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A música certa
Em Terra arrasada: Além da era digital, rumo a um mundo pós-capitalista (Ubu Editora, 2023), o crítico estadunidense Jonathan Crary apresenta uma análise sobre como o “complexo internético” nos leva ao “empobrecimento e à corrosão da experiência individual e compartilhada”. Para o autor, a ubiquidade da rede desfiguraria “nossa percepção e as capacidades sensoriais necessárias para que conheçamos e nos liguemos afetivamente a outras pessoas” e atuaria diretamente na domesticação dos corpos, produzindo um achatamento das possibilidades de percepção do mundo, alterando, inclusive, o olhar que, agora, habitaria de forma permanente ambientes online.
Essa leitura ressoou em mim de forma vívida, afinal, responder como a música, e por consequência, a escuta está sendo alterada por esse “complexo internético”, vem sendo meu objeto de estudo há algum tempo. Sabemos que o streaming é hoje a principal forma de relação com a música no mundo ocidental, e pensar nesse futuro da escuta, a partir dos “avanços” científicos, como o uso indiscriminado da inteligência artificial, da internet das coisas, da computação quântica, da neurotecnologia, da biotecnologia, entre outras, nos faz imaginar um cenário pouco promissor. Sistemas de recomendação de conteúdos cada vez mais personalizados tenderiam a gerar “câmaras de eco”, por meio das quais cada ouvinte receberia sempre mais do mesmo, e o uso intensivo de inteligência artificial na produção de música representaria um duro golpe na diversidade cultural e no mercado de trabalho desse campo. Há, porém, muitas nuances a se considerar antes de uma conclusão definitiva.
Não podemos deixar de fora dessa equação o poder que a música exerce em nossa subjetividade. Um poder que cria, sustenta, transforma mundos e práticas sociais. A música “certa” em contato com o corpo é um agenciador capaz de modular humores e sentimentos. Nosso cérebro responde a ela de maneiras complexas e variadas, liberando diferentes neurotransmissores e hormônios que afetam nossas emoções de maneira profunda.
Mais interessante ainda é pensar nas infinitas possibilidades de agenciamentos entre música e memória, capazes de ativar uma lembrança aural, isto é, uma lembrança que parte da escuta e recria narrativas pessoais significantes enquanto o sujeito se desloca por diferentes contextos no cotidiano. Portanto, a música “certa” tem a capacidade de nos conduzir diretamente para um passado já vivido e re-imaginado, em que o audível se torna cor, luz, cheiro e movimento. Nesse sentido, retomando a leitura de Jonathan Crary, ainda que o capitalismo tardio se camufle na facilidade prometida pelo “complexo internético”, é possível fazer uso dessa mesma rede global para vivências relevantes.
Esse é o objetivo das ações do Sesc São Paulo no campo da música digital: atuar como um contraponto às simulações online de relações sociais monetizadas. Buscamos proporcionar a criação de experiências compartilhadas e duradouras, capazes de produzir memórias e vínculos afetivos com o mundo que nos cerca. A partir desse mesmo desejo, nasce o projeto Relicário. Ao recuperar a memória sonora da instituição, reverberamos, também, uma história audível de nossa cultura, carregada de valores, tradições e pertencimento, que permite reafirmar vínculos e produzir novas práticas coletivas. Para inaugurar o projeto, apresentamos um majestoso registro do show feito por João Gilberto há exatos 25 anos. Além da excelência da gravação, da novidade do repertório e da relevância deste artista para a cultura brasileira, esperamos que a escuta desse álbum seja também uma oportunidade para reconhecer o lastro que as músicas deixam no mundo; sentir nas batidas do samba as múltiplas identidades que o corpo carrega e, acima de tudo, apreciar o poder transformador da música em nossas vidas.
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