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SIMPLES perfeição

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A música certa

A música certa

POR MANUELA FERREIRA

COLABOROU:

O minimalismo nos traços do artista visual Speto faz alusão à essência musical de João Gilberto nesse grafite em homenagem ao pai da bossa nova. A arte pode ser vista em edifício na Avenida Senador Queirós, no bairro da Santa Ifigênia, próximo ao Mercado Municipal, na região central da cidade de São Paulo.

Há 25 anos, no fim do século passado, o cantor, compositor e violonista João Gilberto (1931-2019) vivia recluso em seu apartamento no Leblon, bairro na zona sul do Rio de Janeiro (RJ). Quase não saía à rua e poucos eram os amigos com quem conversava. O isolamento voluntário, no entanto, seria interrompido algumas vezes naquele ano, seja para apresentações no festival de jazz de Umbria, na Itália, ou na casa de espetáculos Carnegie Hall, em Nova York, nos Estados Unidos. Aparições em terras brasileiras, porém, eram cada vez mais esporádicas àquela altura. "Exigente, [ele] implicava com a qualidade do som em seus shows e irritava-se com barulhos durante as apresentações”, conta a jornalista e pesquisadora musical Kamille Viola.

O Sesc Vila Mariana, inaugurado em dezembro do ano anterior, foi o destino de uma breve passagem do pai da bossa nova por São Paulo – e o cantor foi um dos primeiros grandes nomes a pisar no palco do teatro. A gravação inédita da curta temporada vem à luz um quarto de século depois, exibindo um João Gilberto bem-humorado, ainda que concentrado e metódico, diante da plateia em reverência. Registro da última noite de uma série de três shows, o álbum Relicário: João Gilberto (ao vivo no Sesc 1998), lançado neste mês pelo Selo Sesc, traz ao público a memória sonora de um artista que, aos 66 anos, continuava à procura da primazia sonora, munido exclusivamente da voz e do violão que revolucionaram para sempre a música popular brasileira.

Pequenas Grandezas

“Ouvir João Gilberto era um prazer para ouvidos exigentes. O mesmo rigor com a emissão vocal de quando cantava se percebia nos telefonemas de madrugada. Não se perdia uma vogal ou consoante. Não era só que João cantava como falava: ele também falava como cantava, articulava cada palavra com dicção perfeita, sem gritar, não se perdia nada do que dizia, mesmo se a gente afastasse um pouco o ouvido do telefone. Sua preocupação com a emissão de voz sempre foi uma constante exercida exaustivamente”, escreveu o amigo, musicólogo e crítico musical Zuza Homem de Mello (19332020) em seu livro Amoroso: Uma biografia de João Gilberto (Companhia das Letras, 2020).

Principal meio de comunicação do artista com o mundo, foi através do telefone que o biógrafo ouviu, pela primeira vez, algumas das canções que integram o disco Amoroso (1977), oitavo álbum de estúdio de João Gilberto – como Triste, composição de Tom Jobim (1927-1994), interpretada de um quarto de hotel em que o músico se hospedava em Nova York. “Sua memória dos hábitos dos interlocutores era impressionante, como impressionante era sua capacidade de estar sempre atualizado, o que destoava de sua vida reclusa”, relatou Homem de Mello na publicação.

O musicólogo descreveu, ainda, outros traços singulares do intérprete baiano, que atestam sua extrema sensibilidade, e que permitem novos olhares sobre um artista praticamente inacessível aos fãs e jornalistas. “João discorria sobre qualquer tema. Falava de futebol com o conhecimento tático de um técnico profissional; discorria sobre outros esportes, exaltando sua admiração por atletas brasileiros; podia descrever o passarinho que vira tão infeliz na janela e como se penalizara com a tristeza da avezinha; podia se condoer de uma formiguinha esmagada por acaso; era capaz de descrever com precisão o que acontecia de mais relevante na cidade do interlocutor, como se lá estivesse”, narrou Zuza Homem de Mello.

Beleza Revelada

O homem que atravessava os dias fechado em seu apartamento – a poucos metros do mar – já somava, às portas da virada do milênio, quase cinco décadas desde que, vindo de Salvador (BA), aportou no Rio para “tentar a sorte” na música. Na capital soteropolitana, quando jovem, cantava em estações de rádio, sempre com o violão a tiracolo – autodidata, não se separou do instrumento desde os 14 anos.

Enquanto se integrava à vida carioca, o músico participou de conjuntos vocais como Os Garotos da Lua e Anjos do Inferno – ainda em Juazeiro (BA), sua cidade natal, fundou outro conjunto vocal, o Enamorados do Ritmo, cuja inspiração era o ídolo Orlando Silva (1915-1978), o "cantor das multidões", e seu estilo fraseado de cantar.

Já a partir de 1953, João conheceria outros artistas precursores da bossa nova, como Tom Jobim, as cantoras Dolores Duran (1930-1959), Maysa (19361977) e Sylvia Telles (1934-1966), os pianistas João Donato (1934-) e Johnny Alf (1929-2010) e o violonista e cantor Luiz Bonfá (1922-2001), todos em início de carreira. O ambiente musical que fervilhava naquela década e a confluência de gêneros impulsionaram a construção do estilo único de interpretação que João Gilberto estava prestes a inaugurar.

A Bossa Do Samba

Por Carlos Rennó

Aqui estão uma vez mais aquelas coisas que nos deleitam e ensinam a inteligência e a sensibilidade, como “uma fonte inesgotável de prazer e aprendizado”, como disse Vinicius de Moraes, sempre que voltamos a ouvir João Gilberto: a ginga das sílabas e das notas, da conjugação das frases poéticas com as melódicas num todo coeso e único, na voz, com suas nuances timbrísticas e inovações rítmicas, sentidas simultaneamente no violão; o conjunto, violão e voz, soando com um balanço e um suingue inconfundivelmente próprios e envolventes.

Mais do que bossa nova, trata-se de samba, há muito sabemos: em relação ao gênero que inventou e propiciou, João está “suspenso pairando sobre e fora dela”, escreveu, há quase quarenta anos, meu parceiro José Miguel Wisnik. E samba muito mais do que jazz: o gênero, uma das maravilhas inventadas pelo gênio negro norte-americano, há cerca de cem anos (como amar música sem amar jazz?), entra na formação, na forma e na fórmula criada pelo “bruxo de Juazeiro” –como Caetano o chama na A Bossa Nova é Foda – como uma música que lhe traz sonoridades outras com as quais ele se instrumentaliza para promover uma releitura pessoalíssima da tradição musical brasileira. São elementos de que, junto a outros, de nossa tradição, ele se serve para realizar a recriação do samba; para reencontrar o gingado e readquirir o domínio do ritmo complexo do samba. A bossa, enfim, do samba. A cujo espírito ele dá uma interpretação, a mais original e profunda.

Carlos Rennó é compositor, escritor e assistiu ao primeiro e último dos três shows de João Gilberto no Sesc Vila Mariana, em abril de 1998, dos quais se originaram as gravações do álbum Relicário: João Gilberto (ao vivo no Sesc 1998) (Selo Sesc, 2023).

Disciplinar O Ritmo

Em 1958, depois de breves passagens por Porto Alegre (RS) e Diamantina (MG), João Gilberto retornou ao Rio. No mesmo ano mostrou, pela primeira vez, a inconfundível batida sincopada de violão que se converteu no símbolo da transformação musical que protagonizou: com a mão direita, tocava os acordes – unindo, ao mesmo tempo, ritmo e melodia. Tal novidade surgiu no disco Canção do Amor Demais (1958), da cantora Elizeth Cardoso (1920-1990), que apresenta João Gilberto tocando em duas faixas: Outra vez, de Tom Jobim, e Chega de Saudade, composta por Tom e Vinicius de Moraes (1913-1980). No ano seguinte, lançou Chega de Saudade (1959), álbum que marcaria sua estreia como solista e que arrebatou gerações de ouvintes pelo mundo.

“Quando se fala em João Gilberto, é muito comum se dizer que a canção brasileira era uma e foi outra depois dele. Isso, de fato, é verdade”, disse o violonista, compositor e escritor Arthur Nestrovski, em depoimento ao canal da revista piauí e no YouTube. “O que se está dizendo, geralmente, é que a canção que veio depois [dele] foi tão influenciada por ele que tomou caminhos inéditos, e mudou para sempre o panorama do que viria a ser o cancioneiro popular brasileiro. Mas a gente pode ir em outra direção também. A canção brasileira mudou com João Gilberto, não só para frente, mas para trás. Ele não mudou só o futuro, ele mudou o passado. A nossa compreensão de tudo o que veio antes de João Gilberto mudou depois de João Gilberto – por causa dele. De dois modos: o modo de cantar e a forma como ele mesmo interpretou muitas canções 'perdidas' do passado”, analisou Arthur Nestrovski.

Som E Sil Ncio

Depois de lançar os discos O Amor, o Sorriso e a Flor (1960) e João Gilberto (1961), o músico fixou residência nos Estados Unidos, onde gravou com o saxofonista Stan Getz (1927-1991) mais um clássico: Getz/Gilberto (1964). O álbum recebeu nove indicações ao Grammy, e levou o troféu na categoria gravação do ano com The girl from Ipanema, canção tocada ao piano por Tom Jobim acompanhado da cantora Astrud Gilberto (1940-) – então esposa de João Gilberto. O cantor voltou a viver no Brasil somente no começo dos anos 1980, sempre alternando os períodos de reclusão com outros em que promovia temporadas de apresentações concorridas, tanto no país quanto no exterior. Em 2008, realizou uma turnê em comemoração ao aniversário de 50 anos da bossa nova – também foi quando decidiu subir ao palco pela última vez, aos 77 anos, optando por continuar longe dos holofotes.

Há muito aguardada pelos fãs do artista, a gravação do álbum Relicário: João Gilberto (ao vivo no Sesc 1998) mostra o artista à vontade, como raras vezes se teve notícia em suas apresentações no Brasil, como atesta Kamille Viola. “Não à toa, para muitos, os shows no Sesc Vila Mariana estão entre os melhores do cantor naquele período. Longe do vai e vem de garçons, barulhos de copos e talheres, em um teatro com boa acústica e equipamento de som de qualidade, ele executa as canções com meticulosa precisão. Durante quase duas horas, faz o que sabia fazer de melhor: reinventar a música brasileira”, conclui a jornalista e pesquisadora.

QUE REI SOU EU

QUE VIVE ASSIM À TOA

SEM REINADO E SEM COROA

SEM CASTELO E SEM NINGUÉM

SEM NINGUÉM?

RAINHA, NUNCA TIVE NEM MEREÇO

SOU UM REI, MAS RECONHEÇO

SER VASSALO DE OUTRO REI

REINADO, MEU DESTINO NÃO TRAÇOU

BEM SEI QUE ME FIZERAM REI

MAS EU NÃO SOU

(EU) CANTO AS MINHAS MÁGOAS

MEU SOFRER AO VIOLÃO

O SAMBA É A MINHA NOBREZA

MINHA TRISTE SOLIDÃO

EU SOU UM SIMPLES EU

UM EU QUE DEUS ME DEU

O REI QUE VOCÊS FALAM NÃO SOU EU

Rei sem coroa, composição de Herivelto Martins e Waldemar Ressurreição, em versão adaptada por João Gilberto

Acesse o portal do Sesc São Paulo e ouça a gravação inédita da canção na voz de João Gilberto

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