REBELDE COM CAUSA
Lima Barreto transforma em obra genial a postura subversiva adotada diante da retórica do universo político e literário do início do século 20
O jovem Afonso Henriques de Lima Barreto -jovem, sim, pois morreu aos 41 anos - era um mulato num país que havia pouco deixara de ser escravagista. Quando Princesa Isabel assinou a lei que pôs fim ao regime, em maio de 1888, o futuro autor de Triste Fim de Policarpo Quaresma (1915) tinha apenas sete anos. Sendo assim, Lima era filho de um mulato nascido escravo, João Henriques de Lima Barreto, e de uma filha de escravos agregada, Amália Augusta. O pai foi tipógrafo e a mãe, por conta da esmerada educação que recebera da família com quem viveu, era professora primária. O menino foi criado pelo pai viúvo juntamente com seus três irmãos e teve boa instrução escolar - do ensino das primeiras letras no colégio público D. Teresa Pimentel do, Amaral passou a cursar o Liceu Popular Niteroiense. No entanto, a estrada reservara percalços ao escritor. Aos 23 anos foi obrigado a largar os estudos para sustentar a casa em virtude da loucura que acometera seu pai. Na mesma época, passou em um concurso para escrevente no Ministério da Guerra. O cargo somado ãs colaborações em alguns veículos da imprensa - entre outros, o Jornal do Commercio e a revista Fon-Fon - garantiam-lhe algum dinheiro.
O escritor Lima Barreto, confronto com os poderosos de sua época.
A juventude atribulada tornou-se uma idade adulta igualmente conturbada. Lima Barreto tinha fama de pessoa difícil. Além disso, os problemas com o álcool e a passagem pelo hospício - que renderia Cemitério dos Vivos, de 1920 - também contribuíram para o cinza do cenário. "Lima possuía temperamento rebelde, avesso a hipocrisias e nepotismos, mazelas freqüentes no meio em que atuava", afirma o professor de língua portuguesa e literatura do Instituto de Aplicação Fernando Rodrigues da Silveira da Universidade do Estado do Rio deJaneiro (Uerj), Luiz Ricardo Leitão, autor de Lima Barreto - O Rebelde Imprescindível (Expressão Popular, 2006). "Desprezara apadrinhamentos e bens materiais, não se quisera curvar, revoltara-se." O estudioso explica ainda que a falta de dinheiro, no entanto, o obrigava a recorrer aos conhecidos, o que lhe trazia imenso pesar. "Um arrependimento de tudo. 'De não ter sido um outro, de não seguir os caminhos batidos' e esperar a obtenção do sucesso onde todos fracassaram", continua Leitão, citando o diário de Lima. O professor recorre a outro trecho do texto de Lima para dar mais pistas sobre sua personalidade: "Sonhei Espinosa, mas não tive força para realizar a vida dele; sonhei Dostoievski, mas me faltou a sua névoa". Leitão prossegue em sua análise: "Lima anotaria essas passagens com um travo de amargura nas páginas do seu diário. Não deve ser visto, contudo, como homem ressentido, mas sim revoltado, a quem interessava somente recusar as humilhações, nunca desejá-las para outrem".
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Modernista
A despeito dos problemas pessoais e da eterna luta contra o establishment - OLI talvez por conta disso, como diriam os que defendem a necessidade de tormento à alma do artista -, a obra de Lima Barreto tornou-se consenso de genialidade entre os estudiosos da literatura brasileira. "A contribuição de Lima é total", analisa Antônio Arnoni Prado, professor titular de teoria literária na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e autor, entre outros livros, de Lima Barreto - 0 Crítico e a Crise (Leitura, 1989). "\Lima é ] Um escritor que precisa ser descoberto e avaliado pela juventude: todos os seus temas estão aí, pulando nas ruas."
De acordo com o professor Luiz Ricardo Leitão, o escritor também é considerado o precursor do modernismo brasileiro - sobretudo, segundo diz o especialista - com Triste Fim de Policarpo Quaresma. "A forma como ele emprega a paródia na composição do protagonista é absolutamente revolucionária em nossas letras", diz Leitão. "Ao apelidar o Major Quaresma de Ubirajara, em explícita menção ao romance indianista homônimo de José de Alencar, ele concretiza toda a amplitude diaética desse mecanismo, pois presta uma homenagem expressa aos cânones românticos, mas simultaneamente nos revela o quão anacrônicos estes se haviam tornado." Para o estudioso,
Um homem ingênuo
Para especialistas, Policarpo Quaresma, personagem mais famoso do escritor, é o brasileiro comum que se desilude diante do sonho
Policarpo Quaresma é um major amante dos livros, mesmo não sendo um acadêmico, e um profundo interessado pelas coisas brasileiras. Primeiro decide aprender a tocar violão, apesar do instrumento não ser muito bem visto na época, início do século 19, e posteriormente parte em busca de manifestações ainda anteriores, ou seja, mais genuinamente brasileiras - uma jornada que termina com o aprendizado da língua tupi. 0 interesse pela nação o leva à descoberta de uma série de injustiças do governo do presidente Floriano Peixoto, a quem admirava muito. Devido às suas críticas, Policarpo Quaresma é preso e condenado ao fuzilamento por ordem do próprio Peixoto.
Triste fim esse de Policarpo Quaresma. "É a história do homem ingênuo, que se atira de coração a um projeto de poder que o exclui e para o qual ele não existe", explana Antônio Arnoni Prado, professor titular de teoria literária na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e autor, entre outros livros, de Lima Barreto - 0 Crítico e a Crise (Leitura, 1989). "Exatamente como hoje o homem comum não tem a menor significação para o poder constituído, que só se
lembra dele como um figurante." Para o estudioso, Triste Fim de Policarpo Quaresma nos mostra o "assassinato de um cidadão fanático pela pátria que o repele enquanto consciência crítica."
Para o professor de língua portuguesa Fernando Rodrigues da Silveira da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), Luiz Ricardo Leitão, autor de Lima Barreto - 0 Rebelde Imprescindível (Expressão Popular, 2006), no entanto, quem traiu Policarpo "não foi exatamente a pátria", mas sim um conceito dela apropriado e manipulado pelas classes dominantes. "A traição mor veio da República Velha", opina. "E, sobretudo, da figura pusilânime do Marechal Floriano, com quem Quaresma há de se decepcionar profundamente."
0 especialista segue dizendo que a grande desilusão do personagem veio do fato de que as promessas de mudança do regime instalado no Brasil em 1889 jamais se cumpriram. "Os 'coronéis' se instalaram de vez na política nacional e a exclusão social, particularmente no meio agrário, acentuou-se na virada do século XX", conclui.
tal pensamento é "sem dúvida nenhuma" modernista, uma vez que "reconhece o peso de uma tradição literária, mas evidencia ao leitor o seu descompasso com a nossa história socioespacial".
Para o colega Antônio Arnoni Prado, no entanto, não teria sido propriamente com esta obra que Lima revelaria sua veia modernista. "Mas nos projetos de contos breves, no Diário Intimo [publicado postumamente, em 1953], na crônica, e em certo memorialismo disperso que, muito pouco, atravessa o argumento do Policarpo Quaresma." Para Prado, o que de modernista foi antecipado no autor refere-se à sua "escrita direta, mais próxima das crenças e do imaginário do povo".
Nada de Machado
Tal característica em sua obra, por outro lado, embora hoje seja celebrada, na época foi vista com desprezo por vários dos imortais da Academia Brasileira de Letras (ABL) - na qual, inclusive, foi recusado algumas vezes. "Ele simplesmente não quis ser literato, e sim escritor", comenta Prado. "Mas escritor, naquele tempo, era, sobretudo, o literato, homem de salão e de torres de marfim, num meio retórico de poucas exceções de talento verdadeiro. Foi ignorado."
E uma vez falando em ABL, antes que o leitor se pergunte sobre as possíveis semelhanças entre Lima e o também negro e notável observador da sociedade Machado de Assis - fundador da casa -, o professor da Unicamp se adianta em dizer que em nada eles se assemelham. "Divergem profundamente", sentencia. "Um [Machado], artista maior de seu tempo, reinou na Academia e foi grande como poucos, talvez o maior do Brasil até o dia de hoje. 0 outro, um suburbano irrequieto, inconformado com a miséria do povo, perdido entre jornais e revistas secundárias."
Outro ponto que coloca Machado e Lima em cantos opostos do universo literário é o reconhecimento em vida. 0 criador de Policarpo Quaresma amargou o ostracismo durante a curta vida. "Inúmeros fatores contribuíram para que Lima Barreto não angariasse em vida o prestígio que obteve, por exemplo, Machado de Assis", explica Leitão. "Como escrevo em meu livro, ele jamais cultivou uma concepção rígida e mecânica das coisas: era dado 'ao maravilhoso, ao fantástico, ao hipersensívef.Já com livros publicados, desatinava freqüentemente, vagando delirante por bares e vielas."
Teatro de autor
Antunes Filho e Grupo Macunaíma montam clássico de Lima Barreto
Depois de A Falecida Vapt-Vupt, de Nelson Rodrigues, e de um musical baseado na vida de Lamartine Babo, o diretor Antunes Filho completa sua Trilogia Carioca adaptando para os palcos o clássico de Lima Barreto, Triste Fim de Policarpo Quaresma. Com o título encurtado para apenas Policarpo Quaresma, o espetáculo conta a história do homem cujo amor por um Brasil recém-tornado uma República o leva às últimas conseqüências. 0 desejo do diretor desta vez é aumentar o interesse pelo conteúdo da obra montada. "Em vez de ter alegria em um espetáculo de arrebatar, quero uma montagem que todo mundo sinta, entenda e perceba a autoria", disse Antunes em matéria publicada no site Bravo Online, em fevereiro de 2009. Policarpo Quaresma tem estreia prevista para 27 de março, no Sesc Consolação, e a temporada segue até 6 de junho. Informações sobre preços e horários no Fm Cartaz.