A produção estética negra como resistência no Brasil
Vidas em cena
A alteridade no teatro de Mariana de Althaus
Naquela manhã
Texto inédito de Ignácio de Loyola Brandão
EXPOSIÇÕES PRORROGADAS
LÉLIA EM NÓS: FESTAS POPULARES E AMEFRICANIDADE
Curadoria de Glaucea Britto e Raquel Barreto.
Idealização e concepção:
Museu de Arte do Rio (MAR).
Parceria Institucional:
Organização de Estados
Ibero-americanos (OEI)
ATÉ 9 FEV 2025
Vila Mariana
Fotos: Andréia Beltrão / Sesc
UM DEFEITO DE COR
Curadoria de Amanda Bonan, Ana Maria Gonçalves e Marcelo Campos.
Idealização: Boitempo
ATÉ 26 FEV 2025
Pinheiros
Fotos: Matheus José Maria / Sesc
CAPA: Detalhe arquitetônico da fachada do Sesc Franca, nova unidade que abre suas portas no dia 28/11. Com capacidade para atender até 2,5 mil pessoas por dia, o Sesc Franca conta com piscinas, teatro, quadras de areia, de campo, de grama sintética, ginásio e sala de ginástica funcional. Dispõe ainda de biblioteca, espaços expositivos, espaço de brincar –para bebês e crianças de até seis anos – e Espaço de Tecnologias e Artes. Saiba mais: sescsp.org.br/franca
Crédito: Matheus José Maria
Leia também a revista em versão digital na sua plataforma favorita:
Portal do Sesc (QR Code ao lado)
Chegada em Franca
APP Sesc São Paulo para tablets e celulares
Legendas Acessibilidade
Em estabelecimentos de uso coletivo é assegurado o acompanhamento de cão-guia. As unidades do Sesc estão preparadas para receber todos os públicos.
O ano de 2024 termina com a celebração da abertura de mais uma unidade do Sesc em São Paulo. Inaugurado em 28 de novembro, o Sesc Franca já se configura como a maior unidade do Sesc no interior paulista, com 35 mil metros quadrados de área construída. Seguindo as premissas da entidade em seu compromisso com a sustentabilidade, o novo centro cultural e esportivo apresenta uma arquitetura que convida a população aos encontros, com espaços integrados para apresentações artísticas, práticas físico-esportivas e áreas de lazer.
A nova unidade do Sesc tem capacidade para receber até 2,5 mil pessoas por dia, que poderão usufruir de: ginásio poliesportivo, duas quadras de areia, conjunto aquático, sala de ginástica multifuncional, além de teatro, biblioteca, espaço expositivo e clínica odontológica. Com a inauguração do Sesc Franca, a entidade soma 43 unidades em operação em todo Estado, distribuídas pela capital, região metropolitana e litoral. A chegada em definitivo a Franca faz parte do plano de expansão da rede, que prevê, até 2033, mais nove unidades.
Com essa iniciativa, o empresariado do setor de comércio e serviços, que mantém o Sesc, reafirma seu compromisso com a sociedade em promover o desenvolvimento integral dos indivíduos, tendo a ação educativa como um eixo transversal e permanente.
Abram Szajman
Presidente
do Conselho Regional
do
Sesc no Estado de São Paulo
Um novo Sesc para celebrar
Lugar para promover encontros, exaltar a pluralidade, desenvolver-se, ampliar as relações interpessoais, construir vínculos. A cidade de Franca, no noroeste paulista, acolhe a mais nova unidade do Sesc, um espaço que convida o público a participar dessa ação reconhecidamente emancipadora em seu âmbito educativo e transformador. A iniciativa apoia-se nas experiências acumuladas pela instituição ao longo de seus 78 anos, voltadas à sua missão de buscar a melhoria da qualidade de vida de seus frequentadores. São esforços que se efetivam numa ampla programação com apresentações, cursos, bate-papos, vivências, entre outras propostas voltadas, essencialmente, ao exercício da cidadania.
A partir de agora, a população de Franca e dos municípios do entorno terão acesso a uma vasta e diversificada programação, que é alicerçada em cinco eixos: Cultura, Educação, Saúde, Lazer e Assistência. Tudo isso ofertado numa arquitetura construída com parâmetros de sustentabilidade e privilegiando os espaços de convivência. A chegada do Sesc em Franca fortalece e expande o diálogo com o território e seus moradores, sempre no sentido de somar esforços e saberes para melhorar a vida em sociedade. Reportagem desta edição da Revista E apresenta moradores ilustres da cidade que pulsa diversidade e se renova, dia a dia, por meio da criatividade e do protagonismo de seus cidadãos. Boa leitura!
Luiz Deoclecio Massaro Galina
Diretor do Sesc São Paulo
SERVIÇO SOCIAL DO COMÉRCIO – SESC
Administração Regional no Estado de São Paulo
Av. Álvaro Ramos, 991 – Belenzinho
CONSELHO REGIONAL DO SESC EM SÃO PAULO
Presidente: Abram Abe Szajman
Diretor do Departamento Regional: Luiz Deoclecio Massaro Galina
Efetivos: Arnaldo Odlevati Junior, Benedito Toso de Arruda, Dan Guinsburg, Jair Francisco Mafra, José de Sousa Lima, José Maria de Faria, José Roberto Pena, Manuel Henrique Farias Ramos, Marcus Alves de Mello, Milton Zamora, Paulo Cesar Garcia Lopes, Paulo João de Oliveira Alonso, Paulo Roberto Gullo, Rafik Hussein Saab, Reinaldo Pedro Correa, Rosana Aparecida da Silva, Valterli Martinez, Vanderlei Barbosa dos Santos.
Suplentes: Aguinaldo Rodrigues da Silva, Antonio Cozzi Junior, Antonio Di Girolamo, Antônio Fojo Costa, Antonio Geraldo Giannini, Célio Simões Cerri, Cláudio Barnabé Cajado, Costabile Matarazzo Junior, Edison Severo Maltoni, Omar Abdul Assaf, Sérgio Vanderlei da Silva, Vilter Croqui Marcondes, Vitor Fernandes, William Pedro Luz.
REPRESENTANTES JUNTO AO CONSELHO NACIONAL
Efetivos: Abram Abe Szajman, Ivo Dall’Acqua Júnior, Rubens Torres Medrano
CONSELHO EDITORIAL | Revista E Adauto Perin, Adriana Yuri Tashima, Ana Cristina Feitosa de Pinho, Ana Paula Neves Cabral de Vasconcellos, André Luiz Santos Silva, Anna Luisa de Souza, Beatriz da Silva Nunes, Camila Freitas Curaca, Caroline da Silva Mariano, Cinthya de Rezende Martins, Cristina Balland, Danilo Cava Pereira, Danilo Lima da Silva, Danny Abensur, Davi dos Santos Ferreira, Deborah Dias Matos, Diego Polezel Zebele, Diego Vinicius Teixeira Ferreira, Douglas Marcelo Bianchi Ramachotte, Edmar Rodrigues de Fátima Júnior, Eliana Kameoka, Eloá de Paula Cipriano, Fabia Lopez Uccelli dos Santos, Felipe Campagna de Gaspari, Fernanda Porta Nova Ferreira da Silva, Fernanda Rochitti Soler, Flavio Aquistapace Martins, Francisca Meyre Martins Vitorino, Frederico Vieira Dias, Gabriela Camargo das Graças, Gabriela Carraro Dias, Gabriela Grande Amorim, Gabriella Pereira Rocha, Geraldo Soares Ramos Junior, Gleiceane Conceição Nascimento, Gloria Rodrigues Ramos, Graziela Delalibera, Guilherme de Oliveira Gottsfritz, Gustavo Nogueira de Paula, Indiara Fernanda da Cunha Duarte, Ivan Lucas Araujo Rolfsen, Ivy Beritelli Jose de Souza, Jade Stella Martins, Jair de Souza Moreira Júnior, Janete Bergonci, Jean Guilherme Paz, Jose Mauricio Rodrigues Lima, Julia Parpulov Augusto dos Santos, Juliana Neves dos Santos, Karen Cristine Pimentel dos Santos, Ligia Azevedo Capuano, Luana Brito Lima, Marcel Antonio Verrumo, Marcela Pagani Calabria, Marcos Afonso Schiavon Falsier, Marcos Vinicius Fonseca, Maria Elaine Andreoti, Maria Rizoneide Pereira dos Santos, Marina Borges Barroso, Marina Reis, Michael Anielewicz, Monique Mendonça dos Santos, Norma Tami Maruyama Tchalian, Octavio Weber Neto, Olivia Tamie Botosso Okasima, Rafaela Ometto Berto, Raphael Cutis Dias, Raphael Viana Morata Valverde, Rejane Pereira da Silva, Renata Barros da Silva, Renata Zanin Covizzi, Renato Diego Alves de Jesus, Rodrigo Marcel Bezerra Machado, Samara Fernanda Rosa Baptista, Sandra Ribeiro Alves, Sergio Gouveia Spinola, Suamit Marques Barreiro, Talita Ferreira dos Santos, Tamara Demuner, Teresa Maria da Ponte Gutierrez, Thais Cristina Kruse, Thais Ferreira Rodrigues, Thamires Magalhaes Motta, Thiago da Silva Costa, Vivianne de Castro, Wendell de Lima Vieira.
Coordenação-Geral: Ricardo Gentil
Coordenação-Executiva: Ligia Moreli e Silvio Basilio
Editora-Executiva: Adriana Reis Paulics • Edição de Arte e Diagramação: Estúdio Thema (Thea Severino e Marcio Freitas) • Edição de Textos: Adriana Reis Paulics, Guilherme Barreto e Maria Júlia Lledó • Revisão de Textos: Pedro P. Silva • Edição de Fotografia: Adriana Vichi • Repórteres: Ana Cristina Pinho, Lúcia Nascimento, Luna D’Alama, Manuela Ferreira e Maria Júlia Lledó • Coordenação Editorial Revista E: Adriana Reis Paulics, Guilherme Barreto e Marina Pereira • Propaganda: Edmar Júnior, Eduardo Monteiro, Gabriela Grande Amorim, Jefferson Santanielo e José Gonçalves Júnior • Apoio Administrativo: Juliana Neves dos Santos e Talita Ferreira dos Santos • Arte de Anúncios: Alexandre do Amaral, Frederico Zarnauskas, Gabriela Borsoi, Sergio Henrique de Souza • Supervisão Gráfica: Rogerio Ianelli • Criação Digital Revista E: Rodrigo Losano • Circulação e Distribuição: Vanessa Zago
Jornalista responsável: Adriana Reis Paulics (MTB 37.488)
A Revista E é uma publicação do Sesc São Paulo, sob coordenação da Superintendência de Comunicação Social
Distribuição gratuita Nenhuma pessoa está autorizada a vender anúncios
Esta publicação está disponível para retirada gratuita nas unidades do Sesc São Paulo e também em versão digital, em sescsp.org.br/revistae e no aplicativo Sesc SP para tablets e celulares (Android e IOS).
Fale conosco: revistae@sescsp.org.br
Expoente na cena teatral contemporânea, a dramaturga e diretora peruana
Mariana de Althaus fala sobre as artes cênicas como um exercício de alteridade
Entre os destaques de dezembro, Contato – Ações Para a Promoção da Saúde Sexual e Prevenção das ISTs e HIV/Aids realiza oficinas, apresentações e outras atividades
Polo de resistência cultural e berço de importantes nomes da história do país, cidade de Franca abriga maior unidade do Sesc São Paulo no interior paulista
Pássaros, árvores e outras espécies e paisagens inspiraram vida e obra do músico e compositor
Antônio Carlos Brasileiro de Almeida Jobim, eterno Tom Jobim
Um passeio pela estética negra e pelo resgate das tradições africanas e afro-brasileiras na obra visual de Abdias Nascimento
A diversidade de formatos e desafios, somada à quebra de paradigmas, joga luz sobre a visibilidade de famílias atípicas
dossiê entrevista expansão bio gráfica ações para cidadania
p.52 p.11p.16p.24p.34 p.40
Adriana Vichi (Entrevista); Obra Mediação nº 4: Apis, o touro sagrado (1973), de Abdias Nascimento. Acrílica sobre tela. Coleção Francisco Gracindo. Foto: Ícaro Moreno (Gráfica)
Textos de José Veríssimo Romão Netto e de Ivan Montanari refletem sobre conceito e desafios da gestão cultural no Brasil
Doutor Maravilha, personagem criado pelo médico infectologista Vinícius Borges para falar sobre saúde sexual
Conheça cinco mercadões municipais na capital paulista e experimente diferentes sabores, cheiros e histórias desses tradicionais espaços urbanos
Ignácio de Loyola Brandão (prosa) Juliana Russo (ilustrações)
em pauta encontros inéditos
Reconhecido por trabalhos no cinema, no teatro e na televisão, o ator e diretor Caio Blat experimenta diferentes mundos possíveis em cada papel
Camila Machado
Após ser atropelada, Alaíde (Djin Sganzerla), uma mulher atravessada pela realidade, delírios e memórias, experimenta a vertigem entre a vida e a morte, no espetáculo Vestido de Noiva, em cartaz no Sesc Consolação, até dia 8/12. Ao longo da trama, a personagem revela segredos familiares, enquanto enfrenta a culpa por ter protagonizado uma disputa amorosa com sua irmã, Lúcia (Simone Spoladore), pelo marido, Pedro (Jiddu Pinheiro). Sob direção de Helena Ignez, a peça do dramaturgo Nelson Rodrigues (1912-1980) ainda tem, no elenco, a atriz Lucélia Santos, no papel de Madame Clessi.
em cena
Ações para promoção da saúde sexual e prevenção das ISTs e Aids
29 de novembro a 10 de dezembro de 2024
Atividades promovem reflexões sobre gênero, diversidades, desigualdades sociais e direitos humanos, incentivando o acesso à informação e a desconstrução de preconceitos para promover a saúde sexual.
Em diversas unidades do Sesc São Paulo.
sescsp.org.br/contato
DOSSIÊ
Vivências, oficinas, bate-papos e outras atividades fazem parte da programação do projeto Contato.
Novos imaginários
Projeto Contato fomenta discussões para a promoção da saúde sexual e reprodutiva e a prevenção das infecções sexualmente transmissíveis
OSesc São Paulo realiza, de 29/11 a 10/12, a sétima edição do projeto Contato – Ações Para a Promoção da Saúde Sexual e Prevenção das ISTs e HIV/Aids. O objetivo da ação é chamar a atenção do público sobre cuidados preventivos e romper estigmas, incentivando uma abordagem mais aberta sobre a importância do acesso a informações, do direito à liberdade de expressão, à segurança e ao respeito em todas as relações, como forma de promover saúde.
A partir de uma perspectiva sensível e diversa, a programação, que é gratuita, reúne oficinas, apresentações, performances, bate-papos e vivências que buscam desconstruir estereótipos que ainda povoam o imaginário coletivo. Entre os temas abordados estão o autocuidado, diversidades,
prevenção de ISTs/HIV e a quebra de estigmas e preconceitos. O projeto também prevê ações sobre direitos humanos e debates relacionados a gênero, raça e classe, e como as desigualdades sociais impactam a saúde de populações vulnerabilizadas.
“Desenvolver ações no campo da saúde sexual, para além da esfera biológica, pressupõe a valorização e o respeito à diversidade de corpos e expressões. O contato com outras culturas, manifestações artísticas e discussões sobre diferentes realidades possíveis permite que o público possa problematizar e experienciar novas concepções sociais de saúde. O universo de ações propostas pelo projeto inclui espaços dialógicos que compreendem ciclos de vida e diversidades, discutindo, além disso,
intersecções sociais e seus impactos sobre a saúde geral e sexual”, afirma Teresa Maria da Ponte Gutierrez, assistente na Gerência de Saúde e Odontologia do Sesc São Paulo.
Estão entre os destaques da programação, no Sesc Carmo, o bate-papo Potência, Resistência e Sensibilidade nas Ações Culturais em Saúde, que reúne, no dia 2/12, André Mesquita, curador do Masp, Ronaldo Serruya, ator e dramaturgo, e Marina Vergueiro, cinepoeta e jornalista, para falar sobre arte, comunicação e diversidades. No dia 3/12, o Sesc Avenida Paulista recebe o projeto Day With (Out) Art com o tema “Red Reminds Me”, com performance de Pepê Pota Marginal, e exibição de vídeos sobre o espectro emocional de viver com HIV nos dias de hoje, além do bate-papo Memórias de Aids
E, no Sesc 24 de Maio, Gretta Starr e Silvetty Montila se reúnem, em 3/12, para o bate-papo Memórias de São Paulo: A Arte Transformista na Resposta à Epidemia de HIV/Aids
Confira a programação completa em: sescsp.org.br/contato
O contato com diferentes culturas, manifestações artísticas e discussões sobre outras realidades possíveis permite que o público possa problematizar e experienciar novas concepções sociais de saúde.
Teresa Maria da Ponte Gutierrez, assistente na Gerência de Saúde e Odontologia do Sesc São Paulo
VOZES INSUBMISSAS
Já está disponível, gratuitamente, na plataforma de educação a distância do Sesc Digital o curso Dispositivo de Racialidade, com a filósofa, ativista antirracista e feminista Sueli Carneiro. As dinâmicas das relações raciais no Brasil são amplificadas por Sueli que, ao se basear no conceito de “dispositivo”, formulado por Michel Foucault (1926-1984), desenvolve uma análise sobre a existência de um mecanismo que configura a racialidade como um domínio. Para representar diferentes modalidades de resistência, ou seja, as vozes insubmissas que ousaram enfrentar os processos de assujeitamentos do dispositivo, Sueli convoca seus gigantes: Edson Cardoso, Sônia Nascimento, Fátima Oliveira e Arnaldo Xavier, cujos trechos dos testemunhos presentes na obra foram lidos no EAD pelos atores Thomás Aquino, Grace Passô, Naloana Costa e Jhonas Araújo, respectivamente. Inscreva-se em sescsp.org.br/ead
A filósofa Sueli Carneiro ministra o curso gratuito Dispositivo de Racialidade, disponível na plataforma EAD do Sesc.
DOSSIÊ
Na programação deste ano, o projeto Centro em Concerto une música clássica às sonoridades afrodiaspóricas.
TRADIÇÕES DA NEGRITUDE EM CONCERTO
Há 34 anos, o Sesc Carmo realiza o projeto Centro em Concerto, promovendo apresentações e ações formativas voltadas à música de concerto em várias estéticas. Com curadoria do jornalista Felipe Brito, a edição deste ano destaca as memórias negras da cidade, unindo música de concerto às tradições da negritude, como samba, terreiros, gospel e canto. No encerramento, dia 3/12, às 13h, haverá apresentação da
Cantata para Geraldo Filme em Quatro Movimentos, na Igreja Santa Cruz das Almas dos Enforcados. Em 4/12, às 18h, um bate-papo com Anna Maria Kieffer, Camila Fresca e Felipe Brito marca o lançamento da série Vozes de São Paulo no Sesc Digital. Produzida na edição do Centro em Concerto de 2022, a série reúne sonoridades e diversidade cultural da cidade, desde sua formação inicial até o século 21. Assista em sesc.digital
Memórias em exposição
A mostra Revista E – 30 Anos em Perspectiva faz uma homenagem às três décadas da publicação gratuita do Sesc São Paulo, dedicada à mediação cultural e ao diálogo do Sesc com seus públicos. Em exposição no Sesc Memórias, capas ampliadas revelam os temas que o Sesc destacou ao longo dos anos, em sintonia com contextos institucionais e sociais. A mostra também apresenta a evolução gráfica e editorial da revista, incluindo o período em que circulou apenas online, durante a pandemia. Para visitar, o acesso ao espaço é feito via agendamento prévio por sescmemorias@sescsp.org.br.
O Sesc Memórias atende o público de segunda a sexta, das 10h às 19h, no seguinte endereço: Rua Doutor Plínio Barreto, 285, 3º andar, Bela Vista. Saiba mais: sescsp.org.br/sescmemorias
Matheus José Maria (Vozes insubmissas) / Felipe Brito. Foto: Renato Di Giorgio (Tradições da negritude em concerto)
DOSSIÊ
E o
troféu vai para...
A 36ª edição do Troféu HQMIX, reconhecido como o “Oscar dos Quadrinhos” no Brasil, celebra os principais trabalhos de HQs, cartuns, charges e artes gráficas produzidos no país. A cada ano são escolhidos, por meio de votação, os que mais se destacaram entre as várias categorias que compõem a premiação. A estatueta desta edição homenageia a personagem Muriel, da cartunista
Laerte, simbolizando também a transição de gênero que conecta a personagem à autora. Outros nomes da produção de personagens sob a perspectiva LGBTQIA+, Henrique Magalhães e Anita Costa Prado, reforçam o coro das homenagens. A cerimônia de entrega dos troféus será realizada no Teatro Raul Cortez, do Sesc 14 Bis, no dia 11/12, às 19h. Saiba mais: sescsp.org.br/14bis
ENCONTRO DE GERAÇÕES
O pensamento sociológico e literário brasileiro pode ser dividido entre antes e depois das contribuições de Antonio Candido (1918-2017). Autor de obras fundamentais como Os Parceiros do Rio Bonito (1964) e Formação da Literatura Brasileira (1959), Candido defendeu, ao longo da vida, que o acesso à literatura é um direito
universal e essencial à formação integral do ser humano. Para além das salas de aula e das produções acadêmicas, as memórias e afetos de um dos mais importantes intelectuais brasileiros foram evidenciadas no documentário O avô na sala de estar: A prosa leve de Antonio Candido (2024), dirigido por Marcelo Machado
e Fabiana Werneck. As cenas foram captadas pela jornalista e neta de Antonio Candido, Maria Clara Vergueiro, durante quatro almoços na casa do mestre. No contexto singelo do cotidiano, a intimidade da relação próxima entre avô e neta revela outro lado desse personagem singular. Assista em sesctv.org.br/doc
No documentário O avô na sala de estar: A prosa leve de Antonio Candido (2024), a jornalista Maria Clara Vergueiro, neta do sociólogo, professor e crítico literário, mostra outras nuances do cotidiano do mestre.
FAÇA SUA CREDENCIAL PLENA
Pessoas que trabalham ou se aposentaram em empresas do comércio de bens, serviços ou turismo podem fazer gratuitamente a Credencial Plena do Sesc e ter acesso a muitos benefícios. São aceitos registro em carteira profissional (com contrato de trabalho ativo ou suspenso), contrato de trabalho temporário, termo de estágio e de jovem aprendiz, e pessoas desempregadas dessas empresas até 24 meses.
Para fazer ou renovar a Credencial
Plena de maneira online e de onde estiver, baixe o app Credencial Sesc SP ou acesse centralrelacionamento.sescsp. org.br. Se preferir, nesses mesmos locais é possível agendar horário para ir presencialmente a uma das Unidades (compareça com a documentação necessária).
A Credencial Plena é o acesso para trabalhadores e dependentes ao uso dos serviços e programações nas Unidades do Sesc.
Acesse o texto
Tudo o que você precisa saber sobre
a Credencial Plena do Sesc
Sobre a Credencial Plena:
• É gratuita
• Tem validade de até dois anos
• Pode ser utilizada nas Unidades do Sesc em todo o Brasil
• Prioriza os acessos às atividades do Sesc
• Oferece descontos nas atividades e serviços pagos
Faça a sua Credencial Plena online!
Baixe o app Credencial Sesc SP ou acesse centralrelacionamento. sescsp.org.br
PARA FAZER OU RENOVAR A CREDENCIAL PLENA DO SESC SÃO PAULO
Ricardo Ferreira
CURSO DISPOSITIVO DE RACIALIDADE
Com Sueli Carneiro
Neste curso online e gratuito, a filósofa e escritora discute temas como epistemicídio, ativismo negro e educação a partir do conceito de “dispositivo”, de Michel Foucault.
Participação de:
Grace Passô
Jhonas Araújo
Naloana Lima Costa
Thomás Aquino
Inscreva-se
sescsp.org.br/ead
Chama acesa
Expoente da cena contemporânea, a dramaturga e diretora peruana Mariana de Althaus acende a fagulha da esperança e convoca o público a repensar suas ações no mundo
POR MARIA JÚLIA LLEDÓ FOTOS ADRIANA VICHI
No cenário, folhas secas, uma mesa e um sofá ao redor do palco. O cheiro de eucalipto, em todo teatro, traz o público a uma imersão numa “floresta”. Neste ambiente, zona rural peruana, está a casa onde moram avó, mãe e filha que, em silêncio, queimam por dentro casos de abusos que vivenciaram. Por fora, acompanham, assustadas, pela janela, floresta e animais incendiados de maneira criminosa. Em Quemar el bosque contigo adentro [Queimar o bosque com você dentro], peça escrita e dirigida pela peruana Mariana de Althaus, uma das principais vozes do teatro ibero-americano da contemporaneidade, a violência começa com uma simples fagulha, a qual deixamos escapar, desatentos. Apresentado na sétima edição do MIRADA –Festival Ibero-Americano de Artes Cênicas, realizado em setembro, no Sesc Santos, que neste ano homenageou o Peru, Quemar el bosque contigo adentro e o segundo espetáculo de Althaus, levado ao festival La vida en otros planetas [A vida em outros planetas], trouxeram algo em comum.
Ambas as peças tocaram em feridas ainda tão presentes: a violência contra os corpos mais vulneráveis – mulheres, crianças, fauna, flora – e as injustiças sociais contra professores e alunos de escolas públicas em zonas rurais, no caso de La vida en otros planetas. No entanto, a diretora e dramaturga desdenha a resignação, e convoca o público ao exercício de empatia para a realização de uma mudança
a partir desse novo olhar para o outro. “Gostaria que as minhas obras levassem os espectadores a questionar seu papel em assuntos políticos e sociais que os afetam, sem deixar de lado o prazer, a celebração da vida e aquilo que os une, sem perder o sentido do humor, que é o que permite nos aproximarmos de nossas feridas”, disse Althaus.
Também faz parte da obra de Mariana de Althaus, que em junho completou 50 anos, uma revisão histórica do autoritarismo, da violência e de conflitos no país natal. Ponto este que converge com o tema de outros encenadores ibero-americanos, debruçados sobre uma crítica à história oficial que, por séculos, excluiu uma diversidade de protagonistas e narrativas. “Creio que o teatro seja um lugar que chama essas histórias. Por isso, acredito que também vamos ao teatro para recordar, para não voltar a cometer os erros do passado, para nos perguntar o que há no passado que segue acontecendo; o que no passado nos informa sobre o nosso presente e que não conseguimos ver. Às vezes, nos vemos mais refletidos pelo passado, que por um espelho aqui, próximo”, observa a diretora.
Nesta Entrevista, Mariana de Althaus fala sobre seu processo criativo, as motivações que transpõe para suas histórias encenadas no palco, de que forma o teatro testemunhal aproxima-se ainda mais do público, e como o humor pode disparar gatilhos.
O teatro de Mariana de Althaus convoca a esperança em tempos de desalento mundial.
Você já escreveu 26 peças, das quais dirigiu 20, e transita entre o documental, o testemunhal e o ficcional. Recentemente, adaptou uma ficção, A gaivota, de Anton Tchekhov. O que lhe atrai na escolha desses diferentes gêneros?
Na verdade, a maior parte das obras que já escrevi são ficções. Eu comecei pela ficção. Somente escrevi quatro obras de teatro testemunhal e esta – La vida en otros planetas [A vida em outros planetas] –, que é documental. Quanto ao teatro testemunhal, comecei a abordá-lo há 15 anos, mas alterno: escrevo uma obra de ficção, depois uma testemunhal. Escrevi também uma obra de autoficção, depois da pandemia, na qual a personagem é uma dramaturga, chama-se Mariana, e está em crise. E em 2024, estou fazendo uma versão própria de A gaivota, de Tchekhov. Essa é a primeira vez que adapto um texto clássico, ou parto de um texto clássico para criar algo próprio sobre meu país, sobre minha comunidade, sobre o mundo onde vivo. Então, essa é a primeira vez que monto uma obra de teatro clássica, mas com minhas palavras. Inclusive, tem outro título [Detrás ruge el lago, e em português, Atrás ruge o lago]. Antes, eu fiz uma versão de Os Irmãos Karamazov, de Dostoiévski, mas era um romance.
Na sua opinião, o teatro testemunhal chega mais próximo ao público?
O testemunhal tem uma particularidade. Quando os atores e atrizes estão no palco contando suas histórias, sem a máscara da ficção, enfrentam o pudor, a vergonha, o medo e isso é reconhecido pelo público. Assim, se estabelece uma conexão muito mais direta, sem intermediários, com a história. Como quando vamos ver uma obra
de ficção, de alguma maneira, estamos sentados nas poltronas, protegidos, porque sabemos que é mentira aquilo que está acontecendo em cena. E assim, ficamos tranquilos. Mas quando dizem no palco: “Isso não é mentira. Aconteceu conosco”, essa capa que nos protegia, que nos abrigava, cai e ficamos nus diante do que se apresenta. Aí se estabelece uma comunicação muito mais direta e forte, e se produz o efeito do espelho com mais intensidade. Ou seja, se eu conto no palco algo pessoal, com generosidade, sabendo que é algo universal, o público imediatamente pensa: “Comigo acontece o mesmo”; “Eu também me sinto assim”. Então, dá-se um diálogo intenso.
Como é seu processo criativo: a escrita vem acompanhada pelas cenas que você já imagina no palco? Porque, na maioria das vezes, você escreve e dirige seus próprios espetáculos.
Sim. Eu sempre imagino os corpos no palco em uma situação de conflito. E essa imagem me leva a escrever. Primeiro, escrevo várias versões do texto sozinha, às vezes quando faço teatro documental, escrevo paralelamente às entrevistas que faço com os artistas que estarão na obra. Então, esse material serve para que eu escreva. Chego ao primeiro dia de ensaio com uma boa versão, mas que na verdade é uma desculpa para começar outra etapa, que é a mais interessante: como levar essas palavras ao palco e como convertê-las num espetáculo? Aí sim, o texto vai se transformando conforme o que vai acontecendo com os dispositivos cênicos que encontramos: as necessidades do grupo de atores, as minhas novas ideias ou nossas novas ideias. Com isso, o texto que chega ao primeiro dia de ensaio é muito diferente daquele que escrevi em casa.
Chego ao primeiro dia de ensaio com uma boa versão, mas que na verdade é uma desculpa para começar outra etapa, que é a mais interessante: como levar essas palavras ao palco e como convertê-las num espetáculo?
Na sétima edição do MIRADA, três ramos deram suporte à pesquisa curatorial desenvolvida para compor a programação: o sonho, a floresta e a esperança. Gostaria que falasse da dimensão do sonho e da esperança, que estão presentes em seus espetáculos, principalmente em A vida em outros planetas, ao trazer a resistência e contribuição dos professores de escolas rurais peruanas para milhares de jovens. Como você chegou até essas histórias e de que forma pensou em adaptá-las para o teatro?
Acredito que A vida em outros planetas conta a história da possibilidade de sonhar. Porque no Peru e, imagino que, em muitos lugares da América Latina, há muitos meninos e meninas sem acesso à educação de qualidade e que não têm, portanto, sequer a possibilidade de sonhar com uma vida melhor que a de seus pais e avós. E são esses professores os protagonistas dessa obra, que dão a essas crianças a possibilidade de se desenvolverem de outra maneira e sair da pobreza. Portanto, de alguma maneira, o espetáculo conta a história de vários sonhos. Não se sabe se eles serão concretizados, mas ter a possibilidade de sonhar em nosso país é um privilégio. Tive acesso a essas histórias porque li um livro que se chama Desde el corazón de la educación rural [Desde o coração da educação rural (2023)], de Daniela Rotalde, uma peruana que reuniu histórias de diferentes professoras de um programa chamado Ensina Peru, que consiste em que egressos de universidades peruanas passem dois anos ensinando em escolas rurais abandonadas pelo Estado. São eles que dão esperança a essas crianças, dando-lhes ferramentas para enfrentar o mundo, mas também, para que creiam nelas mesmas. Essas histórias me sacudiram e me deram muita esperança, mas também, muita raiva, que são os dois pré-requisitos de uma história para que eu possa contá-la. Também tive acesso ao depoimento de outros professores e professoras. Reuni tudo isso e decidi criar uma obra de teatro.
Além de todo esse material, neste espetáculo, os atores também compartilham suas próprias experiências em escolas públicas, correto? Como foi essa contribuição?
Sim. Decidimos que os atores e atrizes que interpretariam esses professores tinham que ter passado pela experiência de alunos de escolas públicas, inclusive, de escolas rurais. Então, eles têm, em cena, a coragem e a generosidade de compartilhar episódios sobre seus colégios, mas também as dificuldades que seus pais tiveram, por exemplo, em escolas rurais, ou em escolas públicas muito precárias. Além disso, contam como seguiram adiante apesar de maus professores
O teatro é um espaço privilegiado para pensarmos enquanto comunidade, mas também para pensar em nossas feridas esquecidas ou ocultas
ou, talvez, graças a um professor que olhou para eles, os valorizou e lhes deu as ferramentas para seguir adiante.
Esse potencial de transformação da escola que vemos na peça é essencial para o desenvolvimento do pensamento crítico, principalmente em tempos de disseminação de fake news e discursos de ódio. Como analisa esse papel da escola hoje?
A escola tanto pode lhe dar a possibilidade de desenvolver seus valores e qualidades, como também, mutilar esses aspectos. A escola também é esse espaço onde, de repente, é possível crescer valorizando nossas especificidades e convertê-las em ferramentas para uma mudança, e para o pensamento crítico. Há uma educação tradicional muito vertical que põe o professor acima dos alunos, levando-os a uma ordem, na sala de aula, por meio de métodos punitivos. Uma verticalidade violenta, que inibe não somente os afetos, mas também a autoestima, a autovalorização e a possibilidade de se fazer perguntas sobre o mundo, sobre o espaço educativo, sobre sua própria vida e sobre seu país. Apesar disso, eu acredito que a escola é esse lugar ideal para exercitar justamente esse músculo do pensamento crítico, para se fazer perguntas sobre o mundo.
Essa capacidade de provocar reflexões foi uma das características que lhe encantou no fazer artístico? Sim, claro. Mas no teatro não vamos somente para refletir. Vamos para sonhar e, também, vamos para
encontrar a nós mesmos. Desde o princípio, eu via dessa forma, e hoje, mais do que nunca, acredito que a maioria das coisas com as quais vivemos – celular, computador etc. –, e como está organizada a nossa vida, nos afastam de nós mesmos. De nosso mundo interior, de nossas próprias necessidades. E o teatro, que é um lugar onde vamos ver o outro, também é um espelho que nos permite olhar para nós mesmos. Nos aproximar dos demais e de si. E, também, nos permite sentir menos sozinhos, porque estamos sempre pensando que somos defeituosos, que somos os únicos que têm uma ferida, que sentimos dor e que somos diferentes. Até que, no teatro, nos damos conta de que há outras pessoas que sofrem, assim como você, e não necessariamente pelas mesmas razões. Isso também pode nos levar a refletir sobre como o mundo está nos configurando de uma maneira. Como essa ferida está sendo provocada por um contexto político e que não necessariamente é você essa peça que não funciona no sistema.
Sobre o espetáculo Quemar el bosque contigo adentro [Queimar o bosque com você dentro], a violência de gênero e a violência contra a natureza dialogam. Como construiu esse paralelo entre esses dois tipos de violência, contra dois corpos tão distintos e tão similares?
Essa é uma obra de ficção que escrevi ao longo de muitos anos, enquanto escrevia outras obras, e que foi ganhando forma. Comecei com a história de três mulheres: uma avó, uma mãe e uma neta que vivem em um espaço rural ameaçado pelas violências da natureza, mas também pelas violências de gênero. Três mulheres assediadas por diferentes tipos de perigo no seu entorno. Enquanto eu escrevia, começavam a aparecer os animais feridos, como um reflexo das próprias feridas das três mulheres. Então, a obra passou a ser não sobre violência de gênero, mas sobre as violências patriarcais que atingem todos os corpos vulneráveis. Quer seja o corpo das mulheres ou o corpo das crianças, quer seja o corpo dos animais ou da natureza. A natureza, como esse corpo vulnerável, sempre exposta às violências dos seres humanos.
Outro tema também recorrente em sua carreira é revisão histórica. Seu espetáculo Ruído, por exemplo, foi montado no Brasil em 2022, e traz as suas memórias dos anos 1980. Acredita que seja possível falar sobre o passado de forma que o público mais jovem possa se identificar com ele e se comparar?
O teatro é uma arte que convoca todos os tempos. Se colocamos algo no palco, imediatamente sentimos os ecos do passado e do presente. O teatro é um espaço privilegiado para pensarmos enquanto comunidade, mas também para pensar em nossas feridas esquecidas ou ocultas. No cinema, talvez isso seja mais difícil, mas o teatro sempre nos leva a revisitar o passado e isso é fundamental, sobretudo, nesses tempos – creio que, ao menos, na Hispanoamérica, a memória esteja ameaçada. Temos medo da memória, medo de recordar os desaparecidos, os mortos, recordar que houve governos autoritários e que agora, voltamos a vê-los em alguns de nossos países. No Peru, por exemplo, temos muito medo
da memória. E o Estado persegue constantemente todos os espaços e oportunidades de memória. Há também um grande negacionismo sobre o que aconteceu. E isso acontece na Argentina, na Espanha… Creio que o teatro seja um lugar que chama essas histórias. Por isso, acredito que também vamos ao teatro para recordar, para não voltar a cometer os erros do passado, para nos perguntar o que há no passado que segue acontecendo; o que o passado nos informa sobre o nosso presente e que não conseguimos ver. Às vezes, nos vemos mais refletidos pelo passado, que por um espelho aqui, próximo.
Essa revisão histórica, seja no teatro peruano ou no teatro brasileiro, é um dos muitos pontos de convergência que existem entre as produções dramatúrgicas desses países?
Sim. Claro que há uma grande necessidade de memória em nossos países e o teatro acolhe essa necessidade. Vemos essa questão, constantemente, no teatro latino-americano. Histórias que se debruçam sobre o passado com a certeza
As atrizes Grapa Paola e Macla Yamada (à direita) interpretam avó e neta em Quemar el bosque contigo adentro, encenada no MIRADA - Festival Ibero-Americano de Artes Cênicas, em setembro deste ano, no Sesc Santos.
e a intuição de que há ali uma informação criptografada que está nos faltando para compreendermos o que está acontecendo hoje. Por isso é fascinante o teatro, porque ele nunca vai deixar de refletir sobre todos os lados: sobre o hoje, mas também sobre o ontem.
Na peça Ruído, o humor está presente – caso da personagem Augusta, mãe da família, que assiste à televisão compulsivamente e se sente orgulhosa por conseguir vinho argentino contrabandeado –, apesar de retratar, um cenário de escassez, violência e terrorismo. Como fazer uso do humor para tratar temas sensíveis? Às vezes, o humor é a única forma de tocar a ferida. Essa obra, Ruído, que foi montada em São Paulo [pela Cia do Escombro], é a obra mais engraçada que eu já escrevi e, curiosamente, ela trata sobre o momento mais difícil da minha vida, enquanto contexto histórico. No meu caso, minha adolescência foi o período de conflito armado no Peru. Em Lima, havia carros-bomba, apagões,
Acredito que também vamos ao teatro para recordar, para não voltar a cometer os erros do passado, para nos perguntar o que há no passado que segue acontecendo; o que o passado nos informa sobre o nosso presente e que não conseguimos ver
assassinatos e crise econômica. Minha adolescência se deu num entorno protegido e privilegiado, mas toda vez que íamos ao cinema, por exemplo, tínhamos que ensaiar como nos jogar ao chão caso houvesse bombas etc. Então, a forma que eu encontrei para falar desse momento foi por meio do humor. Talvez seja uma das obras mais engraçadas e, ao mesmo tempo, a mais dolorida.
Ao longo das últimas décadas, como você avalia a participação e reconhecimento das mulheres nos campos da direção e da dramaturgia no Peru?
Melhorou muito a participação das mulheres tanto na dramaturgia quanto na direção nos teatros de Lima, mas não sei se posso estender essa observação ao teatro feito em outras regiões do país. Em Lima, elevou a demanda por diretoras e dramaturgas. Algumas estão desenvolvendo uma carreira muito interessante e de maneira constante. No entanto, constatamos uma maioria masculina nesses postos, não pela falta de demanda e de oportunidades, mas por uma questão estrutural: em uma sociedade tão machista e patriarcal, ainda custa muito às mulheres acreditar que elas tenham uma voz importante para decidir ocupar postos de liderança.
Por fim, o que você gostaria de provocar no público com suas peças?
Talvez hoje, cada vez mais, tenhamos dificuldade para
escutar o outro. Estamos fechados em nossa própria verdade, em nossas próprias certezas. É mais difícil dar esse passo, tentar entender aquele que pensa de forma diferente da gente. E o teatro é esse lugar privilegiado em que um vai escutar o “inimigo”, aquele que não pensa como você, aquele que, na rotina, você assinalaria como “o mau”, “o incorreto”, “o injusto” e, talvez, no teatro possamos perceber que somos mais parecidos com ele do que sequer imaginávamos. E isso pode ajudar a nos compreender melhor e, também, a compreender o mundo. Acredito que o teatro seja um espaço privilegiado para provocar perguntas na comunidade. Gostaria que as minhas obras levassem os espectadores a questionar seu papel em assuntos políticos e sociais que os afetam, sem deixar de lado o prazer, a celebração da vida e aquilo que os une, sem perder o senso de humor, que é o que permite nos aproximarmos de nossas feridas.
Assista a trechos da entrevista com a dramaturga e diretora peruana Mariana de Althaus, realizada na sétima edição do MIRADA – Festival Ibero-Americano de Artes Cênicas, no Sesc Santos, em setembro de 2024.
sescsp.org.br/relicario
RENATO TEiXEiRA
AO ViVO NO SESC _ 1978
O ícone da música caipira brasileira traz o espírito da vida no interior em registro histórico no palco do Sesc Consolação
Relicário: Renato Teixeira (ao vivo no Sesc 1978)
Disponível em
Visite a loja virtual e conheça o catálogo completo sescsp.org.br/loja
/selosesc
entre colinas, HISTÓRIA
E ARTE
Conhecida como a capital do basquete e dos calçados, a cidade de Franca, no interior paulista, destaca-se como polo de resistência cultural
POR LÚCIA NASCIMENTO FOTOS MATHEUS JOSÉ MARIA PRODUÇÃO ADAUTO PERIN E INDIARA DUARTE
Moradora de Franca, Isa do Rosário foi convidada a expor suas obras na Bienal de Arte Contemporânea de Liverpool, no Reino Unido, em 2023.
Com quantas histórias se faz uma cidade? Se os caminhos percorridos forem geográficos, Franca é a cidade do noroeste paulista situada entre os rios Pardo e Grande, uma região de colinas. Se os caminhos forem ambientais, a imagem é de uma região de Cerrado, que também preserva áreas de Mata Atlântica. Se a história narrada for a oficial, aquela que aparece nos livros didáticos, Franca pode ser lembrada como a região que recebeu uma população grande vinda do estado de Minas Gerais, no início do século 19. Esse grupo de pessoas se estabeleceu em terras, hoje francanas, para formar uma vila que, em novembro de 1824, foi emancipada com o nome de Vila Franca do Imperador.
A história pode ser contada também por um viés econômico, e nesse caso não daria para deixar de lado as plantações de café e, posteriormente, a indústria que transformou a cidade na capital nacional do calçado. Se a opção for uma narrativa gastronômica, não ficariam de fora o tradicional filé à JK e a salada Dakota. Ainda é possível descrever a cidade lembrando algumas de suas glórias, como o orgulho por ver seu time de basquete tantas vezes campeão, ou por ser o berço de um dos maiores artistas visuais brasileiros, Abdias Nascimento (1914-2011), que chegou a ser indicado ao Prêmio Nobel da Paz de 2010 e que também foi deputado federal, senador e fundador do Teatro Experimental do Negro. Sempre há, no entanto, mais histórias a serem contadas.
“Há, em Franca, um protagonismo grande da população negra, mesmo diante de todos os racismos e da desigualdade social”, afirma Rosicler Lemos da Silva, doutora em serviço social e professora da Universidade Estadual Paulista (Unesp), além de ter
sido titular do Conselho Municipal de Participação e Desenvolvimento da Comunidade Negra de Franca (Comdecon). Para a pesquisadora, é fundamental olhar para esse protagonismo e conhecer uma história narrada por uma diversidade maior de pessoas, “aquelas que não estão nos livros ou que, quando aparecem, tantas vezes são lembradas apenas por terem sido escravizadas, e não como pessoas que também construíram a cidade, econômica e culturalmente”. Protagonistas que fazem de Franca, nos dias de hoje, um polo de resistência cultural.
TAMBOR DENTRO DO PEITO
Uma das vozes mais potentes da cidade é a do poeta Carlos de Assumpção, que hoje tem 97 anos. Nascido em Tietê, também no interior paulista, o poeta vive desde 1969 em Franca, onde escreveu grande parte de sua obra e cursou as faculdades de letras e direito na Unesp. Sua história com a poesia começou na infância, quando a mãe ensinava outras crianças a recitarem quadrinhas, que são poemas rimados de quatro versos, para animar as festividades da região. “Minha mãe tinha só o primário, mas lia muito e gostava de literatura. Ela ensaiava as quadrinhas em rodas com as crianças, e eu ficava assistindo. Achava aquilo bonito”, rememora Assumpção. Ele também se lembra de um poeta de Tietê, um repentista negro. “Ele parecia um Dom Quixote, e declamava poesia pelas ruas. Fazia crítica social, mas era analfabeto, não escrevia nada. Sei que esses dois fatos me entusiasmaram. Então, um dia, falei para minha mãe: vou ser poeta.” E, a partir daí, começou uma produção intensa, que alcança no poema “Protesto” um de seus pontos mais altos. Os versos iniciais anunciam: “Mesmo que voltem as costas / Às minhas palavras de fogo / Não pararei de gritar / Não pararei / Não pararei de gritar”. Para o poeta, o protesto é um modo de resistência e vice-versa.
Aos 97 anos, o poeta Carlos de Assumpção celebra os versos escritos ao longo de 55 anos em Franca.
É de um dos versos desse poema que vem o título da antologia Não pararei de gritar, publicada em 2020 pela editora Companhia das Letras. No posfácio, Alberto Pucheu, poeta e professor de teoria literária da faculdade de letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), escreve que, “ao sinalizar uma de nossas faltas fundadoras e revelar a exclusão como estratégia de domínio colonizador, a poesia de Carlos de Assumpção se apresenta como uma fundação tardia do Brasil”. Em seus versos, narrativas que sempre ficaram à margem ganham protagonismo. Situações de racismo são escancaradas, e é impossível não ver as tentativas de apagamento a que ainda é submetido o povo negro. “Muita gente diz que não existe racismo aqui, mas a escravidão brasileira foi terrível. Como nós somos atacados, vamos nos defender. De que forma? Adquirindo cultura”, sentencia o poeta.
VIDA PLENA / COM A BÊNÇÃO DOS ORIXÁS Carlos
de Assumpção, poeta
Apesar da potência de sua escrita, o trabalho do poeta ainda é pouco divulgado no mundo editorial, no meio jornalístico e nos espaços de crítica. Esse fato, no entanto, nunca foi suficiente para fazê-lo parar, mesmo tendo vivido períodos em que se distanciou dos versos. Professor primário nos anos de juventude, Carlos de Assumpção chegou a morar por alguns anos em São Paulo, mas nunca se deu muito bem com a capital. Foi assim que, no início dos anos 1960, mudou-se para uma cidade próxima de Franca, na barranca do Rio Grande. Contudo, ali, “não escrevi uma poesia sequer”, rememora. “Foi só em 1969, quando me mudei de vez para Franca, que a poesia despertou de novo.” O feito se deve a um desses encontros fortuitos da vida: “Encontrei um amigo que era muito exigente. Mostrei uma poesia e ele acabou comigo”. Foi quando o poeta, que nunca se deu por vencido, decidiu lapidar o poema: mudou o começo, repensou o final. Quando mostrou novamente seus escritos ao amigo, a reação foi completamente diferente, houve um maravilhamento. “Aí despertou tudo de novo”.
NOSSO TRABALHO ATUA
NA ECONOMIA
CRIATIVA,
O QUE IMPULSIONA A ECONOMIA LOCAL. ASSIM, PROMOVE O FORTALECIMENTO DA COMUNIDADE PELAS TROCAS DE EXPERIÊNCIAS E SABERES.
Eveline de Souza, artesã
SARAU PROTESTO
Se Franca foi a responsável pela continuidade da poesia de Carlos de Assumpção, foi também na cidade que ele idealizou o Sarau Protesto. Tudo começou com uma apresentação na Casa da Cultura e do Artista Francano, há cerca de dez anos. Assumpção e outros artistas da cidade convidaram um grupo de Ribeirão Preto para realizarem um sarau em que seriam declamadas poesias musicadas de Carlos de Assumpção e de outros artistas negros. Até aquele momento, as apresentações que faziam eram chamadas apenas de “sarau”, então o evento também marcou a escolha de um nome para o projeto: todos os participantes puderam votar na palavra que achassem mais interessante. “No começo, eu não queria que o sarau se chamasse ‘protesto’, mas fui vencido na votação. O povo brasileiro tem medo dessa palavra protesto, acham que é muito forte. Porém, é possível protestar por muitas coisas. Nós protestamos por dias melhores, por amizade, por amor, por fraternidade. Esse é o nosso protesto”, afirma Assumpção.
O Sarau reúne diversos artistas francanos, incluindo pessoas que foram alunas de Carlos de Assumpção quando ele ainda era professor primário, como o músico Don Antena, que teve aulas de caligrafia com o poeta, quando tinha cerca de dez anos. Depois da apresentação que marcou a nomeação do projeto, o
grupo passou a se apresentar pelo menos uma vez por mês no espaço cultural, mas não só. “O poeta e os integrantes do sarau começaram a visitar várias escolas da cidade. Por meio de poemas, de música, de tambor, apresentam críticas sociais fortes, principalmente contra os racismos”, explica Rosicler Lemos da Silva, professora da Unesp. E não para por aí.
Nessa década de existência, o Sarau Protesto já foi apresentado em diversas instituições. “Nós já fizemos uma edição para os moradores de rua. Foi bem interessante, eles puseram a melhor roupa, vieram todos arrumados”, lembra Assumpção. Se Franca fosse uma poesia, ela certamente seria assinada pelo poeta. Talvez seus versos dissessem: “A vida aqui tem sentido / Aqui é que é meu lugar / Agora livre de abismo / Livre pássaro a voar / Aqui tenho vida plena / Com a bênção dos orixás”, como dizem alguns dos versos de seu poema “Raízes”.
BONECAS PRETAS
Franca foi também a cidade escolhida pela artista e artesã Eveline de Souza. Nascida no Rio de Janeiro, ela chegou a Franca em 2015, quando o filho foi convidado a jogar num time de basquete local. Com o passar dos anos, o filho competiu em outros times, mudou de estado, mas Eveline de Souza permaneceu
Francana de coração, a carioca Eveline de Souza tece outros sonhos e futuros em forma de bonecas Abayomi.
EU NÃO BORDO SOZINHA, BORDO COM OS ORIXÁS, SÃO ELES QUE ME GUIAM.
ELES ME DIZEM O QUE FAZER, OS DESENHOS SÃO DAS VOZES QUE EU OUÇO.
Isa do Rosário, bordadeira, contadora de histórias e artista visual
na cidade. “Fui acolhida em Franca por uma família cujo filho também jogava basquete. Além de ser recebida pelo Comdecon, o Conselho Municipal de Participação e Desenvolvimento da Comunidade Negra de Franca. Eles formaram uma rede de apoio para mim. Tudo isso foi muito importante”, afirma. Hoje, é reconhecida na cidade por suas bonecas Abayomi, símbolo de resistência e ancestralidade.
“As Abayomis entraram na minha vida na década de 1980. Eu era professora da rede estadual do Rio de Janeiro, e os professores recebiam treinamento para trabalhar com os alunos em oficinas de baixo custo. Em uma dessas oficinas, aprendi a fazer as Abayomis”, lembra. As bonecas pretas são feitas de pano e a artesã lembra que elas foram criadas originalmente pela Lena Martins [artista maranhense nascida em 1950], com quem aprendeu a moldá-las. Nas últimas décadas, as Abayomis passaram a ser associadas a uma lenda que remonta à história das mulheres negras
escravizadas, mães que arrancavam retalhos de suas roupas para criar bonecas que seriam um acalanto para os filhos. Mas não há registros históricos sobre esse fato. “As bonecas Abayomi não são africanas, são brasileiras”, acredita a artesã. “Junto com as Abayomis que produzo, eu coloco uma cartinha, explicando que meu trabalho é uma releitura da criação da Lena, e que a história das bonecas feitas pelas mulheres que vinham escravizadas da África é uma lenda”.
Se a lenda se apropria da criação artesanal de uma boneca que nasceu livre e a substitui pelo relato de uma boneca dos tempos da escravidão, o trabalho de Eveline de Souza caminha no sentido contrário. Para ela, a cultura preta propicia o pertencimento e ajuda na criação de uma identidade cultural na cidade. Afinal, promove a diversidade e a aceitação, desenvolve a resistência e a resiliência, e ajuda a combater desigualdades. Sem contar seu papel para a economia local. “Franca é uma cidade com alto potencial
São muitos os protagonismos de Franca, cidade no interior do estado de São Paulo, com mais de 350 mil habitantes.
econômico, que pode oferecer oportunidades. E nosso trabalho atua na economia criativa, o que impulsiona a economia local. Assim, promove o fortalecimento da comunidade pelas trocas de experiências e saberes.”
Como o poeta Carlos de Assumpção, a artesã também acredita que a educação é instrumento-chave para a promoção de mudanças na sociedade. Por isso, seu trabalho envolve a realização de oficinas em escolas, nas universidades francanas e em Centros de Referência da Assistência Social (CRAS), onde ensina mais pessoas a produzirem suas próprias Abayomis, fomentando o reconhecimento de suas próprias histórias.
BORDADOS E ORIXÁS
O trabalho artístico da bordadeira, contadora de histórias e artista visual Isa do Rosário também tem relação profunda com a cidade de Franca. Há
cerca de 12 anos, representantes do movimento negro convidaram a artista para fazer contações de histórias afro-brasileiras na Casa da Cultura e do Artista Francano. A aproximação foi crescendo e, durante a pandemia de Covid-19, Rosário se mudou definitivamente para a cidade.
Nascida em Batatais, no interior paulista, e bisneta de um angolano que veio escravizado para o Brasil, a artista recebe influências de toda a sua ancestralidade para a realização de seu trabalho. “Eu fui iniciada no bordado com cinco anos. Minha avó fazia tapetes, colchas, e eu cortava os retalhos para ela. Minha mãe falava para eu fazer igual. No começo, eu não queria saber, mas depois fui gostando. Na pandemia, voltei definitivamente para o bordado”, diz. Suas criações mesclam materiais, pinturas em carvão, montagens com bordado e muitos tons de verde e azul. Há também estrelas, uma ressignificação daquele dito que nos lembra que nossos mortos viraram corpos celestes.
Apesar de já ter exposto em centros culturais e escolas por todo o estado de São Paulo, o reconhecimento de sua arte veio com um convite para expor na Bienal de Arte Contemporânea de Liverpool, no Reino Unido, ano passado. Um dos trabalhos expostos recebe o título de Dança com a Morte no Atlântico. Nele, a artista representa a vida e a morte: um memorial para todos os que perderam suas vidas durante o tráfico transatlântico de pessoas escravizadas. Ela também expôs sua coleção Orixás, obras têxteis guiadas por conversas espirituais da artista. “Eu não bordo sozinha, bordo com os Orixás, são eles que me guiam”, afirma. “Eles me dizem o que fazer, os desenhos são das vozes que eu ouço.”
PASSEIOS LITERÁRIOS
Se a arte é uma das possibilidades mais interessantes para conhecer a cultura de um lugar, uni-la a passeios pelas ruas é um modo inovador de visitar a cidade. No primeiro passeio literário idealizado por José Lourenço Alves, que também foi presidente da Academia Francana de Letras (AFL) entre 2021 e 2023, o tema foi a obra e a vida da escritora Carolina Maria de Jesus (1914-1977), que na década de 1920 morou em Franca. “Os passeios literários passam por alguns locais da cidade contando a história, mas não só aquela narrada por quem nos colonizou: eles contam, também, a história da população preta e periférica”, explica Rosicler Lemos da Silva, professora da Unesp.
Cada uma das mais de 20 edições do evento abordou obras de diferentes artistas, valorizando a cultura da cidade. “No começo, a gente procurou artistas francanas para declamar textos da Carolina Maria de
É INTERESSANTE ANDAR PELAS RUAS SABENDO ONDE ESTÁ PISANDO. MUITOS FRANCANOS ACABAM DESCOBRINDO FATOS QUE DESCONHECIAM.
José Lourenço Alves, idealizador
do Passeio Literário
Jesus”, lembra Alves. A iniciativa deu tão certo que as artistas passaram a se intitular As Carolinas e a realizar apresentações independentes dos passeios literários.
“É interessante andar pelas ruas sabendo onde está pisando. Muitos francanos acabam descobrindo fatos que desconheciam”, afirma o idealizador. Afinal, apesar de seu viés literário, os passeios também exploram a arquitetura, o espaço, a história e as raízes migratórias da região. São retomadas importantes de todos os capítulos que compõem a história da cidade. Os passeios, assim, permitem o resgate de raízes que muitas vezes não são consideradas por uma narrativa oficial. “Esse é o ponto forte do trabalho e é, também, o que inspira outros artistas”, finaliza.
para ver no sesc / expansão
O SESC EM FRANCA
A partir de 28 de novembro, o Sesc abre as portas na cidade, com uma programação diversa voltada para todos os públicos
A partir de uma arquitetura que privilegia os encontros, o Sesc Franca contará com os principais programas do Sesc São Paulo e terá capacidade para atender até 2,5 mil pessoas por dia. Na infraestrutura dessa que é a maior unidade do Sesc no interior paulista: piscinas, teatro (um dos maiores palcos do Sesc no Estado), quadras de areia, de campo, de grama e sintética, além de ginásio e sala de ginástica funcional. A unidade contará ainda com biblioteca, espaços expositivos; Espaço de Brincar, para bebês e crianças de até seis anos; e o Espaço de Tecnologias e Artes, que une laboratório e ateliê em atividades para públicos de todas as idades.
“Ao entregar sua nova unidade na cidade de Franca, o Sesc reafirma o compromisso com a sociedade em promover o desenvolvimento integral dos indivíduos, tendo a educação como eixo transversal e permanente. A iniciativa apoia-se nas experiências acumuladas pela instituição ao longo de seus 78 anos, voltadas à sua missão de buscar a melhoria da qualidade de vida dos trabalhadores do comércio de bens, serviços e turismo, seus familiares e da comunidade em geral. São esforços que se efetivam numa ampla programação com apresentações, cursos, encontros, vivências, entre outras propostas voltadas, essencialmente, ao exercício da cidadania”, afirma
Luiz Deoclecio Massaro Galina, diretor do Sesc São Paulo.
A programação de abertura, que acontece de 28 de novembro a 1º de dezembro, tem como destaque a exposição O Quilombismo: Documentos de uma Militância Pan-Africanista, que apresenta um panorama de obras e a trajetória do escritor, ator, dramaturgo, artista visual, político Abdias Nascimento. Além disso, a unidade receberá espetáculos musicais e cênicos e uma série de instalações e vivências que trazem para dentro do Sesc elementos do Cerrado, bioma predominante na região.
FRANCA
Inauguração
Dia 28/11, a partir das 10h. Grátis. Av. Doutor Ismael Alonso Y. Alonso, 3071. Jardim Piratininga II, Franca – SP sescsp.org.br/franca
Maior unidade no interior paulista tem capacidade para atender até 2,5 mil pessoas por dia
sinfonia VERDE
O olhar visionário de Tom Jobim, um dos criadores da Bossa Nova, e seu legado em defesa da natureza
POR MANUELA FERREIRA
Ocompositor, arranjador, maestro, pianista e cantor Antônio Carlos Brasileiro de Almeida Jobim (1927-1994) viveu, por muito tempo, entre dois endereços. O primeiro deles, uma ampla casa no bairro Jardim Botânico, no Rio de Janeiro, estava nas imediações da estátua do Cristo Redentor, cercado de árvores e pássaros nativos da Mata Atlântica. Na residência, tocava piano de frente para um janelão, de onde via o jardim em que gostava de brincar com a filha caçula, Maria Luiza. No segundo domicílio, um apartamento na ilha de Manhattan, em Nova York, nos Estados Unidos, a natureza se fazia presente nas caminhadas que o artista realizava, com regularidade, pelo Central Park.
Ambas moradas se tornaram emblemáticas em sua história pessoal e artística, e evidenciaram de onde partia a inspiração que permeou muitas de suas composições icônicas. Entre ipês amarelos, palmeiras-imperiais, embaúbas e samambaias, ou avistando as aves migratórias que pousam a cada mudança de estação no espaço verde nova-iorquino, Tom Jobim fez de sua obra uma vanguardista e sensível ode ao meio ambiente – temática que, três décadas após o seu falecimento, gera preocupações em todo o mundo.
Tyba / Foto: Ricardo Azoury
O maestro Tom Jobim e seu binóculos para observação dos pássaros, em sua casa no bairro Jardim Botânico, no Rio de Janeiro, em junho de 1980.
Uma síntese da postura pioneira do artista foi descrita pelo biógrafo e jornalista Ruy Castro no livro O Ouvidor do Brasil: 99 vezes Tom Jobim (Companhia das Letras, 2024). “Enquanto tantos de seus parceiros e contemporâneos foram reduzidos a referências nos livros de história, Tom parece fisicamente vivo e ativo. Mas sua preocupação com o meio ambiente, em termos de preservação e defesa de mares, matas e seres, que tantas incompreensões lhe rendeu, só há pouco entrou para a pauta nacional. Tom foi, antes de muitos, um ouvidor do Brasil, um ombudsman por conta própria. Ninguém o contratou ou escalou para isso, ao contrário – era um voluntário da pátria. E, não fosse ele um músico, ninguém mais equipado para ouvir o país, do pio do inhambu aos gritos da floresta sendo abatida de machado ou serra. Mas quantos outros músicos o seguiram nessa missão?”, questiona o escritor na crônica “O voluntário da pátria”, originalmente publicada no jornal Folha de S. Paulo e presente no livro recém-lançado.
HARMONIAS NATURAIS
A proximidade com a fauna brasileira esteve no centro, por exemplo, do processo criativo que resultou em alguns dos discos mais importantes da música brasileira, conforme explica o jornalista, pesquisador e escritor Rodrigo Faour, doutor em letras pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio) e autor de História da Música Popular Brasileira sem Preconceitos - Vol. 2 (Record, 2022). “A preocupação ecológica persegue Tom Jobim desde os anos 1970, como é flagrante nos álbuns Matita Perê (1973), Urubu (1976) e o posterior Passarim (1987) – os três com nomes de pássaros. Nesse meio tempo, ele compôs o clássico ‘Águas de março’ no seu sítio na cidade de Poço Fundo (MG), considerada uma das canções mais belas de todos os tempos”, explica Faour.
Lançada em 1972, “Águas de março” ganhou a versão definitiva ao lado de Elis Regina (1945-1982), no antológico álbum Elis & Tom (1974), “considerado pela crítica um dos dez melhores álbuns da MPB já gravados e cultuados mundialmente – era, por exemplo, o disco de cabeceira do cantor Tony Bennett (1926-2023)”, conta o pesquisador e jornalista. Com uma letra repleta de imagens sensoriais que versam sobre os constantes fluxos e renovações que a natureza provoca, ela se tornaria um dos marcos da carreira de Tom Jobim fora do país, amparada, sobretudo,
na sua versão em inglês, também de autoria do artista. “A música brasileira no exterior, que só era conhecida por meia dúzia de canções e, principalmente, pela figura de Carmen Miranda (1909-1955), passou a inscrever seu nome na história, graças à Bossa Nova, tendo as obras de Tom Jobim à frente”, analisa Rodrigo Faour.
MENINO DO RIO
Tal chegada no mercado internacional se deu, primeiro, com “A felicidade” (1965), parceria com o poeta e compositor Vinicius de Moraes (1913-1980), da trilha sonora do filme Orfeu (1959) e gravada por Agostinho dos Santos (1932-1973). “O impulso definitivo aconteceu após a gravação do álbum Desafinado, de Stan Getz (1927-1991) e Charlie Byrd (1925-1999), e do concerto da turma da Bossa Nova no Carnegie Hall [casa de espetáculos], em Nova York, ambos em 1962. No ano seguinte, sai The composer of Desafinado plays…, o primeiro álbum solo de Tom, feito sob medida para o mercado americano. Ali, gravou ‘O amor em paz’, ‘Água de beber’, ‘Vivo sonhando’, ‘O morro não tem vez’, ‘Insensatez’, ‘Corcovado’, ‘Samba de uma nota só’, ‘Meditação’, ‘Só danço samba’ e ‘Chega de saudade’”, detalha Faour.
Antes de morar na casa do Jardim Botânico, o maestro viveu no bairro de Ipanema nos anos 1960, em um apartamento na Rua Nascimento Silva, número 107 –local que se tornou famoso na canção “Carta ao Tom 74”, composta por Vinicius de Moraes e Toquinho. Àquela altura, já era um artista de alma boêmia e reconhecido mundialmente. No início de 1964, sairia o single do LP que João Gilberto (1931-2019) e Stan Getz (com Tom, ao piano) gravaram juntos, trazendo Astrud Gilberto (19402023) como vocalista. A escolhida? “Garota de Ipanema”, que em inglês foi intitulada “The girl from Ipanema”.
“Foi um estouro tão grande que rendeu ao disco três indicações e um prêmio Grammy que abocanhou no mesmo ano do estouro mundial dos Beatles, sendo o único ano em que o jazz superou a música pop nesta premiação. Para se ter uma ideia da revolução, esta canção, até hoje, é a segunda mais regravada no mundo inteiro e uma das 100 mais ouvidas nos Estados Unidos em todos os tempos. Os grandes jazzistas de então, carentes de um novo compositor que pudessem ‘jazzificar’ as canções, viram em Tom um mundo a ser explorado”, afirma Faour.
O maestro, músico e compositor carioca cantou as belezas do Rio de Janeiro, da "menina que vem e que passa" pela orla de Ipanema, mas principalmente os pássaros e as árvores da Mata Atlântica.
Onde quer que estivesse, suas janelas só davam para o Brasil. Ao abri-las, o que ele enxergava eram os recônditos da Amazônia, as águas da Lagoa, o mar do Arpoador, as majestades de pedra dos Dois Irmãos, os pequenos habitantes cascudos da floresta, a chuva na roseira, os tico-ticos passeando no molhado. Sua música tentou nos tornar melhores como brasileiros e nos alertar para a vida que, por cumplicidade e omissão, estávamos permitindo que fosse destruída.
Ruy Castro, trecho de “Em permanente estado de assembleia”, no livro O ouvidor do Brasil: 99 vezes Tom Jobim (Companhia das Letras, 2024)
MEU SABIÁ
Em 1967, veio a consagração definitiva de Tom e da própria música brasileira no exterior, com o álbum Francis Albert Sinatra & Antonio Carlos Jobim. “Frank Sinatra (1915-1998), então considerado o cantor mais popular do mundo, jamais havia feito um songbook de nenhum compositor. E eles ainda gravaram um novo álbum, com um lado inteiro só de músicas de Tom – Sinatra & Company, lançado em 1971. Dez anos depois, até mesmo a primeira-dama do jazz, Ella Fitzgerald (1917-1996), também lhe prestaria um tributo no LP Ella abraça Jobim. Na fase que morou nos Estados Unidos, Tom renovou seu prestígio em álbuns como Wave (1967), trazendo canções como a faixa-título e ‘Triste’, além de ‘Stone Flower’ (1970), em que relia ‘Sabiá’, dele com Chico Buarque”, esmiúça o escritor.
Nos versos de “Sabiá”, consagrada em primeiro lugar no III Festival Internacional da Canção, de 1968, sentimentos como saudade e nostalgia, trazidos pelo exílio vivenciado por muitos brasileiros no período, ganham representação
metafórica na figura do sabiá-laranjeira, ave típica da fauna brasileira, de gorjeio suave e melancólico. O canto dos pássaros era uma das maiores paixões do artista, que se definia como um ornitólogo amador.
Na casa do Jardim Botânico, Tom Jobim podia avistar, enquanto tocava piano, espécies como bem-te-vi, tiê-sangue, sanhaço e cambacica. “O [compositor e maestro] Heitor Villa-Lobos (1887-1959), conhece muito passarinho também. Inclusive, nas obras dele, coisas sinfônicas, você escuta pássaros. E eu posso te dizer que passarinho ele estava imitando com a orquestra”, disse Tom Jobim, em depoimento no documentário Visões do Paraíso (1997), do cineasta Lírio Ferreira. “Tudo o que eu fiz foi em decorrência da Mata Atlântica, da floresta Atlântica. A Mata Atlântica é esse espaço onde a vida tem seu máximo de explosão (...) Sempre vivi no mato. O Rio de Janeiro era todo mato. Eu comecei a me apaixonar por essa coisa toda muito antes de conhecer palavras como ecologia (...) e eu fui no dicionário ver o que era ecologia”, declarou o compositor, no mesmo depoimento.
CANÇÃO DO TEMPO
A temática ambiental retornaria na última entrevista do artista, em novembro de 1994, ao jornalista Walter da Silva para a Revista Qualis. “A Mata mais linda do mundo, com um clima tropical de montanha, quer dizer, faz até frio no alto da floresta, com mil espécies. Isso tudo foi arrasado! Quer dizer, sempre queimando o mato. Às vezes, nem cortar as madeiras-de-lei, eles cortaram, botaram fogo simplesmente. E com isso desaparecem centenas de espécies vegetais e animais, destruíram tudo. Lamentável essa coisa de sempre destruir tudo e plantar café, de plantar cana, que é a história do Rio de Janeiro, a história de São Paulo, a história do Paraná, a história da Mata Atlântica”, denunciou Jobim.
Em seu último trabalho, Antonio Brasileiro (1994), estavam “Piano na Mangueira”, composta com Chico Buarque, após o maestro ser homenageado pela escola de samba Estação Primeira de Mangueira, no Carnaval de 1992, e “Forever Green”, feita para a Conferência das Nações Unidas sobre o Desenvolvimento e Meio Ambiente, que ficou conhecida como ECO-92, realizada no Rio de Janeiro, em junho de 1992. Na época de seu falecimento, o artista estava finalizando o livro de fotografias intitulado Toda minha obra é inspirada na Mata Atlântica, lançado postumamente, em 2001, fruto de parceria com a esposa, cantora e fotógrafa Ana Lontra Jobim, responsável pelas imagens. Já havia composto mais de 400 letras e, mesmo assim, trabalhava todos os dias, sempre atento à vida ao seu redor e ávido por registrar tudo o que via, ouvia e sentia a partir do contato com o verde que tanto o emocionou e inspirou.
A BELEZA DOS ENCONTROS
Álbum Nana, Tom, Vinícius, indicado ao 22º Grammy Latino, é lançado em versão vinil pelo Selo Sesc
Selo Sesc lança na versão vinil o álbum Nana, Tom, Vinícius, da cantora Nana Caymmi, que interpreta canções da dupla Tom Jobim e Vinicius de Moraes. O disco, que tem direção artística, violão e arranjos de Dori Caymmi, traz releituras de clássicos como “Eu sei que vou te amar” e “Canção do amor demais”, escritas pelos lendários compositores. O álbum também registra as interpretações da cantora para “Valsa de Eurídice”, de Vinicius, e “As praias desertas”, de Jobim.
Indicado ao 22º Grammy Latino na categoria Álbum do Ano, a obra foi lançada em 2020 e marcou o retorno da cantora aos estúdios para gravar projetos solo, após um hiato de 10 anos. O disco tem, ainda, a participação de músicos da Orquestra de São Petersburgo,
da Rússia, responsáveis pelos instrumentos de cordas. A edição em vinil e capa gatefold (que abre como se fosse um livro) apresenta todo o repertório presente no álbum digital e CD, além de ter um encarte com as letras das canções e textos do compositor Dori Caymmi, do poeta e produtor Hermínio Bello de Carvalho e do diretor do Sesc São Paulo, Luiz Deoclecio Massaro Galina.
Acesse o QR Code e ouça o álbum Nana, Tom, Vinícius, do Selo Sesc.
Acervo Museu de Arte Negra / Ipeafro. Foto: Miguel Pacheco e Chaves
ENCANTADOR DE FUTUROS
A estética negra na obra visual de Abdias Nascimento como lugar político de fortalecimento e resgate das tradições africanas e afro-brasileiras
POR ANA CRISTINA PINHO
Máscara Ancestral (1988). Acrílica sobre tela.
Para algumas religiões de matriz africana, Xangô é o orixá da justiça, aquele que equilibra sabedoria e força para encarnar a luta por direitos e dignidade. Abdias Nascimento (1914-2011), que tinha Xangô como referência em discursos e criações, perseguiu, ao longo da vida, tanto a restituição da identidade cultural negra como transformações importantes nas relações raciais no Brasil.
Nascido 26 anos após a abolição jurídica da escravização, em 1914, na cidade de Franca (SP), era filho de Georgina Ferreira do Nascimento, conhecida como Dona Josina, doceira, ama de leite e especialista em plantas medicinais; e José Ferreira do Nascimento, Seu Bem-Bem, sapateiro. Teve seis irmãos. Abdias cresceu em um contexto de extrema desigualdade, cujos ecos da escravatura eram bastante presentes. Em suas palavras: “Nas fazendas que visitávamos, praticamente todos os negros (…) eram crias, filhos, netos e ex-escravos que trabalhavam em serviços domésticos. Não se chamavam eles como escravos, mas a estrutura do regime escravocrata ficava mantida ali, como se fosse imutável”, relatou em entrevista para a revista Acervo, publicada em 2009.
Aos 14 anos, mudou-se para a capital e participou do front paulista na Revolução Constitucionalista de 1932. Também foi a reuniões da Frente Negra Brasileira (FNB), uma das primeiras organizações do século 20 a exigir igualdade de direitos para a população negra. Pouco depois, ao viajar por países da América Latina, Abdias Nascimento foi duramente impactado em Lima, no Peru, ao assistir à peça O Imperador Jones, de Eugene O’Neill (1888-1953), na qual um ator branco havia pintado o rosto de preto para interpretar o personagem principal.
Indignado, voltou ao Brasil e fundou o Teatro Experimental do Negro (TEN), cuja atividade cênica influenciou uma geração de cidadãos negros por meio da conscientização racial, da crítica ao etnocentrismo europeu e da valorização da herança cultural africana. De acordo com Júlio Menezes Silva, jornalista no Instituto de Pesquisas e Estudos Afro-Brasileiros, o Ipeafro, “o Teatro Experimental do Negro foi um
momento de ruptura que permitiu que se passasse a considerar a atuação da pessoa negra dentro das artes cênicas. Foi a primeira companhia de teatro a possibilitar a atuação de negras e negros na condição de protagonistas, pensando o espetáculo do ponto de vista cênico, da direção, da produção”.
Além de dramaturgo, ator, escritor e professor, Abdias se dedicou também às artes visuais, depois dos 50 anos de idade. Como curador, liderou o desenvolvimento do Museu de Arte Negra, para divulgar a influência africana na arte moderna ocidental e representar a pluralidade da produção artística da diáspora negra. Sua obra visual como pintor é carregada de simbolismo africano e afro-brasileiro, explorando temas como ancestralidade, resistência, religiosidade e a força cultural dos povos africanos e seus descendentes. “A produção de Abdias como artista é um reflexo da produção dele como intelectual, como escritor, como dramaturgo, como ator. Ele faz um resgate das religiões de matrizes africanas na pintura, pensando que a religião, os orixás, não são deuses estagnados, eles são a vida, uma outra filosofia. São o vento, o mar, o rio”, destaca Douglas de Freitas, curador coordenador do Instituto Inhotim.
A multiplicidade de caminhos trilhados por Abdias alcançou a política. Suas propostas como deputado federal, senador e secretário de Estado influenciaram leis e políticas públicas em vigor hoje. “Ele propôs cotas na admissão às instituições de ensino superior, no mercado de trabalho, no funcionalismo público; também o ensino da história e cultura afro-brasileira e africana não só na educação básica, como também na educação superior; e a designação do dia 20 de novembro como o Dia Nacional da Consciência Negra”, relembra Elisa Larkin Nascimento, fundadora, com Abdias, do Ipeafro.
Aos 97 anos, Abdias Nascimento faleceu em maio de 2011. Tal qual o martelo de Xangô, ele forjou na força e na sabedoria o equilíbrio entre arte, política e resistência, não apenas para restituir a cultura afro-brasileira ao seu lugar, mas para reavivar a esperança de um país que um dia possa honrar, plenamente, suas verdadeiras origens.
Quilombismo (Exu e Ogum) (1980). Óleo sobre tela.
Composição nº 3 (1971). Acrílica sobre tela.
Xangô Rodrigues Alves (1970). Acrílica sobre tela.
Coleção Museu de Arte
Negra / Ipeafro. Foto: Daniel Mansur
Acervo Museu de Arte
Negra / Ipeafro. Foto: Ícaro Moreno
Onipotente e Imortal n. 1 (Adinkra Asante) (1992).
Acrílica sobre tela.
O vale do Exu (1969). Acrílica sobre tela.
Coleção Museu de Arte Negra / Ipeafro. Foto: Daniel Mansur
Paz e poder (1970).
Acrílica sobre linho.
O sonho nº 2 (1973). Acrílica sobre tela fixada em cartão.
Baía de Sangue (Luanda) (1996). Acrílica sobre tela.
para ver no sesc / gráfica
EXPRESSIVIDADE PAN-AFRICANISTA
Exposição no Sesc Franca retrata a obra e a trajetória de Abdias Nascimento
Pan-Africanismo e Quilombismo são conceitos que visam resgatar e fortalecer a ancestralidade africana, promover a autonomia cultural e política, e construir um futuro em que a população negra possa existir plenamente. O primeiro amplia a solidariedade e a resistência entre afrodescendentes numa perspectiva internacional, enquanto o segundo propõe um modelo de organização política e social inspirado na memória dos quilombos históricos, como o de Palmares. Na exposição Abdias Nascimento – O Quilombismo: Documentos de uma Militância Pan-Africanista, em cartaz até 29 de junho de 2025 no Sesc Franca, essas concepções ganham forma
e cor, traduzindo-se em uma linguagem visual e simbólica.
Em suas telas, elementos como máscaras, orixás e formas geométricas remetem a tradições culturais, não como elementos distantes, mas como forças vivas que conectam o passado ao presente e reivindicam um lugar legítimo das heranças culturais negras na construção da identidade brasileira. Para Douglas de Freitas, curador coordenador do Instituto Inhotim, a exposição que agora chega a Franca: “É um recorte de pinturas do Abdias, então é, de maneira geral, focado na produção pictórica, tendo em vista essa questão da religião como um movimento de luta antirracista e de resgate”.
A curadoria é assinada coletivamente por Douglas de Freitas, Deri Andrade e Lucas Menezes do Instituto Inhotim, e por Elisa Larkin Nascimento e Julio Menezes Silva do Instituto de Pesquisas e Estudos Afro-Brasileiros – Ipeafro. Ambos os institutos foram responsáveis pela primeira versão da montagem, em Brumadinho (MG), e agora se unem ao Sesc, triangulando essa construção institucional coletiva de valorização de todo o legado de Abdias.
Da combinação de Pan-Africanismo e Quilombismo nas pinturas de Abdias Nascimento, presente na mostra, evoca-se a ideia de uma rede global de resistência e apoio mútuo, em que os valores de solidariedade e autonomia se entrelaçam. Assim, suas obras não apenas celebram a cultura africana e afrodescendente, mas também se tornam convites para um movimento coletivo em defesa dos direitos humanos e da liberdade.
FRANCA
Abdias Nascimento –O Quilombismo: Documentos de uma
Militância Pan-Africanista
Curadoria: Douglas de Freitas, Deri Andrade e Lucas Menezes, do Instituto Inhotim, e Elisa Larkin Nascimento e Julio Menezes Silva, do Instituto de Pesquisas e Estudos Afro-Brasileiros – Ipeafro Programação de inauguração: de 28/11 a 1/12. Quinta a domingo, 10h às 18h30. De 3/12 a 29/06/25. Terça a sexta, 9h30 às 21h30. Sábados, domingos e feriados, 10h às 18h30. GRÁTIS. Saiba mais: sescsp.org.br/franca
A obra Anjo (1968) compõe a exposição no Sesc Franca, dedicada ao legado nas artes visuais de Abdias Nascimento.
ações para cidadania
DIVERSAS famílias
Mães, pais e filhos atípicos utilizam redes sociais para compartilhar informações, lutar contra o capacitismo e avançar na defesa da individualidade das pessoas com deficiência
POR LUNA D’ALAMA
Grávida de sete meses, a administradora de empresas
Mônica Pitanga teve uma apendicite supurada e precisou fazer uma cirurgia de emergência, que acabou incluindo uma cesariana para salvar a primogênita, Luísa, hoje com 21 anos. Mãe e filha foram para Unidades de Terapia Intensiva (UTIs) separadas, em Cachoeiro de Itapemirim (ES), e só se conheceram quando a menina já tinha dez dias de vida. A alta do bebê veio após quase um mês, associada a um diagnóstico de paralisia cerebral leve. Mônica ficou emocionalmente abalada, inclusive acredita que teve uma depressão pós-parto não tratada na época. Mas, ao lado do marido, o médico Bruno Pitanga, reuniu forças para enfrentar as adversidades, cuidar de Luísa e, tempos depois,
teve outros dois filhos: Thor, de 15 anos, e Laila, de 12.
Na pré-adolescência, Luísa precisou operar os quadris e nunca mais voltou a caminhar sem andador. Foi aí que os médicos a diagnosticaram com uma doença rara: Charcot-Marie-Tooth (CMT), que causa fraqueza e falta de sensibilidade e equilíbrio nas mãos e nos pés. Cerca de 80 mil brasileiros(as) e três milhões de pessoas em todo mundo vivem com CMT atualmente. “A primeira escola onde Luísa estudou não tinha acessibilidade, era impossível participar do recreio. Ela sofreu bullying, foi excluída. Quando passou no cursinho pré-vestibular, havia uma escadaria imensa, e o andador não entrava no banheiro. A instituição
sugeriu que ela estudasse de casa, em vez de promover adaptações”, conta Mônica.
Aos 15 anos, mãe e filha viajaram para Nova York (Estados Unidos), onde Luísa alugou uma scooter adaptada e, assim, pôde rodar pela ilha de Manhattan e região. Ficou impressionada com as calçadas largas, as rampas de acesso e os postes subterrâneos. “Na hora de voltar, ela me disse que não queria, pois lá poderia ser quem realmente era. Foi, então, que virei uma ‘mãe leoa’ e, em 2019, fundei a ONG Mova-se para conscientizar a sociedade – principalmente, crianças em escolas – sobre pessoas com deficiência”, revela. Mônica também começou a atender mães e pais, dar palestras sobre educação Arquivo pessoal
Luísa Pitanga e sua mãe em uma prova de corrida de rua neste ano. Na ocasião, Mônica Pitanga postou nas redes sociais: "Que possamos repensar os eventos e ambientes de modo que todos possam participar com equidade e dignidade".
ações para cidadania
positiva e escreveu o livro Pontos de afeto – Lições da maternidade atípica (Literare Books International, 2022), além de compartilhar esses assuntos em seu perfil no Instagram.
“Atendo muitas famílias que passam anos com o diagnóstico errado, ou que nem fecham um diagnóstico. Algumas doenças são menos conhecidas, outras ainda nem foram catalogadas. Por pior que seja, receber um diagnóstico é libertador, porque você entende o que está acontecendo. Mas um diagnóstico nunca define um indivíduo”, destaca Mônica. Segundo ela, cada criança e adolescente é único, tem temperamentos e necessidades diferentes, pontos fortes e fracos que precisam ser considerados. “O movimento das pessoas com deficiência diz: ‘Nada sobre nós sem nós’. Por isso, hoje a presidência da ONG é ocupada pela jornalista Bárbara Gaspari, que é cadeirante e tem paralisia cerebral. Precisamos avançar na educação inclusiva, usar os termos corretos, romper barreiras comunicacionais e atitudinais, lutar contra o capacitismo e possibilitar que essas pessoas ocupem espaços com protagonismo”, reivindica.
Hoje, Mônica vê na própria casa os resultados de sua luta: Luísa vive com bastante autonomia, cursa jornalismo, trabalha home office, tem conta em banco e paga seus próprios boletos. Também já viajou com amigas para o Maranhão e Minas Gerais, e foi para a Austrália visitar uma tia. “Isso é fruto do que plantei lá atrás, incentivando-a (e os demais filhos) a tomar decisões, resolver problemas e comunicar o que sente. É preciso enxergar além da deficiência”, enfatiza.
Este ano, em outubro, as duas resolveram aceitar um novo
desafio: uma corrida de rua de cinco quilômetros. “Não tinha categoria PCD [pessoa com deficiência], nem rampas, o asfalto era cheio de buracos, havia morro. Ficamos em 140º lugar. Fomos com mais três amigos com deficiência, em um grupo de 640 atletas. Mas terminamos o percurso”, comemora.
PERCEBER E ACOLHER
A médica veterinária Laís Palma Elsing estudava para um concurso público quando engravidou, sem tratamento, de trigêmeas: Athena, Sophia e Helena, hoje com seis anos. Durante o pré-natal, Laís
Ao lado do filho, Benyamin Luiz, de nove anos, a psicopedagoga Gabriela Pereira e seu marido, Moisés dos Santos: o casal compartilha o cotidiano nas redes sociais e no canal do YouTube Família Afro Atípica Arquivo pessoal
descobriu que havia um problema no cordão umbilical de uma das filhas. O trio nasceu prematuro, com 26 semanas de gestação. Foi um longo período de angústia na UTI neonatal. Helena nasceu com uma cardiopatia, precisou fazer uma cirurgia no coração, e tanto ela quanto Sophia foram diagnosticadas com síndrome de West, doença neurológica rara caracterizada por espasmos epiléticos e regressão ou atraso no desenvolvimento. Além disso, as três têm paralisia cerebral: Athena, grau I; e Sophia e Helena, grau V. Athena tem, ainda, transtorno do espectro autista (TEA), com nível de suporte 1.
ações para cidadania
PRECISAMOS
CRIAR NOSSOS FILHOS PARA SE RELACIONAR COM TODO MUNDO, E A SOCIEDADE, EM CONTRAPARTIDA, DEVE ABRIR A MENTE PARA ENTENDER A DIVERSIDADE
Gabriela Pereira, psicopedagoga e criadora do canal Família Afro Atípica
“Até me tornar mãe, eu nunca tinha convivido com pessoas com deficiência. No início, foi muito sofrido, tive que entender que eu mesma tinha preconceitos. Pensava no que poderia acontecer com minhas filhas se eu morresse, quem lidaria com essa situação. Demorei para entender que elas têm um diagnóstico, mas esse não é o destino delas. E, embora sejam trigêmeas, cada uma é única”, analisa Laís. Ela e o marido, o advogado Fernando Bucci, dividem os cuidados com os avós paternos, com a escola e com instituições onde as meninas fazem terapias, em São Paulo (SP). Mas a maternidade atípica de Laís é uma exceção num país onde, segundo pesquisas estatísticas, até 80% dos casamentos terminam em divórcio quando há um filho com deficiência. Muitas mães abandonam suas carreiras e vivem em função das crianças, inclusive virando enfermeiras ou terapeutas delas. “Há todo um machismo, o que intensifica a sobrecarga materna. Mesmo privilegiados, nós passamos por momentos difíceis, fui para a terapia”, lembra.
Laís avalia que a luta anticapacitista precisa ser uma desconstrução contínua e coletiva, que inclua toda a sociedade, políticas públicas e,
sobretudo, a educação, e fala sobre isso em seu perfil no Instagram. “As escolas ainda não são para todos, mas deveriam. A criança com deficiência tem que ser olhada, acolhida, e os pais atípicos também”, analisa. Athena, Sophia e Helena estudam no mesmo colégio, mas cada uma numa sala, com sua própria turma – o que ajuda na formação da identidade e da individualidade delas. “Temos que ir além das aparências, e não infantilizar ou vitimizar essas pessoas e suas famílias. Minhas filhas são indivíduos singulares, com qualidades e defeitos. Aliás, no aniversário delas, em novembro, cada uma optou por um tema diferente. “A gente que lute”, pontua a mãe, descontraída.
Para Laís, a sociedade precisa estar aberta para receber e conviver com as diversidades, outros corpos, gêneros, raças e orientações sexuais. “Só vamos conseguir um mundo mais justo e igualitário dessa forma. Aprendemos a respeitar as pessoas diferentes de nós quando convivemos com elas. Por isso, as pessoas com deficiência precisam ter representatividade, acessibilidade e dar as caras nas ruas, nos espaços públicos”, completa.
AFRO ATÍPICA
Segundo dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) feita em 2022, o número de pessoas com deficiência no Brasil, acima dos dois anos de idade, é estimado em 18,6 milhões, o que corresponde a 8,9% da população nessa faixa etária. A deficiência pode ser física, sensorial (auditiva, visual), intelectual, psicossocial ou múltipla. Na família da psicopedagoga, ativista e influenciadora digital Gabriela Pereira, de Sorocaba (SP), ela, o marido, Moisés dos Santos, e o filho, Benyamin Luiz, de nove anos, convivem com diferentes tipos de deficiências. Gaaby, como prefere ser chamada, foi diagnosticada há três anos com Transtorno do Déficit de Atenção com Hiperatividade (TDAH) e Transtorno do Espectro do Autismo [TEA] de nível suporte 1. Moisés também tem TDAH e está investigando TEA. Já Beny tem múltiplas deficiências: síndrome de Down, surdez, TEA (nível de suporte 2) e está sendo avaliado em relação a uma suspeita de TDAH.
“Os médicos diziam que eu era uma mãe especial, que meu filho era especial, não o chamavam pelo nome. Eu virei ‘mãezinha’. Antes do diagnóstico, já sabia que Beny
ações para cidadania
seria excluído socialmente, por ser preto, então me tornei mãe já com a consciência de que precisaria empoderá-lo”, ressalta Gaaby. Hoje, ela e o marido lutam contra o capacitismo e por políticas públicas que apoiem mães e pais atípicos.
Criaram, inclusive, o Instituto Ampara, para acolher famílias diversas. Com apenas 40 dias de vida, Beny fez um procedimento pulmonar e, com um ano, operou o coração. Andou aos três anos e meio, e hoje senta-se, pula e corre. “Gostamos de fazer textos bem-humorados, passar emoção e conscientização no canal [Família Afro Atípica, nas redes sociais e YouTube], nada de ficar com pena. Queremos que as pessoas reflitam, pois não existem verdades absolutas. Somos protagonistas da nossa própria história. Beny tem voz, apenas traduzo o que ele quer dizer, não falo por ele. Educamos nosso filho numa chave antirracista e anticapacitista”, explica Gaaby.
No início do ano, a família conseguiu verba pública para o menino fazer equoterapia (com cavalos), hidroterapia e terapia ocupacional –
as duas últimas foram interrompidas em junho, pelas instituições. “Com a equoterapia, por exemplo, o garoto fica mais tranquilo, melhora a postura, fortalece a cervical e desenvolve a atenção”, cita a mãe, que hoje dá palestras, presta consultorias e participa de congressos. “Levo meu filho a eventos de cultura negra, povos originários, pessoas LGBTQIAPN+, para ele também aprender a conviver com as diferenças. Precisamos criar nossos filhos para se relacionar com todo mundo, e a sociedade, em contrapartida, deve abrir a mente para entender a diversidade. Ferir a existência do outro é crime, e isso precisa ser responsabilizado. Ninguém tem que fazer pergunta, dar opinião ou conselho sem ser solicitado”, argumenta a mãe de Beny, uma criança que gosta de pipoca, salada e que detesta que o tratem como um bebê ou como se fosse de porcelana.
EXERCÍCIO DE PATERNIDADE
Editor da seção Vida Pública e colunista de Diversidade no jornal
Folha de S.Paulo, o jornalista Jairo Marques teve poliomielite aos nove meses de idade. Desde a infância, usa cadeira de rodas e, após os 40 anos, viu sua vida ser radicalmente transformada com a chegada de Elis, hoje com nove anos. Em seu canal Assim Como Você, Marques faz vídeos bem-humorados, escreve crônicas e conta histórias por um mundo mais diverso. “Não tinha planos de ser pai, foi um impacto muito grande na minha vida. Tinha receio de que um(a) filho(a) viesse a sofrer os reflexos das situações e dos preconceitos que enfrento. Tanto em termos de atitudes e comportamentos, quanto de barreiras físicas”, conta.
O jornalista e a mãe da menina se separaram há quatro anos e hoje compartilham a rotina da filha, em casas separadas. Marques revela que uma atitude frequente das pessoas, principalmente quando Elis era menor, era não o reconhecer como pai, estranhando quando o viam passeando com um bebê no shopping, por exemplo. “Havia uma preocupação, velada ou explícita, de a criança estar junto a um homem cadeirante. Ainda bem que Elis se adaptou rápido, tira tudo de letra, e hoje até guarda minha cadeira de rodas no porta-malas do carro”, acrescenta.
O jornalista acredita, acima de tudo, no poder da escola e da educação para transformar a sociedade num espaço mais inclusivo, diverso e acessível. “A criança precisa conviver com outras. Seja para aprender outros idiomas ou apenas ‘fofocar’, ela deve estar nesse ambiente, ser vista. Privar uma pessoa com deficiência disso é uma forma brutal de exclusão. Nós somos indivíduos plenos”, finaliza.
O colunista Jairo Marques viu sua vida mudar radicalmente com a chegada da filha Elis
para ver no sesc / ações para cidadania
ACESSIBILIDADE E PARTICIPAÇÃO
No mês do Dia Internacional da Pessoa com Deficiência (3/12), Sesc São Paulo encerra a sétima edição do projeto Modos de Acessar e faz parte da 10ª Virada Inclusiva
Atento às questões de diversidade, acessibilidade e visibilidade social das pessoas com deficiência, o Sesc São Paulo realiza até 3/12, em 29 unidades da capital, interior e litoral, a sétima edição do projeto Modos de Acessar. Na programação, espetáculos, oficinas, debates, entre outras atividades em diversas linguagens. Neste ano, o tema “Construindo acessibilidade em territórios diversos” joga luz sobre a acessibilidade como um processo contínuo de adaptação e aprendizado em seus locais de atuação.
“Os modos de acessar das pessoas são diversos, mudam ao longo da vida e dizem respeito a maneiras diferentes de habitar o mundo e experimentá-lo. Levar em conta essa diversidade no desenho de espaços e, sobretudo, nas relações é benéfico para a sociedade e fundamental para a ação cidadã do Sesc São Paulo, que, por meio da dimensão da educação permanente, busca promover o acesso à cultura, à participação social e ao desenvolvimento humano em todas as fases da vida”, afirma Lígia Zamaro, especialista em educação para acessibilidade da Gerência de Educação para Sustentabilidade e Cidadania do Sesc São Paulo.
Além disso, entre os dias 2 e 8/12, o Sesc São Paulo integra a Virada Inclusiva, iniciativa realizada desde 2010 pela Secretaria de Estado dos Direitos da Pessoa com Deficiência. A ação busca promover a participação e o protagonismo de pessoas com deficiência, por meio de atividades esportivas, culturais e educativas, em celebração ao Dia Internacional da Pessoa com Deficiência (3/12).
Confira destaques da programação:
CENTRO DE PESQUISA E FORMAÇÃO
Memórias do acesso: movimento pelos direitos da pessoa com deficiência
O encontro propõe um resgate de memórias sobre o movimento das pessoas com deficiência. Com as ativistas dos direitos das pessoas com deficiência Lia Crespo e Elza Ambrosio, pesquisadora. Mediação de Marta Almeida Gil. Dia 6/12. Sexta, das 15h às 17h30. GRÁTIS.
SANTOS
Artes manuais para jovens e adultos com deficiência intelectual
Oficina com Vânia Paula, Adriana de Souza e Renata de Barros
Dias. Por meio da construção de objetos, promove a interação entre os participantes e a reflexão sobre suas experiências. Pessoas com deficiência tuteladas devem participar com acompanhante ou responsável. Dia 8/12. Domingo, das 15h às 17h. GRÁTIS.
PINHEIROS
Mulheres, DEFs e arte
Com Isabel Portella, crítica de arte, Isadora Ifanger, artista DEF, Lua Cavalcante, artista e educadora. Mediação: Daniel Moraes, mestre em pintura pela Universidade de Lisboa. Dia 8/12. Domingo, das 13h às 15h30. A partir de 12 anos. GRÁTIS.
sescsp.org.br/modosdeacessar e pessoacomdeficiencia.sp.gov. br/virada-inclusiva-2024
Atividades culturais, educativas e esportivas compõem a programação da Virada Inclusiva no Sesc São Paulo.
GESTÃO cultural
Aincontestável diversidade cultural e pluralidade de expressões artísticas que constituem o Brasil ainda é questionada por políticas culturais que, identificadas com a “síndrome do patinho feio”, reforçam um pensamento eurocêntrico. Afinal, o que é cultura e por que se perpetuam medições, como alta ou baixa cultura? Seria o funk menos merecedor de incentivos que a música popular brasileira? Estariam em desvantagem a promoção e a preservação de festas populares, como o Maracatu Rural em Pernambuco, por leis de incentivo à cultura? Diante desses obstáculos, o trabalho de gestores culturais encontra-se permanentemente em um território de disputa.
“A cultura periférica, as expressões culturais tradicionais e as práticas artísticas que fogem a um determinado cânone, por vezes, ficam à margem dos recursos, reforçando desigualdades históricas. Superar esse modelo requer uma abordagem que privilegie a participação das diversas comunidades de fazedores de cultura na definição e implementação das políticas culturais”, aponta José Veríssimo Romão Netto, mestre e doutor em ciência política pela Universidade de São Paulo (USP), pesquisador do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (CEBRAP). Netto ainda confirma que
para uma mudança nesse cenário, “essa discussão requer uma dupla reflexão: o que entendemos por ‘cultura’, e que mecanismos institucionais têm sido utilizados para promover as políticas culturais?”, questiona.
Por isso, “a gestão da cultura mora nesse fio de navalha entre reiterar violências e alimentar potências”, observa Ivan Montanari, mestre em Gestão de Políticas Públicas pela Universidade de São Paulo (USP) e especialista em Gestão e Políticas Culturais pela Universidade de Girona (Espanha). “É fundamental compreender qual é a relação com o público que a gestão cultural promove: busca impor um modelo ou cria condições de autonomia para que este público defina suas próprias necessidades e alcance seus próprios fins? De que posição essa relação se dá: há uma visão horizontal com o público ou essa relação é hierárquica, de cima para baixo, como “quem tem cultura x quem não tem?” Essas são questões que vão do autoritarismo colonialista de [Marquês de] Pombal à liberdade de artistas de rua para performar sua arte; da ideia de levar cultura a de fomentar culturas, no plural”, conclui.
Neste Em Pauta, Montanari e Netto trazem conceitos, práticas e desafios no cenário da gestão cultural no Brasil.
Gestão da cultura: potências e violências
POR IVAN MONTANARI
Gestão cultural é um conjunto de práticas de planejamento, organização e direção, voltadas para a cultura. Falar de gestão cultural, então, implica falar sobre cultura. Cultura é um conceito muito abstrato e com muitos significados diferentes. Em alguns círculos sociais, por exemplo, cultura tem uma conotação positiva e costuma ser entendida como algo elevado. Essa visão concebe a cultura enquanto belas-artes: as linguagens artísticas de tradição europeia (como teatro, dança, música, artes visuais etc.). Aquilo que não se enquadra nessa ideia pode ser entendido, por esse olhar, como folclore, primitivo ou vulgar. De outro lado, há uma visão ampla, comumente referida como antropológica, na qual cultura aparece em oposição à ideia de natureza, relacionada com tudo que é próprio da humanidade, suas formas de viver e de se organizar. A amplitude desse sentido leva a um número praticamente infinito do que seria obra, expressão ou bem cultural: da linguagem e formas de culto a biotecnologias e estações espaciais.
A verdade é que deve haver teses e teses de doutorado buscando uma definição para o termo. As ideias são muitas – e, por vezes, contraditórias entre si. Quando falamos de gestão cultural, esbarramos nessa dimensão múltipla: trata-se de uma prática com uma gama imensa de possibilidades de ação. Assim, a gestão cultural é bastante subjetiva: envolve uma forma particular de perceber um contexto, uma realidade social, e de se difundir ou promover determinadas estéticas, fundamentos e valores. É a partir dessa visão que o gestor cultural propõe algum tipo de ação. Essa forma particular de enxergar um contexto e sugerir uma proposição nem sempre é bela ou boa – também existem culturas nocivas para outras pessoas, para o meio
ambiente etc. A imagem da cultura como algo elevado ou sublime é parcial e não dá conta das infinitas possibilidades de produção cultural.
No que se refere ao Estado, especialmente quando não há um órgão voltado à área, a gestão da cultura pode ser difusa. No entanto, se entendemos a língua como um bem cultural, em 1758, ainda no Brasil colônia, houve uma ação estatal que se enquadra como gestão da cultura: a proibição de outras línguas que não o português nos territórios da colônia, assinada pelo Marquês de Pombal (1699-1782). Foram proibidas as línguas de origem dos diversos povos indígenas e africanos, além das originadas da mistura entre essas e o português. Depois, nos períodos autoritários de Getúlio Vargas (de 1930 a 1945) e da ditadura militar (de 1964 a 1985), a gestão da cultura tinha a censura como uma das marcas mais importantes, embora esses mesmos regimes tenham desenvolvido formas de lidar com a cultura para além da censura, como a criação de órgãos específicos para a área (exemplos: Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, de 1937, e Conselho Federal de Cultura, de 1966). Assim, uma mesma gestão cultural pode agir de mais de um modo à sua prática.
No Brasil de hoje, a gestão cultural é praticada por instituições públicas (federais, estaduais e municipais), entidades do sistema S e do terceiro setor, empresas ou pessoas e coletivos, mais informalmente. Incluem-se em empresas, os canais de TV ou rádio, as redes sociais e as plataformas de streaming. Cada um desses agentes possui uma determinada visão do contexto, do que entende por cultura e do que considera uma ação válida nesse sentido. Independentemente disso, e olhando para um contexto democrático, a prática da gestão cultural envolve diferentes funções (com ideias do professor catalão Alfons Martinell): curadoria e definição das ações culturais a serem desenvolvidas; produção, organização e planejamento para operacionalizar as ações; funções de projeto (criação do documento, mobilização de equipe, captação de recursos e desenho dos conceitos); funções de mediação ou intermediação entre criadores e público, e entre esses e os demais envolvidos, como patrocinadores
A imagem da cultura como algo elevado ou sublime é parcial e não dá conta das infinitas possibilidades de produção cultural
e instituições; administração na lida com contratos, regras, leis, burocracias, recursos humanos e financeiros; facilitação, provendo os meios para que outros agentes alcancem seus fins, sem administrar os conteúdos, como a cessão de espaços; e funções criativas e inovadoras, com a capacidade de improvisação e de realizar coisas em formatos diferentes.
As ações culturais desenvolvidas por gestores de cultura podem ser divididas em: criação ou produção, quando se trata de uma nova obra de cultura; preservação ou conservação de obras já existentes; difusão, espalhamento ou exibição de obras, possibilitando assim o contato com o público; e formação, como cursos, oficinas, residências ou outros formatos. Também vale perceber a maneira como essas ações são definidas e realizadas: se há algum tipo de diálogo ou consulta pública; se essas definições se dão a partir de metadados, algoritmos e big data; se a execução se dá de maneira mais direta pela gestão ou se é realizada a partir de parcerias, podendo incluir transferência de recursos etc.
No entanto, essa classificação não aborda os conteúdos, ou seja, o que será criado, preservado, difundido ou objeto de ações de formação. Isso é definido pela gestão: por sua visão de cultura e sua percepção do contexto social em que as ações ocorrerão. Também a maneira de tomar a decisão é definida pela gestão cultural. Não há gestão cultural neutra, porque a definição de cultura, neste âmbito, passa sempre por uma dimensão subjetiva. Podemos, no entanto, elencar algumas tensões implicadas nessa decisão: pensar a partir da diversidade cultural ou focar em determinadas expressões culturais? Lidar com questões locais ou globais? Focar nas obras do presente, do passado ou que inovam e apontam
para o futuro? Promover expressões de cultura que podem ser entendidas como cânones ou fazeres culturais marginalizados/alternativos? Valorizar o produto final ou os processos de criação? Difundir o que vem de fora ou promover expressões locais?; entre outras questões. A definição, no caso da gestão cultural, está envolvida em um processo de (re)afirmar, questionar, resgatar e propor novos valores culturais em relação ao público para o qual suas ações se destinam.
Por último, é fundamental compreender qual é a relação com o público que a gestão cultural promove: busca impor um modelo ou cria condições de autonomia para que este público defina suas próprias necessidades e alcance seus próprios fins? De que posição essa relação se dá: há uma visão horizontal com o público ou essa relação é hierárquica, de cima para baixo, como “quem tem cultura x quem não tem”? Essas são questões que vão do autoritarismo colonialista de Pombal à liberdade de artistas de rua para performar sua arte; da ideia de levar cultura a de fomentar culturas, no plural. A gestão da cultura mora nesse fio de navalha entre reiterar violências e alimentar potências.
Ivan Montanari é mestre em Gestão de Políticas Públicas pela Universidade de São Paulo (USP) e especialista em Gestão e Políticas Culturais pela Cátedra UNESCO de Políticas Culturais e Cooperação da Universidade de Girona (Espanha).
Foi Secretário Municipal de Cultura e Turismo (SMCT) de Bragança Paulista (SP) em 2016. Atualmente é consultor em gestão e políticas culturais.
Políticas culturais e identidade(s) no Brasil
POR JOSÉ VERÍSSIMO ROMÃO NETTO
“– Ai! que preguiça!”. Há quem defenda que Macunaíma é um herói caleidoscópico em razão de suas faltas, disse Carlos Sandroni em Mário contra Macunaíma (Edições Sesc São Paulo, 2024). “Herói sem nenhum caráter”, Macunaíma não seria bom nem ruim, o que permitiu a Mário de Andrade (18931945) fazer uma crítica cultural contra a ideia de que o Brasil seria composto por várias faltas, manifestas em suas eternas incompletudes. Incompletudes retratadas ao avesso por Richard Morse (19222001) em O espelho de próspero (1982), ao defender um iberismo ainda encantado, não contaminado pela modernidade. A tradição conservadora do pensamento brasileiro sustentou a ideia da falta de uma cultura política nacional, apontando que, ao contrário das culturas europeias, o Brasil nunca teria tido seus druidas deliberando sob a sombra dos carvalhos e, assim, jamais estaria apto ao autogoverno, como ponderaram Visconde do Uruguai (1807-1866) e Oliveira Vianna (1883-1951).
Pensar em políticas culturais no Brasil é, em parte, enfrentar essa longa narrativa das supostas faltas que nos teriam constituído. Nesse contexto, o debate atual sobre a gestão de políticas culturais se reveste de uma urgência particular: como seguir na trilha da promoção de políticas culturais que reconheçam e valorizem a pluralidade brasileira, resistindo a discursos que tentam ler nossa produção cultural pela lente da falta? Essa discussão requer uma dupla reflexão: o que entendemos por “cultura”, e que mecanismos institucionais têm sido utilizados para promover as políticas culturais?
É importante começarmos pela evidente diversidade cultural e de expressões artísticas brasileiras. O Brasil é um país de contrastes: das tradições
indígenas às manifestações afro-brasileiras, das expressões amazônicas aos modos de vida sertanejos, das culturas urbanas periféricas aos diversos festejos religiosos. É verdade que discursos que evidenciam essa pluralidade têm influenciado as políticas públicas de cultura no Brasil, e essa pluralidade tem sido manifestada em diversos aspectos dessas políticas. Todavia, também é notório que ainda há acordes dissonantes que questionam manifestações artísticas a partir de aspectos que podem ser associados à narrativa da falta: a falta de “moralidade” em performances artísticas consideradas mais “ousadas”; a ausência de “valor cultural” em expressões artísticas periféricas; e a “falta de tradição” em movimentos culturais contemporâneos e urbanos, como as batalhas de rima e o pixo. Quem nunca ouviu: “Isso não é arte”; “Fulano não tem cultura”?
Acerca dos mecanismos institucionais que governam as políticas culturais, nota-se uma tensão entre uma visão gerencialista da cultura, que mede seu valor em termos de resultados e produtos entregues, e uma abordagem mais horizontal, que entende a cultura como um processo em rede. Por um lado, há os que defendem que uma política cultural eficaz deve ser planejada e avaliada com base em métricas claras, como o número de atividades culturais realizadas e a distribuição dos recursos investidos. Por outro, há quem argumente que essa visão reduz a cultura a uma mercadoria, ignorando a riqueza e a complexidade das expressões culturais.
Uma leitura possível é a de que a visão gerencialista tem uma proposição a partir de uma percepção da falta. Deve-se levar a cultura onde não há cultura; elevar o número de espetáculos na cidade; aumentar a quantidade de pessoas formadas em diversas expressões artísticas; e aumentar os gastos na área. Promover políticas culturais, na minha opinião, nunca é um equívoco. Errado é pensar em políticas culturais, exclusivamente, a partir do “quanto” sem incluir “com quem” e “para quê”.
Essa tensão se manifesta, por exemplo, na forma como se conduz a política de editais. Programas
como o ProAC, em São Paulo, representam uma tentativa de promover uma gestão cultural que contemple a diversidade, mas acabam reproduzindo uma lógica de competição e de avaliação que nem sempre são sensíveis às singularidades culturais. A cultura periférica, as expressões culturais tradicionais e as práticas artísticas que fogem a um determinado cânone, por vezes, ficam à margem dos recursos, reforçando desigualdades históricas. Superar esse modelo requer uma abordagem que privilegie a participação das diversas comunidades de fazedores de cultura na definição e implementação das políticas culturais.
Políticas culturais que favoreçam a lógica da governança em rede, diferentemente de um modelo que premia a competição, promovem espaços para que as redes definam suas agendas culturais. A luta por uma gestão cultural plural também precisa enfrentar a hegemonia do pensamento eurocêntrico. Museus, galerias e outros espaços culturais, por vezes, operam sob uma lógica de valorização da arte e da cultura baseada na falta. Como abrir espaço para que as culturas indígenas, quilombolas e outras brasilidades sejam reconhecidas e valorizadas pelo que têm a oferecer? Esse rompimento passa por esferas como o genuíno financiamento dessas expressões pelas elites econômicas para além da pontual renúncia fiscal; pelo aumento da diversidade nos seus conselhos curadores; pela democratização do acesso aos espaços; e, fundamentalmente, pela criação de espaços de participação compostos pela comunidade fazedora de arte e pela sociedade, consumidora de arte.
A gestão das políticas de cultura é um espaço do fazer político. A cultura é um espaço de disputa e con-
testação. Uma gestão cultural plural é, em última análise, uma ação política que combate a narrativa da falta ao preencher os espaços do fazer cultural com a diversidade brasileira, sem mirar-se no opaco espelho do Norte, que reflete apenas sua própria imagem. Esse fazer cultural não é estar alheio ao debate e à produção cultural com potencial de internacionalização ou, ao contrário, com exclusiva proposta regionalista. Políticas culturais diversas e inclusivas contribuem com a cultura a partir do Sul Global, implicando não apenas reconhecer vozes periféricas, mas criar estruturas que permitam sua expressão e protagonismo.
Uma gestão plural de políticas de cultura passa pela construção de políticas que reconheçam a cultura como um processo vivo e diverso, que não pode ser reduzido a métricas ou a proposições narrativas de falta. Ao abrir espaço para as múltiplas formas de expressão que compõem a cultura brasileira, as políticas culturais conversarão com o mundo de maneira polifônica, tomando parte em um caleidoscópio, como Mário de Andrade buscou representar. Dessa maneira, os números chegarão, com artistas e plateias satisfeitas em se reconhecer, e contarem ao mundo, em conjunto, quem são.
José Veríssimo Romão Netto é mestre e doutor em ciência política pela Universidade de São Paulo (USP). Atualmente é pesquisador do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (CEBRAP), onde atua investigando espaços participativos de cogestão entre a sociedade civil e o Estado em processos de formulação e implementação de políticas públicas.
Como seguir na trilha da promoção de políticas culturais que reconheçam e valorizem a pluralidade brasileira, resistindo a discursos que tentam ler nossa produção cultural pela lente da falta?
Doutor MARAVILHA
Médico infectologista, Vinícius Borges criou personagem e canal nas redes sociais há dez anos para falar sobre saúde sexual com a população LGBTQIA+
POR MARIA JÚLIA LLEDÓ
Pelos rincões do país, Doutor Maravilha atravessa distintas paisagens a fim de conversar com um público de diferentes idades, classes sociais e níveis de escolaridade, sobre saúde sexual. O personagem criado em 2015 pelo médico infectologista Vinícius Borges lhe rendeu bastante popularidade, o que foi essencial para o especialista levar conhecimento sobre HIV e ISTs (Infecções Sexualmente Transmissíveis) a um público cada vez maior. Estima-se que, atualmente, um milhão de pessoas vivam com HIV no Brasil, segundo dados do Ministério da Saúde. Desse total, 650 mil são do sexo masculino e 350 mil do sexo feminino.
No caso da comunidade LGBTQIA+ que vive com HIV, além do preconceito, há também lacunas no atendimento médico em centros urbanos, mas, majoritariamente,
em cidades interioranas. Com uma linguagem informal, e muito acolhimento e cuidado, Dr. Vinícius percebeu que pacientes com orientação sexual diferente da heteronormatividade sentiam medo de compartilhar dúvidas e queixas nos ambulatórios. A constatação surgiu quando ele fazia a residência de infectologia, em 2014. Foi o sinal que precisava para dedicar-se a esse público e derrubar fronteiras de desconhecimento e estigmatização.
Nas redes sociais, o Doutor Maravilha entra em ação, tirando dúvidas e falando sobre prevenção de doenças sexualmente transmissíveis, profilaxia pré e pós-exposição ao HIV (PrEP e PEP, respectivamente), entre outros temas. “O Brasil tem um dos melhores sistemas de saúde pública, referência no tratamento de HIV. Hoje a prevenção não é só
a camisinha, um ótimo método, mas que para funcionar tem que usar. Já são 40 anos falando da camisinha e a epidemia de HIV ainda não está controlada. Então, precisamos de outras ações”, reforça. Neste Encontros, o médico infectologista fala sobre viver e conviver com HIV, políticas públicas e desafios para acesso à prevenção e pesquisa da cura.
PERSONAGEM CATIVANTE
A questão de “sair do armário” para minha família foi bem cedo, acho que aos 18 anos, e para mim não era nenhum tipo de empecilho falar sobre a minha própria sexualidade, então, eu me perguntei: “Se posso conversar com as pessoas abertamente desse jeito num consultório, na residência, no hospital, nos ambulatórios, por que eu não faço isso numa escala
Nascido na cidade de Ijaci (MG), o médico formado pela Faculdade de Ciências Médicas de Minas Gerais, em 2011, encantou-se pela infectologia durante a residência no Hospital das Clínicas da UFMG.
maior? Foi aí que eu criei o blog Doutor Maravilha e a página no Facebook. No começo, pensei em criar uma persona para deixá-la mais afastada da minha pessoa física, seria o Doutor Maravilha: um médico abertamente gay, com estetoscópio de arco-íris, um jaleco esvoaçante. Pensava: ele vai ser o super-herói dos LGBTs. Em 2025, vai completar dez anos que criei a página Doutor Maravilha
Se atualmente médicos falam de uma maneira mais aberta, isso tem muito a ver, também, com o advento e o crescimento das redes sociais. Eu fui um dos pioneiros, mas hoje a gente vê médicos LGBTQIA+ de várias áreas.
DERRUBAR ESTIGMAS
Eu sempre digo: se você não vive com HIV, você convive com HIV. Viver é para quem foi diagnosticado, conviver é para todo mundo que tem algum conhecido – e com certeza você deve ter – vivendo com HIV. Às vezes, você não sabe porque não é uma coisa que as pessoas falam, justamente, pelo estigma; mas a chance de você ter namorado alguém, de ter algum conhecido ou primo vivendo com HIV é alta. Como Doutor Maravilha, pude viajar pelo país para dar palestras e conhecer muitos grupos de jovens. Tem gente que está há 15 anos tratando e ainda não falou para a família. Ninguém sabe. E quando precisa retirar remédio no SUS, paga a alguém, porque tem medo de ficar na fila. Uma vez, nos rincões do Brasil, estava falando de prevenção e uma senhora me interrompeu: “Queria saber se a minha filha, que acabou de ser diagnosticada com isso, pode usar o mesmo talher e o mesmo vaso sanitário?”. Isso foi há mais ou menos cinco anos.
LONGE DOS ÍDOLOS
O peso não é só do diagnóstico de HIV, que já traz as inseguranças inerentes, mas também vem à cabeça quem perdemos em 40 anos: ídolos, como Cazuza (1958-1990) e Renato Russo (1960-1996). Há o peso, também, de notícias preconceituosas. A gente mostra que não é assim: o HIV não precisa ser uma sentença de morte e de sofrimento. Ele modifica a sua vida, mas não cerceia os seus sonhos. Você pode seguir com qualidade de vida, por muito tempo, realizando seus objetivos. Mas o HIV gera, nesse começo, o medo da morte e o medo de como as pessoas vão reagir, que é a morte social, tão cruel quanto. Não basta tomar a medicação, a pessoa quer continuar inserida na sociedade e o remédio não tem esse poder. A informação existe, mas ela ainda está restrita a bolhas. No Brasil, a estimativa de 2019 era de 130
mil pessoas vivendo com HIV sem saber. Por isso, é muito importante mostrar para essas pessoas que elas não estão sozinhas, e que esses diagnósticos não são sentenças.
PELA LONGEVIDADE
É bom sempre separar: o HIV é um vírus, a exemplo do vírus da dengue, da gripe etc. Se eu me infectar hoje, vou ter HIV, mas não tenho a doença. A doença vai levar, em média, de oito a dez anos para se desenvolver – em alguns mais rapidamente, em outros, lentamente. Então, essa pessoa que é diagnosticada já no início, e que começa o tratamento – o ideal é iniciar em sete dias, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS) – consegue viver bem. Também é possível engravidar quando o vírus já estiver indetectável, mas a mãe não poderá amamentar. Já a pessoa com aids está um pouco mais debilitada, pode estar com tuberculose, pneumonia e infecções no cérebro. Nesses casos, a maioria tem cura. A vida sexual continua – a partir do momento em que o vírus fica indetectável e persiste indetectável, não se transmite mais o vírus por via sexual.
JOVENS E IDOSOS
Essa cultura de achar que todo idoso é igual ao meu pai, à minha mãe, ao meu avô… Outra questão, idosos não tiveram uma educação sexual, então muitos vieram de um mundo pré-aids, quando não tinha essa questão da utilização da camisinha, muito menos de PrEP [Profilaxia Pré-Exposição é um tratamento preventivo que combina dois medicamentos
O HIV NÃO PRECISA SER UMA SENTENÇA DE MORTE E DE SOFRIMENTO. ELE MODIFICA A SUA VIDA, MAS NÃO CERCEIA OS SEUS SONHOS.
para bloquear a entrada do HIV no organismo]. Hoje a gente sabe que há um envelhecimento mais saudável, então homens e mulheres estão ativos por mais tempo. A função sexual não se extingue, ela se modifica. E se não tomar cuidado, a terceira idade pode se infectar. Já os jovens, às vezes, a gente acha que eles sabem tudo, mas o nível de informação deles ainda é baixo. Nas escolas, nem se fala, porque tem a questão política que às vezes diminui o alcance da educação sexual.
VACINA E CURA
O HIV é um vírus simples de RNA, mas ele se multiplica e é mutável. Ou seja, se eu vivesse com HIV, o meu vírus seria diferente do seu, porque ele tem as próprias modificações. No Estudo Mosaico [realizado em oito países da Europa e Américas, incluindo os Estados Unidos, de 2019 a 2023] tentaram englobar vários tipos de vírus mais comuns para criar uma vacina. Na metade do estudo, fizeram uma análise preliminar para ver se estava protegendo ou não. Um grupo tomava a vacina e outro tomava PrEP. Viram que o grupo de PrEP estava mais protegido que
o da vacina. A dificuldade do HIV é que são vários tipos e subtipos, ou seja, não será uma vacina única que conseguirá nos proteger de todos. Além disso, esse é um vírus que tem facilidade de se esconder do sistema imunológico. Ele pode ficar escondido nos gânglios, no cérebro, nas gônadas, no fígado, onde o medicamento não consegue entrar, em reservatórios. Sobre a possibilidade de cura, nesse caminho, o pesquisador Ricardo Dias, da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), avalia como retirar esses vírus dos reservatórios para que o medicamento consiga agir. No entanto, se tiver cura ou não, a aids vai continuar existindo. Desigualdade econômica e de acesso à saúde, e a serviços básicos, matam tanto ou mais que o vírus em si.
DEMOCRATIZAR A PREVENÇÃO
O Brasil tem um dos melhores sistemas de saúde pública, referência no tratamento de HIV. Hoje a prevenção não é só a camisinha, um ótimo método, mas que para funcionar tem que usar. Já são 40 anos falando da camisinha e a epidemia de HIV ainda não está controlada. Então,
precisamos de outras ações. A prevenção combinada é o conjunto de prevenções, a PrEP e o PEP [Profilaxia Pós-Exposição, uma medida de prevenção de urgência para ser utilizada em situação de risco à infecção pelo HIV]. São Paulo é referência por ser a cidade do país que mais oferta PrEP. Não à toa, houve uma queda de 54% dos casos nos últimos anos. Você pode fazer uma consulta online com médicos, enfermeiros, profissionais de saúde da prefeitura, recebe uma receita com QR code, depois adquire o PrEP ou PEP em uma das máquinas instaladas nas estações de transporte público. Todos os países do mundo que estão conseguindo frear a epidemia de HIV-aids, estão ofertando PrEP. Pensando em política pública, é muito mais barato prevenir do que tratar sequelas. Então, isso precisa ser cada vez mais democratizado.
O médico infectologista Vinicius Borges participou da reunião virtual do Conselho Editorial da Revista E no dia 24 de outubro. A mediação do bate-papo foi de Rafaela Ometto, jornalista e editora web da Gerência de Saúde e Odontologia do Sesc São Paulo.
inéditos
NAQUELA MANHÃ
POR IGNÁCIO DE LOYOLA BRANDÃO ILUSTRAÇÕES JULIANA RUSSO
Naquela manhã de março de 1957, meu pai levou-me à estação ferroviária de Araraquara, onde nasci, para o momento decisivo de minha vida. Partir para São Paulo. Minha decisão foi dolorida para minha mãe. “Filho, fique! Arranje um bom emprego, case, tenha uma família, você precisa de segurança. Vá para a estrada de ferro, como se dizia.” Era a ferrovia. Havia duas que passavam pela cidade. A Paulista e a Araraquarense, a qual meu pai pertencia, ali ele fez carreira, passou a vida. Mamãe acrescentava, repetidas vezes: “Busque segurança, Ignácio. Preste concurso no Banco do Brasil ou na Caixa Econômica.”
Eu, do alto de meus 21 anos, já tendo assistido à Juventude transviada (1955), aderido ao rock de Elvis Presley e tendo James Dean como ídolo, respondi: “Não, mãe! Vou para São Paulo. Quero ser jornalista ou mexer com cinema, teatro, talvez escrever. Aqui não tem nada disso”. O “talvez” era mentira, escrever era tudo o que eu queria. Tive uma infância repleta de livros. Aos dez anos li um, achei espantoso, me comoveu. Alice no País das Maravilhas (1865), de Lewis Carroll. Um soco no estômago. Libertador. Ainda hoje releio fascinado. Foi dele a primeira grande lição de escrita que tive. A de que a realidade pode ser modificada, inventada, ser diferente, sem deixar de ser realidade. Ao crescer descobri que o mundo real é mais espantoso, às vezes absurdo, disparatado, ridículo.
Outro livro que li aos dez anos, e hoje mantenho na minha estante, é Robinson Crusoe, de Daniel Defoe. Um clássico publicado na Inglaterra, em 1719, com muito sucesso, e várias vezes adaptado para o cinema. Ainda releio, principalmente edições comentadas, para ver o que perdi e reganhar. Robinson sofreu um naufrágio e acabou isolado em uma ilha, onde ficou por 28 anos. Sozinho, como ele enfrentou? Em lugar de se deixar dominar pelo desespero, porque estava no meio do oceano imenso, sem a mínima possibilidade de comunicação, tratou de construir uma vida, erguendo uma casa, aprendendo a pescar, caçar e plantar para comer. Desde então, nunca mais tive medo da solidão, fico a imaginar como
inéditos
resolvê-la. O que eu queria e quero é viver. Hoje, vocês podem perguntar: e se Robinson tivesse um celular? Claro, resolveria. Porém o primeiro celular surgiu no mundo em 1973, ou seja, 254 anos depois do livro ter sido escrito.
As leituras foram herança de meu pai que, no início dos anos 1940, tinha uma biblioteca de mil volumes, comprados um a um, durante anos, fazendo economia tostão a tostão, como se dizia. Seria hoje centavo a centavo. Mas voltando à minha mãe, ela tinha razão. Minha avó Cecilia morreu quando mamãe tinha 13 anos e passou a cuidar de seis ou sete irmãos. Ela não terminou os estudos fundamentais. Ela pensou em segurança a vida inteira e sabia que meus caminhos eram “aventureiros”, não fixos. Uma pergunta recorrente de minha mãe ao meu pai era: “Totó, tem certeza de que não vamos perder a casa?”. Mas não me arrependi de um só passo que dei.
Trabalho ou emprego?
Naquele momento em que me colocava no trem, despedindo, meu pai perguntou:
– Ignácio, você quer trabalho ou emprego?
– Qual é, pai? É a mesma coisa!
– Não, filho, é diferente. Emprego você tem para ganhar
um salário a fim de pagar as contas, a comida, a escola dos filhos e algum para o divertimento. No trabalho, além de tudo isso, você coloca um sonho. Querer ser alguma coisa que faça sua vida diferente. Que te deixe sem fôlego pela alegria, ou sem fôlego pela dúvida.
Hoje, depois de publicar 56 livros, entre romances, contos, crônicas, viagens, biografias, infantis, depois de viajar pelo mundo e estar em duas academias, a Brasileira e a Paulista, e ser doutor Honoris Causa pela Unesp Araraquara, vejo que eu queria trabalho e sonho. E como sonhei.
Passei por muitos riscos, mas a vida é isso. O quanto hesitei ao passar de um jornal para uma revista, de uma revista para outra. Um dia, decidi abandonar tudo por um ano. Tentar a vida em Roma, enorme sonho. Cobri a morte do papa João XXIII, entrevistei Federico Fellini e Orson Welles, estive frente a frente com Elizabeth Taylor e vi que ela realmente tinha olhos violetas. Arrisquei, passei apertado, mas nunca passei fome. Entrei em canais errados, afundei. Fiquei mal. Mas, deixei para lá. Disse Churchill, um dos grandes primeiros-ministros da Inglaterra, que durante a Segunda Guerra Mundial ergueu e segurou o ânimo
do seu país, que na vida a gente pode fracassar o quanto for, desde que continue entusiasmado.
Decidi pelo jornalismo. Ele me levou à literatura, às viagens, ao cinema, ao palco. Duas professoras do Fundamental, Lourdes Prado e Ruth Segnini, me diziam: “Quer inspiração? Olhe pela janela! Saia à rua. Observe. Pergunte. Anote”. Um dia, aos 23 anos, perguntei a Nelson Rodrigues, o maior dos modernos dramaturgos, onde ele se inspirava para seus romances, crônicas e peças. Ele: “Olhando pela janela. A vida está toda aí, recolha. Mas saiba recolher e principalmente saiba olhar”. Terminou: “E saiba escrever”.
Assim vivi o Brasil, este país que sempre retratei. Jurandyr Gonçalves, professor de português no ginásio, me deu uma lição fundamental. Na aula de português, ele pediu que a classe lesse e comentasse o romance de Franz Kafka, A metamorfose (1915). Lemos com espanto e prazer a história de um jovem que acorda, certa manhã, transformado em um estranho inseto. Muitos dizem que seria uma barata, mas o tradutor Modesto Carone, em belíssimo trabalho, se refere ao bicho como repulsivo inseto. E o livro inteiro é narrado do ponto de vista
deste bicho. E assim, atravessamos entre problemas do cotidiano humano, das dores, angústias, sonhos. Todos os problemas e angústias dos humanos estão aqui, o bem e o mal, as relações em família, a sociedade complexa. Quando, ao ser arguido, disse ao professor que tinha adorado, mas achado absurdo demais, ele respondeu: “Não tenha medo, a vida é mais absurda que o próprio absurdo”.
Arrisquei. Hoje sou escritor, estou em duas academias, viajei o mundo, sou cronista, faço palestras por este país afora, conversando com estudantes e professores. Velhos amigos me abraçam: “Está na boa, hein? Em todos os jornais, televisão, famoso”. Replico: “Não ganho por notícia, ganho pelo trabalho, pelo que escrevo”. Não sou um homem solitário. Sempre penso que, em algum momento, alguém esteja lendo uma página que escrevi, afinal são 56 livros e 10 mil crônicas em jornal. Ao ler e gostar, essa pessoa transfere este amor para mim.
Confesso que ouço com frequência uma pergunta insólita. Amigos de muitos anos, ou recentes, indagam: “– Ignácio, você não trabalha? Não faz nada? Só escreve?”. A princípio, eu imaginava que trabalhar era aquilo que meu pai fazia. Acordava cedo, tomava café, ia para o escritório, voltava para o almoço, regressava à escrivaninha, mexia com papeis, contas etc. A rotina clássica, a repetição, a mesmice. Aquela geração envelhecia cedo. Um dia, anos 1960, repórter do jornal Última Hora – que desapareceu – fui entrevistar Vinicius de Moraes, poeta, compositor, cantor e casador. Casou-se nove vezes com interessantes mulheres. Conta-se que um dia se aproximou da linda baiana Gessy Gesse e indagou: “Quer ser minha viúva?”. Ela quis. Naquela tarde, Vinicius estava sentado na varanda de um restaurante, a imprensa toda à sua frente, o filme Orfeu Negro, por ele escrito, tinha ganhado o Oscar de Melhor Filme Estrangeiro. O compositor-escritor tinha sobre a mesa um litro de uísque, um copão e um balde de gelo. E ia respondendo e bebendo, mantendo-se impecável. Um jornalista não resistiu: “Que bela vida o senhor leva, hein? É famoso, casado com belas mulheres, cinco da tarde está aqui dando entrevista, sentado, tomando um uíscão, despreocupado”.
Vinicius olhou: “– Você não entendeu nada? Não percebe que isso é parte do meu trabalho? O que faço em casa, o suor, a busca de uma ideia, elaborar o poema, isso ninguém vê”. Desde então, mudei meu conceito de trabalho. Ele não é apenas suor e angústia, é também divertimento, fairplay, prazer, sonho, a delícia de fazer o que gosta, mesmo que tenha muito trabalho.
Chegado aos 88 anos, viajo e faço palestras. Ainda há pouco, em Aracaju (SE), terminada uma fala com estudantes, uma jovem perguntou:
“– Qual é o seu segredo? Nesta idade, viaja, fala, não tem voz de velho... Qual é sua fórmula? A receita? Não fuma, não bebe, faz exercícios especiais? O quê? Como chegou até aqui?”
Fiquei me perguntando: O que é voz de velho? Envelhecer. A mídia está coalhada de fórmulas e remédios para tudo. Ora pro nobis, massagens, colágenos, fitoterapias para ter cabelo, não ter ruga. Respondi: “– Fórmula? Receita? Sabe por que estou aqui?”. Aos 88 anos? Simples: Porque não morri”.
Foi uma gargalhada só. Estou aqui porque na minha frente sempre tem um projeto, um sonho, algo a fazer. E corro atrás. Li uma frase, creio que de Bertrand Russell, o filósofo pacifista que aos 95 anos ainda tomava parte em passeatas em Londres: “Quando uma pessoa se aproxima do fim, procura saber o sentido da vida”. Descobri isso aos 16 anos, quando escrevi meu primeiro texto, uma crítica de cinema. Com a escrita entendi, retratei o Brasil e os brasileiros. E ainda tenho projetos. Caminho, eles também.
Assim continuo indo em frente.
Ignácio de Loyola Brandão, jornalista e escritor, nasceu em Araraquara (SP), em 1936. Tem 56 livros publicados, entre romances, contos, crônicas, infantis, biografias e uma peça teatral. É vencedor do Prêmio Machado de Assis, da Academia Brasileira de Letras, em 2016, como Mestre da Narrativa. Seu mais conhecido romance, Não verás país nenhum (Global, 2008), tornou-se clássico do ambientalismo no Brasil. Pertence às Academias Brasileira e Paulista de Letras e é doutor Honoris Causa pela Unesp Araraquara.
Juliana Russo é artista visual, desenhista, curadora, montadora, ativista pelos direitos dos povos originários, pelo direito à moradia e profundamente interessada pelas propriedades curativas das plantas. Desde 2004, mescla seu trabalho autoral com ilustrações para revistas, jornais e livros. Em 2015, lançou seu primeiro livro autoral, São Paulo Infinita (Gustavo Gili).
depoimento
ENTRE MUNDOS
Ator, diretor e professor, Caio Blat mergulha em diferentes contextos sociais e histórias de vida ao longo de mais de 30 anos de carreira
POR MARIA JÚLIA LLEDÓ
Não duvide se o livro Dias absurdos for publicado pelo ator, diretor e professor do Grupo Nós do Morro, Caio Blat. Mesmo que o tenha como um rascunho despretensioso e título pré-definido, o artista nascido na capital paulista poderia se aventurar no meio literário. Afinal, em mais de três décadas de carreira – 30 peças, 30 filmes e 30 novelas –, ele coleciona vivências tão surpreendentes quanto díspares. Passou meses na extinta Casa de Detenção de São Paulo para o filme Carandiru (2003) de Hector Babenco; conviveu com monges budistas no Nepal, para a novela Joia Rara (2013), da rede Globo; esteve com os povos indígenas do Xingu, nas gravações de Xingu (2012), de Cao Hamburger, entre muitos outros cenários.
Nascido em uma família de médicos e dentistas, Caio Blat cresceu no bairro do Ipiranga, zona Sul da cidade, e não pensava em ser ator como o primo Ricardo Blat. Até que, encorajado pela mãe, fez testes para comerciais e, logo, estreou na televisão, aos 10 anos. Seu primeiro papel foi na TV Cultura, uma participação na série Mundo da Lua, em 1992, ao lado dos veteranos Gianfrancesco Guarnieri (1934-2006) e Antônio Fagundes. Blat ainda cursou, por pouco tempo, a Faculdade de Direito do Largo São Francisco, em São Paulo, mas deixou o curso para apostar todas as fichas nas artes. Sua formação foi construída, principalmente, pela troca com atores e diretores, como Fauzi Arap (1938-2013), Felipe Hirsch e Bia Lessa, com
quem trabalhou no espetáculo Grande Sertão: Veredas (2017) e no filme O diabo na rua no meio do redemunho (2023), ambas leituras da obra-prima de Guimarães Rosa (1908-1967).
Caio Blat prepara-se para a realização de um projeto gestado há mais de 20 anos: a estreia da peça Os Irmãos Karamazov , obra de Dostoiévski,
Caio Blat no Centro de Pesquisa e Formação (CPF) do Sesc São Paulo, onde falou sobre vida e carreira na atividade Em Primeira Pessoa, no mês de julho de 2024.
sob sua direção e adaptação. Neste Depoimento , o ator e diretor fala sobre seu mais recente trabalho no teatro, episódios da carreira, o mergulho nos personagens, entre outros temas.
mirim
Eu sempre admirei muito o Ricardo [Blat], ia a todas as peças quando ele estava em cartaz em São Paulo, acho que ele é um dos atores
mais complexos do Brasil, um cara revolucionário. Mas a gente não tinha uma relação próxima. Ele morava no Rio e a gente em São Paulo. Eu cresci no Ipiranga e a minha família toda é de médicos e dentistas. A minha mãe tinha uma paciente cujo filho fazia propagandas, e ela falou: “Por que você não leva o Caio?”. Daí, minha mãe me levou para uma agência infantil, quando eu tinha oito ou
nove anos. Eu não fazia a menor ideia do que estava fazendo ali. Realmente foi uma coisa que a minha mãe sacou. Fiz um teste, lembro que tinha umas 400, 500 crianças esperando. Fui sem nenhuma preparação, mas passei. Aí, comecei a fazer muitas propagandas. Hoje em dia, a profissão do ator mirim é super regulamentada, e na minha época não tinha nada disso.
Adriana
Vichi
astronauta
Até hoje, a TV Cultura é um patrimônio e, naquela época [anos 1990], estava produzindo coisas lindas como Mundo da Lua (1991-1992), uma série com Antônio Fagundes, Gianfrancesco Guarnieri. Fiz uma participação na série, foi meu primeiro trabalho na televisão, devia ser 1992. Depois, fiquei na Cultura fazendo um programa educativo que se chamava O Professor (1992) – a gente ia na casa de um vizinho que era professor e, se a bicicleta estivesse quebrada, ele dava uma explicação sobre roldanas etc. Então, tive o privilégio de aprender como funciona o meio da televisão na TV Cultura, que era um ambiente acolhedor com as crianças, com a educação.
mestres
Em 1994, o SBT trouxe grandes atores e produziu uma coisa belíssima que foi a novela Éramos Seis, com Irene Ravache, Othon Bastos, Nathália Timberg, Jussara Freire… Enfim, era um elenco absurdo. Eu, ainda moleque, tive a experiência de fazer minha primeira novela e logo uma novela dirigida por Nilton Travesso e Henrique Martins. Tive uma escola muito privilegiada: convivi com essas pessoas na minha infância. Aprendi na prática a fazer coisas lindas. Dali, eu ia correndo para a aula depois. Eu tinha a carreira de ator como um grande aprendizado, um hobby. Por ser uma carreira que não dá segurança. Então, eu tinha essa cobrança dos meus pais: “Isso aí é só uma brincadeira”.
escolhas
Estava fazendo uma peça com o Vladimir Capella (1951-2015), grande diretor de peças infantis. Era O homem das galochas, no
Sesc Consolação, baseada na vida e obra de Hans Christian Andersen (1805-1875). Uma grande produção, cenário do J.C. Serroni, uma das minhas primeiras peças de teatro, porque o pessoal da novela Éramos Seis me puxou para algumas produções. Comecei a fazer teatro na Praça Roosevelt e, depois, no Sesc Consolação. Conforme foi chegando o dia da estreia, vi que coincidia com o dia da Fuvest. Eu sempre quis estudar no Largo São Francisco pela história da faculdade, pelas pessoas que estudaram lá: os poetas Álvares de Azevedo (1831-1852) e Castro Alves (1847-1871), os atores Paulo Autran (1922-2007) e Zé Celso (1937-2023). Quando chegou o dia, nervosismo. Depois da prova, cheguei no teatro, o público já estava indo embora –
tinham cancelado a peça. Entrei completamente desolado e o Vladimir Capella, sentado sozinho na plateia. Nunca vou esquecer esse dia. Morrendo de vergonha, me sentei ao lado dele e ele me falou: “Se algum dia você virar advogado, eu corto esse dedo fora”.
salto
Eu tinha uma carreira que estava começando a se solidificar, uma peça em que eu era o protagonista, um musical importante, mas ainda tinha cobrança da minha família por uma carreira, por outro plano. Passei, então, o primeiro ano na faculdade. Foi uma delícia porque o Largo é incrível, tem muita tradição, tem a Academia de Letras, onde a gente lê poemas, mas logo no final do primeiro ano, [o diretor] Luiz Fernando Carvalho me convidou para
No papel de Riobaldo em O diabo na rua no meio do redemunho (2023), de Bia Lessa, adaptação de Grande Sertão: Veredas, obra-prima de Guimarães Rosa.
depoimento
EU ME SINTO COMO UM MENSAGEIRO, COMO UMA PONTE ENTRE MUNDOS DISTANTES
filmar Lavoura Arcaica (2001). No ano seguinte, tranquei a matrícula e fui para o Rio, com 18 anos, e não voltei mais. Estou há 25 anos morando lá, fiquei 24 anos na Rede Globo, 30 novelas, séries, especiais, enfim muita coisa, uma história lá.
cinema
O filme Cama de Gato (2002) foi para o Festival de Cinema de Brasília, e lá eu conheci o Cláudio Assis, que me chamou para filmar na Zona da Mata, o Baixio das Bestas (2007), outro filme muito forte. Depois, Helvécio Ratton me chamou para fazer Batismo de Sangue (2006), que traz a história do Frei Betto, do envolvimento dos monges dominicanos com Marighella (1911-1969) e com a luta armada. Trabalhei também com Jorge Duran, em outro filme belíssimo, Proibido Proibir (2006). Minha carreira se dividiu em duas: ator de novela – personagens bonitinhos, mas sempre tentando cavar bons personagens – e, paralelamente, eu fazia muitos filmes radicais e autorais com grandes cineastas. Aí, comecei a ganhar prêmios no cinema. Acho que eu consegui ter uma carreira extremamente equilibrada, dividida entre TV, teatro e cinema.
professor
Eu tinha uma amiga que conhecia o pessoal do Nós do Morro e pensei: “Quem sabe a gente não
troca experiências?”. Perguntei se poderiam fazer um exercício de improvisação com os meus atores, Caco Ciocler e Daniel Oliveira [para a peça Êxtase, em 2001, estreia de Caio Blat na direção]. Me empolguei, aluguei uma casa no Vidigal [comunidade na zona Sul do Rio de Janeiro (RJ)], e falei: “Vamos ensaiar aqui, vamos morar aqui e aprender com esse pessoal daqui”. Comecei a trabalhar com o Nós no Morro, e a peça estreou lá no Casarão do grupo. Em 2005, fiz outra peça lá, só que com os atores do Nós do Morro e meus atores eram os convidados. Foi uma peça do Mário Bortolotto, A frente fria que a chuva traz, sobre garotos ricos que alugam uma laje na favela para tirar onda.
A partir daí aconteceu uma coisa linda: virei parceiro do Nós do Morro. Lá eu comecei a dar aulas para as crianças, ia lá com todos os meus projetos e aprendia com eles. Me dá muito orgulho essa parceria de 24 anos, e ser professor – até o ano passado, estava com duas turmas. É um lugar emocionante, lindo, que dá sentido à nossa profissão.
mensageiro
O ator entra em lugares que são inacessíveis, vive dores que são de outras pessoas, a fim de reproduzir aquilo para outros públicos, às vezes em lugares que você nem imagina. Acho que o ator serve como ponte entre esses lugares e histórias que são inacessíveis, mas
também lugares do passado. Então, vai a esses lugares muitas vezes tristes, horríveis, coleta histórias, resgata a história daqueles personagens e leva para festivais de cinema, para diferentes públicos, para outras gerações. É muito legal essa ponte. Sempre que eu vejo o absurdo do lugar onde eu fui filmar e o lugar onde eu fui mostrar o filme, me sinto como um mensageiro, como uma ponte entre mundos distantes.
adiante
Eu acabei de sair da Globo, no ano passado (2023), um lugar onde eu cresci muito, onde aprendi muito. Sempre corria para fora para fazer peças e filmes bacanas. Mas agora que eu parei, vou fazer os meus projetos. Volto a dirigir uma peça que eu adaptei, e com a qual sonho há mais de 20 anos, que é um romance de Dostoiévski, Os Irmãos Karamazov (1880). Freud (18561939) dizia que esse é o maior livro já escrito. Claro, ele puxa a sardinha para o assunto dele: filhos querendo matar o pai, o complexo de Édipo, está tudo ali. Esse é um livro que estou estudando e adaptando desde que morava em São Paulo e, finalmente, vou conseguir produzir, realizar e dirigir – fazia muitos anos que não dirigia no teatro. Também vou dirigir meu segundo filme, que será sobre a vida da Cacilda Becker (1921-1969), a maior atriz do nosso teatro.
ALMANAQUE
Para além dos sabores
Nos mercadões da cidade de São Paulo, um passeio por cheiros, cores e histórias que dão vida a esses espaços
POR LUNA D’ALAMA
Entrar em um mercado municipal é sempre uma experiência única, inspirada por diversas opções de produtos frescos, coloridos e saborosos, acompanhados pelos causos contados pelos comerciantes. Na capital paulista, somente na zona Leste, há seis desses gigantes do comércio, espalhados pelos distritos de Vila Formosa, São Miguel Paulista, Guaianases, Sapopemba, Penha e Teotônio Vilela. Já na zona Oeste, são três: Lapa,
Pinheiros e Pirituba. O mais famoso de todos os mercadões, situado na região central, está prestes a completar 92 anos de história. Todos esses, assim como os sacolões e as centrais de abastecimento da cidade, são espaços vivos e efervescentes, que se ligam ao dia a dia dos moradores em cada território. A seguir, conheça mais detalhes do Mercadão Central e de outros quatros mercados municipais da capital paulista. Bom proveito!
O estilo neoclássico na arquitetura e seus mais de 70 vitrais também são atrativos do tradicional Mercadão de São Paulo, na região central da cidade.
centro
TRADICIONAL MERCADÃO
Projetado pelo arquiteto Ramos de Azevedo (18511928) e inaugurado em 25 de janeiro de 1933 – dia do aniversário de São Paulo –, o Mercado Municipal Paulistano, ou apenas Mercadão para os íntimos, é parada obrigatória para moradores da capital e turistas. Nele é possível experimentar o tradicional sanduíche de mortadela, o famoso bolinho de bacalhau, pastéis gigantes ou frutas tropicais. Nos 12.600 metros quadrados do prédio, erguido às margens do rio Tamanduateí e inspirado no Mercado Central de Berlim, os visitantes também encontram bares, restaurantes e mais de 250 boxes onde se vendem carnes, peixes,
aves, massas, doces, frutas, especiarias, embutidos, queijos, vinhos e produtos importados. Patrimônio histórico e cultural tombado, o Mercadão tem em sua arquitetura o estilo neoclássico, com detalhes góticos, em uma estrutura de alvenaria e concreto. Destaque para a arte em seus mais de 70 vitrais.
Rua da Cantareira, 306, Centro, São Paulo (SP). Para o público geral, abre de segunda a sábado, das 6h às 18h, e domingo, das 6h às 16h. Para venda em atacado, funciona das 22h às 6h. mercadomunicipalsp.com
zona norte
TECIDO A SABORES
Fundado em 17 de julho de 1949, o Mercado Municipal Waldemar Costa Filho, ou Mercado do Tucuruvi, ocupou, por duas décadas, um galpão na avenida Nova Cantareira. Em janeiro de 1969, suas instalações passaram para o edifício atual, onde antes operava uma empresa de tecelagem. Em julho de 2024, o local completou 75 anos de existência, com vários eventos comemorativos. Funcionam no mercado, hoje, quase 30 boxes e dez bancas que oferecem os mais diversos produtos nacionais e importados. Destacam-se carnes, peixes (como bacalhau), aves, massas, vinhos, doces, laticínios, frios, frutas frescas e secas, doces, pastéis, caldo de cana e flores. Além disso, possui uma praça de alimentação com opções de pratos típicos de várias culturas.
Avenida Nova Cantareira, 1686, Tucuruvi, São Paulo (SP). De terça a sábado, das 8h às 19h. Domingo, das 8h às 13h. instagram.com/ mercadomunicipaltucuruvi
No local antes ocupado por uma empresa de tecelagem, o Mercado do Tucuruvi celebra 75 anos como um espaço dedicado ao comércio, mas também, aos encontros.
Adriana
ALMANAQUE
DIVERSIDADE EM FORMOSA
zona sul
PRIMEIRO DO BAIRRO
O Mercado Municipal José Gomes de Moraes Neto, mais conhecido como Mercado do Ipiranga, foi fundado em 22 de junho de 1940. Está localizado em uma das ruas de comércio mais famosas da região. Foi o primeiro lugar do bairro onde os moradores podiam comprar alimentos com uma grande variedade de produtos a granel. Hoje, o mercado tem 25 comerciantes autorizados, que vendem itens de hortifruti, açougue, peixaria, frios, laticínios, armarinho, empório, mercearia e
até de petshop. Há, ainda, uma praça de alimentação com lanchonetes, restaurantes (culinárias árabe e asiática, entre outras), pastelaria, sorveteria, doceria e cafeteria, além de um amplo mezanino. Em 2021, ganhou uma nova área superior e teve os banheiros modernizados.
Rua Silva Bueno, 2.109, Ipiranga, São Paulo (SP). De terça a sábado, das 8h às 19h. Domingos e feriados, das 8h às 13h. instagram.com/ mercadomunicipaldoipiranga
Praça das Canárias, s/n, Vila Formosa, São Paulo (SP). De segunda a sábado, das 8h às 19h. Domingo, das 8h às 13h. instagram.com/ mercadaodevilaformosa zona leste
Inaugurado em 18 de janeiro de 1971, numa área de 3 mil metros quadrados, o Mercado Municipal Antonio Meneghini, ou simplesmente Mercado da Vila Formosa, nasceu com o objetivo de abastecer esse distrito com diversos gêneros alimentícios frescos (como carnes, peixes, frango, laticínios, frutas, legumes, verduras, pães e frios), além de flores, utilidades domésticas e outros itens. São mais de 30 boxes com produtos naturais, orgânicos, integrais e fitoterápicos, e ainda há várias opções de restaurantes. O local passou por uma reforma em 2011, quando completou 40 anos.
No Ipiranga, o Mercado Municipal José Gomes de Moraes Neto foi o primeiro lugar no bairro onde moradores podiam comprar alimentos.
Além da variedade de alimentos, no Mercado da Vila Formosa é possível participar de cursos, feiras de artesanato e festas.
Adriana
Vichi
Originalmente ocupado por comerciantes italianos recém-chegado ao país, o Mercado da Lapa reúne hoje uma diversidade de vendedores e públicos.
zona oeste
PRIMO ITALIANO
Mais conhecido como Mercado da Lapa, o Mercado Municipal Rinaldo Rivetti foi inaugurado em 24 de agosto de 1954, ano do quarto centenário de São Paulo. De forma triangular, o prédio foi considerado, na época de sua edificação, um dos mais modernos do Brasil e da América Latina. Com uma área construída de quase 5 mil metros quadrados, teve a maioria dos boxes inicialmente ocupada por comerciantes de um extinto mercadinho da Rua Clélia,
quase todos imigrantes italianos recém-chegados ao país. Atualmente, reúne quase cem comerciantes autorizados, que negociam itens de hortifruti, mercearia e petshop, além de carnes, peixes, aves, doces, flores, frios e laticínios. Há, ainda, lanchonetes para quem quiser comer por lá.
Rua Herbart, 47, Lapa, São Paulo (SP). De segunda a sábado, das 8h às 18h. mercadodalapa.com.br
Que sorte a nossa!
Já dizia Guimarães Rosa – “O real não está na saída nem na chegada: ele se dispõe para a gente é no meio da travessia”.
Minha vida toda, incluindo os 22 anos de trajetória no Sesc, foi vivida no interior do Estado de São Paulo. Tenho a sorte e orgulho de ser caipira. A cada chegada em uma nova cidade, o desejo de explorar, conhecer e fazer parte renasce junto com as expectativas. Que território é esse? Quais suas vocações e demandas? Quem são as pessoas desse lugar? De que maneira nosso trabalho pode somar e fazer diferença nesse espaço?
Os diálogos com a cidade são essenciais na construção de um programa robusto, transversal e que reflita a comunidade. Mas que vozes ecoam neste território? Quais vozes refletem a cidade de todas as pessoas?
Nesse meu recomeço em Franca, trago uma voz interna, de fala mansa, característica das pessoas daqui: é a voz de minha avó paterna. Maria Messias, ou vó Celina, por aqui viveu até a mocidade e, depois de deixar a cidade natal, ao casar-se com meu avô, matava a saudade da terra e dos parentes por meio de cartas ditadas por ela para os ouvidos do filho mais velho, recém-alfabetizado: meu pai. Os dois na cozinha, meu pai lendo as notícias da família, minha avó sentindo o sal das lágrimas ao sorrir. Esse sorriso, essa voz, chegaram comigo.
Foi também uma voz que me ofereceu outras histórias e prosa da boa, que me fez sentir, mais uma vez, emocionada, provocada e alegre (tudo ao mesmo tempo). A voz é de Carlos Assumpção, o poeta de 97 anos que, com seu cajado e imagem de mestre, abriu as portas de sua casa para um café. Como não me sentir honrada de viver no mesmo tempo de Mestre Carlos?
Ou pisar no mesmo chão por onde andou Carolina Maria de Jesus, e por onde anda hoje Isa do Rosário?
A chegada a Franca e o contato com suas realidades durante esses dez meses em que estou aqui, me mostram que as respostas para tantas perguntas são como setas, nascidas de um mesmo eixo, apontadas para múltiplas direções. E o eixo que potencializa toda força e beleza desse caminho é a memória.
A memória de Abdias Nascimento, poeta, escritor, dramaturgo, artista visual e ativista pan-africanista e seu legado, reverberam e pulsam por todos os cantos dessa cidade. No nome e na imagem pintada na Casa da Cultura e do Artista Francano, na inspiração de grupos teatrais, na grandeza do movimento hip hop, na resistência da Batalha das Minas, no Sarau Protesto, na presença dos coletivos e indivíduos que, desde a minha chegada, me recebem, me acolhem e me provocam a questionar como de fato pensar um Sesc para todas as pessoas.
Tenho escutado por onde passo: “que bom que vocês chegaram!”, “esperamos por vocês há anos!”, “que alegria ter um Sesc em Franca!”.
Ser recebida dessa forma na cidade em que o acolhimento é marca registrada me faz constatar que a maior alegria por ter chegado a Franca é nossa, e me pego muitas vezes pensando: o Sesc é uma instituição de sorte!
Franca tem sido um poderoso reencontro e uma grata surpresa. A cidade, já conhecida como capital do calçado, do café e do basquete, agora também será a cidade do Sesc. E com o Sesc, peço licença para realizar um trabalho que reverencie a memória da cidade, ao passo que registra no presente uma carta escrita a muitas mãos, endereçada a um futuro acessível, plural e desperto.
Sim, o Sesc é uma instituição de sorte.
Camila Machado é educadora, gestora cultural e gerente do Sesc Franca.