Volume
Literatura em minha casa
João Gilberto da Silva Novais Machado de Assis Maria Heloísa Penteado Nilma Gonçalves Lacerda Stela Maris Rezende
Contos de Reis CONTO
João Gilberto da Silva Novais Machado de Assis Maria Heloísa Penteado Nilma Gonçalves Lacerda Stela Maris Rezende
Contos de Reis CONTO
[ilustrações Cláudio Mar tins]
Coleção literatura em minha casa
Volume 2
Biblioteca da Escola FNDE Ministério da Educação
1 a edição - Belo Horizonte 2002
Literatura em minha casa • Antologia de contos brasileiros - Vol. 2 Contos de Reis Copyright © 2002 dos Autores Editor: Bartolomeu Campos de Queirós Coordenação editorial: Terezinha Alvarenga Rafael Borges Andrade Produção Editorial: José Luiz Domingos Projeto gráfico e editoração: Paulo Bernardo Vaz / Marco Severo Ilustrações: Cláudio Martins Revisão: Reler - Serviços Editoriais Ltda Fotolito: Multicromo Impressão e acabamento: Gráfica e Editora Posigraf S.A. Conselho editorial: Terezinha Alvarenga Bartolomeu Campos de Queirós
C763 Contos de reis / João Gilberto da Silva Novais... [et al.] Ilustrações de Cláudio Matins - Belo Horizonte: Miguilim, 2002. 64 p.: il.; 21cm. - (Literatura em minha casa — Conto; v.2) ISBN: 85-7442-082-4 1. Contos brasileiros. I. Novais, João Gilberto da Silva. II. Martins, Cláudio. III. Série. CDD: B869.3 CATALOGAÇÃO NA FONTE DO DEPARTAMENTO NACIONAL DO LIVRO
Proibida a reprodução total ou parcial. Todos os direitos reservados à EDITORA MIGUILIM LTDA Av. Bernardo Monteiro, 52 - Floresta BH - MG - Cep: 30150-280 Telefax: (31)3222-3397 e-mail: miguilim@brhs.com.br www.editoramiguilim.com.br
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Contos de Reis
Sumário
Prefácio João Gilberto da Silva Morais A sede do fogo O passeio do pensamento Vários ovos Machado de Assis Um apólogo Maria Heloísa Penteado O short amarelo da raposa Nilma Gonçalves Lacerda Velha Cacilda Vó Carolina Jerusa do Norte Pichuvy Cinta Larga Eu, o herói Stela Maris Rezende O último dia de brincar Glossário
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Prefácio
A presente obra — Contos de Reis — é um livro em que vários autores brasileiros reunidos escreveram seus contos, buscados na fantasia ou recontados depois de ouvidos. Todas as pessoas gostam de histórias e já ouviram muitas vezes os contos de fadas lidos pela professora: Cinderela, Chapeuzinho Vermelho, O Gato de Botas, Dona Baratinha. Tais contos traziam tanta felicidade para os corações dos alunos, que ansiosos esperavam o dia seguinte para escutar mais outras histórias. Estar na escola era uma grande alegria. Havia também as histórias contadas à beira do fogão, na cozinha. Nossos pais ou avós enchiam o silêncio da noite com histórias de assombrações, de almas do outro
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mundo, de demônios transformados em belos rapazes comprando as almas dos mais desavisados. Na hora de dormir, com os corações aflitos, os meninos pediam para deixar a luz acesa, com medo dos fantasmas visitarem suas noites e entrar em seus sonhos. E cada vez que alguém contava um conto, aumentava, somava mais medos aos medos dos ouvintes. E todas as coisas da natureza conversavam entre si: os animais, as árvores, as flores, as tempestades, os ventos. E por vários dias os contos perseguiam o pensamento dos meninos. E pedir para ouvir a história de novo era uma maneira encontrada de acalmar os pavores. Para compor este livro foram
escolhidos vários contos: de humor, de infância perdida, de amizades escolares. Por serem tão agradáveis de ser lidos, você, imediatamente vai querer emprestar o livro para outros leitores. Assim, esta obra vai estar de mão em mão, de casa em casa, de adulto para cirança. Vocês podem usar este livro para animar um roda de leitura. Basta formar um grupo e ler um conto. Depois é só fechar o livro e pedir a todos que deixem a memória falar. Vão surgir as mais inusitadas histórias. Todos terão muito a contar em cada roda. Você, por certo, vai se encantar com os segredos que andam guardados dentro de cada um. Bartolomeu Queirós
Prefácio
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João Gilberto da Silva Novaes
Nascido na cidade mineira de Prata. Reside em Belo Horizonte desde 1978 e trabalha na Administração Pública Municipal como Técnico de Informática. É formado em letras pela Universidade de Letras de Minas Gerais. Seu livro O Trem das coisas foi premiado no concurso 30 anos da Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil.
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A SEDE DO FOGO
O temporal deixou o bairro todo sem luz. Ainda chovia e a escuridão era puro breu. A mãe tentava consolar Alice que chorava muito. A menina queimou o dedinho com um pingo quente que escorreu da vela. Gabriel e Clara rodeavam a vela que o pai havia deixado na mesinha da sala. Os olhinhos deles brilhavam de satisfação. Desta forma, a escuridão não lhes dava medo. Muito pelo contrário: a luz do fogo no escuro era um diferente e misterioso convite. – Biel, para onde vai o fogo quando apaga a vela? – Eu não sei, Lindeza. Deve ser comido pela escuridão. O menino brincava de passar o dedo rapidamente pelo fogo. – Olha que você também vai se queimar, menino. – A mãe ralhou, ainda tentando acalmar a filha. Clara não ouviu a mãe, pensava apenas. E pensava porque não estava satisfeita com a resposta dada pelo irmão: – Mas será que ele vem é do sol? Será que o fogo é chuvinha do sol, Biel? As bochechas do menino coraram com um sorriso e com o calor do fogo próximo: João Gilberto da Silva Novaes
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– É, mas então é chuva de fogo que deve cair apagado. Senão ia ser uma acabação de mundo, Lindeza. Eu só não entendo onde é que o fogo fica guardado. Mãe, para onde vai o fogo quando a vela apaga? A mãe tinha acabado de sossegar Alice. A menininha agora sorria, apontava o dedinho queimado para que a mãe o curasse com beijos. – Ah, essa é uma boa pergunta para você fazer ao seu pai. Pergunte a ele, porque dessa vez você me pegou. Clara foi até onde o pai cochilava e fez a pergunta: – Pai, ninguém me responde para onde o fogo vai quando a vela apaga. Você sabe, não sabe? – Hum… Acho que preciso de tempo para responder essa pergunta assim tão difícil. O seu irmão não sabe? – Ah, papai! Acho que descobri. Olha só: eu acho que ele morre. Acho que ele morre junto com as coisas que come. Morre junto porque a fome dele não acaba nunca. Morre de guloso o fogo. Clara, que tateava na cozinha atrás de um copo d’água, comentou de longe: – Então, ainda bem que o fogo não tem sede… já pensou, Gabriel? – Eu já pensei, Lindeza. Uma vez o fogo teve sede e bebeu tudo de um mar inteiro. Depois o lugar do mar virou deserto de areia.
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Já na sala, a menina parou de beber para perguntar ao irmão: – Mas, então, Gabriel, se o fogo tiver sede de novo, vai beber outro mar inteiro? – É. Mas pode ficar sossegada. Isso não acontece mais, porque o mar decidiu ficar salgado. O mar fica lambendo o sal da areia, as ondas.
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O PASSEIO DO PENSAMENTO
A manhã acordou gelada e brumosa. Tinha chegado a friagem do meio do ano. Clara, com a manga do pijama, tentava desembaçar o vidro. – Olha só, Gabriel, o dia está cortinado e bom de brincar de esconder. Parece que o mundo subiu para dentro de uma nuvem. O irmão continuava na cama. Espiou de longe e não queria deixar o calorzinho que fazia dentro dela. – É. Mas a cama tem mais gosto, Lindeza. Essa quenturinha não deixa ninguém levantar – respondeu o menino estremelicando o corpo, só com a cabeça do lado de fora do cobertor. – Se você ficar achando isso, nunca mais levanta. Vamos, preguiçoso! Ou vai querer perder essa manhã nuviosa? – Sabe, Lindeza, devia ser de madrugada quando um sonho me acordou. Eu então aproveitei para botar reparo na noite. A noite é muito diferente do dia. – É claro que é, Biel: o dia é feito de colorido e a noite pintada de preto. – Eu sei que é assim, Clarinha. Mas é do barulho que eu estou falando. O barulho do dia é diferente do barulho da noite. João Gilberto da Silva Novaes
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A menina deixou a janela e sentou na beirada da cama. – Olha o meu pé, Lindeza! – Desculpa, Biel, eu não vi. Mas de que barulho você esta falando? O menino subiu o corpo e escorou as costas na cabeceira da cama: – Eu fiquei ouvindo a noite. Primeiro escutei só um silêncio. Depois um galo cantou longe. Um outro galo respondeu, depois outros galos foram pingando o canto. Depois um cachorrinho latiu e um ônibus desceu espirrando. Mas era tudo tão longe e baixinho que eu acabei dormindo e sonhando de novo. – Sabe, Biel, às vezes eu tenho medo de sonhar e não gosto de dormir. A noite desce, fica má e fala bobagens na minha orelha. Eu não gosto de sonhar pesadelo. – Pensamento ruim a gente afunda no esquecimento, que às vezes o sonho destampa e faz ficar mais medonho ainda. Mas é só pensamento, Lindeza. O pensamento passeia na fieira de lembranças da gente. Os olhinhos vão juntos, alumiando. Acho que isso é sonhar. Sonhar é só isso, o sonho.
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VÁRIOS OVOS
Gabriel e Clara atiravam pedras num cacho de coquinhos. Estavam os frutos amarelos, maduros e doces. Encheram a sacolinha e seguiram comendo e descobrindo coisas no sítio. Acharam um ninho cheio de ovos. – Olha, Biel! É um tanto de ovos juntinhos num monte de capim. Quem será que deixou aqui? – Ora, Lindeza, é claro que foi uma galinha. É daí que saem os pintinhos dela. A menina, ainda espantada com o achado, agachou para ver de perto quantos eram os ovos e como era o arrumado dos ramos que trançavam o ninho. – É melhor não mexer, Lindeza. A galinha pode aparecer e não gostar. Galinha de ninho é galinha choca. E galinha choca é arrepiada, bicadeira e topetuda. Vem investida na gente. Clara, assustada, levantou e segurou o irmão pelo braço: – Só queria ver direito e saber quantos são os ovos, Biel. – Doze. Eu já contei. A menina quis mostrar conhecimento: – Aposto que você não sabe como a galinha faz o
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ovo virar pintinho, Biel. Quer saber e eu conto. O avô tinha contado ao menino como os pintinhos tiravam. Mas Gabriel sentiu vontade de saber pela irmã: – Então me conta, Lindeza. – Sei que ela, a galinha, fica dormindo agachada em cima deles esquentando. Acho que os ovos são um tipo de pedra. Um tipo de pedra que faz nascer os pintinhos. Os pintinhos saem de dentro delas e depois viram outras galinhas que arranjam mais pedras de ovos que fazem pintinhos. – Os outros bichos também nascem de pedras, Lindeza? – Gabriel, de interesse avivado, quis saber. – Acho que sim, Biel. A montanha é mãe das pedrinhas miúdas. As sementes também são um tipo de pedra. O coquinho, o caroço do abacate, o facão cheinho da flamboaiã são pedras que viram plantas. Eu só não sei de que pedra a gente saiu.
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Machado de Assis
Natural do Rio de Janeiro, RJ, Joaquim Maria Machado de Assis nasceu em 21.06.1839 e faleceu em 29.09.1908. É considerado um dos maiores nomes da literatura brasileira de todos os tempos. Principais obras: Memórias Póstumas de Brás Cubas (1881), Quincas Borba (1892), Dom Casmurro (1900) e Memorial de Aires (1908). (Conto extraído do livro Várias Histórias, 1896)
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UM APÓLOGO
Era uma vez uma agulha, que disse a um novelo de linha: – Por que está você com esse ar, toda cheia de si, toda enrolada, para fingir que vale alguma cousa neste mundo? – Deixe-me, senhora. – Que a deixe? Que a deixe, por quê? Porque lhe digo que está com um ar insuportável? Repito que sim, e falarei sempre que me der na cabeça. – Que cabeça, senhora? A senhora não é alfinete, é agulha. Agulha não tem cabeça. Que lhe importa o meu ar? Cada qual tem o ar que Deus lhe deu. Importe-se com a sua vida e deixe a dos outros. – Mas você é orgulhosa. – Decerto que sou. – Mas por quê? – É boa! Porque coso. Então os vestidos e enfeites de nossa ama, quem é que os cose, senão eu? – Você? Esta agora é melhor. Você é que os cose? Você ignora que quem os cose sou eu, e muito eu? – Você fura o pano, nada mais; eu é que coso, prendo um pedaço ao outro, dou feição aos babados...
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– Sim, mas que vale isso? Eu é que furo o pano, vou adiante, puxando por você, que vem atrás, obedecendo ao que faço e mando… – Também os batedores vão adiante do imperador. – Você é imperador? – Não digo isso. Mas a verdade é que você faz um papel subalterno, indo adiante; vai só mostrando o caminho, vai fazendo o trabalho obscuro e ínfimo. Eu é que prendo, ligo, ajunto… Estavam nisto, quando a costureira chegou à casa da baronesa. Não sei se disse que isto se passava em casa de uma baronesa, que tinha a modista ao pé de si, para não andar atrás dela. Chegou a costureira, pegou do pano, pegou da agulha, pegou da linha, enfiou a linha na agulha, e entrou a coser. Uma e outra iam andando orgulhosas, pelo pano adiante, que era a melhor das sedas, entre os dedos da costureira, ágeis como os galgos de Diana – para dar a isto uma cor poética. E dizia a agulha: – Então, senhora linha, ainda teima no que dizia há pouco? Não repara que esta distinta costureira só se importa comigo; eu é que vou aqui entre os dedos dela, unidinha a eles, furando abaixo e acima… A linha não respondia nada; ia andando. Buraco aberto pela agulha era logo enchido por ela, silenciosa e ativa, como quem sabe o que faz, e não está para ouvir palavras loucas. A agulha, vendo que ela não lhe dava resposta, calou-se também, e foi andando. Machado de Assis
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E era tudo silêncio na saleta de costura; não se ouvia mais que o plic-plic-plic-plic da agulha no pano. Caindo o sol, a costureira dobrou a costura, para o dia seguinte: continuou ainda nesse e no outro, até que no quarto acabou a obra, e ficou esperando o baile. Veio a noite do baile, e a baronesa vestiu-se. A costureira, que ajudou a vestir-se, levava a agulha espetada no corpinho, para dar algum ponto necessário. E enquanto compunha o vestido da bela dama, e puxava a um lado ou outro, arregaçava daqui ou dali, alisando, abotoando, acolchetando, a linha, para mofar da agulha, perguntou-lhe: – Ora, agora, diga-me quem é que vai ao baile, no corpo da baronesa, fazendo parte do vestido e da elegância? Quem é que vai dançar com ministros e diplomatas, enquanto você volta para a caixinha da costureira, antes de ir para o balaio das mucamas? Vamos, diga lá. Parece que a agulha não disse nada; mas um alfinete, de cabeça grande e não menor experiência, murmurou à pobre agulha: – Anda, aprende, tola. Cansas-te em abrir caminho para ela e ela é que vai gozar da vida, enquanto aí ficas na caixinha de costura. Faze como eu, que não abro caminho para ninguém. Onde me espetam, fico. Contei esta história a um professor de melancolia, que me disse, abanando a cabeça: – Também eu tenho servido de agulha a muita linha ordinária! Machado de Assis
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Maria Heloísa Penteado
Maria Heloísa Penteado nasceu em São Paulo. Escreve e desenha com a mesma facilidade. Seus livros despertam profundo entusiasmo no público infantil, pela capacidade de armar história no sentido mais puro da palavra: nelas, a dinâmica é o elemento essencial.
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O SHORT AMARELO DA RAPOSA
Aconteceu um dia, a raposa pulou um muro e viu um varal cheinho de roupas. – Oh, – disse ela – vou escolher um vestido para mim… bem que estou precisando… Não! Vou escolher é uma calça comprida que é mais prático para correr no campo, pular cercas e muros… Não, não… O que vou escolher é um short. É bem mais cômodo e fresquinho num calor assim… Mas ela não era muito entendida em roupas, e o que pegou foi uma blusa amarela, pensando que era um short. Meteu as pernas pelas mangas, o rabo pelo decote, abotoou os botõezinhos nas costas e ficou muito satisfeita. Serviu direitinho! Até parece que foi feito sob medida! – pensou. Devo estar linda com esse short amarelinho… Só queria chegar logo em casa e me ver no espelho. E se foi embora muito feliz, esquecendo-se das galinhas, a razão pela qual havia pulado o muro. Um pato a viu passar e disparou a rir. – Quá!… Quá!... Quá!… uma raposa de blusa amarela vestida no lugar das calças! Maria Heloísa Penteado
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– Estúpido! Não está vendo que é um short amarelo? – perguntou a raposa aborrecida. – Short amarelo nada! Blusa amarela, isso sim! Quá! Quá! Quá! – o corpo todo do pato tremia, de tanto que ele ria. A raposa ficou danada. Foi chegando para o lado do pato, devagarinho, devagarinho e… nhoc! Engoliu o coitado com pena e tudo. Depois continuou andando. Imaginem se pato vai entender de moda, pensava ela. Quem é que não vê que estou vestindo um short muito elegante, duma linda cor amarela? Por falar nisso, amarelo é a minha cor predileta… – Que estou vendo? – gritou alguém nesse instante. Uma raposa de blusa amarela, vestida no lugar onde a gente usa as calças? Quem falou assim foi um coelho, que depois disparou a rir como um doido. A raposa ficou indignada. – Seu burro! Não está vendo que é um lindo short amarelinho? – Short nada! Blusa no duro! lh… lh… lh… – o coelho rolava no chão de tanto rir. Danada da vida, a raposa deu um pulo e comeu o coelho. Depois seguiu seu caminho pensando: o bicho mais burro do mundo é o coelho. Agora entendo por que ele tem orelhas tão compridas… – Qui… Qui… Qui… E agora, quem é que estava rindo dela? A raposa
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olhou e viu uma tartaruga que quase morria de tanto rir. – Senhora dona Tartaruga, pode me dizer o que está achando tão engraçado? – a raposa perguntou carrancuda. A tartaruga enxugou as lágrimas provocadas pelo riso. – Me desculpe, mas você está tão gozada com essa blusa vestida no lugar errado! – ela disse e caiu na risada outra vez. – No lugar errado, é? Mas eu sei de alguém que vai pro lugar certo. Assim dizendo, a raposa pulou para cima da tartaruga e, nhoc! A coitada da tartaruga foi acabar de rir dentro da barriga da raposa, que continuou seu caminho dizendo pra os botões do seu short amarelinho: – Quem ri de mim é porque tem inveja. Não ligo. Sei que estou linda… – Uai, dona Raposa! A senhora perdeu as calças e precisou vestir a blusa no lugar delas? – perguntou um burro quando a viu passar. E riu tanto que até engasgou. A raposa ficou tinindo de raiva. – Você é o burro mais burro que eu já vi! E se fosse um pouco menos burro, via logo que eu estou vestindo um short! – Está vestindo uma blusa! – teimou o burro sem parar de rir.
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– Não é blusa! É short, seu burro! – É blusa, dona Raposa. – É short! – É blusa! A raposa chegou perto do burro e gritou furiosa: – É um lindo short amarelinho, ouviu?! – É uma linda blusa amarelinha, embora um pouco justa – continuou a teimar o burro, sem parar de rir. – É short! E se está um pouco justo, é porque eu comi um pato, um coelho, uma tartaruga e a minha barriga, é claro, cresceu um pouquinho. Assim falando, a raposa aproximou-se mais do burro. O coitado ia teimando: – É uma blu… – mas não teve tempo de acabar. Foi engolido também pela raposa. Com isso, a barriga dela cresceu um pouco mais, e os seis botõezinhos da blusa pularam fora todos ao mesmo tempo. Oh! Pensou ela muito aborrecida. Os botões hoje em dia não valem nada… O meu lindo short amarelinho está caindo… Não faz mal… Para tudo há um jeito. Ela pegou uma fitinha vermelha, amarrou-a na casa de um botão, e no outro lado, amarrou-a numa ponta da blusa. Até que ficou mais bonito com essa fitinha vermelha na cintura, pensou satisfeita continuando a andar. Mais adiante, encontrou uma anta. Maria Heloísa Penteado
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– Nossa! Uma raposa barriguda de blusa amarela vestida no lugar das calças e amarrada com fita vermelha! Nunca vi coisa mais engraçada! – a anta fechou os olhinhos e começou a rir. – Coisa engraçada é o que você vai ver agora! – a raposa deu um pulo e engoliu a anta. Meu short está apertando um pouco na cintura, pensou depois. É porque comi uma anta gorda demais. E, desamarrando a fitinha vermelha, tornou a amarrá-la mais folgada. Depois continuou a andar, mas logo teve que parar, porque riam dela de novo. Dessa vez, era um boi zebu. A risada dele era pior que trovão trovejando.
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– Uma raposa barriguda que, em vez de calças, usa uma blusa amarela amarrada com fita vermelha. Será que estou enxergando bem? – Está enxergando muito mal! Estou de short e não de blusa! – Short nada! Blusa! E blusa pequena demais para o seu barrigão. Até os botões já pularam fora! Quá… Quá… Quá… – a corcova do zebu tremia, de tanto que ele ria. Zebu, quando dá pra ser burro, é mais burro que qualquer burro, porque é muito maior que um burro, pensou a raposa. É claro que não pode distinguir um short de uma blusa.
E não perdeu tempo querendo convencê-lo. Engoliu-o também. Com isso, a fitinha vermelha fez pluft!… e se arrebentou. A blusa amarela fez nhe… nherec… rasgou de uma ponta a outra e caiu aos pés da raposa. Naturalmente foi porque a barriga dela cresceu mais um pouco, depois que engoliu o zebu. Cresceu mesmo mais do que devia. A raposa ficou muito triste. O meu short amarelinho rasgou, pensou ela. Mas acho que, juntando e costurando os dois pedaços, ficará perfeito outra vez… Será que fica? E ela curvou-se para pegar a blusa. Então, a pele da barriga, que estava esticada demais, fez pluft! E estourou. E o que foi que saiu de dentro dela? um zebu, uma anta, um burro, uma tartaruga, um coelho e um pato. – Credo! Como estava escuro dentro da barriga da raposa! – foi o que disse o boi zebu. – E o cheiro então! O burro respirou fundo e deu um espirro. Abanando-se com uma pena do pato, a anta queixou-se: – Barriga de raposa é o lugar mais abafado do
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mundo! Não sei como não morri! E o pato, sem dizer até logo para ninguém, saiu correndo e foi tomar banho no rio. A tartaruga, mais educada, despediu-se de todos, um por um, e, quando chegou a vez da raposa, agradeceu: – Obrigada, companheira. Sua barriga é um lugar quentinho, escurinho e confortável pra gente dormir. – Escurinho, quentinho e confortável? Só eu é que sei! Fiquei o tempo todo debaixo do boi zebu! – gritou o coelho, sacudindo-se todo. E a raposa disse assim: – Como estou me sentindo bem agora! Estou mais leve, mais bem disposta… Só que tenho que ir ao médico pra costurar a barriga… Acho que arrebentou porque comi um pouqinho demais. E ela esqueceu no chão a blusa amarela rasgada sem botão, sem fita nem nada. E foi costurar a barriga na casa da doutora Formiga com linha amarelo-limão, sua cor de estimação.
Maria Heloísa Penteado
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Nilma Gonçalves Lacerda
Natural do Rio de Janeiro, RJ, Possui vários livros publicados; entre eles, As Fatias do Mundo, Prêmio Jabuti 98, Altamente Recomendável – Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil (FNLIJ) e o Prêmio Orígenes Lessa – O Melhor para Jovens (FNLIJ). (Contos do livro As Fatias do Mundo, RHJ, 1997)
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VELHA CACILDA
Quando a velha Cacilda fazia doce, a casa toda cheirava. O cheiro ia atrás da gente como uma fita gorda de perfume. Daí soava um grito de guerra – Olha a goiaba melando no tacho, gente!, e era uma debandada, um atropelo geral. A gente largava a bola no quintal do vizinho, descia aos trambolhões do pé de abacate, corria feito doido pra chegar primeiro na cozinha e ganhar a raspa do tacho, o direito de lamber a colher de pau que a velha Cacilda ficava segurando na mão pra esfriar. A velha Cacilda! Era preta toda vida, e alta, com um jeito de rainha, de soberana, que ela mostrava bem nas histórias que contava e que ninguém mais conseguia contar igual. Agregada da nossa família, com mais de setenta anos, Cacilda mandava e desmandava na cozinha. O fogão só servia à casa depois de lhe assar os bolos e fritar as mantas. O centro do mundo era a mesa de madeira, enorme, bem no meio da cozinha, a gente de um lado e a velha do outro, mexendo nas panelas, contando histórias intermináveis. O cheiro dos cajás madurando no quintal entrava pelas histórias do Saci-Pererê, Nilma Gonçalves lacerda
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pelas matas em que ele andava aprontando confusão; as pitangas que a gente tinha nas mãos caíam do pé no nariz da Moura Torta. A velha chamava, largávamos tudo que fosse brincadeira, vínhamos para a cozinha, ao pé do fogo, e íamos ouvindo: Saci azedando leite, fazendo perder ponto de doce, gorando ovo no choco. Saci que podia ser apanhado e feito escravo da gente, que nem gênio da lâmpada, mas carecia de muito engenho e arte e astúcia pra conseguir tal façanha. Nós de boca aberta, bestando com a idéia: “Se a gente pegasse o Saci…”
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A primeira palavra que eu quis escrever foi Pererê para prender aquele moleque incrível, aquele pé-devento doido, de que a gente tinha medo, morria de inveja e queria imitar. E não é que eu treinava Pererê e acabou saindo Saci – o danado fazendo manha comigo? A velha Cacilda era analfabeta, mas insistia para que eu prosseguisse na aventura de riscar as palavras. Eu corria atrás da mãe, corria atrás do pai: “Escreve Pererê aqui pra eu aprender”. – e vinha para a cozinha, me debruçar na mesa, junto ao fogão, caprichar nas letras, escrever os nomes mágicos. Cacilda cozinhava, contava e recontava. O bolo de fubá ia assando no forno, a palavra saindo rente que nem pão quente se afogando na água da boca, descendo pela garganta. Eu e meus irmãos ali, tomando no prato as fatias do mundo. Sentados à mesa, a gente batia os matos nas costas do Pererê, voava nas asas do Dragão Encantado, ouvia a cantiga da menina enterrada viva, enxergava a cabeça do alfinete espetado na cabeça da pombinha pela malvada da Moura Torta.
Nilma Gonçalves lacerda
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VÓ CAROLINA
Vó Carolina tinha sempre nos ombros um xale do tamanho do mundo. Contava histórias sentada na sua cadeira de balanço e as tardes cresciam como um palácio em que a gente fosse entrando e entrando, descobrindo corredores, labirintos, câmaras secretas, jardins misteriosos. As noites eram ginetes negros desembestados comendo a cauda dos vestidos das princesas que moram na Via Láctea. Para vó Carolina, cada pano tinha recortes de mar e convidava para o mergulho em busca do Coral Cordial, portador de poderes mágicos. Vó Carolina tomava uma concha, construía ali dentro, bem no nariz da gente, a casa da sereia. Com vó Carolina todo dia virava uma festa encantada, toda tristeza entrava num banho de sol. Eram umas histórias lá dela, que eu nunca ouvi igual. Elvira, a princesa de pedra que virou vento, virou estrela encarnada, virou pássaro branco e cavaleiro negro, e sumiu, dando adeus para um reino mineral onde não se sentia bem. Alzira, a sereia que a avó conheceu quando veio singrando os mares para o Brasil. E o moço que encontrou na água do pote uma pedrinha assim, que se virou em mulher linda
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quando ele disse: “Ah! se esta pedra em amada se fizera!”. E a história da espuma da praia que era a rede que prendeu o peixe que era a boca que fechou a caverna que era a barra que arrematou o encanto na saia da moça que casou com o príncipe de Reino das Esmeraldas. Vó Carolina era por parte de pai. Me chamava pro canto mais fresco da sala, me fazia sentar no chão, ao pé dela, tirava não sei de onde uma coisa pequena que cabia no oco das mãos. Nilma Gonçalves lacerda
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Foi assim naquele dia em que eu estava triste, mas triste de não ter jeito. Vó Carolina veio com uma conta de colar que era nada mais nada menos que o amuleto de uma princesa do Reino das Pedras que saiu pelo mundo em busca do seu nome. A minha tristeza acabou indo atrás dela para espiar as aventuras. Tudo era reino nas histórias de vó Carolina, e ela não pedia para vir a nós o vosso reino, não. Tomava as palavras e com gestos de bordadeira fazia o reino surgir na nossa frente com todos os elementos. Quem ouvia a história que ela contava, já não ouvia a história que ela contava, pois tinha os pés no meio da ponte levadiça e estava envolvido nas frenéticas batalhas, nos espetáculos saltimbancos, nos finais felizes para sempre. Um dia meus pais vieram me dar a notícia de que vó Carolina morrera. Senti que se abria um buraco no fundo da minha barriga. Fui olhar pro buraco e acabei olhando pro pandeiro que eu tinha nas mãos. Era um pandeiro enfeitado com fitas de várias cores pra dançar no bumba-meu-boi. Ele ficava bem numa história que se chamasse – deixa ver – O Reino das Princesas Serpentes. É isso. Que a avó morreu que nada! Eu disse pro pessoal: –Tá todo mundo enganado. A avó foi pro Oriente ajudar a Sheherazade que tá meio atrapalhada com o sultão. Semana passada ela treinou umas danças pra ir ficando no jeito e aproveitou pra inventar uma história nova que vá sossegando o exigente do homem. Sacudi o pandeiro, continuei a falar:
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– Foi isso que aconteceu, a avó viajou por uns tempos. Pode ser que ela goste muito de lá e não volte mais, isso pode – considerei meio triste. Algum tempo mais tarde mandaram trocar a palhinha da cadeira em que vó Carolina sentava. Guardei o forro velho, que tinha as marcas do corpo dela. Nas tardes de solidão, pegava o pedaço de palha trançada, me contava histórias que acabavam sempre da mesma maneira: – Era uma vez uma avó que não vai morrer nunca. Ela fica muito, muito velhinha, resolve ir morar no meio das histórias que inventa e sabe contar como ninguém. Quem estiver precisado de falar com ela, quiser mandar um recado, é só escrever pro Reino dos Reinos sem Fim. Põe um selo de alabastro e um lacre de raspa de sonho. Larga no vento da vontade ou solta na curva do arco-íris. Vó Carolina responde rápido.
Nilma Gonçalves lacerda
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JERUSA DO NORTE
Lá em casa era uma empregada chamada Jerusa. No serviço da casa, Jerusa era um desastre: quebrava a louça, manchava a roupa, salgava a comida. Mas pra lidar conosco era que nem fada com varinha de condão. Muitas vezes, mamãe ficava arrumando a cozinha, enquanto nós todos, debaixo do abacateiro, ouvíamos as histórias do Encourado, do Vaqueiro dos Sete Mares, do Boi Barroso, do Cabra Cabrez. O meu preferido era o Vaqueiro dos Sete Mares. Tinha sete capas, uma para cada mar: Mar das Tranqüilidades, Mar da Rebatada Paixão, Mar do Sangue Derramado, Mar da Feliz União, da Devastada Fúria, do Terrível Dragão e – pera aí – tá faltando um. Ah, – Mar da Iara Raivosa. Jerusa nasceu contadeira de história. Sozinha, ela era o teatro inteiro, com cortina de palco e tudo. Ressecava o quintal pra trazer pra perto da gente a paisagem de sua terra, marcava o lugar do poço, botava cerca de xiquexique. Fazia a gente sentir o cheiro de enxofre do Encourado, e arder em nossos olhos o sal dos Sete Mares. Jerusa carregava as histórias dentro dela e eu ficava me perguntando como é que a mãe queria que
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ela arrumasse a casa direito. Como esperar que varresse bem o chão ou que não quebrasse a louça? O prato era a arma do Vaqueiro pra acertar o Encourado, a vassoura era a espada camuflada do Cujo, que vai atacar traiçoeiramente o Vaqueiro na hora do Mar das Tranqüilidades. Como é que podia a mãe não enxergar isso? Entre heróis franzinos e tiranos corpulentos, entre bichos e gente, Diabo e Guerreiro, a gente passava as tardes num quintal suburbano virado em sertão e tapete mágico. Comandado por Jerusa, aquele chão levantava vôo na hora das batalhas, carregava todos pelos ares para deixar ao lado do herói, no lugar da aventura. Quantas vezes a gente levou chispa das armas e gramou areia nos olhos, jogada pelos cascos dos cavalos? E o medo e a coragem, um bolo misturado, nós, moleques, querendo intervir e sabendo que não era possível? E os disfarces do Encourado? Cada um mais difícil de adivinhar que o outro. O Vaqueiro sabia, e atacava direto, sem complacência. Aí, de início, a gente não entendia por que o Vaqueiro largava de repente a capa do Mar das Tranqüilidades, vestia a capa da Devastada Fúria, e desatava a dar espadadas no pobre velhinho à nossa frente que gritava e se encolhia, e logo se mudava num dragão hediondo, lançando fogo e lava de vulcão pelas ventas. Tínhamos caído junto com o Vaqueiro no Mar do Terrível Dragão. O Dragão era a criatura mais cruel
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de todas. Não se contentava com a maldade presente, queria lançar o Mal para diante de uma maneira absoluta, sem deixar jeito nem remédio. Era um monstro comedor de futuro. O Vaqueiro ganhava a batalha na hora, mas sabia que o Dragão voltava ressecando tudo, quebrando a terra e os homens, mudando a natureza, deixando pedra e caatinga. Mais tarde, eu fui pra escola, Jerusa voltou pro Norte. Disse pra gente que não tinha jeito não. Não ia mesmo enricar como empregada – e ela nem queria isso. Não adiantava fugir da terra, que a terra vinha com ela. Já que era assim, voltava pro Norte e ia andar pelas feiras fazendo o que mais sabia: contar da rebatada paixão. Jerusa foi pra feira, eu pra uma sala de aula. Lutando com a folha branca aprendi a escrever minha primeira palavra – seca.
Nilma Gonçalves lacerda
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PICHUVY CINTA LARGA
Era solteira, quando conheci Pichuvy. Estava fazendo minha pesquisa sobre habitação dos índios Cinta Larga: queria saber como é que eles moravam, como faziam para construir a maloca coletiva e como se abrigavam nos deslocamentos pela floresta. Pra isso, fui morar uns tempos com eles, lá em Aripuanã, no Mato Grosso. Os Cinta Larga são simpáticos, muito receptivos e logo, logo eu participava das festas, das caçadas, das pescarias, dos plantios e das colheitas. Não deixava também de partilhar suas angústias diárias: as doenças e mortes, o precário atendimento médico, a revolta pelas constantes invasões de suas terras, as dificuldades com a FUNAI. O cacique era um rapaz jovem, de olhar franco e risonho. Encantei-me com ele de imediato, pois era solícito, muito atencioso, sempre querendo me ajudar. Mal sabia eu o que é que ele me armava. Pichuvy me via fazendo desenhos e riscava o chão da aldeia com gravetos finos, fazendo seus desenhos também. Depois queria que comparássemos o que havíamos feito – e um acabava rindo do outro, e os dois rindo dos dois. Fomos ficando muito amigos, e Pichuvy começou a me contar histórias de Ngurá, que é o
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deus dos Cinta Larga, e como ele criou o mundo. Contava de Bepuixi, o deus que é dono da chuva, e de como o mundo já acabou três vezes. Eu gostava muito da deliciosa história de Po Pakey – Os Animais – em que a gente fica sabendo por que o mutum é preto, por que beija-flor tem bico pequeno, por que o veado tem galho na cabeça. Um dia, sem rodeios, Pichuvy pediu emprestados meu gravador e minhas fitas. Queria gravar as histórias de sua tribo, queria que todos se lembrassem dele, depois que morresse. Isto era muito importante, dizia e pedia minha colaboração. Concordei e começamos a trabalhar. Lembro-me bem dele na frente do microfone, no início da gravação:
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– Eu tô vivo aqui, eu contar muito de história. Assim que eu faço pessoal meu, contava meu pessoal. E muita vez que eu falava que índio tem que lembrar como foi antigamente, como que velho contava pra nós, que velho conta muita história pra nós. Por isso que eu conta muita história assim. E fomos gravando as histórias. Toda a aldeia participou: no mato, no posto, na maloca, sempre havia gente por perto, escutando, corrigindo, lembrando passagens, desenhando. E aí Pichuvy falou que agora ele queria que eu escrevesse as histórias, fizesse um livro:
– Cinta Larga povo pequeno, tem gente pouca assim, um dia Cinta Larga acaba, mundo esquece histórias de Cinta Larga. Homem branco precisa saber – Mantére Ma Kwé Tinhin – Histórias de Maloca Antigamente. Botei minha pesquisa de lado e toca a escrever as histórias de maloca antigamente. E vieram mais: Wãwã, Pajé; Asaid Nã, Casamento; Histórias de Pawo, Dono do Mato; Ãlã, Besouro; Sunkip, Filho de Mutum; Kasat Kwé Tinhin, Histórias de Arara. E muitas mais. E outras histórias que falavam de como era vida de índio antes do branco chegar, de como índio fica crente quando missionário chega e como todos deixam a igreja quando o missionário parte. O último relato, Pichuvy chamou de Cabou Vida Nossa de Índio, e vocês podem avaliar do que se trata. Trabalhamos muito. As histórias iam crescendo e alcançando a força de um Mberewá, o canto tradicional que preserva a cultura e o saber. Uma das figuras mais generosas que já conheci, Pichuvy contava as histórias com paciência e encantamento, explicando o que era necessário na hora de eu escrever. Era detalhista e repetitivo: queria se assegurar de que eu não esquecera nada ou não me enganara com alguma coisa importante. Voltei para casa, entreguei os relatos para umas amigas da universidade, que os arrumaram, corrigiram e editaram. A aldeia fez uma festa quando cheguei levando o livro pronto.
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Pichuvy não estava mais lá. Havia morrido num acidente, fazia pouco tempo. Estava bêbado e bateu com o jipe que dirigia na traseira de um caminhão, um caminhão da madeireira que explorava as suas terras, e que lhe dera o jipe de presente. Foi difícil acreditar, é difícil até hoje. Às vezes me pego divagando, sonhando que vou chegar de novo à aldeia, e Pichuvy vai estar lá, me receber e dizer, como da primeira vez em que cheguei, tímida e preocupada: “Paikinin pa mã pa mã! – Estamos aqui, vamos nos olhar, vamos nos conhecer!”
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EU, O HERÓI
Tem mãe que – etc. A minha mãe começou a fazer sanduíche, pastel e salada de frutas. Os amigos continuam com suas histórias, falando de isso assim, isso assado, perguntando pra minha mãe o que ela acha disso, essas crianças de hoje que não têm quem conte história pra elas. “Você conta histórias pra o seu filho, Ana?” A coisa vai esquentar. A mãe já está se atrapalhando e acabou de botar a laranja pra fritar. Os amigos querem ajudar, e estão dando um nó no fogão. Vou comer pão recheado com vento, queijo e patê na salada de frutas. Tudo por causa dessa gente faladeira, que fica lembrando nostalgias, antigamentes que nem consigo entender. Quintal? Eu moro no nono andar. Vó? Minha vó Lídia vive viajando pra Miami e me traz umas miniaturas geniais das tartarugas Ninja, um Batman em tamanho quase natural e um Garfield (que eu não ligo muito, ele é mais pra menina) do tamanho do gato da vizinha. Além do mais, ela faz plástica e não fica velhinha. Empregada? Aqui só tem faxineira apressada que trabalha por dia e tem que dar conta
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do recado. Pé de manga? Só no hotel-fazenda onde a gente vai passar as férias, e lá não tem ninguém que saiba História do Brasil pra contar pra gente como se fosse de verdade. Índio? Tem nas figurinhas do álbum de ecologia. Esse lanche ainda vai demorar muito, essa gente falando, falando e atrapalhando. Vou pro meu quarto, pegar as fitas do videogame, viver street fighter, matar ou morrer na telinha. Vou ver se marco mil milhões de pontos, se saio do labirinto pro monstro não me comer, se derrubo avião pra poder voar. Pô! Eu sei que a mãe tem razão quando reclama da bagunça aqui no quarto. Às vezes eu me descuido mesmo, mas tô estranhando o ambiente. Tá um cheiro forte de mata, de fruta madura, de barro seco, de terra molhada. Hum! que fedor! Não é do meu chulé. Não é de roupa suja. Uau! Eta ferro! O que é isto? Nossa! Nunca vi igual. Já sei, tô dentro do videogame. Entrei mesmo no videogame. “Mãe! Mãe! Vem ver! Corre depressa! Vem cá no meu quarto. Tá cheio de realidade virtual aqui dentro. Tá cheinho mesmo!” A mãe vem lá de dentro dizendo que tô alucinado, que a culpa é de tanto videogame, que eu nunca mais vou jogar videogame na vida, nem ver filme desses heróis idiotas, nem mais um monte de coisas, que daqui pra diante só vou ganhar livro e disco de presente e brinquedo de armar tipo O Pequeno Construtor.
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Isso tudo ela vem dizendo por aí, resmungando pelo caminho, mas cala a boca espantada e cai sentada na cadeira: dentro do meu quarto estão o Saci-Pererê, a Moura Torta, a sereia Alzira, Guti – o neto do seu Guerra que é historiador – Pichuvy – peladão, só com um tico de tanga – o Boi Barroso, o Cabra Cabrez, e lá fora, pairando nos ares com a linda capa do Mar da Rebatada Paixão, o Vaqueiro dos Sete Mares trava uma peleja mortal contra o Encourado. E tá ganhando. Os amigos que vêm atrás da mãe naquela carreirinha de ver desgraça do filho dos outros caem todos sentados um empurrando o outro para trás que nem um trem superespacial elástico de seis vagões engatados. Acabo de assistir à luta – o Vaqueiro dos Sete Mares lança o Encourado nas negruras dos espaços abissais e veste a capa do Mar das Tranqüilidades. Os outros visitantes passeiam devastada fúria e feliz união pelo meu quarto. Corro pra cozinha, separo o caroço da manga maior de todas que a mãe tinha cortado pra botar na salada, lavo ele legal, boto na janela pra secar. Lá no playground tem um cantinho de terra maneiro.
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Stela Maris Rezende
STELA MARIS é mineira de Dores do Indaiá. Mora no Distrito Federal. Defendeu Tese de Mestrado em Literatura Brasileira na Universidade Brasília em abril do ano passado: “Graciliano Ramos e a literatura infantil”. É escritora premiada: Prêmio Nacional de Literatura Infantil João-de-Barro, Bienal Nestlé de Literatura Infanto-Juvenil e outros. Tem obra selecionada para o projeto “Viagem da Leitura”/Ripasa – INL – TV Globo. É também artista plástica, comunicadora, produtora de TV e pesquisadora do folclore brasileiro.
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O ÚLTIMO DIA DE BRINCAR
Ali no alpendre Mariinha tomava sol. E o sol tomava conta de Mariinha. Está na hora de brincar. Vem, Mariinha, vem. Mariinha sentia o cheiro do doce de mamão que a mãe fazia. Então Mariinha saiu do alpendre. Lembrando de Cândida, Polidora e Das Mercês. - Ô mãe, eu vou brincar de guisadinho. Disse Mariinha, com o rosto vermelho. - Havera de antes arear as formas de bolo. Replicou dona Juvelina, cismada com o doce de mamão que ainda não estava no ponto. - Ara, mãe, deixa eu brincar de guisadinho, primeiro. Pdeiu Mariinha ajeitando a gola do vestido. - Depois areia as formas. Não vai embromar, hem? Concordou dona Juvelina, mexendo forte no fundo do tacho, dona Juvelina fazedeira de quitanda para vender no armazém. Mariinha chegou no mato. Cândida já estava acendendo o fogo. Polidora picava a cenoura. Das Mercês catava o arroz no coité. Stela Maris Rezende
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- Está aqui o feijão com a carne, tudo cozidinho, uma gostosura. Mariinha falou, colocando a panela no caixote que servia de mesa. Cândida soprava as brasas, empurrando o queixo para a frente. Polidora parou um tiquinho de picar a cenoura, olhou para Mariinha, balançou os brinquinhos de ouro: - Eta, Mariinha, vai ver que trouxe o feijão mais a carne escondido da dona Juvelina. Das Mercês separava os marinheiros dentro da mão esquerda: - Se a Mariinha pedisse, a mãe dela ia deixar por um acaso? Não ia, então o jeito é pegar escondido. Mariinha limpou a trempe do fogãozinho de lenha com um pedaço de blusa velha, trapo trazido pela Polidora. Tinha o sol. A montanha ali perto. Um pé de jatobá carregadinho. Mariinha pensou assim: Ô minha Nossa Senhora, quando eu chegar lá em casa vai ter tanta forma de bolo pra eu arear. O arroz cozinhou demais. A cenoura até derreteu. Mas é de ver que estava tudo muito gostoso. Mariinha comeu duas vezes. Polidora também repetiu. Cândida encheu o prato três vezes. Das Mercês não quis mais porque estava meio perrengue. Depois dessas coisas, Polidora fitou o rosto ainda vermelho de Mariinha:
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- Ô Mariinha, a sua mãe é largada do seu pai, não é? Cândida olhou para o outro lado, inzonando. Das Mercês tossiu um mucadinho, com os olhos parados na cerca de arame farpado. Mariinha sentada no capim, mexendo numas florzinhas de cheiro forte. Mariinha disse bem assim: - Uai, aqui em Dores do Indaiá todo mundo sabe que a minha mãe é largada, por que a pergunta nesse revestrés sem eira nem beira? Polidora buscou os olhares de Cândida e de Das Mercês. Continuou: - A minha vó falou que a gente não devia de brincar de guisadinho com você. Mariinha colheu algumas florzinhas e as colocou no cabelo, as orelhas ajudando a segurar. Das Mercês cutucava o chão com um bambu. Cândida comia jatobá lambuzando as mãos, o rosto, o vestido de lese. Polidora amontoava as panelinhas dentro de uma bacia. E Mariinha, retirando as florzinhas do cabelo: - Aqui em Dores do Indaiá tem muita mãe que é largada, a minha mãe não havera de ser a única, uai. Polidora fitou o rosto de Mariinha, querendo mudar de prosa: - Esse povo é bobo, sabe, ô Mariinha, meu tio Niquinho falou que vai me dar uma boneca de louça. Mariinha encarou Polidora: - Uai, Polidora, arresolve logo se hoje é o último dia que vocês estão brincando comigo. Stela Maris Rezende
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E Mariinha pensou: A professora ensinou que não é arresolve, é resolve, eta, eu vivo errando essa palavra. Cândida não parava de comer jatobá. Das Mercês fazia desenhos no chão. Polidora guardava todas as panelinhas e agora varria perto do fogãozinho, com umas folhas de bananeira. Mariinha ainda a olhava, decidida: - Anda, Polidora, anda, me fala se hoje é o último dia. Mariinha lembrava. Teve uma tarde que a mãe a chamou no alpendre: - Ô Mariinha, eu acho uma coisa estúrdia você andar com a Polidora, porque, coitadinha, ela é tão pretinha, sei lá, eu acho uma coisa estúrdia. Mariinha quase gritou: - Ô mãe, a Polidora é pretinha mesmo, ela é um tifuque de tão pretinha, minha Nossa Senhora da Badia, isso havera de ser um motivo pra eu não andar com a Polidora? A mãe encontrara tanto desconcerto nas palavras de Mariinha, mas tanto desconcerto, que então a mãe nunca mais tocara nesse caso da Polidora ser preta. E agora a Polidora com a história de não brincar com ela. Ara, o pai largou a mãe quando eu nasci. Isso carece de ser misturado no guisadinho? Mariinha pensava assim: Gente é bicho muito difícil da gente entender, cruz-credo.
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Cândida tentava limpar as mãos na barra do vestido de lese, mas ficava cada vez mais lameada de jatobá. Das Mercês pôs a bacia na cabeça. Mariinha pegou a panela: - Quando a minha mãe souber que eu trouxe o restinho de feijão com carne que ela deixou no guarda-comida, eta, vai ser um pampeiro. Polidora tirou a trempe de cima dos tijolinhos armados ali no chão e a jogou dentro do caixote que servia de mesa. Depois Polidora espichou o olhar na montanha, dizendo bem alto: - Ô Mariinha, hoje foi o último dia que a gente brincou de guisadinho com você, desculpa. Cândida entra na casa que tem varanda, entra correndo, sem olhar para trás, parece até que está fugindo do capeta. Das Mercês entra na casa que tem goiabeiras no quintal, entra esbaforida, mas antes pára e olha para Mariinha. Polidora vai andando esguia, balançando os brinquinhos de ouro, sem acompanhar os passos hesitantes de Mariinha. Depois Polidora entra na casa pintada de verde clarinho, uma casa que tem um mundaréu de pé de rosa. Tem rosa vermelha, tem rosa cor-de-rosa, tem rosa amarela, tem rosa branca. Mariinha não vai logo para casa. Hem, Mariinha? Mariinha demora. Vai ter que arear as formas de bolo amanhã Stela Maris Rezende
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cedinho, antes de coar o café. Capaz de dona Juvelina ralhar, dar uma coça em Mariinha. Gente é bicho muito difícil da gente entender. Mariinha está pensando nisso, andando sozinha pela rua. Sozinha e triste. - Ô Mariinha. É Polidora que voltou e se aproxima. - Olha, Mariinha, você me desculpa. A minha vó acaba acostumando, ela carece de acostumar. Eu não quero deixar de brincar com você por causa daquilo. Mariinha diz num fôlego só: - Agora sou eu que não quero mais, você é uma menina muito exibida, metida a sebo, agora sou eu que não quero mais. Polidora baixa o rosto, esmorecida. Mariinha pensa um pouquinho e sorri para ela: - Eta bobagem. Me desculpa. Vê lá se eu vou deixar de brincar com você mais a Cândida e a Das Mercês. O nosso último dia de brincar de quisadinho vai ser no dia de São Nunca. Polidora também sorri. E vai: O dia escurecendo. Mariinha diz assim para Polidora - Até amanhã, Polidora. Então Mariinha volta em direção a casa que tem alpendre. Lembrando do doce de mamão, que já deve de estar prontinho dentro da tigela.
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Vem Mariinha, vem. Está na hora da sobremesa. Ali no alpendre Mariinha despede do sol, entra na sala, vê a mãe cerzindo um vestido. - Olha, mãe, eu cheguei tarde porque estava zanzando na rua feito coió, será que a senhora vai me dar uma coça? Dona Juvelina examina Mariinha, entre braba e achando graça, os óculos de dona Juvelina despencando no nariz: - Me embromou direitinho, hem? Mariinha já na cozinha procurando a tigela de doce. - As formas de bolo eu areio amanhã pra senhora, vou deixar tudo brilhando.
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Acolchetando Prendendo; unindo; apertando com colchete Agregada Aquela que vive numa família como pessoa da casa Alabastro Rocha pouco dura e muito branca Alumiando Iluminando Amuleto Pequeno objeto que alguém traz consigo ou guarda, acreditando em seu poder mágico Avivado Estimulado Batedores Polícia encarregada da guarda pessoal de autoridade ou pessoa impotante Brumosa Nevoenta Carece Precisa; necessita Chispa Faísca Choco Ovo em que se está desenvolvendo o embrião
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Coité Cuia Complacência Condescendencia Corcova Corcunda Cortinado Encoberto Coso Costuro Divagando Fantasiando Embromar Muito prometer e nada cumprir Encarnada Da cor da carne Estremelicando Tremendo Esturdia Extravagância Feição Forma Ginete Cavaleiro armado de lança e adaga Gorando Inutilizando Gramou Levou Ínfimo Inferior Intervir tomar parte voluntariamente
Inzonando Mexericando Maloca Casa de habitação índia que aloja diversas familias Mantas Pedaços de carne Mofar Zombar Mucama Escrava negra escolhida para ajudar nos serviços caseiros Nuviosa Nublada Obscuro Difícil de entender; confuso Pampeiro Conflito; briga; discussão Perrengue Adoentado; fraco Pesadelo Sonho ruim Saltimbancos Elenco de artistas populares itinerantes Singrando Navegando Solícito Cuidadoso Subalterno Inferior; subordinado Tateava Apalpava
Glossário
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Literatura em minha casa
GÊNERO DA OBRA
1 Poesia sempre 2 Contos de Reis 3 Indez 4 Fábulas e Pele de asno 5 Histórias espertas
POESIA CONTO NOVELA CLÁSSICO UNIVERSAL TEXTO DE TRADIÇÃO POPULAR
A presente obra — Contos de Reis — é um livro em que vários autores brasileiros reunidos escreveram seus contos, buscados na fantasia ou recontados depois de ouvidos. Todas as pessoas gostam de histórias e já ouviram muitas vezes os contos de fadas lidos pela professora: Cinderela, Chapeuzinho Vermelho, O Gato de Botas, Dona Baratinha. Tais contos traziam tanta felicidade para os corações dos alunos, que ansiosos esperavam o dia seguinte para escutar mais outras histórias. Estar na escola era uma grande alegria.
I SBN 85 - 7442 - 082 - 4
9 788574 420820