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canção NAS ASAS DA

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A música certa

A música certa

Otiê-sangue (Ramphocelus bresilia), ave de plumagem vermelha e vocalização trissilábica, é uma das espécies emblemáticas da Mata Atlântica. Quando adulta, atinge até 19 centímetros e chega a pesar 35 gramas. Na falta de brinquedos, era um tiê-sangue a principal companhia da menina Ivone em seu começo de adolescência, nos anos 1930. O animal foi um presente dos primos Antônio e Hélio, que compartilhavam com a garota a paixão pela música e um interesse crescente pelo universo das escolas de samba da zona norte do Rio de Janeiro (RJ), que se agigantavam a cada Carnaval. Foi para o inseparável pássaro que Ivone escreveu, aos 12 anos, sua primeira composição – depois de sonhar com a melodia, os versos pousaram. Tiê, um clássico do cancioneiro popular brasileiro, é uma das faixas de maior sucesso do lendário Sorriso de criança (1979), segundo álbum de estúdio de Dona Ivone Lara (1922-2018), cantora e compositora que, desde pequena, soube encarar o mundo com poesia, delicadeza e talentos ímpares.

“Não é exagero nenhum dizer que dentre os grandes nomes da história do samba, Dona Ivone Lara é a que tem a formação musical mais completa. De seu pai e sua mãe, ela herdou o lirismo das melodias dos ranchos carnavalescos (agremiações anteriores às escolas de samba). Do tio Dionísio, com quem aprendeu a tocar cavaquinho, ela herdou a fluência melódica e harmônica do choro. De seus antepassados mais antigos – como sua tia, conhecida como Vovó Teresa –, herdou a ancestralidade espiritual do jongo”, revela o jornalista, escritor e pesquisador musical Lucas Nobile, autor da biografia Dona Ivone Lara: A Primeira-Dama do Samba (Sonora Edições, 2015).

Ala Da Compositora

Com os mesmos primos que deixaram o tiê-sangue aos seus cuidados, a artista aprendeu a compor sambas de terreiro, partidos-altos e sambas-enredos. Hélio dos Santos, o Tio Hélio (1903-2007), e Antônio dos Santos, o

Mestre Fuleiro (1902-1997), seriam alguns dos muitos parceiros de composição da sambista ao longo da carreira – os três integraram, ainda, o grupo de baluartes da Império Serrano, desde antes de sua fundação, em 1947. Já em 1965, seria a vez de Dona Ivone Lara fazer história na agremiação do bairro de Madureira ao se tornar, oficialmente, a primeira mulher a figurar na ala dos compositores de uma escola de samba. No mesmo ano, compôs e venceu o concurso de sambas do Grupo Especial com a canção Os cinco bailes da história do Rio.

Tal pioneirismo resultava, porém, do machismo estrutural que atrapalhou a carreira artística de Dona Ivone, de diferentes maneiras e em diversos momentos, segundo o escritor Lucas Nobile. “Primeiro, [atrapalhou] no universo do Carnaval e das escolas de samba, quando ela chegou ao Prazer da Serrinha [escola que originou a Império Serrano]. Mesmo namorando com [seu futuro marido] Oscar Costa (1947-1975), que era filho do presidente e fundador da escola, Dona Ivone não podia se mostrar compositora pelo simples fato de ser mulher. Para driblar essa adversidade, os primos Hélio e Fuleiro apresentavam os sambas de Ivone como se fossem de autoria deles. Era o único jeito de conseguir apresentar aquelas composições”, detalha.

Ainda de acordo com Nobile, no dia da final do concurso, quando distribuíram o prospecto com a letra do samba, na quadra da escola, para o povo cantar junto, não tinham dado o crédito à compositora Yvonne Lara [nome de batismo da artista]. “Ela bateu o pé e disse: ‘Se meu nome não for creditado, o samba não sai’. Depois de muita resistência, o nome dela foi devidamente apresentado. [Os cinco bailes da história do Rio] é um dos sambas enredos mais cantados no país até hoje, um clássico de Ivone Lara, Silas de Oliveira (1916-1972) e Antônio Bacalhau”, pontua o biógrafo. Após o episódio, Dona Ivone desfilaria por mais de quatro décadas na Império Serrano, compondo a Ala das Baianas da Cidade Alta.

Ber O Musical

Órfã aos seis anos, a artista estudou no antigo internato da Escola Municipal Orsina da Fonseca, no bairro da Tijuca, onde conheceu as professoras que foram grandes incentivadoras: a pianista Lucília Guimarães Villa-Lobos (1894-1966) e a soprano Zaíra de Oliveira (1900-1951). No colégio, teve aulas de canto orfeônico, aprendeu a abrir vozes e a fazer contracantos, conforme explica Nobile. “Desde a infância, na cabeça da menina Ivone, hinos de Johann Sebastian Bach (1695-1750) conviviam naturalmente com ladainhas e cantos para orixás. É da diversidade do caldeirão musical familiar que brotaram todas as influências que transformaram Dona Ivone Lara numa das melodistas mais inspiradas do país”, analisa o pesquisador.

As férias escolares na casa do Tio Dionísio – que também tocava trombone – representavam dias de celebração. A época dos primeiros contatos musicais na infância e

Dona Ivone Lara (ao podcast Música Negra do Brasil, em 2004) juventude foi rememorada pela cantora em 2004, aos 83 anos, em conversa com a escritora e pesquisadora Katia Costa Santos – o depoimento está no podcast Música Negra do Brasil, disponível nas plataformas de áudio. “Meu pai tocava violão de sete cordas. Minha mãe era crooner de um rancho, o Flor do Abacate, e tinha uma voz de soprano que todo mundo pensava que tivesse sido trabalhada, mas aquilo era dela, era nato. No nosso meio familiar, quando nos reuníamos, era aquela alegria”, recordou-se a intérprete.

Alvorecer

Paralelamente à carreira artística, Dona Ivone Lara estudou enfermagem, serviço social e se especializou em terapia ocupacional. A partir de 1940, teve papel primordial na reforma psiquiátrica no Brasil, atuando ao lado da médica Nise da Silveira (1905-1999), referência na defesa e aplicação de tratamentos humanizados para pessoas em sofrimento mental. “Foi Dona Ivone quem recomendou à doutora Nise que fosse criada uma sala com instrumentos musicais lá no Hospital do Engenho de Dentro [atual Instituto Municipal Nise da

Silveira] para ajudar no tratamento dos pacientes com distúrbios mentais numa época em que pouco se falava em musicoterapia. No Serviço de Doenças Mentais, Nise, Ivone e toda a equipe cuidavam do inconsciente daquelas pessoas”, afirma Lucas Nobile. A então enfermeira Ivone acompanhou a implantação do espaço e supervisionou a interação livre dos pacientes com os instrumentos, certa de que a música proporcionaria um acolhimento essencial na rotina hospitalar.

Somente aos 56 anos, ao se aposentar do serviço público e após a morte do marido, a artista pôde se dedicar exclusivamente à música. O trabalho prévio na instituição psiquiátrica, segundo o escritor, refletiu-se de forma expressiva na trajetória musical da sambista. “Ao se dedicar por quase 40 anos a cuidar de pessoas com necessidades especiais, naturalmente todo esse humanismo inerente a Dona Ivone desaguou em suas criações musicais”. O universo onírico aparece com frequência na obra de Dona Ivone. “Lembro de alguns títulos de suas canções, como Sonho e saudade (1996), Força da imaginação (1982) e Nasci pra sonhar e cantar (1992). Não é à toa que o maior sucesso de toda a sua carreira tenha por título Sonho meu (1978)”, comenta Nobile.

Algu M Me Avisou

“Ela gostava de ficar no meio das pessoas, ouvindo samba, não só cantando, mas nesse ambiente saudável e gostoso, generoso, que é o do samba. Tenho lembranças de observála: sua postura, o que ela conversava, como ela conversava e dizia coisas sérias também”, lembra a cantora, escritora e pesquisadora paulistana Fabiana Cozza, uma das grandes intérpretes do cancioneiro de Dona Ivone Lara. Quando se viram pessoalmente pela primeira vez, em 2007, Fabiana há muito reverenciava a obra da saudosa sambista.

A reunião para a gravação da faixa Doces Recordações (1985), composta por Ivone Lara e o parceiro Délcio Carvalho (1939-2013), está presente no álbum Quando o céu clarear, lançado por Fabiana em 2007. Seguiramse outros encontros entre elas: em camarins, palcos e aniversários na casa da artista carioca. “Lembro muito o seu canto espetacular. Os contracantos que Dona Ivone fazia, e que fez nessa faixa, deram bastante trabalho porque era tudo muito criativo, genial!”, descreve Fabiana.

O sorriso memorável e a expressão de alegria são constantes nos registros audiovisuais de Dona Ivone Lara até o fim da vida – como na ocasião em que, homenageada com o tema do desfile da Império Serrano, em 2012, viu todos os setores do Sambódromo da Marquês de Sapucaí a aplaudirem de pé. Cultuada de forma unânime, a intérprete de Sorriso Negro (1981) fez amizades no meio musical que rendiam histórias sempre contadas com humor.

Com a cantora Clementina de Jesus (1901-1987), por exemplo – com quem subiu ao palco em 1977, excursionando com o Projeto Pixinguinha – tinha um cuidado fraternal. A Rainha Quelé preferia descansar entre os shows, mas convencer a sempre festeira Ivone Lara a fazer o mesmo era tarefa difícil.

“Ela me tinha como irmã mais nova e me chamava de 'mana'. Clementina estava mais idosa, e eu era mais jovem, de maneira que, quando chegava na hora de ela ir se recolher, eu também ia . Mas depois, eu ó, saía fora, e tomava parte nos sambas de roda. Uma vez, sabe o que eu fiz? Me vesti toda, me cobri até aqui, de sapato e tudo. A Conceição [neta de Clementina de Jesus] chegou, olhou e disse: 'A tia Ivone tá coberta até aqui, ela tá dormindo'. Quando eu vi que elas não falavam nada, levantei de ponta de pé e ó!”, disse, às gargalhadas, em depoimento ao podcast Música Negra do Brasil.

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