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À luz da palavra

Poeta e agitador cultural

Sérgio Vaz ilumina as periferias paulistanas com a chama da expressão literária

Imagine alguém que trabalha muito e só quer chegar em casa e abrir um livro, fazendo da literatura e da poesia um porto seguro de alegria, tristeza e boas histórias. É isso que Sérgio Vaz vem almejando ao longo de mais de trinta anos de escrita, compartilhados em diversos livros publicados, entre eles Literatura, Pão e Poesia (Global Editora, 2011): apresentar novos mundos aos leitores e ajudar as pessoas a desenvolverem o gosto pelas palavras.

Aos 59 anos, ele organiza, desde 2001, o Sarau da Cooperifa (Cooperativa Cultural da Periferia), no Bar do Zé Batidão, às terças-feiras, no Jardim Guarujá, zona sul da cidade. Um espaço onde “o poeta faz a gentileza de ler e a comunidade faz a gentileza de ouvir. E nessa troca de gentilezas, entra a literatura”. Escritor, agitador cultural e idealizador da Semana de Arte Moderna da Periferia, criada em 2007, Vaz lançou recentemente sua nona obra, Flores da Batalha (Global Editora, 2023), com prefácio do rapper Emicida e ilustrações do artista Mauricio Negro, sobre o cotidiano de dores e alegrias de quem mora nas periferias.

No dia 15 de junho, o Sesc Campo Limpo recebeu o escritor para o lançamento da terceira temporada da série Super Libris, do SescTV, da qual ele participa como um dos entrevistados. Na ocasião, Vaz conversou com a Revista E sobre sua infância, quando jogava bola e viu florescer a paixão pelas palavras, além de falar sobre processo criativo e o despertar das potências periféricas na cena literária brasileira.

Como foi a transformação de um menino periférico que jogava bola em um apaixonado pela poesia?

Meu pai, apesar da vida simples que a gente levava, gostava de ler, e acabei imitando. Lógico que eu não compreendia nada, mas achava bonito. Ele percebeu isso e começou a comprar livros infantis para mim. Morando numa região muito violenta, um lugar aprazível eram os livros: o poder da imaginação, estar onde eu gostaria, em detrimento do espaço de violência que tinha ao redor. Comecei a ler muito cedo, mas não tinha ideia de escrever, achava que era uma coisa de intelectuais. Também não gostava de poesia, tinha preconceito de ser uma coisa difícil, que ninguém entendia direito. Gostava de ler os romances. Os livros supriram a falta de escola que eu tive.

O que foi a primeira coisa que você escreveu? Antigamente, tinha uns cadernos de perguntas e respostas no ginásio: “gosta de quem?”, “deixe um verso”. Me lembro de escrever algumas coisas que meus amigos e amigas achavam bonitas, e escrevia embaixo: “idem”. Já percebia que as pessoas achavam legal, a forma que eu respondia nunca era direta, era sempre um floreio. Já era meio malandro nas palavras. No dia a dia até que não, mas nas palavras, eu era meio malandro [risos].

Um dos espaços preferidos de Sérgio Vaz quando ele está em casa é sua biblioteca pessoal, composta por livros que ajudaram a formar sua paixão pelas palavras.

Era o lugar da escrita esse espaço onde você se sentia seguro?

Desde cedo, as palavras atravessam a minha humanidade. Lia um livro como quem lê uma carta de amor, e cada vez que eu saía dele, saía diferente. Tinha mais vontade de viver, achava mais graça nas coisas, tinha menos medo da rua, menos medo de mim. Minha mãe se separou do meu pai muito cedo, foi embora, e cresci sem mãe.

A maioria dos jovens cresce sem pai. Pude resolver vários problemas que tinha através dos livros.

A partir de que momento você passou a se ver como autor?

Na minha juventude, até 1981, mais ou menos, eu gostava de ir às domingueiras e ouvir Marvin Gaye (1939-1984), Betty Wright (1953-2020), Jimmy “Bo” Horne. Fui servir o exército em 1983 e comecei a pegar gosto pela Música Popular Brasileira: Chico [Buarque], Caetano [Veloso], [Gilberto] Gil, Nana Caymmi, e vi que tinha tudo a ver com literatura. Comecei a analisar as letras e a querer ser poeta. Tinha um grupo de música no meu bairro, e eles diziam: “Sérgio, você não pode participar porque você não canta nem toca, mas leva jeito para escrever as letras”. Ao ouvir música popular e ler as letras do Milton [Nascimento], ouvi falar do poeta Pablo Neruda (1904-1973). Vi que a poesia dele falava sobre libertar um povo, lutar contra a ditadura. Falava de amor, mas também tinha essa pegada. Fiquei imaginando: nossa, então, eu posso escrever sobre isso. Eu tinha a ideia de que o poeta era aquele cara “viajandão”. Me identifiquei muito.

Quais sentimentos emergem de você quando olha para o mundo e começa a fazer poesia?

Achava que o mundo era injusto comigo e com as pessoas que estavam ao meu redor: minha família e meus amigos. De alguma forma, tentei escrever o mundo do jeito que gostaria que ele fosse. Como diria

Paulo Freire (1921-1997): denunciando e anunciando. Ora com uma pedra na mão, ora com um sorriso no rosto, minha poesia fala de amor ou de protesto.

Qual foi o momento em que você entendeu: “Estou no caminho certo e consegui o reconhecimento do meu trabalho como escritor” e, a partir daí, mais pessoas começaram a olhar para você?

Puxa, nunca tinha pensado nisso. Acho que ninguém nunca olhou, e quando olhou nem percebi [risos]. Diria [Paulo] Leminski (1944-1989): “Distraídos venceremos”. Acho que quando comecei a vender livro em porta de bar é que notei. Ia para a boemia do Bixiga, à noite. Levava meus livros e ficava abordando as pessoas. Achava bonito me reconhecerem como poeta, mesmo ninguém comprando meu livro, mesmo ninguém gostando.

Você é reconhecido por derrubar barreiras com a literatura periférica. Acha que ainda enfrenta algum tipo de resistência e que ainda há muito pelo que lutar?

Tem muito pelo que lutar. O Brasil é um país racista, que tem preconceito linguístico e de classe. Ainda não somos considerados escritores, as pessoas nos toleram, mas não nos respeitam. A academia finge que a gente não existe, tanto é que os saraus aconteceram de uma forma que ninguém se importou, por isso que cresceram. Quando foram ver, não dava para cooptar, porque já estava todo mundo fazendo. Hoje está cheio de saraus, de slams, batalhas de rimas. Basta ir a uma livraria e ver a quantidade de livros de literatura periférica, de literatura negra. Quais são as editoras que editam nossos livros, quais são as feiras de livros e as bienais que nos convidam para participar? Então, tem muito ainda o que vencer. Mas, se tem uma coisa que a gente

[com a Cooperifa] fez, foi ter criado o nosso próprio público. A gente fomentou a literatura na periferia, ou seja, não dependemos só da classe média ou da academia para impulsionar a nossa literatura.

Você já mencionou que escreve a sua poesia para as pessoas e a partir do lugar em que elas vivem. Como é seu processo criativo?

O que eu mais gosto é de observar como as pessoas se movimentam, como se olham, trabalham, jogam futebol de várzea, como se comportam no fluxo, no samba. Se tem uma coisa que admiro, e aprendi na poesia, é observar. Tento, de alguma forma, transformar a minha quebrada em algo que tenha poesia, que talvez no dia a dia não seja tão poético, mas enxergar uma outra periferia, uma periferia possível. Dentro do ônibus, fico pensando: será que a pessoa sabe por que ela ganha um salário-mínimo?

Será que ela sabe por que pega ônibus lotado? Por que ela mora na favela e nessas condições insalubres?

Para retratar o cotidiano das pessoas, quais foram as suas referências na literatura?

A grande referência é Carolina [Maria] de Jesus (1914-1977). Quando li Quarto de Despejo [publicado em 1960], não imaginei que poderia escrever daquele jeito. Foi uma ruptura, porque estava querendo escrever como intelectual, mesmo sendo analfabeto: o conflito era que tinha de terminar de escrever algo que nem eu entendia direito. E quando terminei, falei: é sobre isso que quero escrever. Me lembro também de ler Capitães de Areia [1937], do Jorge Amado (1912-2001). O grande livro da minha vida é Os Miseráveis [1862], de Victor Hugo (1802-1885). Tem também Um defeito de cor [2006], de Ana Maria Gonçalves, Dom Quixote [1605], do escritor espanhol Miguel de Cervantes (1547-1616), Pablo Neruda. Hoje, uma grande referência como poeta é Carlos de Assumpção, Solano Trindade (1908-1974), Alice Walker, Toni Morrison (1931-2019).

Qual a importância do Sarau da Cooperifa como espaço de troca de experiências?

É quando a poesia desce do pedestal e beija os pés da comunidade. O importante do Sarau da Cooperifa é dessacralizar a literatura: sagrado não é quem escreve, é quem lê. Provar que o povo gosta de literatura, só não sabe que gosta. No sarau, o poeta faz a gentileza de ler e a comunidade faz a gentileza de ouvir. E nessa troca de gentilezas, entra a literatura.

Atualmente, você tem visto novos escritores surgirem a partir do Sarau da Cooperifa? E como é essa troca com a nova geração?

Quando você cria uma cena, desperta nas pessoas o desejo de escrever e de publicar, é porque já tem alguém que lê. A gente veio na frente capinando o mato. Olhar para trás [e ver que] as pessoas estão seguindo no mesmo caminho, é como se a gente deixasse um despacho. O que é o despacho? Uma vela para espantar os bichos, uma cachaça para suportar a caminhada e um rango para suportar o caminho até o quilombo. Uma poeta chamada Maria Teresa Pina fala que “quando você acende uma vela, a primeira pessoa que se ilumina é você”. O Sarau da Cooperifa acendeu uma vela. No meio da escuridão da periferia, as pessoas nos encontraram e foram acendendo suas velas.

Tem-se percebido, recentemente, uma mobilização a partir das periferias e sobre as periferias como um lugar de potência mais do que de carência, como por exemplo, na luta antirracista. A que você atribui essa mudança de perspectiva e atitude, e em que medida isso impacta a produção literária nas periferias?

Todo esse trabalho que várias pessoas fazem na periferia ao longo do tempo explodiu. Não tinha mais como esconder, tanto é que, nos últimos tempos, os livros mais vendidos são de pessoas negras. Tem Djamila Ribeiro, Conceição Evaristo, Jeferson Tenório, Salloma Salomão, Allan da Rosa, Elizandra Souza. Quando se tocaram que nós fazemos parte do povo brasileiro, falaram: "Precisamos correr para editar, conhecer quem são". E o Brasil precisa nos ouvir efetivamente. Não de uma forma exótica. Nós somos um povo que pensa. Tudo o que acontece no país tem a nossa força e o nosso suor, o nosso sangue e as nossas lágrimas, e precisa ter o nosso sorriso também.

Você circula por toda a cidade de São Paulo. Já aconteceu de encontrar frases anônimas e ficar com elas na cabeça?

Hoje vejo as pessoas tatuadas com poesias, com frases. Muros grafitados com poemas. Eu olho e falo: valeu a pena lutar. Democratizar a palavra e a literatura é isso. As pessoas não vão à livraria. E o livro não é caro, ele tem o seu valor, mas para as pessoas é caro, porque o salário-mínimo é pouco e as pessoas têm outras prioridades. O livro acaba sendo uma coisa supérflua, mas que deveria fazer parte da cesta básica. Quando vejo uma frase na rua, fico pensando: a gente precisa estar nas ruas falando do nosso trabalho. O povo brasileiro precisa de poesia o tempo inteiro.

Qual o principal motivo pelo qual você seguirá escrevendo e lutando?

Se a gente imaginar que a maioria das pessoas que moram na periferia não gostam de literatura, é lá que eu tenho que estar e trabalhar. Vejo com esperança esse meu trabalho. Não fico pensando que é árduo. Já que ninguém quer ficar aqui e fazer isso, eu vou fazer [risos].

Assista ao vídeo com trechos da entrevista com o poeta e agitador cultural Sérgio Vaz, realizada no Sesc Campo Limpo.

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