guerardi, em especial os figurinos, é tão impressionante e inventiva que um fabricante norte-americano quis replicar alguns de seus chapéus, como por exemplo, o usado por Guido no filme. Mas não é só na chapelaria que o figurino aparece. As roupas como um todo são primorosas, em especial as


da amante de Guido e de sua esposa. Enquanto a esposa primava por um guarda-roupa elegante e sóbrio, o de Carla, a amante, se impunha pelo excesso, o uso de penugem e ornamentos, inclusive uma maquiagem para lá de pesada. Fellini constrói um ambiente nebuloso por onde transita Guido. A vida diária de um diretor de cinema de sucesso é sempre cercada de badalação e abordagens insistentes. Fellini sabe pontuar as suas dificuldades sistemáticas, como a conturbada relação com a crítica, a falsa compreensão do produtor, o nervosismo dos atores que querem sempre arrancar dele perfis mais detalhados de seus personagens. Há ainda em Oito e meio uma significativa relação de Guido com as mulheres, sempre mediada contraditoriamente pela facilidade da fama e os momentos de impertinência. Enquanto sonha com uma mulher aparentemente ideal e angelical (interpretada por Claudia Cardinalle no auge de sua beleza e juventude) ele tem visões e sonhos com sua mãe e seu pai. Em uma determinada cena, Guido imagina que está em um harém, volteado por diversas mulheres com as quais transou e flertou durante a vida. Essa obsessão pelas mulheres permeia o universo felliniano e pode ser vista também como um ranço machista de sua personalidade, pois há uma visível submissão e objetificação do corpo feminino.

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49 Se as regressões à infância podem ser consideradas como uma das marcas fellinianas, em Oito e meio ela aparece com força total. São diversas cenas onde a memória infantil é evocada. Nela, Fellini aproveita para despejar sua veia anticlerical ao lembrar dos abusos impostos pelos padres no período escolar. Impossível não lembrar aqui do cineasta sueco Ingmar Bergman, seu contemporâneo. Ambos gostavam de trabalhar com alguns temas em comum, como as lembranças da infância, a repressão cristã (incluindo os seus castigos humilhantes), a falsidade e a hipocrisia dos confessionários e os sonhos como elementos de perturbação psíquica (certo apreço pelo freudianismo). Quando Guido encontra o monsenhor, ele busca uma palavra de alento, mas o que encontra são sentenças duras de ouvir: “quem disse que viemos ao mundo para sermos felizes” e “fora da igreja não há salvação”. Fellini revelava-se antes de tudo um antidogmático ao rechaçar qualquer tipo de doutrinação, e isso esteve presente em todos os seus filmes. Para ele, a recriação da realidade é um dos pontos fundamentais de um cineasta, um compromisso perante a vida e a arte, pontos inegociáveis.


Mas o grande mérito do filme está no seu compromisso com o cinema como fantasia. A metalinguagem está ali o tempo todo a confundir o que é enredo e uma mera intervenção de Fellini sobre o processo do trabalho em cinema. Todos os sinais nos levam a um toque autobiográfico presente a cada instante na obra. Mas não que isso se configure como elementos ilustrativos da vida de Fellini. O real nesse Oito e meio está em todos os seus filmes, está na maneira como ele recria a realidade tendo como ponto de partida os sonhos e a fantasia. Não é a vida simplesmente contada, mas sim travestida e transformada na pureza mais genuína, em delírio, e com o toque felliniano preciso e circense. Com Oito e meio, seu mondo estava completo e irretocável. Um convite para adentrar nele aprazivelmente, e ali viajar por pouco mais de duas horas.

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JULIETA DOS ESPÍRITOS 1965

DURAÇÃO 148 min.

ELENCO

Giulietta Masina, Sandra Milo, Mario Pisu, Valentina Cortese.

SINOPSE

Julieta é uma mulher que ao descobrir a traição do marido começa a ser acometida por visões, dando início a uma jornada de autodescoberta em que sonhos se misturam com realidade.


Comecemos pela cor, pois Julieta dos espíritos é o primeiro longa-metragem colorido de Fellini. Antes, apenas o episódio filmado em cores para o filme coletivo Bocaccio 70 (1962). Aqui, o uso do elemento cor não deve em nada ser desconsiderado, em especial devido à importância que adquire para a atmosfera lúdica na qual Fellini almeja alcançar, e a impressão que temos realmente é de que cada cor ali presente foi precisamente pensada. Não são cores estritamente realistas, mas sim unidades de cores dispostas para expressar, sobretudo, o espírito da personagem Julieta. Fellini preferia fazer filmes em preto e branco, embora admitisse ser um desafio filmar em cores. Por isso, para ele, o manipular delas era algo fundamental. Fellini foi um diretor que artisticamente almejava de modo obsessivo retrabalhar a realidade. As cores simplesmente espelhadas da vida se mostravam pobres e instalavam um realismo frágil que extraia as subjetividades dos personagens em detrimento da objetividade da vida material. Pensando nessas questões em relação ao filme, Fellini assim refletiu:

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E Julieta dos espíritos assim pode ser visto como um filme cujo tema central é a fantasia de uma mulher, reprimida e solitária, em busca de enfrentar uma vida tediosa e vazia. Mas podemos enxergá-lo também como uma homenagem e um tributo de amor de Fellini a Giulietta Masina; afinal o filme tem seu nome e seu inteiro protagonismo. Como não falar de uma cumplicidade cênica entre o casal diretor-atriz? Fellini falou diversas vezes que Giulietta foi a atriz de quem ele mais exigiu e cobrou, e também a mais teimosa e a mais difícil de dirigir.

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FELLINI, 2004, p. 133.


Logo na cena inicial, Fellini cria um ambiente lúdico, onde Julieta se prepara com esmero para receber o marido. O bailado vertiginoso da câmera e a música sugestiva de Nino Rota formam uma ambiência que gera um estranhamento visual e diz muito mais sobre a cena do que a própria camada da imagem que apenas nos mostra uma mulher preocupada em estar bonita para o marido. Tudo ali nos leva a crer que algo beira à ilusão, ao artificialismo daquela situação. O mundo ali retratado nos remete ao falso, mesmo que isso ainda não esteja inteiramente evidenciado. O rosto de Julieta não é mostrado de súbito, ela está sempre de costas ou sombreada. Seu rosto só se ilumina em um primeiro plano na chegada do marido. Fellini consegue, em menos de quatro minutos, nos fornecer muitas informações, mesmo que os diálogos nada digam de significante para a história como um todo. Julieta dos espíritos é exemplar quanto ao universo que Fellini amava edificar em seus filmes, utilizando personagens em excesso que vão entrando e saindo de cena, quase que empurrando o outro para lhe roubar o primeiro plano. O cinema de Fellini dialoga assim com o mundo também na sua forma fílmica, instaurando uma competitividade

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55 entre ele, como diretor, e seus personagens, que expressam um vazio ególatra onde todos mereciam pelo menos seus 15 minutos de fama, mesmo que fosse para ser uma mera estrela cadente a cair logo em seguida no esquecimento. Um mundo desnorteado nos é mostrado igualmente assim, numa convergência total entre conteúdo e fundo. A fotografia de Gianni Di Venanzo e a direção de arte de Piero Gherardi são primorosas, conseguem dar conta do preciosismo estético de Fellini, pois o visual do filme cria uma ambiência ao mesmo tempo lúdica e lúgubre. A escolha das cores dos objetos de cena e das roupas, além do jogo de sombras e luz, são impecáveis, trazendo a consciência de que tudo o que vemos está filtrado pelo olhar, e mais do que isso, pela imaginação fértil de Julieta. Para Fellini, as festas são então o ambiente ideal à materialização desse mundo espumoso das aparências no qual Julieta está imersa e que, tal como uma bolha de sabão, se desfaz facilmente no ar. Um mundo também dos espelhos, que refletem apenas imagens produzidas para serem desejadas e escamoteiam a essência fútil dos personagens. Advogados, michês, socialites peruas, hipnotizadores exóticos e outros personagens estão presentes em uma única sequência do filme. Essa atmosfera criada


por Fellini nos leva a crer que o circo parece ser a sua grande matriz inspiradora, pois o entrar e sair de cena das atrações se torna a base da sua construção, trazendo o efêmero como acontecimento, como uma gag que se materializa, mas que fugazmente se esvai no espaço. A existência volátil das pessoas espelha a essência decadente de uma Itália que vive caricaturalmente de uma imagem-clichê de si mesma. Nenhum artista expressou isso de maneira tão intensa quanto Federico Fellini. Antes de entender os espíritos mencionados no título como algo religioso, por que não os compreender vinculados a uma interioridade da personagem de Julieta, aos seus muitos desejos reprimidos? Julieta muito representa a mulher madura italiana, rica e do lar da segunda metade do século XX, que luta ferozmente com sua educação católica, que é posta constantemente à prova diante de um mundo em que os valores estão cambiando velozmente. Por isso, parece o tempo todo desamparada, como se a vida dela estivesse à deriva de si mesma, como se olhasse para si e não soubesse o que vê. Ela se sente uma sombra, não só do marido, mas dela mesmo, daí os chapéus, véus, óculos escuros e guarda-chuvas serem tão presentes no filme. Há um impulso intrínseco em Julieta para se sombrear diante do mundo e de si mesma.

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57 Sombras, que por sinal, inundam o filme, ao passo que cores fortes contrastam com as sombras, em uma atmosfera ao mesmo tempo lúdica e perturbadora. Julieta dos espíritos muito diz acerca do papel social da mulher em um mundo em grandes transformações. No filme, o marido é quem trabalha, é rico, independente (a mulher não conhece verdadeiramente sua rotina), infiel à esposa, que por sua vez não trabalha e se detém a cuidar da casa e das empregadas, também mulheres. A presença da televisão e do exotismo religioso bem caracteriza o vazio existencial de mulheres, no qual o tempo é uma eternidade e, o passatempo, um companheiro inseparável. Fellini propõe a todos um jogo temporal. Faz o passado interagir com o presente. Afinal é no primeiro que os fantasmas de Julieta estão vivos, mesmo que apenas no segundo as suas manifestações apareçam. Julieta vê constantemente os demônios de sua educação repressora, calcada no catolicismo de um colégio de freiras. Mas como libertar-se desses fantasmas que a atormentam desde a infância, que reprimem seus desejos e estimulam sua passividade? E não casualmente, é com uma caravana circense que Julieta manda simbolicamente seus fantasmas passearem.


A VOZ DA LUA 1990

DURAÇÃO 118 min.

ELENCO

Roberto Benigni, Paolo Villaggio e Nadia Ottaviani.

SINOPSE

O lunático Salvani observa o mundo de maneira diferente, procurando sempre achar o seu lado poético, como se a lua o guiasse. Obra derradeira de Federico Fellini.

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59 A voz da lua marca o encontro entre o grande diretor italiano Fellini com um dos maiores humoristas da Itália, Roberto Benigni. Só este fato em si já seria um atrativo à parte. Mas claro que o filme é muito mais do que isso. O maior desafio de Fellini nessa obra é o de tirar Benigni de seu registro habitual, o do clown, para colocá-lo em uma proposta mais sóbria, entretanto sem perder a dimensão lúdica e circense que Benigni tão bem incorpora a seu personagem, o lunático Salvini. Sua atuação é surpreendente, carismática, contida e expressiva. Ele é o condutor nesse barco à deriva que Fellini joga errante ao desconhecido mar, ao sabor de suas vagas imprevisíveis. Talvez seja o filme onde a relação de Fellini com a fantasia seja a mais visível. É justamente em sua obra derradeira que a camada de realidade parece se desfazer. Desde a primeira cena, onde uma névoa nos induz ao onírico, o senso de realidade passa ao largo. A sensação é de que o sonho, a memória e a fantasia se misturam formando uma sustentação dramatúrgica fluida e imprecisa à história. Curiosamente, Fellini iniciou sua carreira como roteirista junto dos neorrealistas italianos, mas no decorrer da carreira, como diretor, foi se afastando veementemente dessas concepções


e acrescentando uma chave que abria portas à fantasia: mesmo quando o espaço em si ainda guardasse algum contato com a realidade, a recriação dela sempre esteve presente como contraponto. O personagem Salvini é um dos mistérios dessa obra. Ele é antes de tudo um desgarrado, um solitário a vagar pela cidade, pelas suas fantasias e memórias, e pelos diversos personagens, em situações bem ao feitio de Fellini, que, ao invés de construir um enredo, prefere caminhar por situações inusitadas, sem estabelecer propriamente uma história linear, com início, meio e fim. Enquanto obra, A voz da lua pode ser entendida fellinianamente como uma ode ao humano, uma busca pela essência da vida. Não à toa, critica o mundo contemporâneo e as mudanças por ele promovidas, como a de transformar a vida em um grande espetáculo, e enfatiza nessa espetacularização a artificialidade da mídia, o sensacionalismo dos telejornais, a invasão do mundo pop (em especial a massificação da música) e a podridão da política, prestes a transformar os acontecimentos e as tradições em um joguete nas mãos de todo o tipo de oportunista de plantão. Mas Fellini não deixa de explorar a vida como um arroubo incontrolável,

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61 como uma faísca, um farfalhar de emoções, sempre se impondo avidamente até nas situações mais absurdas e desoladoras. Há também um traço bergmaniano, de crítica a uma sociedade que de tanto racionalizar perdeu o encanto, o seu sopro de virtude, e levou os homens a abandonar a comunicação entre os seus. Ao chegar à lua, pisar nela, o homem acabou com uma de suas maiores fontes de mistério e encanto. Ao alcançar à lua, enquanto humanidade, enclausuramos nossos desejos, permitimos que ela também pudesse ser mais um objeto de espetacularização de nossos ambiciosos poderosos. Salvini é um dos últimos guardiões de um lirismo perdido. Quando descobrimos que ele é considerado apenas um louco pelos seus familiares (apenas nos últimos 20 minutos do filme) já lhe guardamos apreço e carinho. Não casualmente, quando Salvini volta para o seu lar, após ser resgatado por sua irmã, nos defrontamos com seu quarto e lá está um boneco de Pinóquio. Sim, essa imagem colocada no seu último filme é por demais simbólica. Vale lembrar o quanto Pinóquio é situado por Fellini como sua maior referência artística, como uma obra de permanente inspiração. De certa forma, Ivo Salvini é Pinóquio, a beleza e a expressividade que esse personagem representa no imaginário felliniano.


Mas não se deve esperar de A voz da lua uma obra concatenada, com partes articuladas entre si com uma dramaturgia inteligível e tradicional. Antes de tudo, o filme derradeiro de Fellini deve ser concebido como um hino à liberdade, inclusive a artística. A única coerência que o filme segue é a de Salvini, isto é, nenhuma. Salvini é um libelo em si, a destoar do mundo à sua volta, já perdido em sua ânsia de criar acontecimentos grandiosos, até mesmo quando esses não existem, mas que mesmo assim são criados para que algo possa ser visto e transformado em produto. Por isso, Salvini diz: “não consigo entender as pessoas”. Todavia, a recíproca também é verdadeira. Fellini leva seu filme na corda bamba entre a crítica social e a fantasia, sem jamais descambar para o discurso direto que esvaziaria a sua proposta narrativa. Visto aos olhos do século XXI, o filme chega a ser profético, por mostrar-se cruel perante o poder avassalador e vazio que os meios de comunicação já assinalavam em 1990, ao mesmo tempo em que despertavam nos indivíduos uma fúria narcisista incontrolável. O filme pode até não ser o mais conciso trabalho de Fellini, entretanto possui momentos preciosos; basta acompanhar o belíssimo trabalho de Benigni, com seu Ivo Salvini.

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63 E quando ele filosoficamente diz que “se fizermos um pouco de silêncio, talvez possamos entender algo”, o que podemos apreender é que fora da dita normalidade há muito que aprender, principalmente se pararmos para observar a beleza do mundo à nossa volta, inclusive a voz da lua insistindo em nos dizer que “nada se sabe, tudo se imagina”.



FELLINI PELOS CRÍTICOS CRÍTICOS FELLINI PELOS


Roger Ebert

sobre Oito e meio. “Eu vi Oito e meio muitas e muitas vezes, e a minha admiração não para de crescer. O filme faz o que parece impossível: Fellini é um mágico que discute, revela, explica e desmistifica seus truques, mesmo que continue nos fazendo de bobos com eles. Ele pretende dizer que não sabe o que quer ou como atingilo, mas seus filmes provam que sabe exatamente, e que se regozija com seu conhecimento.” 7

7

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EBERT, 2004, p. 375.


67 José Lino Grünewald sobre Oito e meio.

“Oito e meio é a suma suprema de Federico Fellini, um esforço notável de autossuperação depois do apocalipse de A doce vida e seu despretensioso episódio para Bocaccio 70. Não adianta inquirir as deficiências filosóficas de Fellini - sua capacidade de formulação cinematográfica a tudo supera. Sob o signo do surrealismo, sob o signo de Marienbad (obra-prima de Alain Resnais), sob o signo da própria biografia, ei-lo renovado, num transe de vanguarda, com a maturidade que muitos vanguardistas não conseguem espelhar. Oito e meio, além da autobiografia vivencial e espiritual, é um filme sobre o filme (e este filme é também um filme sobre o filme), num desdobrar infinito de essências e pseudo-essências.” 8

8

GRÜNEWALD, 2001, p. 191.


Walter da Silveira sobre A doce vida.

“Sem ser o primeiro artista que, olhando o seu tempo, o reteve como um triste retrato para sempre, Fellini faz lembrar Goya e Os caprichos, aquela série de águas-fortes com as quais o gênio da pintura espanhola levantara um acervo requisitório social. Se a inquisição ainda reinasse, talvez também A doce vida fosse proibida e Fellini perseguido. Mas, com certas audácias os grandes artistas se realizam e podem transformar a crespa amargura dos fatos na límpida beleza das imagens.” 9

9

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SILVEIRA, 1966, p. 48.


69

Benedito Junqueira Duarte sobre A doce vida.

“E se há angústia e desespero, orgia e suicídio, sarcasmo e impiedade nesse filme amargo e comovente, numa constante e paradoxal dinâmica, há também, por detrás dessa doce vida, inútil e suja, a pureza de um olhar, o asseio de um rosto adolescente, a esperança juvenil de sua última imagem com um lampejo fugaz de repouso, breve a surgir na noite do desencanto e no abismo da degradação.” 10

10

DUARTE, 2009, p. 103.


Guido Bilharinho sobre A voz da lua. “A voz da lua é simultaneamente realização e expressão, arte e retórica, poesia e reflexão, estética e discurso. Porém, discurso elaborado, elíptico, inacessível e incompreensível àqueles que articulam o mundo e a vida apenas como arena de sobrevivência, poder e acumulação de riquezas. Àqueles que se absorvem num universo material, pragmático, utilitário, vazio e ostentatório. Esses não só não vão entendê-lo como o repudiarão.” 11

11

70

BILHARINHO, 1999, p. 119.


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Paulo Emílio Salles Gomes sobre o cinema de Fellini. “Baseando-me em seus filmes, imagino-o a percorrer as ruas do centro ou da periferia romana, parando numa praça, sentando-se num bar. Retrospectivamente não é difícil calcular que procurava, sobretudo, o elemento de magia e insólito que o cotidiano proporciona e a noite favorece. A povoação escassa nas ruas das grandes cidades à noite inclui necessariamente as meretrizes, que faziam parte integrante do décor onde Fellini esperava que o acaso concretizasse os anseios de sua vaga fantasia.” 12

12

GOMES, 2015, p. 354-355.



A VOZ DE FELLINI FELLINI À À LUA LUA A VOZ DE


FAZER UM FILME “Alguém poderia ver Julieta dos espíritos e concluir: a mensagem do filme é que as mulheres não devem encher o saco dos maridos. Mas, no entanto, este discurso sonso é reversível, isto é, pode-se dizer que, da mesma forma, os maridos não devem oprimir as mulheres, considerá-las uma propriedade privada, brutalizá-las numa escravidão sem verdadeiro amor. Penso na observação de Jung relativa à dificuldade do homem de falar da mulher e me pergunto se fui honesto, se não tirei a coberta, se não idealizei a mulher para tirá-la do contexto dos interesses masculinos.” 13 “Há muito tempo queria fazer um filme para Giulietta (Masina); ela me parece uma atriz com um dom singular para exprimir de imediato os estupores, os medos, as frenéticas alegrias e cômicas tristezas de um palhaço. É isso, é uma atriz-palhaço, um autêntico palhaço.

13

74

FELLINI, 2004. p. 136.


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Esta definição, para mim gloriosa, não é bem recebida pelos atores que veem nela um quê de pejorativo, de pouco digno, de grosseiro. Estão errados: o talento de palhaço de um ator, a meu ver, é o dom mais precioso, o sinal de uma vocação aristocrática para a arte cênica.” 14 “Acho que quando crianças todos temos um relacionamento embaçado, emocional, sonhado com a realidade; para uma criança tudo é fantástico porque é desconhecido, jamais visto, nunca experimentado, o mundo apresenta-se diante de seus olhos totalmente desprovido de intenções, de significados, vazio de síntese conceitual, de elaborações simbólicas, é só um gigantesco espetáculo, gratuito e maravilhoso, uma espécie de ameba que respira e ultrapassou os limites, na qual tudo habita, sujeito e objeto, confusos num único fluxo incontrolável, visionário, e inconsciente,

14

FELLINI, 2004. p. 90.

15

FELLINI, 2004. p. 123.

16

FELLINI, 2004. p. 71.

fascinante e aterrorizante, do qual ainda não emergiu o vértice, a fronteira da consciência.” 15 “Até o segundo grau nunca havia me perguntado o que faria na vida; não conseguia me projetar no futuro. Pensava na profissão como algo que não se pode evitar, como a missa de domingo. Nunca disse: ‘quando crescer serei’. Não tinha a impressão de que um dia cresceria e, no fundo, não estava errado.” 16


EU, 17 FELLINI “O gigantesco monstro feminino acenou para eu me aproximar. Ele queria que eu me aproximasse. Eu também. Não sem medo, lembreime do aviso de minha mãe, de que o monstro me devoraria. Apesar do meu medo, isso me pareceu atraente. Eu pensei que o interior dela devia ser muito quente. Fui em sua direção. Então, acordei. E já não era mais criança .” 18 “Em meu sonho, quando saio da banheira nu e molhado, várias mulheres com seios imensos me envolvem em toalhas de mão. As mulheres jamais usam sutiã em meus sonhos e é provável que não exista sutiã daquele tamanho. Elas me envolvem em toalhas de mão, me pressionam contra os seus seios e me esfregam para secar. A toalha de mão roça meu pequeno pinto, que balança feliz de

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17

Trechos do livro CHANDLER, 1995. Nesses trechos, Fellini narra alguns de seus sonhos.

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CHANDLER, 1995, p. 69.

19

CHANDLER, 1995, p. 69.


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um lado para o outro. É uma sensação maravilhosa e espero que nunca termine. Às vezes as mulheres brigam por minha causa, o que desfruto além da conta. Durante toda a vida procurei essas mulheres de minha infância, que me enrolavam em toalhas de mão. Hoje em dia quando tenho esse sonho, preciso de mulheres mais fortes .” 19 “Eu ia ao cinema com minha mãe – não para o meu divertimento, mas, sim, para o dela. Ela queria ir ao cinema e por isso me levava junto. Não me recordo mais do meu primeiro filme, mas de uma série de imagens fantásticas, que me agradou ao extremo. Minha mãe me contou que nunca chorei nem me agitei e que sempre pôde levar-me sem problemas. Antes mesmo de compreender o que via, eu sabia que o cinema era algo maravilhoso.” 20

20

CHANDLER, 1995, p. 30.


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