ALIMENTAR A MUDANÇA | ECOS DO JAZZ | DESVARIO MODERNISTA | DIAS GOMES | CASSIO SCAPIN | PAULO SCOTT | ADRIANA CALCANHOTTO | INFORMAÇÃO x DESINFORMAÇÃO | CHICO MARÉS | ALINE SILVA DE OLIVEIRA mensal | outubro de 2022 | nº 4 | ano 29 /sescrevistae sescsp.org.br/revistae revistae@sescsp.org.br | Distribuição gratuita | Venda proibida
Em sua quarta edição, o festival apresenta shows, programações digitais e ações formativas, com artistas nacionais e internacionais.
Ao todo são 20 atrações, em 54 apresentações distribuídas nas unidades Guarulhos, Jundiaí, Piracicaba, Pompeia, Ribeirão Preto, São José dos Campos e Presidente Prudente, que procuram explorar a diversidade musical da cena atual do jazz.
Saiba mais em: www.sescsp.org.br/sescjazz #sescjazz
5 a 23 de outubro 2022
A imagem da capa desta edição é a obra Sem título (óleo sobre tela, 2022), do artista visual guatemalteco Édgar Calel, que integra a exposição A Parábola do Progresso, em cartaz a partir de 27/10, na Área de Convivência do Sesc Pompeia. A mostra, com coordenação curatorial de Lisette Lagnado e curadores associados André Pitol e Yudi Rafael, apresenta cinco “espaços dialógicos” de diferentes partes do mundo que têm, em comum, a vocação de reunir diversas forças sociais, gerando um ambiente de hospitalidade ao acolher sua comunidade. A mostra celebra ainda os 40 anos do Sesc Pompeia, outro reconhecido espaço de encontro e trocas na cidade e importante legado arquitetônico de Lina Bo Bardi. Para mais informações, acesse: www.sescsp.org.br/pompeia
O protagonismo do comércio
O Brasil de 2022 é essencialmente urbano: 84,72% da população vive nas cidades, enquanto 15,28% habita as áreas rurais. Nesse cenário, o setor de comércio e serviços predomina como protagonista tanto na geração de empregos quanto na participação da economia do país, representando 72,8% do PIB (Produto Interno Bruto) brasileiro, segundo o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística).
Para promover o bem-estar desses trabalhadores, de seus familiares, bem como de toda a comunidade, foi criado, em 1946, o Sesc – Serviço Social do Comércio, numa iniciativa do empresariado do setor. Na ocasião, o país iniciava um processo de migração do campo para as cidades e as leis trabalhistas, promulgadas em decreto-lei em 1943, ainda eram uma novidade.
Passadas mais de sete décadas, inúmeros foram os desafios enfrentados na busca por melhores condições de vida nas cidades. Com seus centros culturais e esportivos em todo o estado, o Sesc contribui com a sociedade ao realizar uma ação educativa permanente nos campos da cultura, dos esportes, do turismo, da saúde e alimentação, promovendo encontros, valorizando múltiplos saberes e estimulando o desenvolvimento interpessoal.
O Sesc reafirma, assim, a relevância e a essencialidade de sua ação, em diferentes contextos, territórios e momentos da nossa história recente, projetando-se para o futuro.
ABRAM SZAJMAN
Presidente do Conselho Regional do Sesc no Estado de São Paulo
EDITORIAL outubro de 2022 | nº 4 | ano 29 4
A comida vem primeiro
A data de 16 de outubro celebra o Dia Mundial da Alimentação, para lembrar a criação da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura (FAO). Na primeira vez em que foi comemorado, em 1981, trazia como tema “A comida vem primeiro”, promovendo reflexão a respeito do direito essencial e inalienável do acesso à alimentação para uma vida plena e digna. Tema esse que permanece presente e atual, como mostram as estatísticas: no Brasil de 2022, em mais da metade dos domicílios do país (58,7%) os habitantes convivem com a insegurança alimentar, o que impacta 125,2 milhões de brasileiros, de acordo com levantamento da PENSSAN (Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional). Além disso, 33,1 milhões dessas pessoas são assoladas pela expressão mais grave da insegurança alimentar, a fome.
Sobre essa dilacerante realidade, a escritora Carolina Maria de Jesus, mulher preta e pobre, escreveu em Quarto de despejo: “A tontura da fome é pior do que a do álcool. A tontura do álcool nos impele a cantar. Mas a da fome nos faz tremer. Percebi que é horrível ter só ar dentro do estômago”.
O conhecimento dessas estatísticas é pressuposto para o estabelecimento de políticas e ações efetivas. Como cidadãos, nos cabe acompanhar as esferas públicas na busca por soluções. E, como sociedade, inúmeros são os caminhos da mobilização, entre os quais iniciativas de solidariedade, como mostra reportagem desta edição da Revista E. Trata-se de uma ação necessária para evitar um perigoso risco: a naturalização da miséria e da fome como faceta permanente de nossos cenários urbanos. Boa leitura!
DANILO SANTOS DE MIRANDA
Diretor do Sesc São Paulo
SERVIÇO SOCIAL DO COMÉRCIO - SESC Administração Regional no Estado de São Paulo Av. Álvaro Ramos, 991 - Belenzinho
CONSELHO REGIONAL DO SESC DE SÃO PAULO
Presidente: Abram Abe Szajman
Diretor Regional: Danilo Santos de Miranda
Efetivos:
Aguinaldo Rodrigues da Silva, Benedito Toso de Arruda, Célio Simões Cerri, Dan Guinsburg, Jair Francisco Mafra, José Carlos Oliveira, José de Sousa Lima, José Maria de Faria, Manuel Henrique Farias Ramos, Marco Antonio Melchior, Marcos Nóbrega, Milton Zamora, Paulo João de Oliveira Alonso, Paulo Roberto Gullo, Rafik Hussein Saab, Reinaldo Pedro Correa, Rosana Aparecida da Silva e Valterli Martinez
Suplentes: Aldo Minchillo, Alice Grant Marzano, Amilton Saraiva da Costa, Antonio Cozzi Júnior, Costabile Matarazzo Junior, Edgar Siqueira Veloso, Edison Severo Maltoni, Edson Akio Yamada, Laércio Aparecido Pereira Tobias, Omar Abdul Assaf, Sérgio Vanderlei da Silva, Vitor Fernandes e William Pedro Luz
REPRESENTANTES DO CONSELHO REGIONAL JUNTO AO CONSELHO NACIONAL
Efetivos:
Abram Abe Szajman, Ivo Dall’Acqua Júnior e Rubens Torres Medrano
Suplentes: Álvaro Luiz Bruzadin Furtado, Francisco Wagner de La Tôrre e Vicente Amato Sobrinho
CONSELHO EDITORIAL
Revista E
Adriano Ladeira Vannucchi, Alcimar Mendes Frazão, Aline Carvalho Silva, Ana Carolina dos Santos Ferreira, Ana Paula Fraay Moyses Henriques, Andrea de Oliveira Rodrigues, Angélica Cristine de Paula, Barbara Caroline da Silva Ramos de Freitas, Bruna Marcatto da Rocha, Camila Freitas Curaca, Carolina Balza, Claudia Regina de Souza, Daniela Scopin Ribeiro, Diego Polezel Zebele, Edison Eugenio de Moraes Junior, Edmar Rodrigues de Fátima Júnior, Eduardo Lopes Salomão Magiolino, Eduardo Santana Freitas, Elmo Sellitti Rangel, Emerson Luís Costa, Fabricio Floro, Fernanda Porta Nova Ferreira da Silva, Fernando Oliveira Viana, Gabriel Maion Gianelli Damasco, Geraldo Soares Ramos Junior, Igor Cardoso do Prado, Itamar Dantas de Oliveira, Ivan Lucas Araújo Rolfsen, Ivanildo Rodrigues Da Hora, Ivy Beritelli José de Souza, Jade Stella Martins, Jose Mauricio Rodrigues Lima, Juci Fernandes de Oliveira, Juliana Claudia Gardim, Karla Priscila Vieira Carrero, Kelly dos Santos, Lidiane de Jesus, Luiz Fernando de Sousa Ogliani, Marcel Antonio Verrumo, Marcos Toyansk Silva Guimarais, Mariana Barbosa Meirelles Ruocco, Mariana Lins Prado, Marina Burity Francisco, Marina Maria Magalhães, Mayra de Macedo Schatzer, Monique Mendonça dos Santos, Paco Sampaio, Priscila dos Santos Dias, Rafael Lima Peixoto, Rafaela Ometto Berto, Regiane Gomes da Conceição, Regina Maria de Freitas, Rejane Pereira da Silva, Ronaldo Domingues de Araújo, Sandra Ribeiro Alves, Sergio Gouveia Spinola, Sergio Luís Venitt de Oliveira, Silvio de Assis Gomes Basilio, Sofia Calabria Y Carnero, Stephany Tiveron Guerra, Tais Ribeiro Martins, Tatiana Amaral Sanches Ferreira, Tatiane Ferrari de Souza, Thais Cristina Kruse, Thais Ferreira Rodrigues, Valeria Mantovani de Andrade Alves, Vitor Penteado Franciscon
Coordenação Geral: Ivan Paulo Giannini
Editora Executiva: Adriana Reis Paulics • Direção de Arte e Diagramação: Ariane Ramos de Azevedo • Ilustrações: Luyse Costa • Edição de Textos: Adriana Reis Paulics e Maria Julia Lledó • Revisão de textos: Pedro P. Silva • Edição de Fotografia: Adriana Vichi • Repórteres: Luna D’Alama, Manuela Ferreira e Maria Julia Lledó • Coordenação Executiva: Marcos Ribeiro de Carvalho e Fernando Fialho • Coordenação
Editorial Revista E: Adriana Reis Paulics, Guilherme Barreto e Marina Pereira • Propaganda: Daniel Tonus, José Gonçalves Júnior e Renato Perez de Castro • Arte de Anúncios: José Gonçalves Júnior
• Supervisão Gráfica: Rogério Ianelli • Finalização: Ariane Ramos de Azevedo
• Criação Digital Revista E: Ana Paula Fraay • Circulação e Distribuição: Jair Moreira
Jornalista Responsável: Adriana Reis Paulics MTB 37.488
A Revista E é uma publicação do Sesc São Paulo sob coordenação da Superintendência de Comunicação Social Distribuição gratuita. Nenhuma pessoa está autorizada a vender anúncios. Esta publicação está disponível no site: sescsp.org.br
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SUMÁRIO
ENTREVISTA
Compositora e cantora ADRIANA CALCANHOTTO fala sobre experiência como professora em Portugal e dá pistas de seu processo criativo
ALIMENTAÇÃO
ALIMENTACÃO
Para combater o cenário de fome no país, iniciativas e negócios sociais promovem ações solidárias de acesso à comida e multiplicação de agentes de transformação
Vida e legado do escritor e dramaturgo DIAS GOMES, autor de obras consagradas pela crítica às mazelas da sociedade brasileira
Foto: Adriana Vichi
Renato Stockler/Agência Solano TrindadeTCFF
Dias Gomes em 1979. Foto: Lewy Moraes/Folhapress
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PERFIL
Obras da exposição DESVAIRAR 22 propõem novas perspectivas históricas para episódios que sucederam a Semana de Arte Moderna
Atividades de teatro, música, dança e literatura convidam as crianças a brincar por meio de fruição da arte e da cultura
A multiplicidade de influências incorporadas ao JAZZ, gênero cujas raízes abraçam sua origem no continente africano
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9 DOSSIÊ 56 EM PAUTA INFORMAÇÃO x DESINFORMAÇÃO 62 ENCONTROS CHICO MARÉS 66 DEPOIMENTO CASSIO SCAPIN 70 INÉDITOS PAULO SCOTT 80 P.S. ALINE SILVA DE OLIVEIRA Foto: Adriana Vichi32 76 GRÁFICA ALMANAQUE 52 MÚSICA Espetáculo Sr. Calvino, Cia Artesãos do Corpo. Foto: Fábio Pazzini Foto: wirestocka/Freepik
MOSTRA SENTIDOS OFERECE SÉRIE DE AÇÕES QUE PROPORCIONAM REFLEXÕES SOBRE O ENVELHECIMENTO
Desde 1991, a Organização das Nações Unidas (ONU) estabeleceu o dia 1º/10 como o Dia Internacional da Pessoa Idosa, data que, desde então, busca sensibilizar a sociedade para as questões do envelhecimento e evidenciar a legislação de proteção a esse público.
Por meio de ações artísticas ligadas à dança e ao teatro, o Sesc São Paulo realiza a Mostra Sentidos: a longevidade na arte, de 1º a 9/10, nas unidades da capital, interior e litoral, dando visibilidade à temática do envelhecimento, do momento presente à antecipação de realidades futuras.
“A Mostra Sentidos busca sensibilizar públicos de diferentes faixas etárias para o sentido da longevidade e traz protagonismo às pessoas idosas por meio de ações que valorizam corpos e narrativas do envelhecimento”, afirma Eduardo Lopes Salomão Magiolino, assistente técnico da Gerência de Estudos e Programas Sociais do Sesc São Paulo.
Espetáculos, intervenções, oficinas e bate-papos fazem parte da programação, que proporciona reflexões e mantém um diálogo contínuo com o público, além de fomentar a convivência com o respeito à diferença e à diversidade cultural. A mostra faz parte do programa Trabalho Social com Idosos que, há quase 60 anos, promove atividades permanentes nas unidades do Sesc, prezando pela valorização social e pelos diferentes processos de envelhecimento da sociedade, respeitando a individualidade de cada pessoa, desconstruindo estereótipos e preconceitos, bem como incentivando as relações intergeracionais.
Confira a programação completa: www.sescsp.org.br/mostrasentidos
EDUARDO LOPES SALOMÃO MAGIOLINO, Assistente técnico da Gerência de Estudos e Programas Sociais do Sesc São Paulo LONGEVIDADE NA ARTE
“A MOSTRA SENTIDOS BUSCA SENSIBILIZAR PÚBLICOS DE DIFERENTES FAIXAS ETÁRIAS PARA O SENTIDO DA LONGEVIDADE, TRAZENDO PROTAGONISMO ÀS PESSOAS IDOSAS, POR MEIO DE AÇÕES DE TEATRO E DANÇA QUE VALORIZAM CORPOS E NARRATIVAS DO ENVELHECIMENTO.”
Foto: Renato Mangolin
Cena da atividade “A dança e o envelhecimento do corpo”, que faz parte da Mostra Sentidos
9 DOSSIÊ
EDUCAÇÃO ANTIRRACISTA
O Sesc Vila Mariana realiza, nos dias 19 e 20/10, a programação Diálogos para uma educação antirracista, em parceria com o CEERT - Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades. O evento celebra os 32 anos de atuação do CEERT, organização não governamental que produz conhecimento, desenvolve e executa projetos voltados para a promoção da equidade racial e de gênero. Mais informações: www.sescsp.org.br/vilamariana
PRESENÇAS POPULARES DE 1922
Com curadoria de Joice Berth, Alexandre Bispo e Tadeu Kaçula, a exposição Margens de 22: Presenças Populares, que entra em cartaz dia 28/10, no Sesc Carmo, contempla experiências de artistas e movimentos que ocorreram em paralelo à Semana de Arte Moderna, mas que não obtiveram a mesma visibilidade daqueles que estiveram no Theatro Municipal. A mostra, que integra o projeto Diversos 22, é composta por obras diversas, desde pinturas até reproduções de fantasias carnavalescas, e explora acervos desconhecidos, caso de documentos e registros da imprensa negra, além de analisar quais e quem foram os agitadores culturais de relevância para a composição da vida cultural da metrópole há um século. A exposição conta com recursos acessíveis, como vídeo e audioguia (traga seu fone de ouvido). Saiba mais: www.sescsp.org.br/carmo
DEMOCRACIA REAL
Assinado por Renato Janine Ribeiro, o ensaio recém-lançado Maquiavel, a democracia e o Brasil, coedição entre as Edições Sesc São Paulo e a Estação Liberdade, tece reflexões no campo da democracia atual a partir do clássico – e aparentemente antirrepublicano – O príncipe (1532), de Nicolau Maquiavel. O filósofo propõe que, assim como o novo governante de um sistema monárquico precisa garantir sua permanência no poder após ascender ao trono, também os representantes dos sistemas democráticos, periodicamente eleitos, precisam usar a seu favor a virtù (ou virtude) e a fortuna (a sorte) para liderar e ter êxito em seu governo. Com referências históricas e atuais, a obra analisa a dinâmica de poder dos representantes do executivo brasileiro após a ditadura civil-militar. Saiba mais: bit.ly/livro-maquiavel
GERAÇÃO OCEANO
Com a missão de promover soluções transformadoras baseadas na ciência para o desenvolvimento sustentável, a ONU proclamou a Década do Oceano – de 2021 a 2030 – para impulsionar a implementação da Agenda 2030, plano global de um mundo melhor para todos os povos e nações. De forma inédita no hemisfério sul, a Unesco, o Programa Maré de Ciência, da Unifesp, e a Prefeitura de Santos realizam, de 10 a 14/10, o evento mundial Diálogos da Cultura Oceânica para celebrar, engajar e debater o tema. Como parte da programação, a unidade do Sesc Bertioga realiza a atividade Mar sem limites, para promover ações para pessoas com deficiência e mobilidade reduzida, e a unidade do Sesc Santos recebe, para um ciclo de debates, nomes como a liderança indígena Cristine Takuá, o professor e geólogo Cristiano Chiessi e a gestora ambiental Sineia Wapichana, entre outros. Confira a programação: oceanliteracydialogues.com
Divulgação
Fotografia de Carlos Moreira. Acervo Sesc de Arte / Reprodução fotográfica: Everton Ballardin
Foto: kracmar/Pixabay
Obra de Luigi Brizzolara em homenagem a Carlos Gomes. Praça Ramos de Azevedo, SP, 1974.
10 DOSSIÊ
Já estão disponíveis, na plataforma Sesc.Digital, as imagens dos figurinos usados na montagem Macunaíma, encenação de 1984 do Centro de Pesquisa Teatral do Sesc, com direção de Antunes Filho (1929-2019). Desde 2016, o Sesc Memórias realiza um minucioso trabalho de pesquisa, guarda e preservação, possibilitando, até agora, a recomposição e conservação de mais de 150 trajes, além de acessórios cênicos de 14 espetáculos do CPT_SESC. Os figurinos foram registrados pelo fotógrafo Bob Sousa e as imagens são hoje o fio condutor das Coleções e Acervos Históricos CPT_SESC, disponíveis no Sesc.Digital Para conhecer o acervo, acesse: bit.ly/colecao-cpt
PARQUE CENTENÁRIO
Para marcar o centenário da entrega do Parque Dom Pedro II, no centro da capital paulista, à população, o Sesc realiza, de 31/10 a 28/11, o ciclo de debates Sesc Parque Dom Pedro II: transições culturais da cenografia à arquitetura. Na abertura do evento, também haverá o lançamento da publicação de título homônimo, que destaca a pesquisa, a produção e a avaliação de projetos culturais relacionados à Várzea do Carmo e ao Parque Dom Pedro II, com foco na unidade provisória do Sesc, que funcionou entre 2015 e 2021. Atividades sempre às segundas-feiras, às 18h, no Sesc Carmo. Acompanhe: www.sescsp.org.br/carmo
Foto: Bob Sousa/ Acervo Sesc Memórias
Foto: Alexandre Nunis
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Foto: Adriana Vichi
ENTREVISTA ADRIANA CALCANHOTTO
Musa Medusa
COMPOSITORA, CANTORA, ESCRITORA E PROFESSORA FAZ DA MÚSICA
UM ESPELHO DO QUE ENCANTA E ESPANTA O SER HUMANO
“A musa não se Medusa, contra o caos faz música”. Vestida com os versos do poeta Haroldo de Campos (1929-2003), declamados na introdução de Ninguém na rua, faixa do álbum Só (2020), Adriana Calcanhotto respondeu à pandemia. Circunscrita num contingente crítico, transformou angústias e desejos em canções enquanto esteve isolada. Também foi de casa que se apresentou em lives, uma delas transmitida, há dois anos, na programação #EmCasaComSesc, disponível no canal do Sesc São Paulo no YouTube. Se nesse período teve apenas o computador e a televisão como janelas para o mundo, hoje a cantora e compositora gaúcha descortina outras paisagens em turnês dentro e fora do Brasil. Ao longo de mais de três décadas de carreira, a autora de diversos livros, como Saga Lusa – O relato de uma viagem (Cobogó, 2008), e de canções gravadas por grandes nomes da música brasileira, a exemplo de Maria Bethânia e Marisa Monte, ainda é embaixadora da Universidade de Coimbra, em Portugal, onde fez uma residência artística e lecionou o curso Como escrever canções. “Eu fui muito mais desafiada do que imaginava com perguntas e provocações. E isso foi muito rico”, contou à Revista E, nos bastidores do show realizado no teatro do Sesc Belenzinho, em agosto passado. Nesta Entrevista, Adriana Calcanhotto, que neste mês celebra 57 anos, fala mais sobre essa troca com o país de Fernando Pessoa (1888-1935), compartilha reflexões acerca do legado da Semana de Arte Moderna, e ainda dedilha pistas de seu processo criativo.
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No primeiro mês da pandemia, você criou o álbum Só. Como foi esse processo de composição em sua casa, com parceiros à distância? Melodia e letra foram criadas ao mesmo tempo no seu processo criativo?
A maioria das canções em que fiz letra e música veio de voz e violão. Só que eu também tenho uma limitação: não sou musicista. Então, é dentro de uma linha de “não privilégio” que eu faço minhas músicas com três, quatro acordes, e a ideia é essa mesma. Mas, às vezes, como na pandemia, quando eu acordava com essa urgência de fazer canções, se eu ficasse apenas no violão, não faria uma canção por dia durante dez dias. Então, fui atrás de bases prontas e disponíveis na internet, além dos três ou quatro acordes que compunha. Isso foi, inclusive, uma das coisas que trabalhei para falar com os alunos [da Universidade de Coimbra]. Eles têm um pouco aquilo de: “Eu preciso tocar um instrumento para ser um compositor”. Bom, é melhor que você toque até mais de um instrumento, mas isso não é imprescindível. Quantos sambistas fizeram sambas antológicos na cabeça, não precisaram nem da caixinha de fósforo? Eu gosto de desmistificar essa coisa do instrumento e da composição. Então, talvez por isso, eu tenha feito Só sem as minhas harmonias, sem os meus velhos conhecidos caminhos no violão. Eu ficava procurando batidas na internet, botava umas cinco ou seis por dia até vir uma que eu achava mais natural. A melodia vem já com uma ideia de divisão do que a frase está dizendo. Não tem isso de: “Ah, essa letra poderia ser um funk”, ou “Isso poderia ser um samba”. A frase, ou seja, isso que eu estou dizendo agora, já vem dentro de uma levada. É difícil de explicar. Cada canção inaugura a si própria. Ou seja, cada canção vai pedir o que ela quer pedir.
A canção “Esquadros”, de 1992, foi bastante reproduzida na pandemia como se pudesse sintetizar o momento que atravessamos: “Pela janela do carro, pela tela, pela janela, / quem é ela, quem é ela, / eu vejo tudo enquadrado, / remoto controle.” Curiosamente, você volta a falar de janela em “O que temos”, no álbum Só, de 2020. Hoje, o que você vê pela janela?
A janela de “O que temos” era a minha janela para o mundo – eu, que moro no mato –, era a televisão e a internet para saber que pandemia é essa, e o que está acontecendo com o mundo. Agora, a janela que eu vivo hoje é a janela de “Esquadros”: a janela da turnê, do carro, do hotel, do aeroporto, do teatro. Tudo igual, só que nunca igual. Tudo igual, só que nunca a mesma coisa. Mas, as janelas da pandemia eram aquelas janelas das pessoas cantando nas sacadas, aquela coisa bem italiana das pessoas cantando ópera nos balcões. E ao mesmo tempo, a janela dos panelaços.
Você já deu um depoimento dizendo que aos 15 anos ganhou um livro do Oswald de Andrade e, desde então, mergulhou no modernismo brasileiro. Também disse que esse movimento artístico influenciou sua escolha pela música. De que forma?
A minha escolha pela música veio porque eu sempre tive muita música na minha formação, na minha vida. Sou filha de músico e de bailarina, ou seja, a música sempre esteve em casa. Mas, o interesse e a vontade de fazer música, de dedicar minha vida à música, veio quando comecei a sacar as letras. Quando comecei a ouvir Vinícius de Moraes, Cecília Meireles musicada por Fagner, Ferreira Gullar musicado por Fagner… Foi a poesia que me levou para a música mais do que a própria música. E o modernismo está muito ligado a essa escolha, sempre esteve. Eu conhecia canções [do movimento tropicalista] e algumas obras que foram muito influenciadas pelo modernismo, mas eu não sabia ainda direito o que era o modernismo. Eu não tinha entrado em contato direto com aquilo, e quando entrei em contato, fiquei totalmente maravilhada.
A CANÇÃO TRABALHA
O TEMPO TODO COM UMA TENTATIVA VÃ DE APREENSÃO DO TEMPO
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ENTREVISTA
Neste ano de debates e de outras programações voltadas ao centenário da Semana de Arte Moderna, o que ficou de legado para os artistas de hoje?
Na verdade, a Semana é um emblema. Muitas coisas do modernismo só vieram a acontecer depois, tanto que nela não estava Tarsila do Amaral, por exemplo. Mas, em compensação, antes da Semana já estavam acontecendo coisas com Villa-Lobos, com Anita Malfatti. Eu acho que o legado é o das ideias modernas que vão evoluindo e se atualizando. Elas ficam revelando o Brasil a nós mesmos. Então, a Semana de 1922 é algo para a gente devorar, como eu tenho dito. Aí, eu acho que um trabalho como o de Denilson Baniwa [premiado artista e curador indígena nascido em 1984, que questiona em suas obras um imaginário do que é “ser indígena”] é a apoteose de tudo o que o modernismo estava querendo propor, revelar ou construir. Parece que agora dá para conversar, ou seja, dá para haver uma conversa de todo mundo. Por isso, eu acho que foi muito importante que ela tenha acontecido. Hoje a gente está aqui pensando a respeito, cem anos depois, e algumas pessoas ainda discutem se a Semana de 1922 poderia não ter existido. Eu acho que deveria ter existido porque muitas coisas importantes nas artes não aconteceriam se não fosse assim. Também não dá para fazer um julgamento com revisão histórica, porque não tem cabimento. Eu acho que, como saldo, a Semana de Arte Moderna foi importantíssima.
Sobre seu momento em Portugal, como residente e professora da Universidade de Coimbra, como foi “devorar” Portugal ou “ser devorada” por Portugal?
Eu gosto mais de ser devorada por Portugal, porque devorar Portugal não posso dizer que tenha conseguido. A primeira vez que fui a Portugal, lembro que as pessoas diziam: “Ah, você vai ver como certas fichas vão cair. Certas coisas que você olhar na rua
vai reconhecer o Brasil, a nossa identidade”. E, de fato, isso aconteceu. Mas essa é uma primeira leitura, que tem muito a ver com a arquitetura, com espécies da vegetação… Isso é uma primeira camada. Depois, a coisa só “piora”, como diria Fernanda Montenegro (risos), porque vai ficando muito mais complexo, e aí o desafio começa a ficar muito interessante. A minha porta de entrada para Portugal foi a poesia, justamente os poetas, tanto contemporâneos, quanto os não contemporâneos. E eles foram chegando para mim todos ao mesmo tempo. Então, eu não fiz um reconhecimento dos poetas portugueses a partir de uma visão cronológica e histórica. Não. Eu fui conhecendo tudo ao mesmo tempo e isso foi bem interessante.
Foto: Adriana Vichi
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Quando você morou em Portugal, sua poesia mudou junto com seu olhar sobre o país?
Eu não cheguei a morar, e não gosto de dizer que morei em Portugal, porque eu ia para Coimbra, dava aulas, e voltava para cá. Então, não tenho essa experiência de ter morado fora. Mas, fiquei alguns períodos fora. Como também fico na estrada, que é a minha vida – e eu gosto muito, eu não me senti morando em Coimbra porque nunca desejei morar fora do Brasil. Até hoje, não tive esse desejo. Mas, fiquei longos períodos de tempo por lá trabalhando com composição musical e vi coisas que eu não sabia. Por exemplo, todos os nomes maravilhosos do fado em Portugal ouviram e são formados em Tom Jobim, Vinicius de Moraes… Em harmonias que não se usam no fado, mas todos conhecem e têm uma cultura da música brasileira impressionante. Então, descobri umas coisas assim. E estando em Coimbra, você vai refazendo caminhos, fisicamente e literalmente, pelos corredores, escadas, salas por onde passaram pessoas importantes que pensaram o Brasil desde Coimbra, há muito tempo, como os inconfidentes [protagonistas da Inconfidência Mineira, rebelião contra o domínio colonial português, no século 18]. Muitas ideias a respeito do Brasil, do que poderia vir a ser o Brasil, nasceram lá.
A LÍNGUA PORTUGUESA
É ESPONJOSA E MUITO
PLÁSTICA PORQUE ELA SE ADAPTA
E como foi a experiência de lecionar o curso Como escrever canções?
Essa troca foi muito mais do que eu podia imaginar. Eu nunca tinha dado aulas, nunca tinha pensado nisso, embora venha de uma família de professores – mesmo os que são músicos. Eu não achava que dar aulas fosse para mim. Eu entendi que, para isso, você precisava estudar muito. Aliás, essa é a parte boa. Teve muita troca (com os alunos) no sentido de que fui muito mais desafiada do que eu imaginava, com perguntas e provocações. E isso foi muito rico. Também mexeu com muitas coisas a respeito do meu processo de composição, coisas que as pessoas querem saber, que a imprensa pergunta, porque todo mundo quer saber do ato criativo, desse
momento em que a canção nasce, mas a gente não tem controle. Na verdade, por mais que você queira se aproximar desse instante, você já o perdeu, ele já foi. Mas, eu tento me aproximar desse momento ao máximo para poder responder às perguntas que os alunos me fazem. Então, foi no disco que eu fiz na pandemia (Só, 2020) que prestei atenção nisso, porque antes eu estava viajando para dar aulas em Coimbra mas, com as restrições, não fui. Aí, eu acabei fazendo um disco de crônicas do que vinha acontecendo durante a pandemia, mas com um cuidado, com uma consciência de tudo que eu estava fazendo, algo que não costumo ter. E eu falo muito para eles [os alunos] que [o processo de criação das canções] não é o momento de censurar ideias – “Ah, mas isso é bobo”; “Isso já foi feito” etc. Não. Eu digo: deixa vir. O momento de “censurar” é depois. Então, essas [canções do álbum Só] eu fiz assim: botava a hora, mais ou menos, em que ela estava sendo inaugurada, e tinha uma consciência, por exemplo, de que essa parte aqui seria o refrão, ou, isso aqui eu vou botar para lá. Era uma consciência como se eu tivesse que contar para eles, depois, como é que aquilo tinha sido armado. Coisa que eu não fazia antes, porque tinha até um medo de me dividir na hora de fazer a canção. Bom, ou eu estou fazendo a canção, ou estou reportando o ato de fazer a canção, né? Mas, isso foi bom, e foi o resultado de dar essas aulas, porque eu vi que dá para fazer as duas coisas: fazer a canção e prestar atenção no que estou fazendo.
Nesse curso na Universidade de Coimbra, além de falar sobre esse processo de nascimento da canção, você falou sobre as origens da canção até os dias de hoje. O que mudou ou como é a canção contemporânea?
Eu não acho que vem mudando muita coisa no sentido que a canção é um resultado da junção da música com a poesia. Na Grécia, as canções existiam para poder veicular o poema. Se você decora um poema sem música, você decora com mais dificuldade. Por isso, nas aulas eu dava os exemplos dos jingles. Tem também os professores de cursinho
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A CABEÇA
MÁRIO
pré-vestibular que colocam melodias em fórmulas de física, de química, de matemática, e você guarda aquilo. Esse é o intuito da canção quando ela começa na Grécia. Até hoje, ela é mais ou menos isso. Ela cumpre os requisitos da repetição, para que aquilo fique fácil, para que você guarde, para que você transmita. Nesse sentido, a canção trabalha o tempo todo com uma tentativa vã de apreensão do tempo. Mas, ela também serve para transmitir palavras, além de ter um papel político, como toda coisa que se cria.
Em maio deste ano, você representou a Universidade de Coimbra, como embaixadora, na Semana da Lusofonia realizada no Consulado Geral de Portugal, na capital fluminense. O que você pensa sobre a plasticidade e o futuro da língua portuguesa?
A língua portuguesa nasce antes de Portugal. Às vezes, a gente pesa a mão nessa coisa de Portugal em relação à língua. Eu acho que nós falamos uma língua
portuguesa que tem palavras indígenas de várias línguas, palavras africanas de várias etnias, de vários lugares, com vários sentidos. A língua portuguesa é esponjosa e muito plástica porque ela se adapta. Eu acho que a gente tem o privilégio enorme de falar essa língua portuguesa de hoje – os portugueses que estudam a língua portuguesa do tempo de Dom Diniz, por exemplo, dizem que aqui, no Brasil, a gente fala este português que dá as vogais ainda [dar vogais no sentido de prolongar a entonação das vogais], porque é um português arcaico. A gente se orgulha de dar as vogais, mas é porque a gente fala a língua portuguesa há muito menos tempo. E a gente tem palavras incríveis e palavras inventadas, o que é muito a dinâmica da língua portuguesa. E por todas as línguas urbanas, pelas gírias, ela é incrível. É a pergunta do Caetano [Veloso]: “O que quer e o que pode essa língua?”. Eu acho um privilégio ter a língua portuguesa como língua mãe.
A
Assista ao vídeo desta Entrevista com Adriana Calcanhotto.
de poema-manifesto escrito por Adriana Calcanhotto, que dialoga com a Semana de Arte Moderna, para o jornal Folha de S. Paulo, publicado em 22 de fevereiro de 2022)
Foto: Adriana Vichi
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(...) O SAMBA É O DENOMINADOR COMUM O SURDO UM NA MULTIDÃO
BATIDA ENSURDECEDORA DOS SILENCIADOS ABAPORU COM DENDÊ CHUPAR A GELEIA GERAL DOS DEDOS TRAZER ENTRE OS DENTES UMA FACA SÓ LÂMINA (OLHA QUE A MUSA NOS CORTA A LÍNGUA) MASCAR AS MÁSCARAS
DE
DE ANDRADE NUMA CESTA INDÍGENA TORRESMO DE OSWALD SOBRE MESAS NESTA MANIFESTA.
(Trecho
Alimentar a mudança
DIANTE DE UM CENÁRIO DE FOME NO PAÍS, SOCIEDADE SE ORGANIZA EM AÇÕES SOLIDÁRIAS
Manhã fria de domingo. Nem a garoa fina nem os termômetros marcando 11 graus desanimam um menino e uma menina que se deixam flagrar num momento único de criação. Lápis colorido nas mãos pequenas de crianças, ele e ela se dedicam a preencher a cartolina. Olhares compenetrados, alheios aos ruídos e movimentos ao redor, a dupla vai dando formas e cores à mensagem que transpõe para o papel e que, em instantes, estará exposta a um público de desconhecidos. No lugar de uma mesa, porém, é a mureta que margeia o riacho do Ipiranga, no cruzamento da avenida Ricardo Jafet e rua Vergueiro, na Zona Sul de São Paulo, que dá apoio para as crianças desenharem. Às vésperas das celebrações pelo bicentenário da Independência, no início de setembro, e às margens do mesmo rio que simbolicamente marca o país como uma nação, a palavra que desenham e enfeitam sintetiza o grito calado que elas estampam como mensagem e apelo: FOME!
A cena se repete em metrópoles e rincões do Brasil, onde mais de 33 milhões de pessoas convivem com a falta do que comer, situação agravada pela pandemia. Segundo dados do 2º Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil (II Vigisan), desenvolvido pela Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar (Rede PENSSAN), mais da metade dos domicílios (58,7%), o que representa 125,2 milhões de brasileiros, não tem acesso pleno e permanente a alimentos. Condição que se acentua nos lares com crianças de até dez anos de idade, em que a fome, como mostra essa mesma pesquisa, é uma realidade de uma em cada três famílias.
Em busca de alternativas para combater essa escassez, a sociedade civil vem se organizando de diversas formas – desde pequenos grupos de bairros que realizam arrecadações e doações de alimentos, bem como itens de limpeza e higiene, até o trabalho articulado por instituições sociais e organizações não governamentais, como destacamos na matéria Fome pede Ação [leia Revista E nº 296, de junho de 2021].
Cena do espetáculo BR-3, do Teatro da Vertigem, encenado no Rio Tietê.
18 ALIMENTAÇÃO
Organicamente Rango também faz a doação de 16 mil marmitas por mês, na Zona Sul de São Paulo.
Foto: Renato Stockler/Agência Solano TrindadeTCFF
A chef Tia Nice, matriarca da Agência Solano Trindade, e o filho Thiago Vinícius estão à frente do restaurante Organicamente Rango: refeições preparadas com alimentos cultivados por pequenos produtores próximos do Campo Limpo, Zona Sul da cidade, e com insumos vendidos pela própria comunidade.
Iniciativas e negócios sociais em regiões periféricas da cidade de São Paulo também estão à frente desse movimento e somam esforços numa rede de solidariedade que promove o acesso à alimentação. Aberto em 2019, o restaurante Organicamente Rango, criado pelo empreendedor social Thiago Vinícius e sua mãe, a chef Tia Nice, em Campo Limpo, Zona Sul da cidade, distribui marmitas a famílias em situação de vulnerabilidade na região. A iniciativa é braço gastronômico da Agência Solano Trindade, também criada e dirigida por mãe e filho, entre outros parceiros, com base nos conceitos de economia solidária, economia criativa e geração de renda.
“Na pandemia, começamos com 200 marmitas por dia e esse número foi aumentando. Hoje a gente consegue entregar 16 mil marmitas por mês, de graça, na periferia. Essa operação começa bem cedo: fazemos e entregamos, de segunda à sexta, 800 marmitas, que atendem 200 famílias da região. Preparamos a comida do restaurante com insumos que compramos na própria comunidade. Nosso modelo de negócio é: quem tem dinheiro come, quem não tem come também”, explica Thiago Vinícius.
No mesmo espaço onde funciona o Organicamente Rango, há um coworking para os empreendedores da região e, a poucos metros, o Armazém Orgânico, onde moradores e visitantes podem comprar verduras, legumes e frutas cultivadas por mais de 30 pequenos produtores de cidades próximas, como Juquitiba.
Toda semana, é feita uma lista dos alimentos que estarão disponíveis no armazém, e os compradores podem escolher, segundo Thiago Vinícius, “se querem comprar 10 reais, 15 reais, 20 reais ou até mesmo 100 reais de comida”.
E complementa: “A gente vê o que está acontecendo no nosso país: a fome, a questão da subnutrição, da obesidade, de doenças cardiovasculares, doenças que são conectadas à alimentação, à falta de alimentação ou à má alimentação. E comida é saúde. Por isso, nosso trabalho também é tentar combater os desertos alimentares que, segundo a OMS (Organização Mundial de Saúde), são aqueles lugares em que a pessoa tem que andar muito para encontrar um alface, para encontrar alimento in natura”.
Outra iniciativa social que também direciona esforços para a doação de alimentos às populações mais vulneráveis da cidade é a Gastronomia Periférica. Negócio social criado pelo chef Edson Leite e pela psicóloga Adélia Rodrigues, a GP – como também é conhecida – levanta a bandeira do aproveitamento total dos alimentos, da profissionalização e da possibilidade de empreender e ser protagonista no mercado.
Ao todo, 14 organizações e ocupações em diferentes regiões da cidade passaram a receber cestas básicas, desde 2020, pela intermediação realizada pela GP entre quem quer doar e quem realiza um trabalho diretamente nos territórios de enfrentamento da fome, mas não teria visibilidade para alcançar essas doações.
Foto: Thiago Vinícius
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“A gente conseguiu estruturar as doações de um jeito que fosse positivo para as 14 organizações. Ouvimos o que as pessoas precisavam em vez de ‘vai ter isso na cesta, porque eu acho que você precisa de fubá’. Mas, e quando a pessoa não sabe usar o fubá? Tinha gente que precisava de mais arroz, de leite ou de outros itens, como absorvente e fralda”, recorda Adélia.
MULTIPLICAR AGENTES
Para além do ato de doação, o conceito de solidariedade abarca outro significado, o da responsabilidade recíproca entre os membros de uma comunidade. “Você não pode só repetir o processo da caridade, porque isso não traz transformação social”, defende a sócia-fundadora da Gastronomia Periférica. Tendo essa questão como norte, acrescenta Adélia: “Além de pensar na emergência de agora, que é o comer, pensamos em como as pessoas podem se formar na Escola de Gastronomia Periférica e voltar ao mercado de trabalho. Ou seja, tentamos equilibrar presente e futuro”.
De 2018 para cá, a escola já formou mil participantes –a maioria, mulheres negras que moram nas periferias da cidade –, número que deve crescer depois da criação da plataforma de Ensino a Distância (EAD), em 2021. Dessa forma, alunos de outros estados podem se inscrever. “Neste ano, a gente está com o curso EAD no Brasil todo, além da versão híbrida. Teremos uma parte presencial, neste mês, em Dourados (MT), e ainda neste ano, uma parte presencial em Heliópolis. Fora isso, temos cursos livres numa plataforma própria com todas as aulas gravadas”, conta Adélia. Enquanto as aulas são gratuitas, a internet e os insumos utilizados pelos alunos para os cursos são fornecidos pela escola.
Depois da formação, os participantes fazem um estágio em restaurantes parceiros e, desde setembro, no restaurante Da Quebrada, da Gastronomia Periférica, aberto no bairro da Vila Madalena, Zona Oeste da cidade. No cardápio, ingredientes sazonais e receitas com aproveitamento total dos alimentos. Estagiária no Da Quebrada, a estudante de gastronomia Larissa Santos começou a fazer o curso em abril deste ano. “Todos os restaurantes pedem experiência e eu não tinha. Como eu ia entrar numa cozinha? Pela escola eu já fiz um estágio num evento da Gastronomia Periférica e agora estou no Da Quebrada. Isso aqui abriu a minha cabeça para tudo que eu posso conseguir”, compartilha Larissa, que mora no Jabaquara, Zona Sul da cidade.
Também inaugurada em setembro, a Organicamente Escola, fruto da Agência Solano Trindade e do restaurante Organicamente Rango, visa a formação de jovens das periferias para trabalhar ou empreender na área da gastronomia, considerando todos os aspectos sociais, culturais, ambientais, econômicos e políticos da alimentação. Dividida em quatro módulos, Terra, Pensamento Crítico e Direito à Cidade, Gastronomia e Empreendedorismo, o curso se encerra em maio do próximo ano e, por enquanto, vai atender um grupo de 10 alunos.
Foto: Adriana Vichi
Larissa Santos, estudante da Escola de Gastronomia Periférica, hoje faz um estágio no restaurante Da Quebrada, na Zona Oeste da cidade.
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“A gente começa o curso com o módulo Terra, e leva esses jovens para plantar e compostar, para que eles possam compreender que comida não nasce na prateleira do mercado, que tudo que está no mercado nasceu da terra, de alguma forma. A partir desse processo, a gente pode entender a importância da preservação do meio ambiente e do contato desse jovem com a terra, uma vez que a periferia é muito urbana e você não tem tantos espaços para plantar”, conta Thiago.
DE DENTRO PRA FORA
A voz e as ações desse protagonismo social também reverberam discussões e apontam caminhos. Criada em 2021, a Cátedra Josué de Castro de Sistemas Alimentares Saudáveis e Sustentáveis, da Universidade de São Paulo (USP), é um espaço aberto e participativo que busca ampliar o encontro de diversos atores e saberes, além de incentivar ações que transformem o sistema alimentar brasileiro. “Iniciativas sociais são fundamentais para evitar um desastre social, uma situação muito frágil e muito perigosa em relação à população mais vulnerável”, observa Ana Paula Bortoletto Martins, pesquisadora da Cátedra e do NupensUSP (Núcleo de Pesquisas Epidemiológicas em Nutrição e Saúde da Universidade de São Paulo).
A pesquisadora também acredita que essas iniciativas podem incidir, e favorecer, o desenvolvimento de políticas públicas. “Primeiro, sobre políticas municipais, por exemplo, que poderiam partir do trabalho que já está sendo desenvolvido para que possa ser expandido, fortalecido e adotado em outras regiões, a depender da situação. E também, eventualmente, até influenciar medidas de outros níveis. Algumas organizações podem ajudar, por exemplo, a apontar caminhos de quais são as necessidades para a política de abastecimento de alimentos”, sugere Bortoletto.
Essa última contribuição também foi levantada pelo coordenador da Rede PENSANN, Renato Maluf, pesquisador e professor titular do Departamento de Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (DDAS-UFRRJ). “Eu participei de um projeto de mapeamento de iniciativas da sociedade relacionadas com o abastecimento. Iniciativas para aproximar produtores de consumidores, e você conta centenas pelo Brasil”, disse à Revista E, na seção Encontros, publicada em agosto deste ano.
Os pesquisadores alertam, no entanto, que o protagonismo da sociedade não pode ser a solução para a mudança do cenário de insegurança alimentar no país. Afinal, pontua a pesquisadora Bortoletto, “as pessoas deveriam ter o direito à alimentação garantido, independentemente de ações de solidariedade ou não”, algo que se alcança com políticas públicas a longo prazo. Esse ponto de vista é compartilhado por Maluf: “Tem um lado bastante bom na sociedade brasileira que se manifesta por meio das ações de solidariedade. Nem de longe eu desvalorizo ou tiro o mérito dessas ações, mas não aposto nelas [como uma solução permanente à fome]”, afirma.
Diante desse contexto, o sociólogo e diretor do Sesc São Paulo, Danilo Santos de Miranda, reforçou a necessidade de políticas públicas e o protagonismo da sociedade nessa direção, em coluna publicada no jornal O Estado de S.Paulo, em agosto de 2022. “A reação é a mobilização permanente de cidadãos e organizações da sociedade civil no sentido da garantia de direitos inegociáveis: o atendimento das necessidades fundamentais, sem o qual o ser humano torna-se apenas um tênue esboço do que pode vir a ser.”
(Por Maria Julia Lledó. Colaborou Adriana Reis Paulics)
Pessoa em situação de vulnerabilidade no metrô de São Paulo, 2021.
Foto: Adriana Vichi
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Nutrir conexões
VIVÊNCIAS, OFICINAS, PALESTRAS E OUTRAS ATIVIDADES DO PROJETO EXPERIMENTA! REÚNEM DIFERENTES PROTAGONISTAS QUE ATUAM NO CULTIVO, DISTRIBUIÇÃO E VALORIZAÇÃO DO ALIMENTO E DA CULTURA ALIMENTAR
Entre os dias 15 e 23/10, em celebração ao Dia Mundial da Alimentação (16/10), o Sesc São Paulo realiza a 6ª edição do Experimenta! Comida, Saúde e Cultura, convidando o público a refletir sobre as diversas características e cenários da alimentação em uma programação com diversas atividades. Criado em 2017, o Experimenta! busca promover a alimentação adequada e saudável, bem como ampliar a autonomia da sociedade em torno das escolhas alimentares a partir de sete eixos norteadores: Comer é cultura; A saúde está na mesa; Diversidade no prato: Sabores da natureza; Aqui se planta, aqui se come; Se está na época, tem feira; Cozinhar é preciso; e Conexão comida.
“O Experimenta! – Comida, saúde e cultura é um convite a descobrir novos sabores e saberes, a partilhar descobertas e a resgatar tradições. Na programação, buscamos promover a alimentação adequada e saudável, valorizando as culturas alimentares e sensibilizando o público sobre os efeitos sociais, políticos, nutricionais, ambientais e econômicos das nossas escolhas”, explica Marcia Aparecida Bonetti Agostinho Sumares, gerente da Gerência de Alimentação e Segurança Alimentar do Sesc São Paulo.
Confira alguns destaques da programação:
FEIRA
Mostra Agroecológica
Conheça os trabalhos, produtos e ideias de diferentes grupos voltados para alimentação, agroecologia e sustentabilidade. Ainda haverá comercialização de alimentos frescos e sazonais. Participam: Mulheres do GAU, grupo de imigrantes nordestinas que trabalham com agricultura agroflorestal e culinária no Viveiro Escola União de Vila Nova, em São Miguel Paulista; Frente Alimenta, iniciativa da sociedade civil que conecta a produção agroecológica a cozinhas comunitárias nas periferias de São Paulo, fornecendo refeições a pessoas em situação de insegurança alimentar; e Associação de Agricultores da Zona Leste, que agrega agricultores da região e atua como um instrumento de apoio mútuo entre produtores de Itaquera, Guaianases, São Miguel Paulista e São Mateus. (Dias 15 e 16/10, das 11h às 16h, no Sesc Itaquera.)
VIVÊNCIA
Preparar, Plantar, Colher e Comer
De onde vêm as frutas, ervas, legumes e verduras que compramos em feiras, mercados e quitandas? Nesta atividade realizada por representantes da organização não governamental Cidades Sem Fome, criada em 2004, os participantes fazem uma expedição guiada em uma das hortas da ONG, na Zona Leste de São Paulo, com apresentação de temas sobre a produção de alimentos, princípios da agroecologia, ciclos da natureza e compostagem. (Dia 15/10, das 9h às 16h, no Sesc Belenzinho – local de encontro. Inscrições a partir do dia 8/10 em: www.inscricoes.sescsp.org.br).
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Divulgação Foto: Wirestock/Freepik
PASSEIO
Visita à agrofloresta
Os participantes conhecem a atuação do coletivo Do Estradão, que atua no Jardim Filhos da Terra, na Zona Norte de São Paulo, bem como a história da comunidade. Durante a caminhada pelo terreno que hoje abriga uma agrofloresta, mas que já foi um terreno baldio, utilizado como depósito de lixo e de entulho, haverá o reconhecimento de Pancs (plantas alimentícias não convencionais), ervas medicinais e árvores nativas. Também serão apresentadas técnicas de permacultura adaptadas para o meio urbano-periférico. O almoço será produzido pelo coletivo. (Dias 16/10, das 10h às 18h; e 23/10, para crianças acompanhadas por responsáveis, das 10h às 15h, no Sesc Santana – local de encontro. Inscrições a partir do dia 14/10 em: www.inscricoes.sescsp.org.br).
PALESTRA
Diversidade na Mesa – Temos Comida!
Palestra que aborda questões relacionadas à fome e às atitudes para um futuro em que todos tenham acesso a uma alimentação saudável. Adriana Salay, criadora do Quebrada Alimentada – projeto que, em parceria com o restaurante Mocotó, busca promover a assistência alimentar na pandemia –, fala sobre aspectos relacionados à diversidade alimentar nas diferentes regiões do Brasil, seus biomas e práticas. (Dia 19/10, das 19h às 20h30, no Sesc 24 de Maio. Sem retirada de ingressos).
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Foto: Wirestock/Freepik
25 06 a 09 de Outubro Conferências, mesas temáticas, apresentações de trabalho, cursos e festivais sobre a Ginástica para Todos: prática corporal coletiva que engloba as ginásticas e manifestações culturais. Sesc Campinas Inscrições abertas em: forumgpt.com APOIO INSTITUCIONAL: CORREALIZAÇÃO: REALIZAÇÃO:
Artesão dos palcos e das telas
A CORAJOSA TRAJETÓRIA DE DIAS GOMES, AUTOR PRIMORDIAL DA DRAMATURGIA BRASILEIRA
Muitos brasis floresceram da imaginação pujante do romancista, dramaturgo e autor de telenovelas Dias Gomes (1922-1999). Povoados fantásticos, personagens cativantes e narrativas que versam sobre o país e sua gente formam parte do universo do criador baiano – e se distribuem em obras memoráveis do teatro, do rádio, do cinema e da televisão. Por mais de cinco décadas, a sociedade brasileira pôde se ver – e rir de si mesma – a partir do olhar do escritor, que não se furtava em retratar, a cada novo texto, as temáticas sensíveis, os problemas sociais e os desmandos governamentais que testemunhava. Abordagens que inseriram Dias Gomes para sempre no imaginário popular e o converteram em um dos símbolos da resistência artística à censura, especialmente nos anos de ditadura civil-militar (1964-1985).
Da primeira obra teatral – A Comédia dos Moralistas (1937), escrita aos 15 anos – ao auge de popularidade vivido durante a exibição da novela Roque Santeiro (1985), cuja trama foi baseada na peça O Berço do Herói (1963), também de sua autoria, Alfredo de Freitas Dias Gomes desempenhou um papel primordial entre os nomes que inovaram a dramaturgia no Brasil. “Com seus trabalhos e visão crítica sobre a nossa sociedade, política e religião, Dias expandiu a teledramaturgia nacional a um patamar nunca pensado antes dele. Foi por causa de nomes como o seu que intelectuais e academia passaram a respeitar as novelas como manifestação popular de qualidade”, aponta o escritor e crítico de TV Nilson Xavier.
O impacto das obras do autor no gênero televisivo pode ser percebido ainda hoje. “A posição de Dias Gomes na TV brasileira é única, dada a sua importância e contribuição. Não vejo nenhum autor que tenha se equiparado a ele, mesmo quando foi copiado ou quando serviu de inspiração”, avalia Xavier.
26 PERFIL
DIAS GOMES
PRÓLOGOS INVENTIVOS
Poucos dias antes de estrear no teatro profissional –em fevereiro de 1942, com a comédia Pé-de-Cabra – o escritor precisou lidar, pela primeira vez, com inúmeros cortes em seu texto original. As restrições foram realizadas à sua revelia, na ocasião, pelos censores do Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP) do Estado Novo (1937-1945). Considerado subversivo, o espetáculo foi encenado, finalmente, com dez páginas a menos. À frente da montagem, estava o consagrado ator e diretor Procópio Ferreira (1898-1979).
Era o início de uma parceria curta, encerrada, anos depois, por divergências político-ideológicas. Na época, levado pelo amigo e também dramaturgo Oduvaldo Vianna (1892-1972), Dias Gomes assumiu a função de redator na Rádio Panamericana, em São Paulo. Abraçou a tarefa com paixão, e escreveu centenas de adaptações
de clássicos da literatura para programas de radioteatro. Passaria, ainda, por outras emissoras, como as rádios Tupi-Difusora e Bandeirantes. Teve vários romances publicados ao longo da década: Duas Sombras Apenas (1945); Um Amor e Sete Pecados (1946); A Dama da Noite (1947) e Quando é Amanhã (1948). E em 1991, foi eleito para a Academia Brasileira de Letras (ABL). Com o fim do Estado Novo, e filiado ao Partido Comunista, Dias Gomes passou a trabalhar, a partir de 1950, na Rádio Clube do Brasil, no Rio de Janeiro. No mesmo ano, casou-se com a escritora então iniciante Janete Clair (1925-1983). Foram 33 anos de união com aquela que se tornaria, a partir dos anos 1970, uma das maiores e mais respeitadas autoras de telenovelas do país, responsável por obras icônicas como Irmãos Coragem (1970), Selva de Pedra (1972) e Pecado Capital (1975).
Dias Gomes em 1989. Foto: Mônica Varella/Agência Estado
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PEDRAS NO CAMINHO
Ao retornar de uma viagem à antiga União Soviética – integrando uma delegação de artistas e intelectuais brasileiros, entre eles o escritor Jorge Amado (1912-2001) –, Dias Gomes foi demitido da Rádio Clube. O ano era 1953 e ele estava, novamente, sentindo os efeitos da perseguição do governo do presidente Getúlio Vargas (1882-1954) aos seus opositores. Afastado dos palcos por quase dez anos, retornou com a peça Os Cinco Fugitivos do Juízo Final (1954). Em 1956, foi contratado pela prestigiosa Rádio Nacional, onde permaneceria até 1964.
Em 1962, assinou o roteiro do filme O Pagador de Promessas, adaptação para o cinema de sua peça de mesmo nome, publicada em 1959. Com direção de Anselmo Duarte (1920-2009), a obra recebeu a Palma de Ouro no Festival de Cannes, na França, e esteve entre os cinco finalistas que concorreram ao Oscar de filme estrangeiro naquele ano. No Brasil, contudo, teve a exibição proibida em todo o território nacional até 1972.
Depois do golpe militar, em 1964, foi cassado e, outra vez, desligado do emprego, pouco antes do período ditatorial vigorar. Porém, havia se voltado novamente aos palcos, aproximando-se do Teatro Brasileiro de Comédia (TBC) (Leia mais no boxe Auroras em cena).
Foto: Arquivo Nacional/Fundo Correio da Manhã Dias Gomes em 1962. Foto: Acervo UH/Folhapress
Nathalia Timberg, Leonardo Villar e elenco da peça teatral O Pagador de Promessas, Teatro Brasileiro de Comédia, São Paulo, 1960.
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Ainda na década de 1960, Dias Gomes publicou outras peças consideradas obras-primas da moderna dramaturgia brasileira: A Invasão (1962), A Revolução dos Beatos (1962), O Berço do Herói (1963) e Dr. Getúlio, Sua Vida, Sua Glória (1968) – esta última escrita a quatro mãos com o poeta Ferreira Gullar (1930-2016). O tom contestatório e combativo de seus trabalhos seguia firme, assim como os órgãos de censura, que não saíam de seu encalço. “Em todas essas fases, Dias Gomes se destacou pela enorme coerência entre a sua vivência, sua militância política e a sua dramaturgia, que nunca se apartaram”, afirma a escritora e pesquisadora em artes cênicas Adélia Nicolete.
DESLUMBRES NARRATIVOS
A entrada na TV Globo, em 1969, já consagrado como dramaturgo, representou um desafio para o escritor, até então à vontade somente com as dinâmicas – e o ritmo – do teatro. Segundo o site do projeto Memória Globo, Walter Clark (1936-1997), ex-diretorgeral da emissora, sugeriu a Dias Gomes o pseudônimo de Stela Calderón. Somente assim pôde assinar a autoria de sua primeira novela, A Ponte dos Suspiros. No ano seguinte, escreveu a trama Verão Vermelho, de relativo sucesso.
Em 1975, adaptou sua peça O Berço do Herói para a televisão, com o nome de Roque Santeiro. Proibida de ir ao ar no dia de sua estreia – e com cerca de 40 capítulos já gravados – a censura da obra representou um episódio doloroso na carreira do dramaturgo. A novela seria liberada para exibição somente em 1985, com
a volta da democracia, para se tornar um fenômeno cultural e uma das maiores audiências do gênero, valendo-se, principalmente, da sátira e do humor refinado para encantar o público.
“Dias Gomes foi o autor ideal para o projeto ‘Novelas das 10’ da TV Globo (entre 1970 e 1979), que privilegiava as experimentações e ousadias na dramaturgia da emissora”, analisa Nilson Xavier. “Suas novelas Bandeira Dois (1971-1972), O Bem-Amado (1973), O Espigão (1974) e Saramandaia (1976) traziam frescor nas abordagens, tanto em temas (como crítica política), quanto em perfis de personagens, bem como rompimentos de linguagem e narrativa (como o realismo fantástico, inédito até então em teledramaturgia), seguido, depois, por outros autores, como Aguinaldo Silva”, pontua o crítico de TV.
Tais diferenças de linguagens foram tema da entrevista de Dias Gomes à TV Educativa do Rio de Janeiro, em 1985. Nas palavras do escritor: “A televisão tem uma linguagem própria e você tem que buscá-la. Fui para a TV no pior período da ditadura, em 1969, com toda a violência da censura. Tive que conviver com isso, encontrar meios de dizer alguma coisa sem que a censura percebesse. É aí que o humor entra, como um mecanismo de disfarce; uma coisa dita com humor passava [pela censura] porque parecia uma brincadeira – mas era muito mais contundente do que se você dissesse [a mesma coisa] de forma séria”, comentou o dramaturgo. “O humor, neste caso, é a capa que você veste”, definiu.
(Por Manuela Ferreira)
Regina Duarte e Lima Duarte em cena da novela Roque Santeiro, 1985.
Cena da novela O Bem-Amado, 1973.
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Foto: Divulgação/Globo Foto: Divulgação/Globo
Auroras em cena
Autor de uma das mais importantes obras do teatro brasileiro moderno, Dias Gomes possui um lugar único na consolidação da nova dramaturgia brasileira, iniciada com a montagem de Vestido de Noiva (1943), de Nelson Rodrigues (1912-1980). O processo de modernização ganha impulso a partir dos anos 1950, com a formação do Grupo de Teatro Experimental (GTE), de Alfredo Mesquita (1907-1986) e do Grupo Universitário de Teatro (GUT), de Décio de Almeida Prado (1917-2000), ambos instalados no Teatro Brasileiro de Comédia (TBC). “O TBC teve um papel muito importante ao trazer uma dramaturgia de fora para o país, e também porque nos trouxe o dramaturgo Jorge Andrade (1922-1984)”, detalha Adélia Nicolete, referindo-se ao autor da peça Os Ossos do Barão, um dos maiores sucessos do TBC.
Com o fechamento do TBC após o golpe militar de 1964, outras companhias se formaram e conquistaram relevância na cena teatral da época, como o Teatro Popular de Arte, de Maria Della Costa (1926-2015) e a Companhia Nydia Lícia-Sérgio Cardoso.
Em 1953, com a fundação do Teatro de Arena de São Paulo pelo ator e diretor José Renato (1926-2011), o movimento de renovação teatral recebe um novo fôlego, sobretudo com a introdução de encenações brasileiras. “Dias Gomes, Lauro César Muniz, Oduvaldo Vianna Filho, o Vianninha (1936-1974), Gianfrancesco Guarnieri (1934-2006), Chico de Assis (1933-2015) e Renata Pallotini (19312021) não eram, necessariamente, um grupo. Mas cada um aliava a sua visão política e a sua militância na dramaturgia que faziam”, explica a pesquisadora.
São marcos deste período de modernização, ainda, as históricas montagens: Arena Conta Zumbi (1965) e Arena Conta Tiradentes (1967), escritas e dirigidas pelo dramaturgo Augusto Boal (19312009); o espetáculo O Rei da Vela (1967), publicado em 1933 por Oswald de Andrade (1890-1954) e levado aos palcos pelo Teatro Oficina, sob a direção de José Celso Martinez Corrêa; e as montagens musicais do Grupo Opinião, a exemplo de Se Correr o Bicho Pega, Se Ficar o Bicho Come (1966), de Oduvaldo Vianna Filho e Ferreira Gullar.
DIAS GOMES ESTEVE LADO A LADO COM OUTROS DRAMATURGOS À FRENTE DA MODERNIZAÇÃO TEATRAL DO PAÍS
Oficina
Renato Borghi em cena de O Rei da Vela, São Paulo, 1967.
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Foto: Acervo Teatro
Licões de brasilidade
CENTENÁRIO DE NASCIMENTO DO ESCRITOR É CELEBRADO COM O ESPETÁCULO O BEM-AMADO MUSICADO
Ao iniciar os trabalhos para a encenação da comédia O Bem-Amado Musicado, que fez temporada em agosto e setembro de 2022, no Sesc Santana, o diretor Ricardo Grasson se deparou, surpreso, com a atualidade da peça. “A Sucupira de Dias Gomes se funde com o Brasil de hoje, e nos vemos não dentro de uma obra de ficção, mas, sim, no cotidiano real de um país em que estão tentando subverter seus valores mais caros”, reflete Grasson. Na pele do prefeito desonesto Odorico Paraguaçu – um dos mais célebres personagens da dramaturgia brasileira – está o ator Cassio Scapin [Leia mais na seção Depoimento desta edição]. Na televisão, o personagem foi interpretado pelo ator Paulo Gracindo (1911-1955).
Sem fazer qualquer tipo de adaptação ou mudança ao texto original, o espetáculo insere um conjunto de canções à saga do governante que precisava de um defunto para inaugurar o novo cemitério da cidade. Coube ao cantor e compositor Zeca Baleiro e ao autor e diretor Newton Moreno a composição das letras e músicas, que abarcam ritmos como xote, bolero e repente. “As canções foram fundamentais para potencializar a história e confirmar a genialidade da obra. Dias tratava de assuntos como política, religião, misoginia e racismo de forma clara, lúcida e palatável, e isso fizemos questão de acentuar e fortalecer”, conta Grasson.
Para o diretor, a contribuição de Dias Gomes para a atual dramaturgia brasileira é perceptível através da maneira com a qual o autor enxergava e relatava a atualidade, o cotidiano do ser. “Ele era um homem essencialmente de teatro, mas que abriu portas para dezenas de novos autores e novas formas de contar histórias ao falar do Brasil e dos brasileiros, das suas tipicidades, cultura, influências musicais e pluralidade religiosa, por exemplo”, arremata.
Foto: Matheus José Maria
Ilustração: Ricardo Cammarota
Elenco do espetáculo O Bem-Amado Musicado. São Paulo, 2022.
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Desvario modernista
MISTURA DO BRASIL COM O EGITO DÁ O TOM À EXPOSIÇÃO QUE SE VOLTA PARA OUTRAS PERSPECTIVAS HISTÓRICAS 100 ANOS APÓS A SEMANA DE ARTE MODERNA
No Dicionário Houaiss, o verbo “desvairar” aparece com múltiplos significados: cair em desvario, iludir; exaltar-se. Esse conceito, que mistura delírio e fúria, também está presente no livro de poemas Pauliceia Desvairada (1922), no qual o escritor Mário de Andrade [Leia o Perfil Homem-Multidão, publicado na Revista E nº 306, de abril de 2022] reforçou o espírito da Semana de Arte Moderna. Passados 100 anos, o desatino de Mário, que propôs a renovação da arte brasileira, está mais vivo e lúcido do que nunca. É ele que batiza a exposição Desvairar 22, em cartaz no Sesc Pinheiros até 15 de janeiro de 2023.
Ao som da marchinha de carnaval Allah-la Ô (1941), de Antônio Nássara e Haroldo Lobo, o público adentra a mostra, composta por uma miscelânea artística dividida em quatro núcleos: Saudades do Egito, Os Ossos do Mundo, Meios de Transporte e Índios Errantes. Reúnem-se nesses ambientes mais de 270 itens, entre pinturas, esculturas, fotografias, textos, vídeos e músicas, além de um sarcófago egípcio original, com mais de 5 mil anos – vindo do Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo (MAE-USP) e disposto no centro da exposição. Segundo o trio de curadores Marta Mestre, Veronica Stigger e Eduardo Sterzi, foram escolhidas duas imagens fundamentais: a primeira é a do Egito mítico e delirante, invocado nas artes como “uma espécie de alegoria do próprio inconsciente do tempo na sua busca por outra origem e outra história”.
Para quem vem de fora, essa mistura do Brasil com o Egito traz, além do sarcófago, fotos da viagem de Dom Pedro II pelo país do nordeste africano, em 1871, e também da ida de Tarsila do Amaral com o então marido Oswald de Andrade ao berço das pirâmides, em 1926. As referências ainda extravasam o espaço expositivo e chegam ao muro de entrada da unidade, onde o desenho de uma esfinge “cansada”, assinada pela cartunista Laerte, diz: “Decifra-me outra hora”. Por ora, nada de devorar, mas de se desvairar.
Macunaíma (2015), de Fernando Lindot. Óleo sobre tela.
Reprodução fotográfica: José Lima e Laise Guedes
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GRÁFICA
Exunautas (2022), de Gabriel Haddad.
Foto: Adriana Vichi
Ê, FARAÓ!
Aberta à visitação em 27 de agosto, a exposição Desvairar 22 propõe, entre fatos e imaginação, novos olhares e narrativas mais inclusivas e diversas para acontecimentos de repercussão histórica. A mostra integra a ação em rede do Sesc São Paulo Diversos 22 – Projetos, Memórias, Conexões, que marca o centenário da Semana de Arte Moderna e o bicentenário da Independência do Brasil. Foi também em 1922 que ocorreu a primeira transmissão de rádio no país e quando foi descoberta a tumba do faraó Tutancâmon, que reinou no Egito entre 1336 e 1327 a.C.
SERVIÇO
Exposição Desvairar 22
local: Sesc Pinheiros, Rua Paes Leme, 195 – Pinheiros, São Paulo.
“Ao serem hierarquizadas, seja pelo recorte temático ou pela alegada importância, histórias que contrariem o status quo são, em geral, omitidas ou têm sua relevância questionada. Por outro lado, é com o distanciamento temporal e com a mobilização inquieta de distintas gerações de vozes silenciadas que outras perspectivas históricas podem confrontar as versões tidas como oficiais. Dessa forma, emergem pessoas e situações fundamentais para o entendimento dos processos que nos conduziram até as condições sociais atuais”, afirma Danilo Santos de Miranda, diretor do Sesc São Paulo.
visitação: Até 15 de janeiro de 2023. De terça a sábado, das 10h30 às 21h. Domingos e feriados, das 10h30 às 18h.
Há recursos de acessibilidade disponíveis, como obras táteis, libras e audiodescrição para cegos, e tablets para surdos.
Mais informações: www.sescsp.org.br/pinheiros e bit.ly/desvairar22-pinheiros Entrada gratuita.
MOSTRA DESVAIRAR 22 TAMBÉM MARCA O CENTENÁRIO DE DESCOBERTA DA TUMBA DO FARAÓ TUTANCÂMON
O público pode ver um sarcófago egípcio original, disposto no centro da exposição, cuja montagem circular tem seis vias a serem percorridas.
Foto: Ricardo Ferreira
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Acervo Fundação Biblioteca Nacional
Dom Pedro II, D. Teresa Cristina Maria e comitiva nas pirâmides do Egito, em 1871.
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Reprodução fotográfica: Adriana Vichi Foto: Adriana Vichi Grande pyramide, V. Penasson (1872). Fac-símile.
Chuva Oblíqua, Fernando Pessoa (1914). Fac-símile
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Pastor Egípcio (1887), de Honório Esteves. Óleo sobre tela.
Reprodução fotográfica: José Lima e Laise Guedes
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Saravá, meu pai, Ramsés (2020), de Gabriel Haddad e Leonardo Bora. Lápis, caneta nanquim e aquarela.
Reprodução fotográfica: José Lima e Laise Guedes
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Capa da artista Tarsila do Amaral para o livro Pau-Brasil (1925), de Oswald de Andrade. Fac-símile.
Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin/USP. Reprodução fotográfica: Adriana Vichi
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Brasileirinho (1980), de Flávio Império. Acrílica sobre tela.
Coleção particular/Reprodução fotográfica: José Lima e Laise Guedes
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Bicho com triângulo (1930), de Tarsila do Amaral. Grafite sobre papel.
Coleção particular/Reprodução fotográfica: José Lima e Laise Guedes
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Obra sem título, de Oswald de Andrade (sem data).
Reprodução fotográfica: Adriana Vichi
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Artista Desconhecido, Vaso, c. 3000 a.C.
Acervo Museu de Arqueologia e Etnologia/USP. Foto: Carol Quintanilha
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Kãniatã-no (1982), de Eduardo Viveiros de Castro.
Reprodução fotográfica: Adriana Vichi
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Cunhatain, Antropofagia musical (2018), de Denilson Baniwa.
Foto: DuHarte
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Natureza morta 1 (2016), de Denilson Baniwa. Fotografia digital.
Dedinhos (2021), de Ilê Sartuzi. Resina de poliéster e braçadeira.
Reprodução fotográfica: Adriana Vichi Foto: Adriana Vichi
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Farra do latifúndio (2022), de Vivian Caccuri.
Reprodução fotográfica: José Lima e Laise Guedes
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Sarcófago, artista desconhecido, 3000 a.C.
Acervo Museu de Arqueologia e Etnologia/USP. Foto: Carol Quintanilha
Ecos do jazz
Derivado de gêneros musicais como blues, ragtime e spiritual, o jazz surgiu no fim do século 19, no sul dos Estados Unidos, como canção de trabalho e lamento de negros escravizados em plantações de algodão às margens do rio Mississippi. Em suas raízes mais profundas, estão o protesto contra condições de vida opressoras, o improviso em meio à precariedade e a diversidade de sons, ritmos e influências.
Desde então, quando começou a ser exportado das comunidades de Nova Orleans para outras
partes do mundo, o jazz vem ampliando sua liberdade rítmica e fundindo-se a estilos, instrumentos e tradições culturais. Reinventa-se, a cada dia, em novos gêneros, subgêneros e sotaques, consolidando-se como uma música afrodiaspórica. O jazz chega ao século 21 com uma infinidade de derivações melódicas e harmônicas – nas quais interagem e se cruzam matrizes, memórias e experimentações –, como o soul jazz, afrojazz, cooljazz, freejaz, jazz latino, samba jazz, swing, bebop, fusion, afrobeat e até a bossa nova.
NASCIDO HÁ MAIS DE UM SÉCULO, NOS ESTADOS UNIDOS, O JAZZ SE REINVENTA, CONSOLIDANDO-SE COMO UMA MÚSICA AFRODIASPÓRICA, DIVERSA E COMBATIVA
Foto: Taba Benedicto
Sun Ra Arkestra em show para o festival Sesc Jazz, na Comedoria do Sesc Pompeia, em 2019.
MÚSICA
“Gosto de dizer que o jazz é um veículo globalizado da liberdade afro-americana”, afirma a flautista, cantora e compositora estadunidense Nicole Mitchell, que se apresentará neste mês no Sesc Pompeia, com o grupo Black Earth SWAY, durante a 4ª edição do Sesc Jazz [Leia mais no boxe Sonoridades múltiplas]. Ela prefere dizer, porém, que faz “música criativa”, na qual há possibilidades ilimitadas e se pressupõe uma “aventura musical”. “A maioria dos artistas não gosta mais de ser definida por gênero, pois as influências globais atingiram todas as músicas. Nosso quarteto, por exemplo, celebra as tradições culturais afro-americanas e suas experimentações. Mesclamos o som do blues com funk, jazz experimental e mitologias. Além disso, muito do jazz latino é influenciado por ritmos africanos, então, todos eles são primos”, acredita.
Para a cantora peruana Susana Baca, três vezes ganhadora do prêmio Grammy Latino e ex-ministra da Cultura de seu país, o DNA do jazz está na busca de uma sonoridade rítmica de alforria, de libertação e também de rebelião. “São os sons da liberdade. Seus ritmos são códigos culturais de diferentes povos e suas influências vêm da capacidade que cada um tem de ouvir o outro e de
integrar esse outro em si mesmo”, define. Ela acrescenta que o jazz exigiu muita mistura para se tornar universal. “Hoje, é impossível pensar que ele pertence aos afroamericanos: é de todos. Inclusive, há um jazz latino e, creio, também um jazz brasileiro”, avalia a cantora, que já foi presidente da Comissão de Cultura da Organização dos Estados Americanos (OEA).
De acordo com Baca, do alto de seus 78 anos e mais de meio século de carreira, o jazz peruano ainda está na fase embrionária. “Diria que ele acabou de se descobrir. Aqui, ele se apresenta como um misto de pretos, índios e brancos, e a influência do jazz africano, ao contrário de outros países da região (como Colômbia e Brasil), ainda é muito pequena”, analisa.
É em meio a toda essa fusão de referências e sons que as duas artistas – e muitas(os) outras(os), nacionais e estrangeiras(os) – preparam-se para subir ao palco e se conectar com seus fãs ao vivo, presencialmente, após um longo período de confinamento e contato remoto. Já o jazz, que sempre foi dinâmico, flexível e aberto a novas misturas, mais uma vez renasce e se reafirma como um gênero interseccional, combativo e sobrevivente por natureza.
Foto: The Robert Runyon
Photograph Collection/Public Domain
King Carter Jazzing Orchestra of Houston, Texas, cerca de 1921.
(Por Luna D’Alama)
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Produção na pandemia
PERÍODO DE CONFINAMENTO PELA COVID-19 INSPIRA REFLEXÕES E GERA NOVAS COMPOSIÇÕES
Nos últimos dois anos e meio, apesar das restrições impostas pela pandemia de Covid-19, as artistas Susana Baca e Nicole Mitchell, que se apresentam nesta edição do festival Sesc Jazz, continuaram compondo e produzindo. Baca revela que nesse período, que para ela foi de inquietude e solidão, lançou o disco A Capella: Grabado en Casa Durante la Cuarentena (2020), ao lado do marido e produtor executivo, Ricardo Pereira.
Por esse trabalho, conquistou seu terceiro Grammy Latino. “Fiz o álbum somente com a minha alma e com a tristeza de não poder me reunir com outros músicos. Gravamos os vídeos (de divulgação) com celular, vesti minhas melhores roupas, pela vida de tantos amigos que partiram”, relembra a artista peruana. “Queria sair melhor da pandemia, mais preparada e determinada. E, em 2021, lancei Palabras Urgentes”, conta. O novo disco discute temas como feminismo, liberdade, educação, e pretende ser uma forma de protesto para enfrentar os tempos difíceis da atualidade.
Já a flautista, cantora e compositora Nicole Mitchell dedica-se, desde março de 2020, à criação de música eletrônica e à escrita de um livro que publicará em breve, chamado Cartas de Mandorla. “Nele, peço à humanidade que redefina o paradigma do progresso para que possamos alcançar um mundo onde a tecnologia seja empática com toda (forma de) vida e onde possamos ter mais empatia uns pelos outros, mesmo com nossas diferenças”, explica.
Mitchell diz que o Black Earth SWAY, que ela integra ao lado de Coco Elysses, JoVia Armstrong e Alexis Lombre, está muito animado com as apresentações em São Paulo. “Será a estreia internacional do grupo, e mal podemos esperar para nos conectar com nossos primos no Brasil. Queremos dançar, rir, compartilhar nossas músicas e ser inspiradas pelo público”, antecipa. “JoVia e Coco são percussionistas muito influenciadas pelos ritmos brasileiros, então desejamos fazer conexões profundas com a plateia. Algo que realmente nos empolga é a diversidade da população brasileira”, ressalta.
Foto: Michael Jackson
A flautista, cantora e compositora estadunidense Nicole Mitchell também estará na programação do Sesc Jazz, com o grupo Black Earth SWAY.
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Sonoridades múltiplas
SESC JAZZ REÚNE 20 ARTISTAS EM 54 APRESENTAÇÕES, CONECTANDO SONS DAS AMÉRICAS, ÁFRICA E EUROPA
A 4ª edição do festival Sesc Jazz será realizada entre os dias 5 e 23/10, em sete unidades do Sesc São Paulo (Pompeia, Guarulhos, São José dos Campos, Jundiaí, Piracicaba, Ribeirão Preto e Presidente Prudente). O evento recebe 20 grupos que sobem ao palco 54 vezes, com uma programação que se abre para múltiplas escolas, tradições e suas poéticas sonoras, conectando Américas, África e Europa por meio de nomes já consolidados no cenário internacional, além de artistas das novas gerações.
Segundo Sérgio Pinto, gerente-adjunto do Sesc Pompeia, unidade responsável pela curadoria desta edição – ao lado da Gerência de Ação Cultural do Sesc São Paulo –, a programação deste ano é a que reúne mais artistas africanos. “Ela reflete um amadurecimento conceitual de questões que vêm aflorando desde 2018. Ainda fortalece um movimento, já presente nas edições anteriores, de pensar as manifestações musicais não apenas em seu componente estético, mas também político, considerando a diversidade, as questões de gênero, étnicas e o contexto geopolítico.”
Entre os destaques desta edição estão a presença feminina, que se apresenta de forma bastante contundente; a tradição da música brasileira, com espetáculos-homenagens a Laércio de Freitas e Airto Moreira; e tributos a álbuns como Lágrima/Sursolide Suíte, de Lelo Nazario, e Quarteto Negro, que completam 40 e 35 anos em 2022, respectivamente.
Outra novidade da 4a edição são os concertos das Orquestra Afrosinfônica e Orkestra Rumpilezz, ambas da Bahia, em um interessante contraponto aos projetos de Chicago, que também estarão presentes. “A Rumpilezz celebra o legado de seu maestro fundador, Letieres Leite, falecido em 2021 [Leia o Perfil O balé do mestre dos sons, publicado na Revista E nº 311, de setembro de 2022], por meio do universo artístico do pernambucano Moacir Santos, que terá parte de seu álbum de estreia, Coisas (1965), revisitado em arranjos singulares”, evidencia o gerente-adjunto do Sesc Pompeia.
Para conferir as informações sobre as apresentações, como horários, locais e venda de ingressos, acesse: www.sescsp.org.br/sescjazz
Destaques da programação
SESC GUARULHOS Exploding Star Orchestra (EUA)
Projeto que reflete uma das muitas faces musicais do compositor e cornetista Rob Mazurek. Paralelamente ao trabalho solo, Rob criou esse grupo que conecta ensembles de Chicago e São Paulo, com uma sonoridade mais eletrônica e batidas modernas. Dia 7/10, às 20h
SESC POMPEIA
Nicole Mitchell’s Black Earth SWAY (EUA)
Flautista e compositora que emergiu da cena musical de Chicago, nos anos 1990, Nicole é representante da cultura afro-americana experimental. No palco, é acompanhada pela banda composta por Coco Elysses, Alexis Lombre e JoVia Armstrong. Dias 8 e 9/10. Sábado, às 21h30, e domingo, às 18h30.
Susana Baca (PER)
Cantora e pesquisadora da cultura afro-peruana, Susana representa, por meio de sua obra, um relevante recorte da afrolatinidade. Ganhadora do Grammy Latino e ex-ministra da Cultura do Peru, mostra no palco tradições afro-americanas, como marinera e cumbia Dias 15 e 16/10. Sábado, às 21h30, e domingo, às 18h30.
Especial Laércio de Freitas Moderno e Eterno (BRA)
Registro de parte do legado de Laércio de Freitas, um dos mais importantes compositores, pianistas e arranjadores do Brasil, não à toa chamado de “gênio” por Radamés Gnattali e declarado por Cristovão Bastos como seu ídolo. Dias 22 e 23/10. Sábado, às 21h, e domingo, às 18h.
SESC RIBEIRÃO PRETO Kokoroko (REU)
Parte da efervescente cena de jazz inglesa, o coletivo londrino apresenta um repertório que destaca a relação entre música e cultura africana. Formam o grupo: Sheila MauriceGrey, Cassie Kinoshi, Richie Seivwright, Onome Edgeworth, Ayo Salawu, Tobi AdenaikeJohnson, Yohan Kebede e Duane Atherley. Dia 21/10, às 20h
No Theatro Pedro II, centro de Ribeirão Preto (SP).
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Foto: Nina Manandhar
Ilustrações: Luyse Costa
56 EM PAUTA
INFORMAÇÃO 3 DESINFORMAÇÃO
Com o avanço das tecnologias, o aperfeiçoamento de algoritmos e o uso cada vez mais intenso de redes sociais para se informar, manifestar opiniões e trocar conteúdos, o alerta “isso pode ser fake news” precisa apitar constantemente. Não basta incorporar a expressão em inglês, que na nossa língua significa “notícias falsas”, e comentar esse assunto nas rodas de conversa do trabalho, de casa ou da escola. Porque, mesmo com o avanço de discussões levantadas na esfera pública e privada, grande parte da população brasileira ainda não sabe distinguir informação de desinformação. E mesmo que tenha crescido o número de pessoas que adotaram o hábito de questionar e verificar o contexto, a data, a autoria e o tom de notícias compartilhadas nas redes sociais e em grupos de WhatsApp, dados recentes divulgados pelo Poynter Institute – centro de referência nos estudos sobre jornalismo e desinformação – mostram que 43% dos brasileiros afirmam ter encaminhado mentiras, ainda que sem intenção. Tendo em vista esse cenário, a importância da educação midiática bate à porta da sociedade. Mas, onde deve se dar essa educação? No ambiente escolar? Ou é possível pensar em outros espaços formativos? Neste Em Pauta, a jornalista Daniela Machado, uma das coordenadoras do EducaMídia, programa de educação midiática do Instituto Palavra Aberta, e a doutora em Educação Grácia Lopes Lima, sócia-fundadora do Instituto GENS de Educação e Cultura, compartilham reflexões e caminhos para o combate à desinformação e ao fenômeno das fake news.
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Quem nos salvará das fake news?
POR DANIELA MACHADO
O universo da informação, extraordinariamente expandido pela chegada da internet, traz enormes oportunidades, mas também riscos e desafios, como a proliferação de fake news. Nesta era de superabundância de dados, mensagens, posts, áudios e vídeos, produzidos e compartilhados à exaustão, a própria ideia do que significa ser alfabetizado ganha contornos adicionais, com a necessidade de ler o mundo de forma ainda mais reflexiva. Novos letramentos tornam-se essenciais para que toda a população consuma e produza informações com responsabilidade e, assim, participe plenamente da sociedade conectada.
Poucas décadas atrás, apenas grupos restritos estavam aptos a produzir e disseminar informações – caso das editoras de livros e enciclopédias, e dos veículos profissionais de comunicação, entre alguns exemplos. A maioria da população era meramente espectadora, a quem cabia consumir passivamente o conteúdo selecionado, e produzido, por essa comunidade. A comunicação era “de poucos para muitos”.
Com a internet e, principalmente, as redes sociais, vivenciamos uma explosão no número de pessoas com possibilidade de criar e compartilhar conteúdo
com uma audiência real (que, em alguns casos, pode chegar à casa dos milhões). Este “admirável mundo novo” é claramente poderoso ao dar vez e voz a tantas pessoas. Mas, também é repleto de armadilhas, à medida que incontáveis blogs, plataformas colaborativas de publicação, sites, posts e mensagens anônimas ainda servem de veículo para a disseminação de informações pouco ou nada confiáveis.
Um claro exemplo de como conteúdos de qualidade convivem, lado a lado, com dados sem evidências foi visto durante a pandemia da Covid-19. Não faltaram, por exemplo, fake news sobre a eficácia e a segurança das vacinas. O ambiente tornou-se tão preocupante que a Organização Mundial da Saúde (OMS) alertou, ainda no início de 2020, para um duplo perigo: o da pandemia em si e o do que chamou de infodemia. O termo está relacionado ao excesso de informações durante o surto de uma doença, o que causa confusão e pode levar a comportamentos arriscados (bit.ly/ infodemia-conceito). Para a OMS, a infodemia também pode gerar desconfiança da população nas autoridades de saúde e prejudicar a resposta pública à enfermidade.
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EM PAUTA
EDUCAÇÃO MIDIÁTICA
É preciso reconhecer que ter acesso a mais fontes de informação é algo desejável – somos expostos a novos pontos de vista e vozes que antes tinham baixo ou nenhum alcance. Hoje, especialistas interagem com a população por meio das redes sociais, descomplicam dados científicos e fazem com que mensagens importantes cheguem a um número maior de pessoas. Isso acontece nas mais diversas áreas, não apenas da ciência. Qualquer pessoa com possibilidade de se conectar à internet pode participar dessa imensa troca de saberes.
do jornalismo, das fronteiras da liberdade de expressão e do direito à informação. Incorpora, portanto, ingredientes de cidadania digital, de educação política e de participação cívica.
NOVOS LETRAMENTOS
TORNAM-SE ESSENCIAIS
Por outro lado, agentes mal-intencionados aproveitam o ambiente de pluralidade de vozes para produzir e espalhar desinformação, discurso de ódio e preconceitos. Por isso, a habilidade de “separar o joio do trigo” e avaliar a confiabilidade das informações que merecem nossa atenção torna-se vital. O hábito de interrogar a informação que chega até nós, ao invés de simplesmente consumi-la, está no centro desse processo e deve ser praticado por toda a sociedade. É isso que defende a educação midiática, com o desenvolvimento de um conjunto de competências para consumir e produzir mídias de maneira reflexiva e responsável.
PARA QUE TODA A
POPULAÇÃO CONSUMA E
PRODUZA INFORMAÇÕES
É papel de todos contribuir para que o ambiente informacional seja mais saudável. Mas, para que essa contribuição seja efetiva, precisamos que a educação midiática seja reconhecida como um direito e efetivamente praticada. Não só nas escolas, mas também em ambientes informais de educação – como centros comunitários, bibliotecas e cursos extracurriculares –, é possível desenvolver projetos que ajudem a sociedade a entender, e refletir, sobre as oportunidades e os riscos da internet. É nisso que o EducaMídia, projeto desenvolvido pelo Instituto Palavra Aberta, vem trabalhando desde 2019.
COM RESPONSABILIDADE
E, ASSIM, PARTICIPE
PLENAMENTE DA
SOCIEDADE CONECTADA
Muito tem se falado sobre garantir educação digital para diferentes grupos da população – de crianças pré-alfabetizadas a idosos.
Esse é um conceito guarda-chuva que abriga habilidades que vão desde a análise sobre a confiabilidade das mensagens que recebemos, como forma de combater as fake news, até a fluência para usar uma ampla gama de ferramentas digitais para a autoexpressão. Inclui ainda o entendimento do papel
Precisamos estar atentos para que o termo educação digital seja compreendido de maneira mais ampla, para contemplar não apenas o ensino de como usar as ferramentas tecnológicas, mas, principalmente, quais são as implicações desse uso e como torná-lo mais fortalecedor. Muita coisa está em jogo. Dependemos de informações para tomar decisões a todo momento em nossas vidas – desde as mais corriqueiras, como a escolha de um produto, até as mais complexas e que têm impacto em toda a comunidade, como definir em quem vamos votar. E, quanto mais confiáveis e de qualidade forem essas informações, melhores tendem a ser as nossas decisões.
DANIELA MACHADO é uma das coordenadoras do EducaMídia, programa de educação midiática do Instituto Palavra Aberta. É jornalista, com experiência de 20 anos como repórter e editora em importantes veículos de comunicação, como a agência de notícias Reuters e o jornal Valor Econômico. Coautora do Guia da Educação Midiática (educamidia.org.br/guia), lançado em 2020.
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Educação midiática em tempos de desinformação
POR GRÁCIA LOPES LIMA
Realizar ações que promovam educação midiática vem sendo apontada como uma grande necessidade, dada a disseminação cada vez mais rápida de notícias, em forma de áudio, vídeo e texto escrito. Por consequência, não são poucos os especialistas e as publicações que enfatizam a urgência de formação, em particular dos mais jovens, para que aprendam a distinguir informações falsas de verdadeiras e, assim, colaborem na promoção de uma leitura crítica da mídia em suas escolas e comunidades.
Essa mesma expectativa e esperança sobre o papel das novas gerações estão presentes no documento oficial do Ministério da Educação, a Base Nacional Comum Curricular (BNCC), que estabelece como deve acontecer a Educação em todas as escolas brasileiras, particulares e públicas, da educação infantil até o ensino médio. Em poucas palavras, o que deve acontecer nesse período de formação objetiva é que todas as crianças e adolescentes, no futuro, sejam pessoas adultas capazes de colaborar ativamente com a transformação da sociedade, de modo que ela se torne justa, democrática e inclusiva.
Para o alcance desse objetivo, a BNCC define 10 competências, isto é, o que é essencial aprender e ser ensinado na escola. Uma delas, a quinta, relaciona-se diretamente ao que passou a ser conhecido como educação midiática. Diz lá: “compreender, utilizar e criar tecnologias digitais de informação e comunicação de forma crítica, significativa, reflexiva e ética nas diversas práticas sociais (incluindo as escolares) para se comunicar, acessar e disseminar informações, produzir conhecimentos, resolver problemas e exercer protagonismo e autoria na vida pessoal e coletiva.”
PERSPECTIVA HISTÓRICA
Se voltarmos um pouco na História, veremos que a preocupação com imposturas e facilidade para arquitetar ciladas de alguns sobre outros, senão sobre a maioria das pessoas, desrespeitando direitos humanos fundamentais, não vem de hoje. As tecnologias, embora não tão sofisticadas e, portanto, não tão rápidas como as da atualidade para espalhar desinformação (eufemismo para mentira), há algumas décadas também exigiam formação de adultos reflexivos e críticos, similar à que atualmente está incorporada à educação formal.
O argentino-uruguaio Mário Kaplún (1923-1998), profissional do rádio, da TV e da publicidade, foi um desses pensadores engajados que, não somente sonhava
com a transformação social, como buscava promover a conscientização da população sobre a invasão cultural importada dos Estados Unidos, ardilosamente difundida pelos meios massivos de comunicação na maior parte dos países latino-americanos. Destaque para a obra El comunicador popular (1985), uma de suas publicações sobre questões que unem Educação e Comunicação, hoje conhecidas como Educomunicação.
A experiência de Kaplún logo mostrou que o tom denuncista, embora esclarecedor, em nada mudou os hábitos de consumo da mídia por uma razão muito simples: a televisão era o entretenimento mais barato para os que frequentavam os cursos de “leitura crítica”. Por essa razão, então, com a mesma finalidade educativa, ele criou, usando fitas K7, uma prática de intercâmbio de áudio entre grupos de pequenos agricultores, organizados em sindicatos e cooperativas, de diferentes regiões. Assim, deslocando-se do papel de receptores para o de produtores de comunicação, os trabalhadores não só identificaram pontos comuns entre eles, como conseguiram planejar ações conjuntas em benefício de um bem comum.
Está aí, nessa metodologia criada pelo precursor do novo campo do conhecimento, chamado Educomunicação: uma das formas mais eficazes de formar pessoas adultas, independentemente de sua formação escolar, para entender que, dependendo de quem produz a comunicação – que nunca é neutra –, ela pode ser um instrumento poderoso de organização social.
RESPONSABILIDADE DE TODOS
Transpondo o exposto para a atualidade, é impossível não causar incômodo que um dos maiores apelos da atualidade seja dirigido quase que exclusivamente a usuários de redes sociais para que não passem para frente o que não é fato. Quando todas as pessoas são cobradas para que sejam reflexivas e éticas ao postarem vídeo, áudio ou foto nas redes sociais, por que são poupados os veículos de comunicação de audiência nacional, bem como a quem a eles se prestam, fazendo parecer para um número significativo de espectadores, que sempre dizem a verdade?
Retomando a sempre oportuna análise sociológica de Pierre Bourdieu (1930-2002), o mecanismo estrutural da televisão (hoje, também, da internet) leva quem opera à frente ou atrás das câmeras a ser tanto manipulador, quanto manipulável, ao “fabricar” notícias. Manipulador porque ao aceitar, por exemplo, dar destaque a notícias
60 EM PAUTA
sensacionalistas sobre crimes ou dramas, distrai o espectador e oculta coisas que o incapacitam de exercitar seu direito de cidadão.
Dentre outros mecanismos de controle da informação, quem opera à frente ou atrás das câmeras contribui para transformar o que poderia ser “um extraordinário instrumento de democracia direta” em um “instrumento de opressão simbólica”.
Manipulável porque, com frequência, é conivente com esse jogo, e, profissionalmente, sustenta e aprimora tal opressão. Além disso, porque revela que se conforma às regras políticas e econômicas, definidoras do papel que lhes cabe nos meios de produção e divulgação de informação ou de desinformação.
Por esses e tantos outros motivos é que as atividades pautadas pelos princípios da Educomunicação, como sinônimo de Educação pelos Meios de Comunicação, necessariamente acontecem de forma coletiva. Isso porque entendemos que a necessária aprendizagem de leitura crítica da mídia se insere num contexto muito mais amplo: o de tantas outras leituras reflexivas de que precisamos, da infância ao final de nossos dias, para aprendermos a “ler o mundo” e, por consequência, para nos tornarmos sujeitos
de conhecimento, como sabiamente nos fala Paulo Freire, em A importância do ato de ler (1988).
A produção coletiva de comunicação se diferencia da fabril, na qual cada pessoa executa apenas um pedaço do trabalho, sem se responsabilizar pelo todo. Como se trata de uma proposta de educação pelos meios de comunicação, as produções coletivas permitem a cada participante se reconhecer tanto no produto final, quanto no processo de concepção e execução. Essa relação intensa escancara, quer se queira ou não, os conceitos que efetivamente sustentam a ação de cada participante, tais como ética, respeito à diversidade de toda ordem e cooperação.
Por extensão, quando esse modo de produzir comunicação se transforma em objeto de reflexão, acreditamos ser possível dar início a um novo modo de relacionamento social, onde o trabalho – consideremos assim toda produção de comunicação realizada – não contribui para fragilizar e alienar o homem de si mesmo. Antes, fornece elementos para que, analisando como o realizamos, entendamos o grau de dedicação que empenhamos nessa proposta que parte da autoconvocação, e não servil, do cumprimento de ordens.
GRÁCIA LOPES LIMA é mestra em Ciências da Comunicação e doutora em Educação pela Universidade de São Paulo. É sócia-fundadora do Instituto GENS de Educação e Cultura, uma das cocriadoras do projeto Cala-boca já morreu – porque nós também temos o que dizer!, organização não governamental, referência desde 1995 em Educomunicação, e do projeto Trecho 2.8 - criação e pesquisa em comunicação, coletivo que, desde 2010, reúne adultos em situação de alta vulnerabilidade social e usuários da saúde mental para também produzirem mensagens do seu próprio ponto de vista.
A NECESSÁRIA APRENDIZAGEM DE LEITURA CRÍTICA DA MÍDIA SE INSERE NUM CONTEXTO MUITO MAIS AMPLO: O DE TANTAS OUTRAS LEITURAS REFLEXIVAS DE QUE PRECISAMOS, DA INFÂNCIA AO FINAL DE NOSSOS DIAS, PARA APRENDERMOS A “LER O MUNDO”
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CHECAR para informar
COORDENADOR DE JORNALISMO DA AGÊNCIA
LUPA PRIORIZA O COMBATE A CONTEÚDOS
FALSOS NO AMBIENTE DIGITAL
Atrajetória acadêmica e profissional do curitibano Francisco Marés – ou Chico Marés, como é conhecido – começou no curso de jornalismo da Universidade Federal do Paraná (UFPR), em 2006. Desde então, ele passou por veículos como o jornal Gazeta do Povo, onde foi repórter de política durante cinco anos, e o portal POP, no qual atuou como editor de esportes. Em 2016, mesmo ano em que ganhou o Prêmio ANJ (Associação Nacional de Jornais) de Liberdade de Imprensa (com mais quatro colegas, por uma investigação sobre o Poder Judiciário paranaense), Marés se mudou para a Inglaterra, onde fez um mestrado em jornalismo interativo pela Universidade de Londres (City), com foco em dados e redes sociais. Na volta, foi contratado como repórter da Lupa, agência de checagem de notícias e de combate à desinformação criada em 2015, no Rio de Janeiro. Foi promovido a editor e, em 2021, a coordenador de redação, cargo que ocupa atualmente. Além de acompanhar o noticiário, verificando informações falsas ou imprecisas, corrigindo-as e divulgando os dados corretos, a Lupa tem uma frente de educação midiática, com oficinas e treinamentos para ensinar técnicas de apuração e alertar sobre os riscos das narrativas falsas que circulam nas redes sociais. Neste Encontros, o jornalista fala sobre os riscos da desinformação no ambiente digital e os desafios para combatê-la.
FAKE NEWS OU DESINFORMAÇÃO
A gente [na Lupa] não gosta muito de usar o termo fake news, porque ele é um pouco limitado e, ao mesmo tempo, muito amplo. Parece contraditório, mas vou explicar. É limitado, porque surge no contexto das eleições de 2016 nos Estados Unidos, e tratava de conteúdos que imitavam notícias, que pareciam sites de verdade, mas eram completamente inventados. Naquele contexto, esse termo se popularizou para se referir a algo que é muito mais amplo: a desinformação. Ela não necessariamente vai vir no formato de uma notícia, de “pseudojornalismo”. Vai vir também como um vídeo, uma foto, uma montagem, como um card com texto nas redes sociais, uma mensagem de WhatsApp, e numa dezena de outros formatos. Então, ao chamar fake news, você acaba limitando o espectro da desinformação.
CONTEÚDOS FALSOS
O que é a desinformação? É um conjunto de informações falsas. Pode ser um conteúdo falso, uma grande narrativa falsa, mas que é pensada deliberadamente para enganar usuários, especialmente nas redes sociais, a partir de uma narrativa falsa. Tem finalidades diferentes: pode ser para obter ganhos políticos ou financeiros; golpes para você experimentar [por exemplo, um suplemento alimentar], além de ofertas falsas. Sempre que o governo lança algum auxílio, já vem alguém enviando uma mensagem falsa no WhatsApp para tentar enganar outros e roubar dados. Enfim, há muitos formatos possíveis de desinformação, mas, basicamente, são conteúdos manipulados.
Foto: Arquivo pessoal
62 ENCONTROS CHICO MARÉS
INTENCIONAL OU NÃO
Se um conteúdo é [ou parece] falso, a gente vai verificar, sem se deter muito para analisar se foi intencional ou não. Nos Estados Unidos, eles têm conceitos mais bem trabalhados, que são misinformation e disinformation [a diferença entre eles é justamente a questão da intencionalidade. No primeiro, ela não está presente, mas no segundo, sim]. A misinformation abrangeria até um erro jornalístico honesto, por assim dizer. O fato é que se desinforma mesmo sem intenção, e a gente verifica e contextualiza.
MÉTODOS DE TRABALHO
[No período de campanha eleitoral,] além de checar desinformação, a gente fez a checagem de entrevistas e discursos, principalmente dos presidenciáveis e candidatos aos governos de São Paulo e Rio de Janeiro. Fora do período eleitoral, a gente tem uma reunião semanal para ver o que vai fazer naquela semana, o que há de coisas mais amplas de reportagem, checagem de discurso e pautas que não são de verificação de desinformação. [Além disso,] a gente tem um monitoramento constante de redes sociais para pautas de verificação. É algo que a gente vê toda hora. Temos uma parceria com o grupo Meta, pela qual nos passam informações de possíveis conteúdos falsos que estão viralizando no Facebook e no Instagram. A gente também usa uma ferramenta deles para complementar esse monitoramento, além de um “disque-denúncia” no WhatsApp. Geralmente, um repórter da Lupa vai ver quais são os elementos que a gente tem que checar, e vai atrás de fontes que vão confirmar se aquilo é verdadeiro ou provar que é falso. A partir do momento que ele escreve a matéria e descreve a checagem, o editor revê tudo o que ele já fez, todo o método utilizado e as fontes. Isto é uma coisa que a gente deixa bem clara na metodologia: não dá para deixar de mencionar de onde você tirou [uma informação ou explicação]. Você tem que ter uma fonte para aquilo e um link direto para a fonte. Cada desinformação exige um determinado approach [abordagem]. Há um jeito de verificar uma foto falsa, que não é a mesma de avaliar um texto ou um vídeo falso.
EDUCAÇÃO MIDIÁTICA
Esse é um ponto fundamental para a Lupa. A gente consegue trabalhar a checagem dos fatos dentro de uma escala limitada. Não vamos resolver sozinho esse problema [da desinformação]. Para superá-lo, você tem que ter um esforço muito grande, não só do jornalismo, mas também das plataformas de redes sociais. Elas devem ter medidas mais efetivas para bloquear e desencorajar esse tipo de produção. É preciso pensar, também, na sociedade em geral, no leitor. Muita coisa precisa mudar, e uma das mais fundamentais é justamente essa questão da educação [midiática]. A tendência, geralmente, é achar que aquilo com que eu concordo é verdadeiro e aquilo do que eu discordo é falso. As pessoas precisam aprender a lidar com a internet, entender como se relacionar nesse meio e se comunicar de forma saudável.
A TENDÊNCIA, GERALMENTE, É ACHAR QUE AQUILO COM QUE EU CONCORDO É VERDADEIRO
E AQUILO DO QUE DISCORDO É FALSO
Foto: StartupStockPhotos/Pixabay
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ELEIÇÕES E DESINFORMAÇÃO
Assim como a pandemia tem sido um solo fértil para a desinformação, as campanhas eleitorais apresentam muita desinformação. Esta tem sido nossa prioridade: verificar conteúdos que tentam descredibilizar o processo eleitoral e as eleições. Essa é a desinformação mais grave no atual momento. A gente tem uma parceria com o TSE [Tribunal Superior Eleitoral], com o programa Fato ou Boato [do qual também fazem parte veículos como UOL, Estadão, AFP (Agence FrancePresse), E-farsas, Comprova, Aos Fatos, Fato ou Fake (do g1) e Boatos.org]. Muitos estão trabalhando juntos com o TSE para monitorar esse tipo de desinformação que tenta descredibilizar [instituições] e enganar o leitor ou dissuadi-lo de alguma forma. E a gente está muito mais preparado hoje do que em 2018.
DEEPFAKE
A deepfake [técnica de síntese de imagens e sons baseada em inteligência artificial e usada para combinar vídeos já existentes com novas falas e imagens, reproduzindo a voz e o rosto da pessoa] é uma ameaça gravíssima, que pode ser muito difícil de verificar. É uma ameaça no horizonte que vai estar sempre pairando, mas a gente tem que continuar botando esse tema no ar. No Brasil, a gente tem também o [jornalista e influenciador digital] Bruno Sartori, que popularizou muito esse conceito de deepfake para o humor. Mas, a gente tem lidado com outros tipos de falsificação [de vídeos], de edição, em que eu falo A, B e C, e você corta o B. Isso, inclusive, tem sido muito mais preocupante, danoso e tem viralizado mais que as deepfakes.
QUESTÃO DE TEMPO
A gente sempre teve desinformação, mas um fenômeno muito particular e específico é a desinformação nas redes sociais. O que aconteceu principalmente nos últimos 10 anos foi, primeiramente, a expansão em massa das redes. Houve uma espécie de quebra em relação ao emissor na comunicação, uma mudança muito radical. Isso, em si, não é uma coisa ruim, é ótima, na verdade. As pessoas agora têm mais capacidade de expressar o que pensam, suas opiniões, o que veem, e de se contrapor ao discurso oficial. Mas, isso também abriu uma janela para pessoas mal-intencionadas. Esse fenômeno, [que se tornou] um problema muito forte dentro das redes a partir de 2012, 2013, quando o Facebook [atual Meta] se popularizou no Brasil. O problema foi crescendo até explodir, e a resposta institucional – tanto das empresas de redes sociais quanto da própria imprensa e do aparelho estatal – é muito mais lenta. Hoje, no entanto, há uma resposta mais forte, tanto das plataformas, quanto da sociedade em geral. E há um ceticismo muito maior do usuário com a internet. Então, acho que não vamos ser para sempre reféns da desinformação no ambiente online, pelo contrário: acho que será uma questão pontual e contextual nesse período de adaptação da sociedade às redes sociais. Sou razoavelmente otimista no longo prazo.
CHICO MARÉS esteve presente na reunião virtual do Conselho Editorial da Revista E, no dia 25 de agosto de 2022.
*Ouça, em formato de podcast, a conversa com o convidado. A mediação é de Adriana Reis Paulics, jornalista e editora da Revista E
Ilustração: @macrovector/Freepik
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Exposição com curadoria de Alexandre Bispo, Joice Berth e Tadeu Kaçula
N. Castro, Bloco do Papel Crepon
28 de outubro de 2022 a 24 de fevereiro de 2023 Segunda a Sexta | Sesc Carmo Mais informações e agendamento de grupos: sescsp.org.br/carmo
Foto: Ronaldo Gutierrez
66 DEPOIMENTO CASSIO SCAPIN
Sucupira é aqui?
PREMIADO ATOR E DIRETOR PROVOCA REFLEXÕES SOBRE O ATUAL CENÁRIO POLÍTICO BRASILEIRO NA VERSÃO MUSICADA DA PEÇA O BEM-AMADO, DE DIAS GOMES
Em 1963, um ano depois do dramaturgo e romancista Dias Gomes (1922-1999) ter escrito O Bem-Amado, nascia Cassio Scapin. Quis o destino que, mais de cinco décadas depois, fosse a vez do ator e diretor paulistano encarnar sua versão do protagonista Odorico Paraguaçu, político tão carismático quanto corrupto, imortalizado na televisão brasileira por Paulo Gracindo (1911-1995). Sob direção de Ricardo Grasson, letra e música de Zeca Baleiro e Newton Moreno, o espetáculo O Bem-Amado Musicado, que estreou no Sesc Santana em agosto, atesta a atualidade da obra do autor, que neste ano celebraria seu centenário [leia Perfil de Dias Gomes nesta edição]. Acompanhado pelas atrizes Rebeca Jamir, Kátia Daher e Luciana Ramanzini (que interpretam as três irmãs Cajazeiras), e pelos atores Guilherme Sant’Anna, Ando Camargo, Eduardo Semerjian e Marco França (que também assina a direção musical), Cassio embola o público com seu “odoriquês” e, pelo viés da comédia, instiga reflexões sobre a necropolítica na cidade fictícia de Sucupira. Neste Depoimento, o ator, reconhecido no teatro e na tevê (Castelo Rá-Tim-Bum, 1994-97), fala sobre a montagem de O Bem-Amado, o despertar dos musicais brasileiros e a força da comédia.
SIMBORA!
Durante a pandemia, o Ricardo [Grasson, diretor e produtor de teatro] intermediou alguns dos meus espetáculos, como Eu não dava praquilo, que fiz pelo #EmCasaComSesc, gravado na minha casa. A gente montou um teatro, aliás, dois aqui. Eu brincava que era a sala Miriam Muniz e a sala Marília Pêra, porque eram dois cenários diferentes e eu queria fazer teatro. Então, tinha cenário, luz…tinha tudo. E o Ricardo fez essas pontes com o Sesc São Paulo. Até que, numa live em que falei sobre os desejos da vida, eu disse que tinha muita vontade, mais do que nunca, de fazer O Bem-Amado, de fazer o Odorico Paraguaçu, porque eu achava que era um assunto absolutamente pertinente pelo momento que vivíamos, além de ser um projeto de longa data. Também não havia na minha época um aluno de teatro que não passasse pela dramaturgia brasileira sem estudar Dias Gomes, Oduvaldo Vianna Filho (1936-1974), Nelson Rodrigues (1912-1980), ou seja, os grandes autores nacionais. E o Ricardo estava assistindo a essa live. Assim que terminou, ele me perguntou: “Você quer fazer O Bem-Amado?”. E eu respondi: “Simbora”.
LEVANTE MUSICAL
Acho que o crescente número de musicais brasileiros não é uma novidade. Isto já é uma característica do teatro brasileiro, uma característica do Teatro de Revista no Brasil, do teatro português que vem para o Brasil. Eu acho que esse é um momento de recuperação. E o musical que o brasileiro fazia era diferente do musical feito nos Estados Unidos. A gente sempre teve esse aspecto mais jocoso de fazer um musical. Muito mais malandro, no bom sentido. Muito mais debochado e bem-humorado para fazer um musical. Então, eu acredito que não está se inventando um musical brasileiro. Na verdade, estamos recuperando o que é nosso. Um dos grandes sucessos da história do teatro nacional é O Mambembe, de Artur Azevedo, feito pela Fernanda Montenegro em 1959. Então, essa é uma característica que nos pertence e que a gente está resgatando. Meu grande problema é com os musicais internacionais, o quanto eles chegam engessados para a gente. Eu acho bacana fazer qualquer musical, qualquer espécie de teatro, mas com liberdade.
ACHO QUE O HUMOR TRAZ ESSA POSSIBILIDADE DE FAZER AS PESSOAS ENXERGAREM AS COISAS GRAVES
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Foto: Matheus Jose Maria
ATUAR E (EN)CANTAR
O primeiro [prêmio] Shell que eu ganhei foi com o musical Memórias Póstumas de Brás Cubas (1987), que era um solo musical. Quando fiz Lampião e Lancelote (2013), foi com Zeca Baleiro [que assina letra e música, junto a Newton Moreno, em O Bem-Amado Musicado], depois fiz Além do ar (2019), sobre Santos Dumont. Todos são musicais brasileiros. Então, eu não sou um ator de musical, eu sou um ator que canta. Precisou? Eu canto. Posso não encantar, mas canto. Me divirto e divirto a plateia. Essa é, um pouco, a função do ator: eu tenho que convencer o público de que eu canto. Eu adoro e acho muito bom poder trafegar em todos os lugares. Fiz Admirável Nino Novo (2017), que também era um solo musical com o personagem Nino [do Castelo Rá-Tim-Bum], no qual Marco França também trabalhou na criação das músicas. Então, tenho uma experiência com esse universo. Menor que alguns colegas, claro, que inclusive estão no elenco de O Bem-Amado, como Marco, Rebeca, Kátia… Pessoas que já têm mais experiência nessa área.
POLITICAMENTE INCORRETO
Quando eu era criança, assisti à novela O Bem-Amado Então, eu tenho uma lembrança de resíduo. Inclusive, ganhei a novela inteira em DVD, mas falei: “Eu não vou ver”. Também sabia que tinha a peça do Nanini online e não vi. A minha preocupação com o Odorico foi fazer uma versão que é quase uma máscara. Foi aglutinar,
pegar todas as informações de déspotas, de governantes “simpáticos”, de pessoas que angariam a simpatia do público para benefício próprio, e potencializar isso. Às vezes, eu brinco que Odorico Paraguaçu é o Ricardo III [personagem-título da peça do inglês William Shakespeare, escrita no final do século 16, que passa pela ascensão e queda do poder]. Então, ele é uma máscara.
E como tem esta coisa do cordel em O Bem-Amado, essa brincadeira da farsa, a gente pode exagerar.
A gente pode partir para um lugar que é quase da desumanização desse sujeito. É entender isso como uma deformação de caráter mesmo. Uma deformação de caráter dessa relação com o poder. Da forma como governantes passam a torcer as verdades em função de benefícios próprios, mesmo que seja apenas pela vaidade.
APELO À RAZÃO
Abriu-se uma discussão bastante importante sobre a função do humor, sobre os humoristas, os comediantes. Por exemplo, esta peça tem inúmeras questões politicamente incorretas no personagem. Mas, elas são entendidas e aceitas porque estão dentro de um contexto. O contexto no qual é entregue a peça faz com que as pessoas entendam que o Odorico é absolutamente politicamente incorreto, mas ele tem uma punição no final. Ele não fica impune. Eu acho que o humor traz essa possibilidade
No espetáculo Admirável Nino Novo, 2017. de fazer as pessoas enxergarem as coisas graves, mas de maneira que entendam num nível racional, e não figadal. A indignação é feita por um caminho racional, portanto mais passiva de uma discussão clara e racional das questões do que se ela fosse entendida com o fígado, ou seja, do que se ela fosse entendida pela paixão. E a comédia ajuda nisso porque você precisa ser inteligente para rir. Então, Odorico é um personagem muito bom para se fazer isso por ser um personagem carismático para o público, mas, ao mesmo tempo, um carismático sem escrúpulos. Aliás, o teor de O BemAmado seria muito pesado se fosse feito como um teatro realista.
Foto: Ronaldo Gutierrez
Elenco de O Bem-Amado Musicado, 2022.
Foto: Priscila Prade
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indigesta em tudo a escolha esse dom que é teu olhar tua capacidade para desconstruir o caminho nos ruídos dos interfones antes que tudo encolha
as vezes em que caminhamos em silêncio escutando a entrega (a evicção)
o terrível paraíso que é finalmente conseguir
Ilustrações: Luyse Costa
70 PAULO SCOTTINÉDITOS
penso em você cada vez que penso que preciso reaprender a respirar (e ter costume)
encaro a floresta a fricção das árvores
o que talvez ainda esteja na fricção das árvores a transformar o som de um mundo à noite que já não me chega em luz
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o escritor está se afogando na piscina inflável formato olho extorquido de Luís de Camões
ninguém virá salvá-lo o escritor e sua vaidade contam com isso
a água é colorida com seu pensamento e infiltra em seus pulmões
certo é o seu nado imundo subalterno
agir em voz aquários extorquidos (de Camões)
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no olhar do senhor teu dono régua paz destruída firme adeus entre o que circula pedra-sal em teu sangue tranca a ferro
aceitando a loja da ordem pulso em sempre finado soma afastando irmãos jazigo das portas sem lavar a pregos esse mal
nunca um negro – régua a branco um menos branco
encontro de mãos a menos
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o mundo abstrato está lotado a linguagem em pulgas sugando as diversas vezes da fidelidade no dorso da mão que balança as armas aos anjos da rave na Cracolândia o sorriso do polícia sob a luz do sábado a mesma erva-daninha brotando na estampa da universidade na minha camiseta
PAULO SCOTT é escritor, autor de cinco romances – entre eles Marrom e Amarelo (2019) e Habitante irreal (2011), um livro de contos, sete de poesia e o romance gráfico Meu mundo versus Marta (2021), em parceria com Rafael Sica, todos esses editados pela Companhia das Letras. Já recebeu os prêmios Machado de Assis da Fundação Biblioteca Nacional, Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA), Açorianos de Literatura, entre outros. Os poemas publicados nesta seção Inéditos farão parte do livro Luz dos monstros (Aboio, 2022), a ser lançado em novembro.
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CREDENCIAIS
OS EMPREGADOS COM REGISTRO EM CARTEIRA PROFISSIONAL, OS ESTAGIÁRIOS, OS TEMPORÁRIOS, OS DESEMPREGADOS HÁ ATÉ 24 MESES E AS PESSOAS QUE SE APOSENTARAM ENQUANTO TRABALHAVAM EM EMPRESAS DO RAMO DO COMÉRCIO DE BENS, SERVIÇOS E TURISMO PODEM FAZER A CREDENCIAL PLENA DO SESC E TER ACESSO A MUITOS BENEFÍCIOS.
DOCUMENTOS NECESSÁRIOS:
• Funcionários empregados e desempregados:
Carteira profissional atualizada (impressa ou digital)
Documento de identidade
CPF
Foto 3x4 recente. Se preferir, tiramos sua foto na hora sem custo.
No caso de desempregados, é considerado o prazo de 24 meses da baixa da Carteira Profissional, para fazer e utilizar a Credencial Plena.
• Estagiários:
Termo de compromisso ou carteira de trabalho, em que conste o número do CNPJ da empresa.
Declaração de matrícula com situação acadêmica
Documento de identidade
CPF
Foto 3x4 recente. Se preferir, tiramos sua foto na hora sem custo.
A validade da Credencial corresponde ao período de vigência do contrato de estágio, não ultrapassando dois anos, cessando o direito à renovação após a rescisão.
• Temporários:
Carteira profissional atualizada (impressa ou digital)
Documento de identidade
CPF
Foto 3x4 recente. Se preferir, tiramos sua foto na hora sem custo.
• Empregado com contrato suspenso temporariamente:
Carteira profissional atualizada (impressa ou digital)
Termo de acordo de Suspensão do Contrato de Trabalho
Documento de identidade
CPF
Foto 3x4 recente. Se preferir, tiramos sua foto na hora sem custo.
• Aposentados:
É o empregado que se aposentou quando trabalhava com registro em carteira profissional, em empresa do comércio de bens, serviços e turismo.
Carteira profissional atualizada (impressa ou digital)
Carta de Concessão da aposentadoria ou Cadastro Nacional de Informações Sociais (CNIS)
Documento de identidade
CPF
Foto 3x4 recente. Se preferir, tiramos sua foto na hora sem custo.
• Titular falecido:
O dependente cujo trabalhador, estagiário, temporário ou aposentado do comércio de bens, serviços e turismo é falecido, poderá requerer a Credencial Plena. Além dos documentos citados na lista de titular e dependentes, deverá apresentar também a certidão de óbito.
• Dependentes:
O titular (trabalhador do comércio de bens, serviços e turismo), pode incluir seus dependentes. Assim, a família também pode usar o Sesc! Veja a lista abaixo de dependentes:
• Filhos, enteados, irmãos, netos e tutelados (até 20 anos):
Certidão de nascimento ou documento de identidade
CPF
Foto 3x4 recente. Se preferir, tiramos sua foto na hora sem custo.
Para os netos e enteados, além desses documentos, apresentar também documento que comprove o parentesco com o titular. E para os tutelados, comprovante de tutela.
• Filhos, enteados, irmãos e netos (entre 21 e 24 anos):
Documento de identidade
CPF
Foto 3x4 recente. Se preferir, tiramos sua foto na hora sem custo.
Comprovante de matrícula ou pagamento recente de mensalidade em ensino superior, profissionalizante, pós-graduação (lato sensu, stricto sensu ou residência médica), preparatório para o ensino superior ou educação de jovens e adultos (EJA).
• Cônjuge: Documento de identidade CPF
Foto 3x4 recente. Se preferir, tiramos sua foto na hora sem custo. Certidão de casamento civil ou religioso; declaração de união estável lavrada em cartório ou declaração de união estável de próprio punho, neste caso, a certidão deve mencionar os nomes do casal, os números dos documentos de identidade e assinatura de ambos, além disso, em caso de credenciamento presencial nas unidades, é indispensável a presença do casal no ato do credenciamento.
• Pais e padrastos do titular: Documento de identidade CPF
Foto 3x4 recente. Se preferir, tiramos sua foto na hora sem custo. Para os padrastos e madrastas, é necessário apresentar documento que comprove união com o pai ou mãe do titular.
• Avós:
Documento de identidade CPF
Foto 3x4 recente. Se preferir, tiramos sua foto na hora sem custo. Documento que comprove o parentesco com o titular.
PARA FAZER PELA PRIMEIRA VEZ A CREDENCIAL PLENA OU INCLUIR DEPENDENTES:
Acesse a Central de Relacionamento Digital ou baixe o app Credencial Sesc SP e verifique se você pode ter a sua Credencial Plena do Sesc São Paulo!
A Credencial Plena é o acesso para trabalhadores e dependentes ao uso dos serviços e programações nas Unidades do Sesc.
Sobre a Credencial Plena:
- É gratuita.
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- Prioriza os acessos às atividades do Sesc.
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Para fazer ou renovar a Credencial Plena de maneira online e de onde estiver, baixe o app Credencial Sesc SP ou acesse o site Central de Relacionamento Digital.
Se preferir, nesses mesmos locais você consegue agendar seu horário para ir presencialmente em uma de nossas Unidades (compareça com a documentação necessária).
Central de Atendimento do Sesc Av. Paulista
Foto: Ricardo Ferreira
A EMISSÃO DA CREDENCIAL PLENA É GRATUITA E VÁLIDA POR ATÉ 2 ANOS EM TODO O BRASIL
Aguçar a sensibilidade
Mozart, Beethoven, Michelangelo, Picasso. O que esses consagrados artistas da música e da pintura têm em comum? Todos eles começaram a se interessar pelas artes ainda na infância, exercitando e aprimorando suas técnicas quando suas mãos ainda eram bem pequenas e os dedinhos tinham habilidades limitadas. A fim de incentivar, portanto, o contato dos pequenos com as belas-artes desde cedo, neste mês das crianças listamos seis atividades, de diferentes linguagens artísticas, para despertar a sensibilidade, a criatividade e a imaginação de meninos e meninas. Entre 1º e 30/10, na capital paulista e no ambiente digital, há opções de teatro, literatura, dança, música erudita, artes visuais e audiovisual para a criançada e toda a família. Porque entrar em contato com a arte e cultura é tão essencial à infância e à expressão quanto brincar [Leia mais na reportagem A arte de brincar, publicada na Revista E nº 307, de maio de 2022]. Um, dois, três e já!
Foto: Levi Fanan/Pinacoteca de São Paulo
ALMANAQUE
ARTES VISUAIS
Pinacoteca – PinaFamília e PinaPequenos
No segundo domingo de cada mês (em outubro, no dia 9), a Pinacoteca de São Paulo realiza os projetos gratuitos PinaFamília e PinaPequenos. O primeiro é destinado a pais e/ou cuidadores com suas crianças e ocorre em três horários (11h, 13h30 e 14h45), quando todos são convidados a visitar a mostra da coleção permanente Pinacoteca: Acervo, e depois fazer uma atividade prática, acompanhados de um educador do museu. Há distribuição de 30 senhas por sessão, e a inscrição é feita meia hora antes. A Pinacoteca também distribui nesse dia, a partir das 10h, um jogo educativo por família, até o fim do estoque.
Já o PinaPequenos é um espaço lúdico e interativo para crianças de até 3 anos, com programação às 10h30 e às 13h30, e duração de 45 minutos. As vivências comportam até 20 bebês e um cuidador para cada.
Aos sábados, a entrada é gratuita para todos, assim como às quintas, entre 18h e 19h. Saiba mais: pinacoteca.org.br e (11) 3324-1000.
DANÇA
Casa das Rosas – Senhor Calvino
No florido jardim da Casa das Rosas, a companhia de dança Artesãos do Corpo apresenta, no dia 12/10, às 11h, o espetáculo Senhor Calvino, que convida o público de todas as idades a conhecer o universo poético-urbano de Italo Calvino (1923-1985), escritor italiano considerado um dos maiores do século 20.
Os bailarinos se inspiraram nos livros Marcovaldo (1963) e Palomar (1983) e focam em pequenos detalhes do cotidiano urbano que costumam ser ignorados pelos habitantes das cidades. Não é necessária inscrição prévia. Saiba mais: casadasrosas.org.br/agenda e (11) 3673-1883.
Foto: Mila Kawasaki/Pinacoteca de São Paulo
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F o t o : F ábio Pazzini
LITERATURA
Além de ser o Dia das Crianças, 12/10 também marca o Dia Nacional da Leitura. Para celebrar a data, a Biblioteca de São Paulo (BSP) e a Biblioteca Parque Villa-Lobos (BVL) realizam, ao longo de todo o mês, diversas atividades a fim de incentivar e valorizar esse hábito entre os pequenos. Na programação especial, e presencial, estão dois projetos permanentes – Hora do Conto e Lê no Ninho –, que ocorrem o ano inteiro. O primeiro promove a contação de histórias infantojuvenis, de 1º a 30/10, às sextas-feiras, das 15h às 15h30, e aos sábados e domingos, das 16h às 16h45. Já o Lê no Ninho é voltado para bebês e crianças de 6 meses a 4 anos, seus pais e/ou cuidadores, com o objetivo de proporcionar experiências de interação com os livros. É realizado aos sábados e domingos, das 11h às 11h45. Não é preciso fazer inscrição em nenhum deles, mas as vagas são limitadas e preenchidas por ordem de chegada. Mais informações: bsp.org.br/agenda e bvl.org.br/agenda
TEATRO
Sesc Belenzinho – Meu Reino Por Um Cavalo Encenado pela Cia. Vagalum Tum Tum, o espetáculo é livremente inspirado na tragédia Ricardo III, do dramaturgo inglês William Shakespeare (1564-1616). Conta a história de um nobre ambicioso que não mede esforços para virar rei. Sempre acompanhado de seu cavalo guitarrista, ele vai eliminando a todos que encontra em seu caminho rumo à coroa. O espetáculo faz temporada até 13/10, com texto e direção de Angelo Brandini, direção musical e canções originais de André Abujamra, e caracterização de Leopoldo Pacheco. Saiba mais: www.sescsp.org.br/belenzinho
Foto: João Caldas Fº
A Terra dos Meninos Pelados. Foto: Nora Prado
Bibliotecas de São Paulo e Parque Villa-Lobos – Hora do Conto e Lê no Ninho
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MÚSICA ERUDITA
Theatro São Pedro – Coral Infantil do Projeto Guri Aos fãs mirins de música erudita, ou àqueles que nunca foram a uma sala de concerto, o Theatro São Pedro abre suas portas no dia 29/10, às 11h30, para uma apresentação do Coral Infantil do Projeto Guri. Na ocasião, o grupo de pequenos cantores da capital e da Grande São Paulo interpreta obras compostas desde o período clássico até o século 20, incluindo peças de Mozart, Schubert, George Gershwin e Heitor Villa-Lobos. A regência é de Yara Campos, e a entrada é gratuita. Confira: bit.ly/theatrospedro-coral e (11) 3221-7326.
AUDIOVISUAL
Filmes sob demanda
A programação do SescTV e da plataforma Sesc.Digital também contemplam as crianças no mês de outubro. O SescTV traz a coleção Filmes de Brinquedo, que reúne 15 curtas-metragens, com curadoria de Cardes Amâncio e Daniela Pimentel, nas categorias documentário, ficção e animação. Produções que revelam diferentes experiências das infâncias brasileiras e buscam sensibilizar o público para a construção de relações respeitosas com o meio ambiente e os diversos modos de vida. (No SescTV, aos sábados, às 13h, e também disponíveis sob demanda em www.sesctv.org.br). Ainda como parte da grade infantil do mês, o canal exibe, no dia 12/10, às 13h30, o longa de ficção A Família Dionti (Brasil/Inglaterra, 2015), de Alan Minas. O conteúdo também pode ser acessado no catálogo do site. Já no Sesc.Digital, pelo projeto CineClubinho, até 1º/11, é possível assistir à animação Um Lobo em Pele de Cordeiro (Rússia, 2016), sobre uma pequena aldeia onde a paz de um rebanho de ovelhas é interrompida quando uma matilha de lobos aparece na região. Confira em: sesc.digital/colecao/cineclubinho
Foto: Roberta Borges
Foto: Guga Millet
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FACES DA FOME
Ainda no início da adolescência, me interessei pelo curso de nutrição. Naquela época, a minha motivação era viajar para o continente africano e trabalhar com desnutrição. Me lembro de matérias no jornal e comerciais na televisão pedindo donativos e isso me comovia. O problema também acontecia no Brasil, mas aquele estereótipo de crianças extremamente emagrecidas me impressionava e entristecia muito.
Enquanto eu cursava a universidade, o assunto era a transição nutricional no Brasil, ou seja, a desnutrição estava em declínio contínuo, e a má alimentação – seja pela quantidade em excesso ou pela qualidade muito ruim –causava o aumento de peso em todas as fases da vida. As carências nutricionais da população se tornaram apenas um assunto abordado em livros, muitas vezes acompanhadas do comentário de que isso já não era mais relevante. Assim, durante o período da graduação, não tive nenhum contato com o problema da desnutrição. A formação acadêmica se preocupava muito mais em ensinar como a nutrição poderia ajudar a tratar doenças como obesidade, hipertensão, diabetes e câncer, e foi com esse olhar da dietoterapia que eu me formei.
O começo da minha jornada profissional seguiu concomitantemente com a saída do Brasil do Mapa da Fome. Algum tempo depois, já no Sesc, conheci e me apaixonei pelo Programa Mesa Brasil, então, me aproximei daquele projeto antigo, já perdido no tempo, e a discussão agora tratava da segurança alimentar, da garantia ao acesso ao alimento de qualidade e em quantidade suficiente, de trazer variedade e complementar as refeições.
Nestes últimos anos, vi de perto a tal da transição nutricional, sim, mas também presenciei nas regiões mais periféricas da cidade a dificuldade de se obter comida boa e na quantidade desejada. Contudo, nada se compara ao que ouvi, vi e vivi nesse período de pandemia. Os dados que as pesquisas mostram, do quanto a fome tem atingido o país, para mim, não são apenas números – são rostos, nomes, fotos e fatos que vivencio no Mesa Brasil cotidianamente.
Infelizmente, sempre que entregamos uma doação, o agradecimento vem acompanhado de uma história triste. Seja de uma família que já não tinha nada em casa, de uma criança agarrada em uma cesta básica como se fosse um brinquedo, de alguém tendo a oportunidade de provar um alimento pela primeira vez. Dói saber que as refeições consumidas nas instituições sociais muitas vezes serão o único alimento do dia, e que se a criança não receber alguma doação para levar para casa, os outros membros da família não terão o que comer. Dói mais ainda saber a localização, o sexo e a cor das pessoas mais afetadas pela fome no país.
Ao mesmo tempo em que esses relatos diariamente apertam meu peito, é muito confortante visitar as instituições sociais e testemunhar o belo trabalho dos profissionais, como educadores, assistentes sociais, psicólogos, cozinheiros e lideranças comunitárias que, apesar de estarem no meio do caos, trabalham intensamente com os recursos disponíveis, e sempre se mobilizam atrás de mais para remediar tanto a fome de comida, quanto à necessidade de alimentar a alma com cultura, educação, amor e esperança. É esse nosso esperançar diário que move essa corrente de ações e de solidariedade, e que me nutre também a fazer tudo o que sempre quis, sem tirar os pés do Brasil.
ALINE SILVA DE OLIVEIRA é nutricionista, mestre em Nutrição e Saúde Pública pela Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP), e coordenadora do Programa Mesa Brasil do Sesc Itaquera.
Luyse Costa
80 P.S. ALINE SILVA DE OLIVEIRA
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