Sextante 2013/2 - Ruas Inquietas

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RUAS INQUI ETAS


SEXTANTE 2013/2


A Sextante possível

EDITORIAIS

Esta turma editou, no semestre passado, dois exemplares do 3x4. A que foi planejada no início do semestre. E uma edição extra, com grande senso de oportunidade, sobre os acontecimentos que ficaram conhecidos como jornadas de junho. As duas com razoável qualidade. Mas confesso que foi um “sofrimento” por não ter conseguido dar um sentido de trabalho coletivo, prática essencial ao exercício do jornalismo. O nível de presença foi de deixar qualquer professor em pânico. Alguns teriam, certamente, rodado boa parte da turma por freqüência.

Por um jornalismo mais inquieto

Pois muito pouco mudou no semestre em que o mesmo grupo teve como tarefa a edição da revista Sextante. Presença, sofrível mais uma vez. Prazos estourados e remarcações dos mesmos por inúmeras vezes. A própria definição do tema e denominação de Sextante – Ruas Inquietas, de alguma forma, refletia o “caos” estabelecido. “Ruas Inquietas” foi a fórmula encontrada para a impossibilidade de definição de um tema com um grau maior de clareza que, por sua vez, permitisse pautas mais focadas em uma determinada direção. Este foi o consenso possível de ser estabelecido, refletindo uma dificuldade no aprendizado da negociação. Não cabe, agora, reproduzir estas dificuldades.

Ainda tontos pelas manifestações do primeiro semestre, foi difícil não pensar em um tema para a edição dessa Sextante que não envolvesse ruas e inquietações. Mas escolher um assunto que abrangesse todos os anseios e motivações de cada um tornou-se uma verdadeira inquietação. Após vários encontros discutindo, debatendo e discordando, batemos o martelo pela pressão do tempo e escolhemos o tema mais próximo para englobar tantas abordagens: “Ruas Inquietas”. Podemos dizer que nas páginas seguintes o leitor vai encontrar uma situação parecida com os protestos que ocorreram no nosso país: pautas distintas alimentadas pelo mesmo sentimento de inconformidade. As diferenças da turma se refletiram não só no conteúdo, como também na forma como ele se apresenta. Questionamos da sexualidade até nossa própria rotina e percebemos que era só colocar o pé na rua para enxergarmos o caos por trás da ordem. Se a revista compila as preocupações de cada um a estas alturas do curso, arriscamos falar que nossas preocupações são sempre pertinentes e são um reflexo do que acontece diariamente. Pautas sobre uma inquietude que já se comprovou para além do nosso pensamento. Nas ruas.

Mas ao término do semestre, depois de muitos “trancos e barrancos” chegamos ao final com uma Sextante inquieta, diversa, singular, refletindo este “caos”, próprio desta turma. Um registro das preocupações de cada um a estas alturas do curso. Uma boa leitura a todos. Arrisco dizer que o resultado final é bom. Se deliciem com tantas inquietações!

Comissão Editorial

Wladymir Ungaretti

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SUMÁRIO Raiva 06

(Des)andar pelo IAPI 08

Gentrificação: higienização ou discriminação social? 14

Da velha Dique ao novo porto 16

O ano é 2030 e os vestidos mudaram 21

A rua me ensinou a viver 27

O homem que brilha 30

Entrevista com Alexandre Kumpinski (Apanhador Só) 33

30 anos de um sonho coletivo 41

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Solidão na rua 45

Fotografando 50

Sobre cinemas e cidades 60

O fim do teatro inacabado 63

Do protesto à conscientização ambiental 72 Nós só vamos parar quando o mundo acabar, quando a bomba explodir, quando o sangue jorrar 78

Sobre la libertad 88

A cobertura das manifestações em Porto Alegre 92

Gente de preto 98

Desmilitarização da polícia brasileira: quanta pressão cabe num camburão? 105

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RAIVA por Laura Schuch

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F

Achei que o problema era a bicicleta mas meu amigo diz que com ele não.

Pra que esse feminismo produzido, não entendo. Vamo falar das mina.

Buzina e mais buzina no meio do engarrafamento de motoristas estressados. E eu vou me machucar. E sou tua filhinha.

Uma vez disseram que eu só ia bem na aula porque era brasileira e tava dando pro professor. Mas eu era uma criança e levei um susto.

Aí a putaria do multishow é só mina e não é pra ninguém reclamar. Quem reclama é chato.

Uma obra. Prepara o grito e vai tomar no cu filha da puta brocha pau pequeno não vou nem sentir.

É mais fácil levantar a mão direita pra mostrar o dedo.

Buzina buzina

Ô lá em casa.

Filha da puta.

Nossa nossa assim você me mata. Um grupo de moradores de rua, de noite. Não é pra ter medo?, dei uma apressada no passo.

Esses dias mandei tomar no cu e era o motoboy do trabalho. Pedi desculpas.

Que beleza hein?

Causo verídico: tava abraçda no namorado numa festa. Senti uma coisa asquerosa: um bafo quente seguido de baba no meu pescoço, parecia não acabar nunca. Me virei e ele já tinha saído; vi de canto de olho ELE ME DEU UM BEIJO NO PESCOÇO. Sério? Ahn sério. Ai que nojo. Cara, vou lá dar um beijo no pescoço desse cara. Muita gente, pouca luz, achei eu.

Na parada deserta do ônibus. Ipiranga, nove da noite de inverno, sozinha. Pelo menos ao que tudo indica.

MAS O QUE É QUE TU TÁ PENSANDO CARA. MEU PESCOÇO É MEU MANO. MEU CORPO É MEU CARA TE FODE FILHA DA PUTA DESGRAÇADO. QUE PORRA É ESSA MANO QUAL É.

Cobrador e motorista me olham.

ilhinha, sai daí, tu vai te machucar. Um morador de rua.

Será que algum deles vai correr atrás de mim? Um dia eu tava caminhando na rua, tinha uns 15 anos. Ia pra aula de natação. Mas o quê?, um cara de bicicleta com a mão na minha bunda. Corre xinga mas de que que adianta. Chorar por uma hora de raiva. De raiva. Mas qualquer coisa eu pedalo feito louca. Uma amiga me contou que foi atacada e atirou a bicicleta no cara e escapou. Eu não pedi autorização pra contar a história dela. Uma outra, pedalando, levou uma mãozada na bunda, de um motorista. Quando eu era menor ainda, tava na casa da vó e queria buscar um picolé. Não me deixaram por causa da minha roupa. Mas eu era uma criança e levei um susto.

Buzina, vai. Vai tomar no cu

Mas que tanta raiva.

Mas é que cara. Gostoooooooooooosa Um gostosa gutural:

GOOOOOOOOSTOOOO OOOOOOOSAAAAAAA AAAAAAAAAAAAA E se alguém realmente corre atrás de mim.

Chamo o ônibus, o ônibus vem, vou subir no ônibus. Uma mão puxando a minha calcinha, por baixo do vestido. MANO QUE PORRA VAI TE FODER FILHA DA PUTA.

VOCÊS VIRAM O QUE ELE FEZ?????

CHLEPT.

Silêncio. Eles se olham. O cara saiu correndo. Parece que foi invenção minha.

TÁ ME OUVINDO CARA QUE PORRA É ESSA MANO. DEDO NA CARA QUAL É A TUA MANO VAI TE FODER TÁ RINDO É.

Duas horas chorando de raiva, eu que já tava doente. Nesse mesmo dia, vou pra Unimed com vômito & diarreia infinitos. Virose. Não que tenha a ver, mas não que não tenha.

PAAFT.

Buzina buzina

Mão doendo, os seguranças me levaram.

Todas as vezes.

Mas que tanta raiva, não é não.

Uma professora minha tinha um cabelão loiro, usava sempre uma trança. Quando ia embora de noite, colocava a trança pra dentro do casaco pra não correr o risco de alguém puxar.

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(DES)ANDAR pelo IAPI por Matheus Harb

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A

rua. Bem que eu tentei encontrar uma grande abordagem pro tema que, entre tantas discussões de turma, mais cedo ou mais tarde, acabaria tomando as páginas deste EXEMPLAR (qualquer um que tenha VIVIDO de junho pra cá entende o porquê). Mas me liguei que não, provavelmente, não tenho a capacidade pra ir a fundo em grandes pautas, tampouco pro ‘bom journalismo’. Deixei lide, fonte de lado e pensei, simples assim: colocando o pé pra fora da Anita Garibaldi número 17xx (não vou entregar o número de casa, tá maluco?), que coisa mais próxima dali despertava algum tipo de inquietação? Porque sim, a vida realmente acontece naquele pedaço de zona norte porto-alegrense, mesmo que nem sempre pro melhor. Sobe mais uns 500 metros em direção à Carlos Gomes que o PROGRESSO é jogado na cara. A obra semifaraônica da trincheira que melhorou vai melhorar o trânsito naquela parte da capital vai casar muito bem, espero, com a ampliação das pistas da nova avenida que está por vir. As árvores? Nada que as leis de compensação vegetal não resolvam. As pessoas da Anita não utilizam aquelas árvores. Quer dizer.

Michel Cortez

Mas OK, não foi isso que me veio na cabeça, e sim o IAPI. Motivos não faltavam. Afinal de contas, a simples ideia de um bairro quase inteiro de casas em uma cidade com o histórico recente que tem Porto Alegre, em pleno 2013, já escapa a qualquer sentido imediato. Ah sim, e tudo isso a pouco mais de 700 metros da rua que vai virar laboratório pro urbanismo nonsense dessa próspera urbe. MAS ESPERE, TEM MAIS: por algum motivo, foi um governo ARENA que fez do IAPI uma área de interesse cultural, portanto, protegida pelo Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano. Se isso já não é motivo de sobra, então eu não sei o que é. Depois de enrolar e estudar um pouco da ABORDAGEM dessa questão (abraço, Debord), coloquei a mochila nas

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costas e parti, numa manhã de terça-feira, rumo a esse desconhecido.

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A CITY OF GLASS WITH NO HEART

baixar porque, claro, sendo no limite da “boa” Zona norte, “a gurizadinha” pode descer ali pra assaltar. Ouvi isso de alguém esses tempos. Sentido total.

Bosco)? Eu que não, ao menos não hoje. Pra não deixar esse sightseeing muito manjado, dobro na primeira rua que aparece pela frente e me vou a desbravar o inner IAPI.

Dobro a Alfredo Corrêa Daudt e, bingo, voltam as associações que me motivaram, em grande parte, a essa ideia: que loucura, cara. Simplesmente NADA nessa rua me diz que eu to indo desembocar no IAPI logo adiante. Casarões guardados a grades e guaridas de segurança, clínicas-conceito pros endinheirados e, claro, a via quase expressa que convida os motoristas a pisar no acelerador, enquanto que o transeunte tenta atravessar; Bem, esse fica entregue à própria sorte. Mais ali adiante, a Praça Leonardo Macedônia em todo o seu ESPLENDOR, especialmente pela quadra de basquete que sediou tantas partidas (não) memoráveis. Mas melhor não ir ali quando o sol

Atravesso a Plínio Brasil Milano e, depois de mais uma quadra, ultrapasso a pista de skate e caminho junto ao paredão do Cemitério São João. Alguns sobrados característicos do bairro já aparecem na outra calçada e eu me pergunto a quantos metros eu devo estar do “Postão” do INSS - que dá até nome a ônibus. Grande bairro esse. Aqui, a Avenida Marechal José Inácio da Silva convida a segui-la até o fim, em linha reta, indo parar na Assis Brasil, consequentemente, no fim da vizinhança. Quem quer parar e olhar a vizinhança, quando se pode correr ao volante e chegar logo ao seu destino final (mas cuidando com a lombada eletrônica logo ali, na frente do Dom

DO RUN, RUN YOU WON’T GET FAR Na minha cabeça, o bairro tinha realmente casas muito parecidas, mas que tivessem um lance de IDENTIDADE mais próprio. Logo que caí na Veranópolis, pensei na hipótese de estar enganado: TODOS os sobrados simetricamente idênticos, à direita e à esquerda, seis janelas no térreo, seis janelas no segundo andar. Talvez se eu tivesse feito a lição de casa e visto que a região foi inaugurada em 1953 durante a gestão Meneghetti, a partir do financiamento de moradias populares a nível nacional pelo Instituto de Aposentadorias e Pensões dos Industriários


(daí a sigla), não teria ficado tão impressionado. Fecha o parêntese histórico. Também percebi que minhas ideias prévias da DEMOGRAFIA do lugar estavam erradas, vide a quantidade de carros estacionados na frente dos mesmos casarões (noção destruída ao constatar a existência de um deck em um deles). Seguindo no imprevisto, viro mais uma esquerda. Na Dom Pedrito, paralela à Marechal, mais uma surpresa: casarões dando espaço a casas comuns, quem diria. Nem mesmo a novidade impede que o bairro fique cada vez mais familiar para mim. As ruelas são a novidade, mas o estranhamento diminui. E até prende, por assim dizer. Mesmo retornando à Avenida algumas quadras depois, logo volto às vias internas do IAPI. Pra quem acompanha até aqui (obrigado), o texto deve estar fazendo pouco (ou nenhum) sentido. Mas ficar preso a um relato frio e impessoal também não era a minha intenção, até porque é tarefa quase impossível colocar no papel tantos pensamentos que vieram dessa experiência e das leituras sobre deriva e situacionismo (não vou ficar explicando, Wikipedia e livros tão aí pra isso). Resumindo: escolher uma região e navegar por ela sem um rumo definindo, apreender esse espaço e as sensações que ele suscita. Quanto mais a fundo o bairro ia sendo explorado (Ruas Novo Hamburgo, Dom Pedrito e Nova Prata), menos o tempo parecia correr e mais prazeroso era aquilo tudo. Distante do ritmo imposto pela vida contemporânea: buscamos o trajeto mais curto e eficiente de um ponto a outro, a linha de ônibus que solte mais perto de casa ou do trabalho, os lugares mais frequentados e bem-avaliados pelo maior número de pessoas. Liberdade de ir e vir, pra quê, se eu tenho o DEVER de andar apenas nos espaços que reúnam boas qualidades?

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IN THE LAND OF THE FREE LOBOTOMY Passando o Dom João Becker em obras, desço a (curta) João Moreira Alberto e atravesso a Praça Chopin, quase no final dessa primeira jornada. A caminhada pela 24 de Junho, sentido Assis Brasil, é rápida, embora suficiente pra perceber mais daqueles condomínios-padrão do IAPI, as casas unidas numa construção única. Alguns se arriscam e personalizam seus módulos com paredes de tijolos, cores e plantas. Devaneio: o operário que foi morar ali algum dia, numa construção feita para que ele fosse IDÊNTICO a seus vizinhos, hoje dá lugar a que busca se diferenciar. Liberdade pra aparentar como quiser.

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A primeira deriva termina assim que eu reconheço o prédio que demarca o fim do bairro (sugestivamente, com o logotipo do IAPI acima de uma das janelas do quarto andar). O sucesso da empreitada faz a ideia da cerveja no bar da SORAIA 21 ser tentadora, mas é preciso correr. Tenho um passaporte pra pegar do outro lado da cidade, e que ainda sobre tempo pro almoço. Experiência que se desfaz num piscar de olhos, como um vira-lata que fosse atirado pra dentro de uma casa de família.

IF I HAD A TAIL I’D OWN THE NIGHT Volto ao IAPI no mesmo final de semana. Almoço ali por perto e, sem planejar muito e com tempo de so-

bra, começo a segunda fase. Sei apenas que a Avenida dos Industriários é o meu caminho, justa homenagem a quem tornou essa jornada possível. Ignoro a José Inácio da Silva, pego a calçada norte (acho) até chegar na rótula, o ponto inicial da caminhada. Mas essa nova parte do bairro já não é tão amigável. Talvez pelas ruas quase vazias ou mesmo pelo domingo cinzento que fazia. Superado o impacto da tensão inicial, comecei a descer a rua. Os edifícios dão outro ar a essa parte do bairro, mesmo pelo fato de serem PRÉDIOS. De TRÊS ANDARES. Em PORTO ALEGRE. Tão próximos da rua, imagino que até o cara que more na janela mais alta sinta-se convidado a viver mais perto da vizinhança.


Michel Cortez Passando por mais prédios, comércio fechado e canteiros com árvores (vale sempre ressaltar), lembro as razões mais pessoais que me atraíram ao IAPI. Penso no meu pai que, de origem humilde, volta e meia me contava alguma coisa sobre a infância vivida ali (e sua notória implicância com Elis Regina por não promover uma espécie de ORGULHO IAPI-SENSE. Informação não averiguada), embora ele mesmo quase não frequentasse o bairro. Ascendeu socialmente e logo deu as costas a tudo aquilo ali. Coerência em primeiro lugar. Gosto de pensar que volto ali para retomar justamente essa infância que não tive, GURI DE APARTAMENTO que sou. Pra quem as ruas se apresentaram aos 16 anos, toda essa vivência é apaixonante. Na metade do caminho, dou de cara com outro elemento da minha história pessoal: o Parque Alim Pedro. Provavelmente foi ali onde tive um dos meus últimos contatos com o bairro até esse retorno. Algum torneio representando o colégio por volta dos meus 13 anos. Quase o mesmo tempo depois, o local passa por uma revitalização. Alegria por um lado, já que o bairro merece essa atenção. Temor, se toda essa atenção for só um início pra mudanças ainda mais profundas ali, agora que a especulação imobiliária dita os rumos da capital.

Tantas ideias vindo à cabeça que acabo esquecendo a observação de mais tantos condomínios (e deixo de entrar num boteco próximo ao Parque, tarefa mandatória para todo bom desbravador). E, pá, já estou na Brasiliano Índio de Morais (ou Assis Brasil II, que faz muito mais SENTIDO). Entre voltar pela Industriários e fazer outro caminho, opto por dar a volta nos últimos quarteirões da parte nordeste do IAPI e faço o caminho de volta pra casa via Plínio.

Não consegui voltar uma terceira, quarta vez a tempo de reunir mais material pra essas linhas. Mas só o fato de poder me aprofundar em um lugar com um olhar diferente, com uma abordagem diferente, bem, já é algo a se comemorar. Há muitas maneiras mais de se apreender Porto Alegre do que se pode imaginar. Basta colocar o pé na rua. E deixar o relógio em casa.

WHEN YOU OWN THE WORLD YOU’RE ALWAYS HOME

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Gentrificação: higienização ou discriminação social? por Filipe Raupp

O

termo gentrificação pode até ser desconhecido, pelo menos aos que eu perguntei enquanto fazia essa matéria. Poucos foram os que sabiam do que se tratava. No entanto, seus efeitos, consequências, são sentidos por todos. A expressão inglesa “gentrification”, não possui uma tradução literal para o português, mas, de maneira geral, podemos chamar de higienização urbana ou enobrecimento urbano. Gentrificar é transformar o espaço urbano, retirando moradores pobres de uma determinada região e substituí-las por moradias e por uma população de alta renda. A ação que acontece com fre-

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quência nos Estados Unidos, Europa e Austrália, desde a década de 1950, está se tornando comum também no Brasil. O nome em inglês – “gentrification” - foi criado em 1964, pela socióloga britânica Ruth Glass que analisou o fenômeno na cidade de Londres. O geógrafo americano, Neil Smith, observou como os Estados Unidos fizeram a sua limpeza urbana na década de 1960. Segundo o autor, a gentrificação aparece como “Um maravilhoso testemunho dos valores do individualismo, da família, da oportunidade econômica e da dignidade do trabalho”. Em primeira vista, ela atrai os olhares de uma parcela da população, que sente a necessidade de um ambiente sem favelas, cortiços, moradores

de rua. O que essas pessoas não pensam é que essa dita “limpeza da cidade” pode trazer muitas complicações. Ela não vai extinguir as favelas, só vai deslocá-las, criar vilarejos periféricos e causar modificações que podem implicar em revoltas populares, em um problema social. Prejudicando as classes menos favorecidas. Smith descreve ainda que a tendência dessa reestruturação urbana é o “Centro urbano dominado por funções executivas, financeiras e administrativas de alto nível, habitações para classe média e um complexo de hotéis, restaurantes, cinemas, lojas e espaços de cultura oferecendo lazer a esta população”. Algo semelhante aconteceu na


cidade do Rio de Janeiro no início do século XX. O prefeito Pereira Passos, ficou conhecido como “Bota Abaixo” por sua política de urbanização. Na ocasião, o governante expulsou moradores pobres do centro da cidade, o que resultou no povoamento dos morros e na formação das favelas. A atitude teve a finalidade de destinar à iniciativa privada a estruturação da cidade. Percebe-se que, antes mesmo do surgimento do termo, a gentrificação já existia. A ideia por trás do conceito é atender a um processo de ordem mercadológica e modelar a formação estrutural do local. Essa modelagem é obtida com a remoção da população do seu lugar de origem. Mais adiante, na década de 1970, ou seja, já posteriormente à criação do conceito, em tempos de Ditadura Militar, pode-se dizer que houve gentrificação no Brasil. No pensamento do Regime da época, as favelas eram lugares de desordem. Dentro da política militar de manter uma boa aparência do Brasil para o exterior, a população pobre que morava nos centros passou a ser deslocada para as periferias, e estas passaram então, ao menos

nos discursos militares, a serem ditas como um lugar voluntarioso, de boa vizinhança. O que mais impressiona é que essa ideia - de reassentar moradores favelados e fazer uma limpeza na cidade - parece encontrar respaldo na população de um modo geral, até mesmo em pessoas de baixa renda. Isso se deve até mesmo ao apelo publicitário, já que na grande mídia o resultado da gentrificação – propagandas de grandes condomínios privados, por exemplo - é apresentado muitas vezes como símbolo de progresso, contemporaneidade, componente do processo de renovação e desenvolvimento que o país está passando. Mais de uma vez eu já ouvi pessoas comentando sobre a nova Arena Grêmio: “Ficou linda! Agora só falta limparem toda aquela volta, tirarem aquela gente dali.” Referem-se à Vila Liberdade. Ignorando completamente o direito constitucional de se ter moradia. E isso é o que vai acabar acontecendo, mais cedo ou mais tarde. Os arredores do novo estádio, por exemplo, já compõem hoje uma região periférica; mesmo assim, os moradores do local, às margens da BR-290, vão ser removidos de-

Para a língua portuguesa, “gentrification” não tem nenhuma tradução literal, mas o prefixo “gent” dá ideia de “enobrecedor”. A retirada de moradores tradicionais provoca valorização imobiliária e atrai residentes de classes mais abastada da sociedade.

de menor renda. Consecutivamente, também resulta no aumento da violência nas grandes cidades. De maneira mais direta, a construção de torres residenciais que acumulam milhares de moradores em um só lugar, com centenas de carros que fazem o mesmo deslocamento para casa, só pode gerar congestionamentos e prejudicar mais ainda o trânsito dentro das grandes cidades brasileiras.

As consequências podem ser muitas. De forma indireta, acarreta em uma luta de classes, além de descontentamento por parte daquelas

Com a justificativa de remodelação, de obras da Copa do Mundo, modernização, entre tantas outras, o mercado imobiliário está atuando

As consequências da reurbanização

vido à construção de um conjunto residencial que já tem um projeto. É importante lembrar que a região era praticamente inóspita quando essas pessoas chegaram ali, ou seja, até mesmo as periferias das grandes cidades já estão se tornando alvo da especulação imobiliária e os seus moradores, sendo empurrados para regiões cada vez mais afastadas dos centros. O capital imobiliário, interessado em expandir, já ultrapassou os limites centrais das cidades, antes considerados como a zona nobre; hoje já não há mais essa distinção, ao menos para os empreiteiros. A ideia atual é desenvolver complexos que sejam auto sustentáveis: construir condomínios que são praticamente clubes de lazer, com piscina, salão de festas e quadra esportiva. Além disso, shoppings, restaurantes, praças, são feitos no entorno das torres, e o Estado, por sua vez, possibilita acesso, construindo novas vias. Inclusive, segundo Erminia Maricato, urbanista e professora aposentada de Arquitetura da USP, essa tendência explica o fato da estrutura viária do Brasil estar sempre voltada para o automóvel.

com força em Porto Alegre. Não só o residencial no entorno da Arena do Grêmio, mas também em diversas outras regiões da cidade. O Barra Shopping, por exemplo, foi construído sobre uma área onde antes existiam moradores; a Vila Dique foi removida para ampliação do aeroporto Salgado Filho. A cidade segue a regra das principais metrópoles do país: substituir pobres por ricos ou por obras que beneficiam a alta classe. Enquanto isso, as periferias vão ficando mais à margem e a divisão de classes, a desigualdade social, tornando-se mais evidentes.

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DA VELHA DIQUE Na verdade, eu acho que ninguém veio aqui com a ideia de ficar. Eu acho que o povo veio com uma, como eu vou dizer... com uma maneira que não tinha outro lugar, que não acharam outro lugar onde poder morar (Roda de Memória I, 2011, Projeto Memórias da Vila Dique)

por Marcel Hartmann

É

sábado, 8:30 da manhã. Pego o D-72 no Mercado Público e atravesso parte da Freeway. Após aproximadamente 30 minutos, desço em uma parada de ônibus às margens de uma avenida de asfalto com calçadas de terra. Com mais cinco minutos de caminhada, chego ao Conjunto Habitacional Porto Novo, localizado no bairro Rubem Berta. Ali vivem 922 famílias (aproximadamente 3.500 pessoas) que começaram em dezembro de 2009 a serem reassentadas pela Prefeitura no projeto de remoção da Vila Dique, orçado em R$ 70 milhões e motivado pela ampliação da pista do Aeroporto Salgado Filho por exigência da Fifa. É uma capital à qual não estou acostumado, apesar de ainda fazer parte dela. A cidade é e não é a mesma na qual vivem os diqueiros. Estes, vos apresento. Eu vinha em busca de alguma coisa, como a andorinha “Eu tô na minha casa aqui, mas meu coração ficou lá”, diz Rosemara Rodrigues dos Santos, moradora há 31 anos da Dique enquanto franze o cenho, mostrandose revoltada. “Aqui onde a gente tá não tem barro, mas e os que fica-

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ram para trás?”, indaga com uma voz cortada por indignação e desconforto. O aqui de que ela fala é o Conjunto Habitacional Porto Novo, onde está acomodada. O lá é a antiga Vila Dique, localizada às margens do Aeroporto Salgado Filho e onde restam ainda 300 famílias – mais ou menos 1.100 pessoas. A área começou a ser ocupada em uma região irregular nas décadas de 50 e 60 por imigrantes do Interior do Estado – sobretudo de Iraí, Passo Fundo, Taquari e Erechim. Os primeiros desbravadores ocuparam terrenos dos mais grandes, do tamanho de chácaras. Abriram o mato com facões e até pescaram no Rio Gravataí, na época ainda limpo. Luz vinha somente do céu durante o dia e de vela de cera ou de lanterna de querosene durante a noite. Para se manter, viviam do lixo dos outros. Encontravam joias, dinheiro e outros objetos de grandioso valor. Assim, iam juntando dinheiro e espalhavam de boca em boca a maré de boa sorte oriunda da Dique. “Eles diziam para os familiares do Interior: ‘Vem para cá, a gente tá ficando rico com o lixo!’”, explica a professora de História e doutora em Educação pela UFRGS Carmem Zeli de Vargas Gil. A docente é encarregada pelo projeto de extensão Memórias da Vila Dique,

iniciativa com o objetivo de promover rodas de conversa com os moradores a fim registrar a história da Dique, além de fortalecer os laços da comunidade. O barulho dos aviões não espantava os esperançosos em melhorar de vida, e as árvores começaram a ceder lugar a mais casas. Aos poucos, a Dique tomava forma, unificada pelo suor dos interioranos. É devido a tal esforço que muitos rechaçam o rótulo de ter invadido o território. “Invadir, não! Ocupar! A diferença é que invadir é quando já é de alguém, enquanto ocupar é onde está vazio!”, disse um morador em uma roda de memória mediada em 2011 pelo projeto. Assim, casas eram construídas e, posteriormente, vendidas – motivo pelo qual grande parte da população se sente lesada pela remoção para o Porto Novo, visto que deixam para trás casas adquiridas com seu dinheiro próprio. Aos poucos, formava-se uma comunidade que passaria a reivindicar por escola, igreja, galpão de reciclagem e posto de saúde. A Prefeitura, no entanto, não atendia às exigências, justamente por conta da situação irregular da população. Casas viviam com fiações de


AO NOVO PORTO luz expostas e irregulares, sem água encanada e lixo e esgoto ao ar livre. A cada eleição, algum político visitava a vila e prometia melhorias. No entanto, apesar da suposta boa vontade, anos se passavam e nada acontecia. “A tensão entre o ficar e o sair tem acompanhado os moradores que se constituíram vivendo o transitório e almejando o permanente”, analisa a professora Carmem no livro “Da Vila Dique ao Porto Novo”, publicado pela UFRGS. Por conta da ausência do poder público, os diqueiros se movimentaram. O primeiro grande passo foi o Clube de Mães Margarida Alves, associação de mulheres que lutava por conquistas para a comunidade. Da força dessas mulheres, nasceu uma creche onde deixavam os filhos durante o expediente no galpão de reciclagem, para evitar que usassem o lixo como brinquedo. Anteriormente, as mães se revezavam no próprio galpão: um dia uma cuidava das crianças, e no seguinte era a outra. A partir do momento em que a creche aparece, há uma encarregada pelos pequenos. Dona Maria Nazário Pereira, moradora da Dique há 24 anos e uma das fundadoras da creche, conta que o clube nasceu no porão da Igreja Santíssima Trindade. A capela era lugar de alfabetização, reza, velório e até mesmo de entrega de leite. O que mais chamava a atenção no lugar, no entanto, eram os tradicionais galetos, preparados pelo Clube de Mães para juntar dinheiro a fim

Escombros das moradias demolidas pairam sobre o chão a fim de evitar a retomada do terreno

Projeto Memórias da Vila Dique

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Conjunto Habitacional Porto Novo, localizado no bairro Rubem Berta

de trazer melhorias à Vila. “Na Dique, as pessoas comiam e era quase uma festa”, conta Dona Maria Nazário. A agente de saúde comunitária do Grupo Hospitalar Conceição Almerinda Gambin, chamada de Miranda por todos, relata o esforço: “O prédio foi a gente mesmo que construiu, [porque] a Prefeitura alegou que era área irregular”, afirma. “Nós lutando, lutando, lutando para que viesse verba para pagar algum funcionário. Até que a gente conseguiu, porque acho que o prefeito se encheu de nós, de tanto que a gente ia no gabinete dele todo o dia”, afirma entre risadas. Relembrar para Miranda parece fazer bem, deixa ela com um sorriso no rosto. Colégio também faltava. Os jovens da Dique estudavam nas escolas mais próximas da região,

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apesar de passarem por dificuldades. “Pra estudar, chegavam lá e as professoras não deixavam nem entrar na sala. Chamavam de sujinhos, piolhentos, de tudo. Aí, as crianças vinham para casa revoltadas, não queriam ir para o colégio de jeito nenhum”, afirma Miranda. Para motivar a piazada, eram feitos torneios de bola. Quem quisesse participar, precisava ir no colégio. Quem matasse aula, não poderia jogar. Depois de muita luta, nasceu a Escola Migrantes, primeira instituição da Prefeitura a oferecer turno integral aos alunos. Os jovens entravam de manhã e saíam apenas às 17h, já com cinco refeições na barriga. É a única instituição pública presente na Dique, na qual estão matriculados os jovens que ainda não foram removidos. Outra vitória do Clube de Mães foi a Padaria Chico Pão, que oferecia cursos de

padeiro aos jovens da comunidade. O pão feito nas aulas se comia na hora, e o resto era levado para casa a fim de alimentar a família. Por último, a esperada conquista de um posto de saúde, filial do Grupo Hospitalar Conceição que garantia um atendimento digno à comunidade. As lembranças oriundas dos esforços da comunidade são muitas. E é nelas que todos esses espaços vivem. Hoje, após o início das remoções, apenas a Escola Migrantes resta de pé na antiga Dique. O Porto Novo pertence a nós Dona Enedina Durão Espindola e sua filha Gisele Durão Espindola me recebem em sua casa em outro sábado de manhã, duas semanas após eu pegar meu primeiro D-72 em direção ao Porto Novo. Dona Enedina começou a trabalhar aos


10 anos arrancando mato e dobrando milho. É fundadora da Associação de Amigos e Moradores da Vila Dique, trabalhou no reassentamento e sabe na ponta da língua a data em que veio para o Porto Novo: 24 de fevereiro de 2010. “Eu não via a hora de sair da Dique”, ela afirma aliviada, depois de viver mais de 30 anos vizinha ao aeroporto. “A situação da nossa comunidade era muito grave por conta da moradia. Valas abertas e as crianças normalmente brincando naquelas águas sujas. Os problemas de saúde foram aumentando e, ou o governo resolvia isso, regularizando nossa situação, ou nos reassentava”, explica. Apesar de deixar para trás um terreno de 130m2 em prol de uma casa de dois andares de 38m2, ela tem razão em se sentir melhor no Porto Novo: na Dique, perdeu o pai por atropelamento e uma filha de 15 dias por bronquiolite devido a problemas de infiltração na casa. A falta de estrutura era crônica. “Tínhamos que tomar banho a partir da meia-noite, porque só assim tinha água para todo mundo. Também tinha problemas de estourar o transformador e a gente ficar até 48h sem luz. A CEEE não tinha boa vontade em vir porque era tudo gato”, conta. Segurança é outro ponto positivo. “Antes, tinha a questão do tráfico. Tinha certo horário que não podia estar na rua. Às vezes, não podia sair a partir das 18h porque tinha guerra de boca. Aqui tá mais tranquilo, a polícia atua mais”. Gisele, a filha, acrescenta: “Antes, demorava três ou quatro horas para chegar uma viatura. Agora, demora meia-hora”. É a filha que também explica o impacto da remoção até na sua busca por trabalho. “Antes a gente era tratado como vileiro e não recebia emprego. Agora é diferente”, conta.

No entanto, nem tudo parece ser o paraíso. “No Porto Novo, acabaram com as festas que a gente fazia”, conta Dona Maria Nazário. “E essa parte de convivência e integração é importante”. Além disso, a população alega que o projeto de reassentamento por ela pensado não foi adotado, visto que a intenção era de que todos fossem removidos ao mesmo tempo. Detalhes pequenos, quando transformados em problemas, tornam-se grandes. O endereço das novas casas, ainda não legalizado, impossibilita que as contas cheguem. Como consequência, os moradores se veem no risco de tornarem-se devedores. “Há que se pensar também nos pertencimentos que são reconfigurados: relações de vizinhança são desfeitas, animais e objetos são descartados e grandes famílias divididas”, argumenta Carmem em “Da Vila Dique ao Porto Novo”. Ao vivo, em frente a mim, no nono andar do prédio da Faculdade de Educação da UFRGS, ela segue defendendo a mesma ideia. “Quem olha de longe percebe a remoção apenas como positiva. ‘Por que estão reclamando? Antes tinha lixo!’. Mas quando tu entra na casa das pessoas, tu vê que houve uma reconfiguração de laços”, afirma Carmem, que acompanha pela UFRGS o processo de remoção desde 2011. Ela critica as ações da Prefeitura. “É um discurso muito pautado pelo progresso e pela higienização, que coloca os moradores em um lugar muito inferior. É uma política que considera que por serem pobres as pessoas não podem discutir as novas casas”, defende. Segundo ela, destinar uma casa no Porto Novo com um pátio pequeno para um morador que vive como catador de lixo é inviável, visto que essa foi a atividade que ele desempenhou durante toda a vida. Proibir o armazenamento de carroças e cava-

los na área, para Carmen, limitaria as atividades do novo habitante. “Remoção é direito à moradia, mas também à cidade, à educação, à saúde, entre outras coisas. Não é só ficar nas rebarbas da cidade”. Além disso, ela desaprova a entrega de casas na mesma cor. “Por que fazer as casas todas iguais e do mesmo tamanho? Parece que pobre é tudo igual!”. Outro obstáculo apontado se refere à atividade econômica que deverá ser empreendida pelos novos moradores. Quem era catador deverá trabalhar na triagem de lixo, ganhando menos do que antes e tendo que arcar com os novos custos de uma moradia regularizada. “Muitas pessoas não conseguiram se inserir no mercado de trabalho para manter esta estrutura que dá uma nova qualidade de vida. E as contas a pagar?”, indaga Carmem. Aos moradores, a Prefeitura ofereceu diversos cursos, como de técnico em informática, cobrador de ônibus, camareira, manicure, cozinheiro, padeiro, entre outros. Maria Horácia Ribeiro, psicóloga superintendente de Ação Social e Cooperativismo do Departamento Municipal de Habitação, reconhece que a iniciativa não deu certo, mas responde às outras criticas. “Os moradores que querem voltar para a Dique é por conta das atividades que sempre desempenharam, como de catadores ou recicladores. O formal do Porto Novo assusta eles”, defende. Por conta disso, cerca de 200 famílias já negociaram com outras pessoas o cadastro de moradia na Dique junto à Prefeitura, o que equivale a dizer que venderam a futura propriedade no Porto Novo antes mesmo de terem as chaves na mão. Em relação às cores das casas, ela justifica que a decisão é tomada para poupar gastos. Cada casa teve até agora, o custo de 20 a 25 mil reais. A partir

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de agora, o valor subirá para 50 mil graças ao financiamento oferecido pelo programa Minha Casa, Minha Vida, do Governo Federal. Maria Horácia explica que batalhou junto aos engenheiros da construtora pela adoção de gramados nas casas com o objetivo de aproximar a população à natureza. E sobre a distância em relação ao Centro da capital, ela rebate: “Foi onde conseguimos achar uma área suficiente para construir tudo”. Para ela, é natural que haja uma não aceitação por parte da comunidade. “A resistência inicial é natural. O novo assusta esses moradores”. Ela reconhece que o Demhab (Departamento Municipal de Ha-

bitação) possa ter falhado em algumas ações. “Os moradores passam por um processo de luto e nós do Demhab não temos um trabalho voltado para eles. Não é da competência do Demhab lidar com o psicossocial, apesar de eu achar isso necessário”. A superintendente explica que o departamento se foca nos eixos da organização comunitária (ensinar a comunidade reassentada a lidar com a nova casa e as novas relações de vizinhança, por exemplo) e de educação ambiental. Sobre reassentar a população aos poucos em vez de simultaneamente, ela diz que o problema foi o atraso na entrega das casas por parte da Dan Herbert, construtora que venceu a licitação e tornou-se

responsável pelas obras. Por isso, um número maior de pessoas já deveria ter sido removido, implicando um menor impacto nas relações de vizinhança. Quem caminha nessa corda-bamba e busca se equilibrar são os diqueiros - da antiga e da nova Vila Dique. Separados por 7,5 km de distância, os 4.600 moradores seguem o curso da vida. Há aqueles como Rosemara, que se inquietam pelos que ainda não vieram, assim como aqueles parecidos com Dona Enedina, que se tranquilizam por deixar a Dique no passado. Apesar da divergência de opiniões, toda a comunidade partilha do mesmo sentimento: o futuro há de ser diferente.

Conjunto de casas no Porto Novo exibe fachadas coloridas que contrastam com o céu cinza

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O ano é 2030 e os mudavestidos ram “

“ Com alguns dedos de Nádia, o Y do meu X.

por Nicolas Sales 21


1913: sede da alfândega, circulam de pessoas e documentos. 2013: paredes pretas e uma projeção:

/som de aplausos e gritos / conferência em 2005 “la revolución comenzará cuando apoderarnos de nuestros cuerpos como soporte esencial de placer e esté libres de restricciones y copyright”/ corta / Porto Alegre em 2030 / em plano fechado uma transexual séria dentro do aeromóvel flerta / corta / em contraplano fechado, um rapaz / corta / Glamour Garcia, a transexual, encara a câmera a audiência / corta / burburinho / sons de bomba rua protesto / corta / uma pedra quebra uma vidraça / corta / um robô repete a mesma mensagem cataloga imagens da pedra no chão / olá, meu nome é audrey” / corta / “resta um paciente a ser analisado” / corta / flash / corta / flash / plano detalhe do mamilo da transexual / corta / plano detalhe dos pêlos das pernas / corta / plano geral corpo nu transexual na maca analisada pelo robô pessoas inquietas na sala gira espectro de cores ano branco

F

icções científicas podem dizer mais que muitos dramas da tv aberta e a obra de Luiz Roque artista gaúcho é pertinente como o jornal de hoje. Desloca-se o espectador para a terceira década do século XXI onde Porto Alegre futurista e Glamour Garcia1 em movimento no aeromóvel e talvez pela primeira vez muitas pessoas encontram uma grande contradição as olhando de frente: Glamour, vinte e seis anos, cabelos compridos loiros vestido branco representa na tela a grande urgência de um sistema falido. Ela é a última transex “doente” no Brasil, onde transtorno de gênero é patologia. Durante pelo menos dois anos é preciso convencer o sistema públi-

co de saúde de que desde que você se entende por gente você não se encaixa no seu sexo biológico para só então a partir dos 21 poder fazer a mudança de sexo e talvez dar fim à inquietude que é viver aprisionado ao próprio corpo.

1 Apesar de ainda não ter conseguido entrevistá-la, li, em conversa entre ela e uma amiga em comum, que ela “se sente abençoada em ter

feito parte do filme”, possivelmente por entender a potência de uma abertura de tema de uma obra como essa em uma exposição de arte tão grande

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Ano Branco é um curta de sete minutos em exibição entre setembro e novembro de 2013 no MARGS, museu de arquitetura eclética e portas bem pequenas que fica na Praça da Alfândega. Fez parte da Bienal do Mercosul, dos assuntos relacionados ao clima e do conjunto de obras comissionadas pela exposição, a qual em parte funciona através da Lei de Incentivo a Cultura (ou seja, nosso dinheiro). Dentro desse contexto virou catalisador

para uma série de debates tabus conversas caras feias expressão de surpresa e muitos “nossa, não sabia”. No início da mostra, no entanto, a maioria dos visitantes pouco se entregava à conversa e atônitos corriam para outros cantos do espaço. Surge, então, como solução para colocar para fora tanta ideia e vontade de sensibilizar o público, o que se apelidou de transmediação. É importante explicar aqui que minha presença de segunda a sábado no MARGS se deu por exercer a função de mediador2 na exposição em questão. Função que perpassa tantas outras que não vejo muita diferença entre ela e o fazer jornalístico: no final, em tudo se procura o contato.

2 Não confundir com monitor, a tela dos computadores.


Projeção de Ano Branco, obra de Luiz Roque

Transmediar consistia então em abordar o público antes da fala. Trazendo a pluralidade da expressão de gênero para fora da sala de projeção fizemos em equipe uma troca suave de símbolos bastante contraditórios: homens de saia mulheres de bigode e o que isso tem a ver com uma transexual de vestido branco longo lá em 2030 eu nem sei o que vou tá fazendo da vida daqui tanto tempo e eu nunca andei de aeromóvel então como assim? Eu explico. Ao início do vídeo, antes de viajarmos no tempo, há uma

conferência simulada de Beatriz Preciado, feminista espanhola ousada e bigoduda. Em seu discurso, Bia explica por que usa o testogel, hormônio masculino de uso tópico produzido em laboratório, e como o deslocamento de um símbolo ligado aos homens para a pele de uma mulher é uma arma política: quebra-se uma das fronteiras do binarismo. Binarismo, vamos lá: a divisão da sociedade em homem/mulher azul/rosa futebol/filmes românti-

cos homens são de marte mulheres são de vênus homens só pensam em sexo e mulheres fazem amor. Lembro de uma visitante da Bienal com mais ou menos 25 anos que, inspirada pela transmediação, me contou que nunca teve um namorado porque seus pais a controlavam de forma massiva e isso prejudicou muito sua vida afetiva e de certa forma essa dinâmica se dava pelo fato dela ser mulher. O controle da sexualidade feminina (enfim, o machismo) é um dos frutos disso

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tudo já que nesse jogo entram aspectos como a submissão da mulher ao homem e criam-se então expectativas e coisas como mulher pra casar/piriguete. O binarismo não é a simples existência de seres XX e XY, mas a atribuição de sentido (afinal, cromossomos XY não necessariamente gostam de futebol) e a formação de hierarquias através dessas ordens genéticas. Da testosterona em gel o discurso de Preciado chega à teoria queer que é a prova de que o binarismo é um sistema fracassado. Queer é o que não obedece à organização de gênero e suas expectativas de orientação sexual então o “estranho” em inglês é termo guarda-chuva para gays lésbicas transexuais bissexuais intersexuais assexuais enfim a tudo que reside entre dois pólos. Dentro dessa pluralidade sexual

e de gênero é complicada a tentativa de criar novas caixinhas de significados a partir de algo que é naturalmente a subversão disso. Conversando com Nanni Rios, apresentadora do Programa Gay na Rádio Ipanema que recebeu um de nossos transmediadores em estúdio, falamos em como, até mesmo dentro da comunidade trans, existem equívocos de representação. “Percebi isso quando fui divulgar o dia da visibilidade trans, que é celebrado sempre no dia 29 de janeiro. O símbolo das comemorações deste ano era uma bota de salto alto, alada e toda colorida aplicada sobre um fundo rosa choque, o que representa muito bem as trans femininas, mas não os trans masculinos, que ficam mais uma vez marginalizados e sem visibilidade”. Queer, então, embora um pouco genérico, abrange tudo que corrompe o siste-

Departamento de Imprensa da Fundação Bienal do Mercosul

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ma binário (e ainda bem que o faz). Mas então o que uma saia ou um bigode no corpo de um mediador que talvez nem seja queer tem a ver com o ano branco Glamour Garcia a filósofa espanhola e enfim o ano de 2030? Havia alguns impasses práticos na disposição de Ano Branco na nona edição da Bienal do Mercosul que impediam a maior fruição do público em relação à obra. Embora seja de um artista gaúcho, o trecho da obra com a versão fictícia de Beatriz Preciado tem o áudio em espanhol rápido e termos como cybercapitalista e legenda apenas disponível em inglês possivelmente pensada para o público estrangeiro (pois é). Exclui-se então os espectadores que não compreendem nenhuma das línguas e espero que o leitor não caia na armadilha de mas nossa, nem inglês, nem espanhol? porque sim, muita gente assistia e


denota o envolvimento do público com a temática proposta através desta iniciativa de mediação performática”.

ficava a ver navios estrangeiros no escuro (embora tenham sido ancorados com o dinheiro público, arriba). O segundo impasse e talvez o maior na tentativa de aproximação do público à obra era a dificuldade de relacionar o aqui-agora de adolescentes de 15 anos que iam com a escola visitar um museu de tapetes vermelhos e uma exposição de aRtE cOnTemPoRâNeA3 a, enfim, uma transexual deslocado no tempo. Então vimos no nosso corpo a forma de disparar muitos por quê?, vocês querem mudar de sexo?, isso é piada?, é ele ou ela?, etc. Não enquanto mediadores a serviço de uma Bienal que pouco pensou em seu visitante, mas como cidadãos mediando um tema pertinente a um público que gostaria de compreendê-lo e discuti-lo. Poucas crianças sabiam, mas uma mulher usar calça nem sempre foi algo aceitável e suas avós possivelmente sofreram com isso até certo tempo. Poucos visitantes adultos sabiam que a in-

fância nem sempre existiu como a entendemos hoje e até o iniciozinho da Revolução Industrial as crianças eram mini-adultos na linha de produção de uma fábrica. Mas não se diz hoje em dia que as calças fazem parte apenas do vestuário masculino ou que uma pessoa com cinco anos de idade seja algo diferente de uma criança porque nossa atual configuração social nos faz acreditar nessa solidez que se derrete com um simples diálogo. A diferença de significados com o passado nos mostra como a ideia de infância, assim como a de gênero, são construções sociais. Longe de mudar o mundo, as consequências até que foram marcantes. Dandara, que estuda Letras e foi minha colega na Bienal durante esses meses, me contou o seguinte: “Depois de assistir ao curta-metragem, um visitante me pediu algumas informações me tratando como Gustavo, já que eu tinha trocado de crachá com outro colega. Isso representa uma atitude aparentemente simples, mas que

Trazendo o assunto para um cenário mais cotidiano partíamos então para questões simples como quem aqui das meninas gosta de jogar futebol e já sofreu por causa disso ou quem dos meninos usa rosa e mal sabia que uns anos atrás isso seria motivo de deboche e quem nunca quis ser mais alto mais magro mais forte mais gordo mais baixo ter menos pêlos nos braços ter o cabelo de outra cor ter um nariz mais fininho pés menores? Um menino de 12 anos me contou que sua mãe o proibiu de usar brincos pelo simples motivo de “brincos serem coisas de meninas”. Se mesmo indivíduos não-queer sofrem com as imposições de um sistema binário quais os impactos dessas pressões sociais em alguém com transtorno de gênero considerado doente pelo Estado por sua inquietude sua vontade de alterar no seu corpo algo que, desde sua infância, foi determinante para a construção de um significado contrário ao que ele/ela sente? Luiz Roque em uma palestra no início da Bienal contou que sua pretensão inicial ao produzir o filme era usar a figura da transexual com uma finalidade plástica sem o tom político que o filme tomou. Embora tenha sido a estética sua primeira motivação penso que a importância social de se discutir gênero o dominou assim como aconteceu com quem assistia àqueles que assistiam a obra. Ano Branco encerra com a mensagem de que em seu futuro de

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Esse termo é tão sério e com teias-de-aranha que resolvi descontrair. Desculpa, editores

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virada de ano 2030/2031 a mudança de sexo passa a ser uma alteração realizada em clínicas estéticas. A nós, mediadores de uma realidade ficcional, coube explicar as contradições que isso geraria em 2013. Por um lado, os avanços da medicina em relação à mudança de sexo se devem muito ao fato de o procedimento ser uma obrigação ao sistema público de saúde. Do outro, um acompanhamento psiquiátrico que pode ser um grande desgaste e um atraso em relação ao tratamento hormonal. Isso é claro não chega nem perto de dar conta da complexidade do assunto e embora haja casos registrados de transexuais desde o Império Romano o primeiro país a desconsiderar a transexualidade como doença foi a França há apenas três anos. Em poucos tempo 2030 Glamour Garcia o aeromóvel funcionando e a filósofa espanhola passam a fazer mais sentido através daquilo que está a poucos metros: uma desobediência ao sistema um homem de saias que não necessariamente - e não que isso importe - queira “ser mulher”. Uma me-

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diadora de bigode falso que não só relê a espanhola filósofa mas questiona a ditadura do corpo dos padrões de beleza do projeto verão da dieta da proteína do que a sociedade dita como a mulher ideal. O corpo como suporte essencial de prazer (sexual ou identitário), nas palavras de Beatriz Preciado. O corpo enquanto plataforma para performances livres, diria Joan Scott, outra filósofa queer. Enfim, entender que expressar-se sem medo de sair das linhas é, entre as maiores aspas possíveis, “normal”.


a rua me ensinou a viver por Gabriele Branco


A

o telefone, ela me explicou como chegar na Casa Rosa. “Perto do novo campo do Lajeadense”, centro de treinamento para a Copa de 2014. A casa em que Malu vive com outras bonecas – assim que as travestis se autodenominam – fica na zona. Depois da casa da Loira da Bicicleta, famosa cafetina e prostituta da região, virando à esquerda, a casa simples - como todas as da região , pintada de rosa, aparece. Não foi tão difícil de encontrar: uma faixa que anunciava as trans mais lindas do Vale do Taquari ajudou. Quem abriu a porta da casa foi Brenda, de barriga de fora e cabelo preso. Pediu que esperássemos na sala enfeitada com quadro da Marilyn Monroe, almofadas com estampa de zebra, um espelho bem grande e uma televisão de várias polegadas, desligada. Normalmente, a tevê exibe filmes de homens transando com travestis. Malu chegou, usando um vestido florido longo e dois esparadrapos no braço. Havia tomado soro e uma injeção bem forte para controlar uma alergia naquele mesmo dia. Mesmo se sentindo inchada, cansada e entorpecida pelo efeito dos remédios, falou da vida, das conquistas e de quem ela é. Malu não nasceu Malu. A rua que a transformou em Malu. Nenhum dos registros da certidão de nascimento interessa para a travesti, que não gosta do nome de pia nem de comentar a idade. Malu Bismarky saiu de casa aos 14 anos. A família não aceitava o filho homossexual. Quando deixou a saia da mãe, não tinha para onde ir. Nas ruas de Passo Fundo, cidade em que seus pais moram até hoje, conheceu a dona de uma boate. Ela logo arranjou um teto para o guri que gostava de usar salto. “Quan-

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do comecei a trabalhar, eu cometia cada erro besta. Não sabia de nada. Não depilava a perna, imagina. Eu nem cobrava. Não achava que um homem daria dinheiro pra transar comigo, nunca pensei que alguém me pagaria uma bebida pra me levar pra cama, mas na rua eu fui aprendendo.” O convite para se prostituir foi uma união do útil ao agradável, diz Malu.“Eu era menor e tinha outras colegas que também não tinham 18 anos. Quando acontecia batida na boate, os donos ficavam sabendo, não sei como, e nos mandavam pra rua. Aí eu caminhava, caminhava... não tinha pra onde ir. Passava fome, frio. Em início de carreira, minha barriga tava sempre roncando. E minha família tinha condições. Se eles me aceitassem, poderia ter feito faculdade, estudado… eu poderia ter do bom e do melhor, viu.” Mas ela gosta da pessoa que pode se tornar. E foi numa dessas andanças que Malu descobriu a rua: mais dinheiro, mais oferta e mais qualidade. Quanto maior o pênis, mais dinheiro Malu não quer ser mulher. No começo, queria, mas depois mudou de ideia: “Não sou igual nem tô competindo com mulher. Eu gosto da aparência feminina”. Parece que ser acusada pelas mulheres de seus clientes a fez se afastar desse exemplo. “Eles querem corpo de mulher com o órgão masculino no meio das pernas. Tem que ter o pinto.” Malu já fez algumas intervenções cirúrgicas e pensou brevemente na redesignação sexual, mas desistiu: “Eles querem o pênis. São todos passivos. Se existisse cirurgia para aumentar o pau, eu gastaria todo o dinheiro que eu tenho nisso. Quanto maior, mais dinheiro tu faz.”

Na política tem muita mentira, eu não podia ser eu mesma Nas eleições passadas, Malu se candidatou a vereadora de Lajeado pelo Partido Verde. Foi convidada porque o partido apoia a diversidade e queria dar espaço para as minorias. Como ela é ícone LGBTI (do inglês Lesbian, Gay, Bisexual, Transgender and Intersex) no Vale do Taquari, aceitou a proposta. Foi a segunda mais votada pelo partido, mas não conseguiu uma cadeira. “Antes das eleições eu já sabia que aquilo não era pra mim. Tem muita mentira, compra de voto, gente falsa. Os partidos são todos iguais. Eles não queriam que eu fosse eu mesma, tinha que sair de calça e camiseta. Isso não é aceitar a diversidade”, desabafa. Mesmo fora da política, ela é ativista e luta para acabar com o preconceito. “O preconceito já diminuiu muito. Quando fui ao pronto atendimento hoje por causa da alergia, pedi para a moça me chamar pelo meu nome de mulher. Ela poderia ter me chamado pelo nome da carteira de identidade, como já aconteceu diversas vezes, mas me chamou de Malu. É muito constrangedor me chamarem pelo nome masculino e eu ali, com forma de mulher, vestida de mulher, mas isso não acontece mais”. Ela é madrinha de várias festas LGBTI, jurada de concursos de beleza homo e se sente honrada por ter sido convidada, pela primeira vez, para julgar um concurso hetero: o Miss, Mister e Miss Mirim Sapiranga. Não dá certo uma coisa com a outra Malu não acredita em encontrar um amor antes de se aposentar. Disse que é difícil conciliar relacionamentos com a profissão. Sente


falta de alguém nos finais de semana, quando os clientes ficam com a família. “Leio o nome dos meus clientes nas colunas sociais. Final de semana eles ficam com a mulher e eu, sem nada pra fazer… Aí vou pras festas, viajo bastante, pra não ficar em casa pensando na solidão”. E conclui: “Não tenho sorte no amor, os homens só querem corpo e sexo. E mulher só quer dinheiro”. Entre quatro paredes Aliás, os clientes são um capítulo à parte na história da Malu. “Tem gente sem energia boa, tem horas que eu não to a fim. Tem homem que atende o celular quando ta comigo no quarto, me pede pra ficar quieta e fala com a esposa. ‘Ai, to no trabalho, to numa reunião, já to indo’, e eu ali, metendo neles. São uns enrustidos, infelizes”. A parte complicada: Malu se sente injustiçada por sofrer o preconceito enquanto os clientes aparecem nos jornais da região com suas famílias e são considerados grandes figuras, enquanto ela vive à margem. “Entre quatro paredes, são mais mulher do que eu”. Ela está exposta, fora do armário, deixa a mágoa dos que guardam um segredo e, perante à sociedade, são considerados mais dignos do que ela. “Meu sonho? Meu sonho é poder escrever tudo, com nome,

Paula Moizes endereço e profissão, revelar quem são esses enrustidos, esses homens que estão no armário. Eu queria contar a verdade. Mas eu não posso, eles pagam pelo meu silêncio, também.” Tem mãe que prefere ter um filho marginal a ter filho travesti Malu afirma que já superou a mágoa da família: conseguiu, sem a ajuda deles, ser feliz. Entrou em contato algumas vezes, mas depois da mamoplastia não quis ver mais ninguém. No início de 2013, esteve na Parada Gay de Passo Fundo. Voltou para as ruas onde passou por diversos obstáculos. Só que dessa vez, com faixa, coroa, poderosa. “Chorei desfilando em Passo Fundo, porque naquela mesma cidade eu passei fome e, quando tinha o que comer, tinha vontade de pegar a comida com as mãos. Aí eu tava lá realizada, alegre. Eu consegui, sem precisar roubar, me jogar nas dro-

gas. Tem mães que preferem ter um filho marginal do que um travesti. Minha mãe não tava ali, minha família não tava ali. Tinha mãe dizendo ‘Eu amo meu filho como ele é’. Gostaria que me aceitassem e recebessem de braços abertos. Mas eu deixei a mensagem. O preconceito que eu enfrento da minha família, que tava em casa enquanto eu tava na rua, é o que mais dói”. A rua “Na rua é perigoso, somos mais expostos. Já jogaram frutas, xixi, vinho… Aí eu tinha que ir embora, abalada. Mas não desisti. Não tem como saber se a pessoa é boa. Eu tive sorte. Meu olho sempre me ajudou, sou muito centrada. Parava muito homem bêbado, já veio carro com quatro homens mostrando arma e eu não fui. Passei por bastante coisa. A rua me ensinou a me defender. Do dia a dia, de tudo e de todos. A rua me ensinou a viver”.

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que brilha que O bril ue homem O brilha O brilha que O bril a que O homem bri m O brilha brilha O ho em que O homem qu homem brilha que O rilha que brilha hom que O homem brilha brilha que O brilha homem 30


lha a A lha ilha omem ue O mem a a

Na despedida, Malu fecha a porta se lamentando: “Tem tanta festa boa hoje e eu doenrnaldo Baptista é um homem que brilha. A luz intensa que emana de seus olhos tinha. Alooooka, mostra um reflexo da mente brilhante de quem colocou Os Mutantes na mesma doida pra festear”. nave dos grandes artistas dos anos 1960 e 1970. Líder da banda brasileira que, Mais tarde, liguei no seu auge, contava ainda com Rita Lee e seu irmão Sérgio Dias, Arnaldo nos pra ela. Estava em recebeu carinhosamente numa quinta-feira, em Sapiranga, onde faria show no Porto Alegre. Puteando, em suas dia seguinte. palavras.

Durante 15 minutos de conversa, falou sobre a ex-banda, planos para o futuro, ETs, o movimento tropicalista e seus pais, mas sobretudo iluminou nosso dia e arejou nossas cabeças. Disse ele: “Vou tentar dar uma opinião num instante”. Vai, caminhante! Cante tua canção iluminada de sol! Solte os tigres e os leões no quintal! Afinal de contas, louco é quem diz que não é feliz. Só não vá se perder por aí.

por Riccardo Facchini, Caetano Cremonini e Lennon Macedo

Planos para o futuro

Eu estou planejando fazer tudo o que eu conseguir, o que eu posso com o que eu possuo. Então tem esses shows e o disco “Esfera”, que eu já pintei a capa e inclusive tem umas 4 ou 5 músicas, não lembro qual o número exato. E tem esses shows que estão pintando, parece que tem mais deles. Tem uma espécie de máxima que fala: “Se você acha que o mundo é duro, é porque você é muito mole; se você acha que o mundo é mole, é porque você é muito duro”; então você tem que ser elástico. Estou fazendo show sem baixo, guitarra, bateria, sem tudo que tem amplificador, só com piano e voz, e está dando certo. Há males que vem para o bem: eu dei até um show no Teatro Municipal de São Paulo, que era o sonho da minha mãe. Foi legal, o pessoal gostou. Tem sido gostoso, porque eu faço de acordo com o que está me envolvendo, se eu estou num momento de engenheiro toco música tipo Yes [banda inglesa de ilustração Lucas Barbosa

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rock progressivo], se eu estou num momento caipira toco corta-jaca, então vou fazendo de acordo com a inspiração que o momento me traz.

fora do sistema solar. Então o que nos prende ainda é a velocidade.

Tropicália

Eu vivia cercado de Beatles, Mamas and the Papas, Beach Boys, ficava ouvindo isso em casa o dia inteiro, e não conhecia profundamente a música brasileira. Conhecer o Gil, Caetano, foi para mim muito interessante, porque eles me mostraram como era compor, porque eu não tinha ideia do que eles podiam estar pensando, como é que fazia isso. E o Gil eu lembro que, no Hotel Danúbio, quando ele morava com a Nana Caymmi, ele mostrou com o violão e falou o que sentia, então para mim foi interessante porque me senti mais ambientado com a música por conhecê-los. Foi como se eu conhecesse os Beatles na Inglaterra.

Adoro o Tom Zé e as coisas que ele faz, mas não tenho muito relacionamento com eles, Gil, Caetano, tudo. Não que eu não goste deles e eles não gostem de mim, mas não está acontecendo. Aconteceu um momento de as pessoas chegarem, Gil, Caetano, chegaram lá no Hotel Danúbio, em São Paulo, [o maestro Rogério] Duprat me fez conhecê -los e a gente teve a ideia de acompanhar o Gil. Lembro que mostrei o Gil tocando para um amigo que tocava comigo, e ele falou: ‘Crai (meu apelido era Crai), isso não é rock ‘n’ roll, quem é esse cara?’. E deu certo. Nossa, foi tão gostoso, o Duprat, o Gil e tudo mais. Pode surgir uma nova Tropicália? O Brasil deve precisar de um líder para fazer carro elétrico, amplificador valvulado, mas eu não posso prever o que vai acontecer, quem sabe se vem um Hitler aí, não sei o que pode acontecer. Talvez a gente consiga até entrar em contato com os ETs. Eu acho que eles não entram em contato com a raça humana porque é tudo muito religioso e careta, então nesse sentido eles devem achar esquisito, mas não sei se eles levam isso adiante. Vai saber. Às vezes eles não respiram o ar, são aeróbicos, anaeróbicos, mas sai na TV que a NASA descobre planetas diariamente, é um número grande de planetas que eles encontraram

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Sucesso precoce

Relação com a ditadura Isso é gozado, né?! O papai era secretário particular do governador Adhemar de Barros, por 30 anos, então tinha carro chapa branca, com sirene, com rádio, então eu ficava longe da política mesmo, porque o papai estava lá no meio, então a gente entrou na música meio alheio a essa movimentação toda de ditadura e tudo. Influência psicodélica: interna ou externa? De uma certa forma foram as duas coisas: os Beatles levavam isso adiante com “Lucy in the Sky with Diamonds”, etc, Janis Joplin, Jimi Hendrix, mas também existia o lado que era o nosso convívio

familiar, e a gente viver e conviver, ouvir música, ensaiar, tocar, então foi o lado que levou a gente adiante nisso. Acho que foram os dois. Influência da mãe Gozado, mamãe fazia miséria no piano. Ela tocou na Europa com orquestra em Viena, mas se eu chegasse com o violão ao lado dela no piano eu não sabia fazer nada. Quatro compassos, cinco compassos, bequadro, então a mamãe tem um lado diferente disso. Eu não podia fazer música junto com ela, mas adorava escutá-la. Ela estudava piano horas por dia, então eu decorei coisas que até hoje eu toco nos shows, tipo o “Concerto de Brandenburgo”, de Bach, “Tocata e Fuga em Ré Menor”, então eu toco de ouvido, não sou capaz de ler. Apesar de ter tocado no Municipal, não sei ler música muito bem. Discos lançados posteriormente Eu sofri uma quase morte [em 1982 Arnaldo passou quatro meses em coma], então às vezes eu lembrava que eu já tinha gravado na Europa, mas não tinha certeza. A hora que chegaram com a fita do “Technicolor” em inglês eu até chorei, porque eu lembrei as letras, as versões, tudo, então para mim foi uma coisa tão bemvinda, foi uma espécie de surpresa. Na minha memória não tinha totalmente lembrança desse estúdio em que a gente gravou na França. A gente fez música não para concorrer com Jorge Ben, com o Roberto Carlos, foi para concorrer com os internacionais, Beatles, Aretha Franklin.


SEXTANTE

ENTREVISTA Alexandre Kumpinski (Apanhador S贸) por J茅ssica Kilpp

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Acorda cedo. Corre. Trânsito. Corre. Trabalha. Corre. Trabalha. Corre. Trânsito. Corre. Vive? Dorme. Acorda. Cedo. Despirocar. Para Alexandre Kumpinski, voz e guitarra no mundo de coisas que é a banda gaúcha Apanhador Só, talvez despirocar seja uma alternativa. Mas a quê? A uma rotina? Uma lógica? Uma acomodação?

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Faz tempo eu tô com azia/Durmo mal, tenho alergia/Quando acordo, nem bom dia/E a ducha fria ainda me dói/Em atraso permanente/Escolho a roupa, escovo os dentes/Abro a porta da frente e a luz do dia me corrói


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ssim, sem pausas e de forma caótica, começa“Despirocar”, composição de Alexandre em parceria com o músico Ian Ramil. A letra, “escrita numas feriazinhas”, é um dos grandes destaques do CD “Antes que Tu Conte Outra”, lançado pela banda em 2013 e produzido em 2012 através de financiamento coletivo no site Catarse. Ela é um exemplo claro e perturbador do que a arte pode fazer por nós. E do que a vida já faz, diariamente. O trecho inicial da música, por exemplo, foi inspirado em um amigo da banda, modelo de pessoa que “deu certo”, mas vive – e sente – os desconfortos como consequência. O personagem, em linhas gerais, é um trabalhador clássico: oito horas diárias no emprego, mais algumas no trânsito e poucas outras vivendo.

Então eu me pergunto, quando sobra algum segundo/ Em que eu reflito sobre o mundo, se funciona e coisa e tal/ Concluo que tá preta a situação, pra lá de azeda/ O leite que ainda sai da teta nem sequer é integral Para quem conhece o trabalho do grupo, sabe que “Despirocar” mostra um amadurecimento, tanto no conteúdo quanto no arranjo das músicas. De um CD anterior com letras queridas de se pensar, vieram novas reflexões mais perturbadoras. Por quê?

É aquilo tudo a que alguém nos destinou - e insistimos em ser.

“O que aconteceu foi que a gente mudou bastante como pessoa mesmo. Começamos a desenvolver e a nos tocar com certas questões - ou a perceber mais situações que nos tocam de uma maneira. Questões que são meio injustas. Que nos deixam indignados. E aí, dentro desse contexto fica difícil fazer música querida, né. Porque o sentimento interno da gente é mais de...mais agressivo mesmo, mais de rebelião do que de felicidade.”

É só um dos temas desta entrevista, que reflete o olhar de um artista sobre o cotidiano já banalizado e internalizado de toda uma sociedade.

Mesmo que o próprio vocalista e seus colegas de banda não se encaixem no perfil do trabalhador clássico, a dúvida sobre o sentido de “tudo isso” sempre

Michel Cortez

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aparece. E apareceu na criação de “Despirocar”. Afinal, fica difícil para qualquer um não presenciar ou até sentir a (des)ordem das coisas em algum momento. “Eu acho que mais do que uma coisa que a gente sentia na própria pele - porque a gente não tem uma rotina tão enquadrada - é uma questão de observação, mesmo, do mundo. De sair na rua e ver na cara das pessoas o que elas tão passando. E também dentro de casa. A questão de ter que trabalhar muito, de não ter tempo pra si mesmo e de viver pra trabalhar - e não trabalhar pra viver -, é uma coisa que me incomoda desde que eu sou criança. Eu via meus pais saírem de manhã de casa, voltando à noite, cansados. Só tinham energia pra jantar, assistir um pouco de TV e cair na cama de novo. Eu sempre me perguntava que sentido fazia isso, porque, enfim. Parecia que eles viviam pra trabalhar.” Por trás de uma lógica regrada e, ao mesmo tempo, caótica como a nossa, somos produtores e consumidores - lembra Alexandre - enquanto trabalhamos para ganhar dinheiro para comprar coisas das quais, na verdade, não precisamos. “A lógica toda por trás é que somos tratados como consumidores antes de qualquer outra coisa. Somos mão de obra e somos consumidores. Precisamos produzir algo e consumir um monte de coisa. E todo o resto que interessa, tempo livre, os afetos, as diversões, as alegrias, enfim. A vida. Ela é deixada de lado. No final tu tá impelido a se transformar numa peça, só. E é isso. Daí o pouco de espaço que temos para nós mesmos, como o final de semana, normalmente é para fazer algumas coisas também - como trabalhar pela casa ou fazer outra coisa que não tivemos condições de fazer durante a semana - porque estávamos trabalhando. E os próprios lugares que temos pra ir são de consumo. A diversão do fim de semana é ir ao shopping e gastar o dinheiro que tu ganhou durante a semana.” Alexandre observa que, até nos espaços públicos, exercemos a função de consumidores, mesmo sem estar consumindo, de fato. É o outdoor na rua, a propaganda imposta, o consumo que entra no teu tempo livre e te amassa:

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Alexandre em trecho do clipe “Despirocar”

“Tu vai jogar uma bola no campo da redenção e tem uma placa da TIM. Tu vai jogar uma bola na orla do Guaíba e tem um símbolo da Pepsi pintado no chão. Isso tudo vai nos amassando, vai nos provocando, pro bem e pro mal.” E é aí que entra a arte.

Desesperado eu penso em gargalhar/ Mas decido respeitar a minha dor/ Talvez seja melhor despirocar/ De vez, talvez, de vez/ Talvez, de vez Forma de “escape” ao modelo, a arte pode servir tanto como aliada na busca por alternativas quanto reproduzir e reforçar o que já existe. “Uma das funções que a arte tem que exercer é desacomodar, criar novos caminhos, novas possibilidades. Eu vejo muitas vezes isso não acontecendo. Muito pelo contrário, os artistas e a cultura no geral se deixando virar supor-

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te pra toda essa lógica que a gente tá falando. Suporte pra publicidade, pra uma indústria cultural que é filha da puta, que acaba enfraquecendo a própria arte, a própria cultura.” Nos comentários do clipe da música no Youtube, a resposta do público é quase unânime quanto à sua representação fiel da perturbação do cotidiano.

- Ilustra bem essa marcha forçada diária a que somos sujeitados. - Transtornante e fantástico. - Essa letra é pura poesia. Resume bem o homem dos dias de hoje. - Que prisão! Será que só nos resta despirocar? - Se o objetivo da canção é incomodar, eles foram bem sucedidos. É uma canção que não quero ouvir novamente. - Não esperava por isso... (Digerindo ainda.)

No bus eu subo afoito, engolindo algum biscoito/ Acotovelo logo uns oito, eu tô cansado e vô sentar/ Depois do chacoalhaço, tô no trampo e um palhaço/ Mesmo me vendo um bagaço, já começa a me ordenhar Tentar coisas novas e se arriscar são as principais razões para se fazer música, segundo Alexandre. Mesmo para uma banda como o Apanhador Só, que segue crescendo de forma independente com a ajuda e o reconhecimento do público, não dá para deixar de se movimentar dentro de um sistema capitalista em que tudo é produto. Mas, quando o que mais interessa é transformar a cultura em produto rentável e não em algo que possa se sustentar e gerar retorno para o artista, há uma séria inversão de valores. “Ter que se movimentar no sistema é uma coisa. Outra coisa é transformar a cultura em reles produto e encará-la como algo


que deva lucrar o máximo possível. Esse não é o fim dela. E eu sinto muitas vezes que os próprios artistas deixam que a cultura e a arte, num geral, sejam transformadas em mero produto. Seja aceitando de bom grado publicidade interferindo na produção ou até se deixando virar garoto propaganda mesmo.” O financiamento coletivo do site Catarse garantiu à banda a produção do novo disco que lançou “Despirocar”. Na “cena independente” da música, este pode ser um modo de resistir. É uma nova força que a internet proporciona a artistas que desejam se desligar da indústria cultural. No caso específico da música, desligar-se das gravadoras. “Artistas independentes assinando com gravadoras é uma coisa que me deixa muito triste. Essa indústria que encara a música como um reles produto, de preferência, tem que ruir. Tem que

perder força. Não pode dominar o mercado: é melhor que deixe de existir e leve com ela, enterre junto com ela, o jabá e toda a lógica que mina os espaços de divulgação - principalmente, o acesso dos artistas ao seu público.” Um dos principais argumentos em defesa de novas iniciativas de financiamento é a ideia de aproximar artista-público. É o que acontece no caso do Apanhador Só – e com diversas outras bandas independentes da atualidade: poderiam ter mais público, sustentar-se melhor do que já fazem e permitir maior pluralidade à cultura brasileira. No final das contas, essa aproximação é o que interessa para a banda, segundo Alexandre. Afinal, é o público quem “paga”, mesmo na cena independente. Com as gravadoras, há uma parcela considerável de aumento no valor produto por seu trabalho como agente intermediário.

“Não tem porquê ele existir. Esse intermediário é gigantesco e filha da puta mesmo. Então, essa aproximação do artista com o público - não só artisticamente, mas politicamente - ela é muito interessante e empodera o público de novo.”

Digito, atendo o fone, meio dia eu sinto fome/Me levanto sem meu nome e vou pra fila do buffet/ Depois de dois cigarros, acomodo o meu pigarro/ Me reponho de bom grado e termino o afazer Alexandre concorda que, na prática, dá para destacar algumas iniciativas na cidade como um reflexo de que as pessoas estão inquietas, insatisfeitas com essa rotina. É o caso do Coletivo Defesa Pública da Alegria e do evento Largo Vivo, que promove a utilização dos arredores do Mercado Público como um espaço público, de fato. “Insatisfeitos com essa rotina e com essa lógica, né. Não só com o fato de que tem que trabalhar demais, mas com o fato de enxergar o que é desligado dessa lógica de grana e poder de consumo. O Largo Glênio Peres tá sendo transformado em estacionamento pra teoricamente melhorar a...como é que o [vereador Valter] Nagelstein falou? Melhorar o nível dos frequentadores. O que interessa é quem tem mais grana mesmo,

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quem tem carro. Porque vai poder comprar mais, porque é uma gente mais cheirosinha e bem vestida. Como se bem frequentado fosse ser bem frequentado pela elite.”

protestos de junho no Brasil. Mas para o artista todas essas experiências - sociais, políticas e/ou culturais - estão conectadas por uma mesma faísca de insatisfação geral. Têm origem na mesma coisa.

A música foi escrita antes das obras da copa em Porto Alegre, antes da “batalha do Tatu”, antes dos

“A qualidade de vida é o tempo livre, tempo com os amigos, e o ócio.”

Ócio mal visto. “Sim, ócio é ‘vagabundagem’. É o momento em que tu não tá produzindo nada. Quando na verdade, a gente precisa só de um tempo de ócio pra parar pra pensar na vida e chegar a algumas conclusões bem simples mesmo, que podem nos ajudar a nortear uma trajetória que nos faça muito mais feliz.”

Cansado eu chego em casa, o Willian Bonner me afaga/ Me contando alguma fábula de algo que ocorreu/ Requento qualquer rango, cambaleio até o meu canto/ Ainda nem fechei o tampo e o meu corpo adormeceu Alexandre Kumpinski é quem dá “vida” ao personagem da música no clipe de “Despirocar”. Durante um mês, o compositor viveu o que representou. Às vezes sozinho, com a câmera acoplada na roupa, ficava difícil se desligar do personagem, quase com um sentimento de invencibilidade na bicicleta em meios aos carros, na correria das ruas. Com movimentos de câmera de tom caótico, confuso, agressivo e perturbador, o clipe é a cara da música. E a cara do cotidiano nas cidades. Mas amanhã é outro dia. Acorda cedo...


30ANOS DE UM SONHO COLETIVO por Giovani de Oliveira e Júlia Bertê

“’Bailei na Curva’ é o novo trabalho de Júlio César Conte e do grupo Do Jeito que Dá. Eles foram responsáveis pelo sucesso de ‘Não Pensa Muito que Dói’, na temporada do ano passado. [...] Regina Goulart, Claudia Accurso, Lúcia Serpa, Márcia do Canto, Cláudio Cruz, Hermes Mancilha,Flávio Bicca Rocha e Júlio César Conte merecem as flores que o público da noite de estreia atirou no palco” (Cláudio Heemann, 3 de outubro de 1983)

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O

texto do crítico, publicado no jornal Zero Hora, entre elogios à peça, falava em “revolução” de 1964. Falar em golpe de 64, naquela época, devia ser complicado. Mas em meio à censura, Júlio Conte lançava uma obra de esquerda, que fala sobre sonhos coletivos e encantou até os censores. O espetáculo retrata a inquietação de pessoas comuns ao longo de três décadas. 30 anos depois, Bailei na Curva continua atraindo diferentes gerações ao teatro. O ator, diretor, psicanalista e cidadão porto -alegrense Júlio Conte conversou conosco sobre sua obra, Porto Alegre, e o teatro. O maior sucesso do teatro gaúcho do todos os tempos “RÁDIO - Nova Iorque. O Brasil pode explodir a qualquer momento em qualquer direção, informou ontem o editorial do jornal “New York Daily News”. Disse o jornal que o Brasil, a maior república da América do Sul, encontra-se num perigoso estado de fermentação. Tem um rico e caprichoso radical chamado João Goulart na presidência, uma inflação galopante, um movimento operário dominado pelos comunistas e uma camarilha militar de direitistas extremistas. [...] Onze horas e trinta e dois minutos. O tempo em Porto Alegre apresenta-se instável sujeito a fortes chuvas no final do período.” (Abertura da peça) “O universo que o ‘Não pensa muito’ pegava era um universo restrito, uma escola né, e nós queríamos expandir. E nós começamos a pesquisar, até que surgiu a ideia do 31 de março/1° de abril, dia do golpe, golpe/revolução. E aí, a partir dessa ambiguidade, a gente começou a desenvolver o roteiro.” “Bailei” conta a vida de sete amigos – Ana, Pedro, Gabriela, Caco, Paulo, Ruth e Luciana – tendo como pano de fundo o surgimento e toda a época da ditadura militar no Brasil. Para o diretor Júlio Conte, um dos motivos da obra se manter viva no imaginário da população é a sua relação com a realidade. “Ela tem uma apreensão muito sagaz da realidade, além do caráter histórico e também do caráter humano”, ressalta. “Não tinha uma dramaturgia que falasse a língua das pessoas, e o ‘Bailei na Curva’ abriu esse canal”.

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Gabriel Ditelles/Divulgação O que vinha para Porto Alegre naquela época eram peças cariocas e paulistas, com atores nacionais de sucesso, ou grandes clássicos teatrais. ‘Bailei na Curva’ era a inovação. Além disso, outro caráter importante da obra é a mensagem de esperança coletiva que ela carrega. Conte lamenta o fato de que hoje as soluções buscadas são sempre individuais, diferentemente do retratado na peça, que reflete o espírito da época. “Não tem mais a ideia de uma sociedade resolver seus problemas, [...] não tem mais a ideia de unidade, de salvação nacional [...] e o ‘Bailei’ é uma peça moderna, não é pós-moderna, mantém


para a censura. Os agentes do governo chegaram a pedir ingressos. O argumento era de verificar a peça, mas muitas vezes era para distribuir para a família. Para o autor, a peça agradou aos censores pelo caráter humano, apesar do lado político. Também existiam táticas para driblar a censura: “A gente tinha duas opções, ou a gente exagerava naquilo que queria que ficasse, ou simplesmente tirava e botava na hora. [...] Então a minha estratégia era assim, se eu queria colocar um palavrão, eu botava dez, aí o cara dizia que tinha que cortar, que tinha muito palavrão. Então tá, vamos cortar, deixa um, então”. Individualidade A principal diferença entre aquela geração retratada em “Bailei na Curva”, assim como a geração que assistiu a peça em 83, e a juventude de hoje consiste na falta de um espírito coletivo. Os protestos que recentemente sacudiram o Brasil, no entanto, podem significar uma mudança. Para Júlio Conte, “Com esses movimentos, que ainda são embrionários para a gente decidir o que eles são ou entender o que são, parece que surge um outro viés”.

a esperança coletiva”. A obra sofreu adaptações para ser apresentada em outros estados. A necessidade de adequar o texto ao contexto de cada lugar obrigou o autor a promover algumas mudanças, como aconteceu no Rio de Janeiro: “se tu vais falar deste dia no Rio, tem que falar do incêndio no prédio da UNE”. Censura A peça não sofreu censura. Pelo contrário. Embora seja um texto de esquerda (como o autor faz questão de salientar), a obra foi elogiada após ensaios realizados

Na opinião do diretor, mesmo que as pessoas tenham sido capazes de se unir, com a ajuda da internet, em torno de um objetivo comum, a solução acaba sempre sendo individual. “Tanto é que acaba indo para o saque, para a violência, para o confronto, sem uma identidade. No confronto que houve nos anos 70, dos grupos guerrilheiros, todos tinham uma identidade. Era Colina [Comando de Libertação Nacional], MR-8 [Movimento Revolucionário Oito de Outubro], tinha uns vários segmentos e todos tinham nome”. Porto Alegre, começo dos anos 80 O início da década de 80 foi muito importante para a cultura gaúcha. O sotaque cultural gaúcho se consolidou nesse período. Júlio Conte lembra que foi nessa época que surgiram Nei Lisboa, Bebeto Alves, Gilberto Assis Brasil,“Tangos e Tragédias”, entre outros. “Uma geração que tava a fim de fazer, não tava a fim de ir

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embora.” Nos anos anteriores, boa parte dos artistas gaúchos buscava construir a sua carreira no centro do país. Existiu um movimento cultural. Não chegou a receber um nome, mas existiu um movimento. “Nos anos 90, em Porto Alegre, todo mundo tinha uma banda de rock na garagem. Nos anos 80, todo mundo tinha um grupo de teatro.” Outras características marcantes das décadas passadas eram os espaços de convivência e a cena noturna da Capital, que possibilitavam esse contexto de efervescência cultural. “Tinha o Bar do Beto, a Esquina Maldita, toda a Osvaldo

Aranha era um centro de debate, era uma grande sala de discussão. Tu ias de bar em bar, sempre tinha alguém discutindo alguma coisa, planejando alguma história, fazendo uma peça”, relembra. Hoje isso não acontece mais. Já no aspecto social, a individualidade predominante faz surgir novas ferramentas de interação. “A Esquina virou o Facebook. Eu antes ficava parado na esquina, esperando meus amigos [...] e dali a pouco tinha uma galerinha ali, conversando, dizendo besteira” lembra Conte, que completa afirmando que hoje ainda acontece isso, mas na rede. “Se eu tivesse o Tinder na minha época, eu ia adorar”, brinca.

Teatro hoje A produção cultural, hoje, acaba sendo orientada pela pós-modernidade. As peças teatrais, por exemplo, falam para determinados públicos e segmentos, o que, para Conte, enfraquece a força coletiva do teatro. “O teatro passa a ser o centro de discussão de um grupo pequeno”. “Nos anos 70, nos anos 80, a gente queria fazer teatro pra mil pessoas.” Em um período sem internet, quando a divulgação se dava pelo boca a boca e pela panfletagem, o resultado era o teatro lotado. A pós-modernidade forma pequenos circuitos e “o projeto modernista está muito debilitado no movimento cultural em Porto Alegre”. O outro viés do teatro hoje é o comercial. “O stand-up tem um viés de fazer a sua arte, se divertir e ter bastante gente.” Embora o teatro, o público e a sociedade tenham mudado, “Bailei na Curva” continua em cartaz. O autor fica feliz ao perceber que várias pessoas assistem à peça, não apenas com seus filhos, mas até com seus netos. Todos se emocionam ao ouvir a poesia de Ana:

Meu amigo Pedro era uma pedra na vida deles Como um pedaço solto de coragem Nem bem crescido ainda Saiu, lutou e morreu Morreu assim como um corpo arrebentado Esticado, dividido Morreu como um afogado, agonizando, torturado Morreu como seu pai, desaparecido...

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Solidão na rua por Júlia Corrêa

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S

e você estiver caminhando pela rua e se deparar com alguém suspenso em uma escada e, como se não bastasse, de olhos vendados, não se assuste. Pode ser que seja Raisa Torterola, uma guria de 24 anos, dona de ideias e projetos bem inusitados. O que talvez seja motivo de estranhamento faz parte da performance de seu trabalho “Eu – Ilha”. A proposta da ação urbana é passar por um isolamento físico e emocional, para assim questionar a constante busca das pessoas por sua “ilha deserta” e o consequente afastamento da realidade coletiva, da multidão de estranhos ao redor. Raisa não esconde o lado egocêntrico de tudo isso, pois não deixa de ser um modo de testar seus próprios limites, mas acredita, relembrando as experiências deste primeiro ano de projeto, que sua performance “reverbera de um modo muito potente”. Ela explica que o trabalho exige certo planejamento e é preciso levar em conside-

ração o que pode acontecer de melhor e de pior. Mas, mesmo assim, é muito imprevisível. Sua mãe, por exemplo, a alertava sobre a possibilidade de a assaltarem durante a performance, o que ela sempre desconsiderou. “Quem vai assaltar alguém em cima de uma escada?”, pensava. Mas, aos poucos, Raisa percebeu que havia outras situações de tensão. Em uma performance na frente do camelódromo, um homem subiu

um degrau da escada e tentou fotografá-la por baixo da saia que ela usava. Foi então que os vendedores no entorno saíram em sua defesa. “Me contaram depois que deram uma sova nele, mas o que para eles é sova eu não faço ideia”, brinca. A própria exposição ao risco fez com que percebesse a potência de seu trabalho. “Depois de três horas na frente do lugar, as pessoas em volta acabam criando uma relação de proteção, mesmo que não saibam bem o que eu estou fazendo”. É aí que, segundo ela, a performance deixa de ser egoísta e cria uma relação mais humana. No entanto, a imprevisibilidade também diz respeito ao seu estado corporal. Uma das regras é não mudar de posição, manter-se estática, quase em um exercício de resistência. “O engraçado é que, ao mesmo tempo em que minha mente estabelece uma relação muito intensa com o meu corpo, ele quase não aguenta, parece perder o tato, a sensibilidade”. Nem por isso Raisa se intimida. Sua ideia é “exagerar” cada vez mais. Isso porque, para ela, a performance é a dedicação intensa de uma pessoa a uma ação, experimentando-a e vivenciando-a

Flavio Dutra


o máximo possível. Mas por que arte? Recentemente, em uma performance entre o Memorial do RS e o MARGS, durante os dias em que Porto Alegre recebeu a Bienal do Mercosul, Raisa passou por uma experiência peculiar. Ao longo da ação, ela sentiu o distanciamento das pessoas em relação a ela, como em uma extensão das regras da “linha amarela” de dentro dos espaços expositivos. As pessoas olhavam, mas não se aproximavam. “Foi como se eu estivesse presa numa tela e não conseguisse sair dali. Todas as outras vezes, eu fiz com muitas pessoas passando, querendo saber o que era aquilo. Não era algo legitimado como um quadro estático”, relata. Ela e a produtora do projeto, Joice Rossato, pensaram, para a ocasião, em um figurino que remetesse

à prostituição. Além do mal-estar sentido por legitimarem sua ação como obra de arte só por estar próxima dos museus (um cartunista conhecido chegou a fotografá-la e postar a imagem no Instagram com a legenda #bienal), sem ao menos questionarem o que fazia, ela conta ter imaginado ali a situação pela qual muitas prostitutas certamente passam. “Quantas devem ficar sentindo essa sensação de ser um objeto artístico, vendo as pessoas rirem, debocharem, fotografarem e, então, passarem reto?”.

“Eu – Ilha”, mas Raisa já levou o projeto inclusive para fora do Brasil. Em julho, esteve em Buenos Aires e conta ter se inteirado da legislação da cidade antes de se apresentar. Quis evitar incomodações em um país diferente, pois não seria como aqui, onde fala a mesma língua e tem os familiares e amigos por perto para “socorrê-la”. É que, por incrível que pareça, tem quem se incomode com ações como as que ela realiza.

Ela ainda questiona: “Ok, se for arte, beleza, mas por que as pessoas não podem se aproximar? A gente tem essa história de que a arte é uma coisa mágica, ou o avesso, meio hippie, desleixada, sem compromisso. Para mim, é o meio disso, mas para chegar aí é complicado”.

A inquietude de Raisa se desdobra também em outros projetos. O “Solidão A gosto”, também concebido por ela, conta com performances que tratam de diversas formas de solidão, sempre apresentadas em agosto. O mês escolhido não foi por acaso, mas pela relação que há entre a baixa temperatura da cidade e o sentimento de carência

Este é apenas o primeiro ano do

Solidão urbana

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das pessoas. Raisa passava por um momento tumultuado de seu cotidiano, a ponto de, morando na casa de seus pais, não ter tempo para vê-los. Foi quando chegou tarde da noite e jantava sozinha, com sua mãe dormindo no quarto ao lado, que se deu conta da situação e, então, idealizou o projeto. A proposta inicial era bem simples: comer sozinha no meio da rua. Raisa, contudo, já tinha plena consciência do que entendia por solidão, então resolveu convidar outros artistas para realizarem a ação e canalizarem, de alguma maneira, o conceito que possuíam sobre o assunto. A primeira das três performances da edição de 2012, chamada “Buffet Livre”, foi apresentada pela artista Natasha Siqueira. Sentada em

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uma cadeira, ela almoçou no meio da Esquina Democrática, comendo distraidamente uma “miojo fria” e bebendo um “ki-suco”. Segundo Raisa, foi muito impactante. Muitas pessoas paravam para olhar e diziam “nossa, eu almoço todo dia sozinho, desse mesmo jeito”. Outras tantas situações “cotidianas” são apresentadas pelo projeto, como alguém passeando com uma mala vazia no aeroporto ou distribuindo na rua panfletos com os dizeres “vendo solidão”. Assim, a performance acaba sendo um meio em que as pessoas reconhecem suas próprias experiências. Um episódio marcante Em 2013, o “Solidão A gosto” chegou à sua segunda edição e se expandiu. Contou com dez performances (haveria mais duas,

canceladas em função da chuva). Durante uma das apresentações, a “ideologia” por trás de seus projetos ficou evidente para Raisa. O artista João Pedro Madureira realizava a performance “Ligue meus pontos”. Estava apenas de cueca na passarela da PUC, em um dia chuvoso e frio, com o corpo repleto de pontos, segurando uma caneta e uma placa com o mesmo nome do trabalho. Foi apenas o tempo de Raisa deixá-lo ali e ir estacionar o carro que seguranças da universidade chegaram dando ordens para que se retirasse. “Um homem muito grande vestindo um abrigo do Inter” parou na frente do performer e passou a fazer pressão para que saísse dali. João permaneceu parado, sem proferir qualquer palavra. “Ele imediatamente parou de tremer de


frio. Foi impactante, muito lindo ver como o corpo é conectado com a mente. Imediatamente a tensão se instaurou e aqueceu todo ele. A preocupação dele já não era mais que as pessoas ligassem, mas que o cara entendesse que aquilo não era um desacato”, relembra Raisa. Quando ela tentou resolver a situação, alegaram que a passarela era privada e, portanto, o artista não poderia continuar ali. “Desde quando o céu é privado?”, confrontou. Mas, sim, a passarela foi construída pela PUC e pertence à instituição. Depois, ainda, a produtora Ana Paula Reis ouviu outro segurança falar que aquilo era muito errado e que não ia gostar que sua mulher visse aquilo. Raisa conta ter ficado completamente irritada com o modo como funciona a cidade e, além disso, com o fato de as pessoas levarem suas questões pessoais (e conservadoras) para o meio urbano.

“Vocês estão constrangendo as pessoas”, disse um dos seguranças. Mal fechou a boca, uma mulher se aproximou de João e começou a ligar os pontos. A produtora então revidou: “nunca vi uma pessoa tão constrangida quanto essa menina”. Assim, o artista concluiu sua performance, o grupo ajudou a vesti-lo e todos foram embora. O episódio, contudo, apenas motivou Raisa e serviu para que começasse a pensar a questão do espaço urbano e perceber, em seu trabalho, um lado também político. “Isso tudo só potencializou minha vontade de fazer cada vez mais sem pedir autorização para ninguém”. Provocando a cidade Em qualquer que seja o projeto, Raisa parece ter uma proposta bem definida: questionar a rotina e as normas urbanas. Em um cotidiano corrido, fazer com que alguém pare para conferir uma performan-

ce e identifique nela seus próprios sentimentos e angústias já é uma forma de alterar o funcionamento da cidade. E isso não ocorre sempre no sentido mais esperado. Em uma performance na Praça da Alfândega, um artista ficou deitado em uma cama durante uma hora, ouvindo música de meditação. Foi então que uma cadeirante se aproximou e disse: “tu não sabe o quanto eu sinto falta de ser uma pessoa sozinha”. A mulher revelou que não se tratava de autossuficiência, mas da questão de sempre notarem sua presença em todos os lugares. Isso deixa claro, para Raisa, que cada performance carrega uma nova experiência. “Não tem um texto pronto”. Além disso, apesar do caráter egocêntrico, tem esse retorno imediato, provoca as pessoas, mexe com o entorno. São os sentimentos cotidianos postos em evidência.

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Foto grafando por Jade Knorre

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Um exercício de reflexão e olhar. A fotografia foi uma consequência de todo ambiente e experiência de rua. Duas ou três vezes por semana, durante quase um mês, passei algumas horas no Centro de Porto Alegre. Descobri uma forma de passar o tempo, que me proporcionou uma visão sem pressa da correria e uma observação mais detalhada desse mundo “doido”, como diria Ungaretti. As pichações adornam a cidade e gritam nas paredes. O container diz que é superfaturado, os prédios clamam por R$ 2,60. São protestos silenciosos até que sejam vistos e lidos. Há beijos apaixonados, brigas pelo telefone, vozes que passam correndo e somem, deixando no vento uma curiosidade pela continuação da história. Passam carros, bicicletas, carrinhos de supermercado repletos de lixo. Pois é, cada um “faz o super” do jeito que pode. O zum zum zum dos ombros batendo, celulares falando e sapatos pisando forte. E das pernas apressadas em busca do tempo perdido. Tempo que se perdeu achando que ia dar tempo, e tempo que está para se perder no caminho – mas deixamos isso do tempo para quando tivermos tempo. Na rua se conhece muita gente. Quem está só de passagem e quer conversar sobre a câmera fotográfica, quem quer uma pequena ajuda ou precisa trocar meia dúzia de palavras no meio da correria. Vemos situações de extrema pobreza e de grande descaso com o outro. Manifestações e revolta contra o poder público seguidas de reforço policial desmedido. [Alguns dias voltei bem desiludida, com raiva e desnorteada] Parei para conversar com inúmeras pessoas. Conheci artistas de rua que me alegraram muito e transeuntes tão felizes que não precisavam abrir um sorriso, pois sorriam com os olhos. [Em outros, me senti bem e cheia de planos]


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Me perguntaram se eu era turista. “Mas por que tirar foto da tua própria cidade??”

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Porque a gente não conhece a nossa cidade. Caminhar sem rumo certo, observando as ruas e as outras pessoas, traz boas reflexões. O olhar chama. Chama pela inquietação, pela novidade, mas não só por isso. Eu fui atrás do incomum e percebi que ele passa batido. Lançar um novo olhar sobre o que tornamos comum é um desafio. Tudo rende uma boa foto quando se está na rua. O ambiente te direciona. Mais do que fotos boas, vale observar atentamente o que está na frente da lente, se apropriar de alguma forma e mudar o que está atrás dela. Eu mudei ao contar essas pequenas histórias. E o olhar de cada um sobre o ensaio fotográfico pode transformar esses registros em muitas outras coisas. Pode-se aprender muito com essa outra forma de escrita: a fotografia.

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SOBRE CINEMAS e CIDADES por Lennon Macedo

A

s ruas da cidade e seus prédios e seus parques e suas putas. Seus patrimônios históricos, suas pontes, suas praias, até. Um organismo vivo que vive através de outros organismos, um parasita que só existe porque o habitam, a cidade é bandeira, é política, é conflito, é memória. Sozinha, sem seus habitantes, esse grande aglomerado geográfico torna-se, excepcionalmente, espaço. Quando pensamos no tema para a Revista Sextante, de nenhuma forma imaginamos a rua inabitada, sem a sua gente. A cidade enquanto palco de ações, inspiradora de emoções e memória concreta é a cidade que buscamos. O organismo vivo, repleto de mistérios. Nesse sentido, o cinema brasileiro vem, ao longo de sua história, retratando esse organismo das mais variadas formas. Variam de acordo com o tempo histórico e, claro, com a cidade filmada. São Paulo, desde o início do cinema no país, tem seu estigma de cidade grande reproduzido nas grandes telas, como se vê no documentário de tom progressista “São Paulo, Sinfonia da Metrópole” (1929), de Adalberto Kemeny e Rodolpho Rex Lustig. Por sua amplitude político-econômica e pela abrangência dos seus tipos sociais, a cidade de São Paulo sempre ofereceu diferentes olhares sobre si mesma, construindo todo um mosaico imagético da metrópole.

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Mas esta matéria tem limites mais provincianos. Nada de “Rio 40 Graus” ou de “São Paulo, Sociedade Anônima”. Essas duas cidades já estão suficientemente presentes no imaginário popular do brasileiro, não precisamos alimentar o bombardeio de informações sobre o Sudeste que nós, marginais ao polo, sofremos diariamente. Tratemos, então, de duas cidades igualmente distantes do eixo central do Brasil: Porto Alegre e Recife. Porto Alegre não foi uma mera escolha por comodismo, como pode transparecer. Foi uma escolha um tanto lógica, pela sua relevância à revista, pela vivência mesma na cidade. Recife, por sua vez, faz parte do escopo pela sua recente reinsurgência no território cinematográfico nacional que, apesar de ter raízes em “Baile Perfumado” (1996) e “Amarelo Manga” (2003),


tornou-se ponto principal de debate a partir de “O Som Ao Redor” (2012), de Kleber Mendonça Filho. RECIFE. uma arena para a luta de classes. Dos altos e baixos da cidade pernambucana, o cinema de Recife reflete as tensões sociais que percorrem as ruas e adentram os prédios. Em “O Som Ao Redor”, particularmente, estão representadas todas as classes, todas as tensões, como se o Brasil inteiro morasse na mesma rua. O dono de engenho que enriqueceu construindo arranha-céus na orla da praia, a mulher de classe média que recebeu a Veja fora do plástico, os descendentes dos trabalhadores do campo que fazem a segurança dos moradores, o entregador de água que vende maconha para a entediada donade-casa que, por sua vez, se masturba na máquina de lavar. As relações tornam-se mais complicadas quando noções de espaço e de lugar público e privado se misturam e se complexificam. Se em alguns ambientes as classes baixas têm acesso ao mesmo território urbano do que as mais abastadas, em espaços mais internos as relações de poder remetem ao conflito entre casa-grande e senzala.

da casa-grande através da verticalização. Apesar de não se situar apenas na capital pernambucana, o documentário traduz a urgência de compreender o ímpeto da urbanização, da transformação da paisagem natural em prol de noções básicas de poder - nas palavras de um personagem, estar “superior aos outros”. No recente “Boa Sorte, Meu Amor” (2013), de Daniel Aragão, também persiste a sombra do passado rural no terreno urbano, como o próprio protagonista, filho de engenho e construtor civil, experiencia. De certa forma, isso que se produz em Recife é descendente direto do cinema de exclusão, que caracteriza a cinematografia brasileira. Desde Nelson Pereira dos Santos e outros cineastas modernos existe a busca por compreender o excluído e transpor “a cara do povo brasileiro”, como diria Glauber Rocha, para a tela grande. Não necessariamente possuidor de uma estética de fome, o cinema de exclusão baseiase em antigas questões como colonização, expropriação de terras e dominação, e as reflete de variadas

maneiras ao longo da história do cinema no Brasil. Mas, enquanto no Nordeste a tradição de um cinema de luta de classes resiste, mais para o sul do país parece não haver esse tipo de relação de poder. PORTO ALEGRE. romântica, boêmia, descontextualizada. Um travelling pela Av. Osvaldo Aranha abre os créditos iniciais de “Deu Pra Ti, Anos 70” (1981), de Giba Assis Brasil e Nelson Nadotti, enquanto, do outro lado da Redenção, um travelling pela Av. João Pessoa encerra o longa-metragem de Gustavo Spolidoro, “Ainda Orangotangos” (2008). Essa volta pelo parque que dura mais de 20 anos, antes de ser uma referência dos novos cineastas gaúchos à legitimada geração do Super 8 nos anos 80, indica que o imaginário cultural porto-alegrense se mantém o mesmo há um bom tempo. A Revista “Em Questão” fez, em 2010, uma pesquisa baseada no livro “Imaginarios Urbanos: hacia el desarrollo de un urbanismo desde los ciudadanos” (2004), de Armando Silva. A pesquisa, de

Solidão existencial e boemia no longa Cão Sem Dono, adaptação do livro de Daniel Galera

A permanência das relações de espaço como definidoras de status social é o mote de “Um Lugar Ao Sol” (2009), documentário de Gabriel Mascaro que busca, nas coberturas dos prédios de Recife, Rio de Janeiro e São Paulo, a modernização

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nome “Porto Alegre imaginada: representações dos cidadãos sobre a cidade”, levantou dados sobre componentes do imaginário porto-alegrense a partir de várias mídias, entre elas o cinema. Das conclusões, destaca-se a presença constante do Centro Histórico e do Bom Fim como espaço primeiro – e, por vezes, único - de ação das personagens. Esses antigos bairros remetem à fundação de Porto Alegre e concentram redutos familiares à cultura alternativa da cidade: bares, cinemas, sebos. Ao redor destes ambientes, os cineastas reconstroem a sua Porto Alegre.

O já citado “Ainda Orangotangos”, ao que parece, concentra-se na produção em si, no desafio de realizar um longa-metragem inteiramente filmado em um único plano-sequência. Seu passeio pelo Trensurb, pelo Mercado Público, pelo Bom Fim e pela Cidade Baixa utiliza o espaço da cidade, quando muito, como identificação geográfica e cartão postal. Não se discutem o espaço público e as relações espaciais entre os indivíduos do ambiente urbano. Ainda que o filme tenha um arsenal de diferentes personagens se encontrando e desencontrando nas diferentes narrativas, a falta de profundidade e relacionamento entre eles dificulta o questionamento. O mesmo acontece com “3 Efes” (2007), de Carlos Gerbase, que dispõe de uma variada gama de personagens, mas não os faz interagir dentro do mesmo espaço. E, quando tenta criar um momento de conflito entre classes,

soa falso, seja pela atuação, pela direção de arte ou mesmo pelo roteiro, que preza antes pelo sexo e pela fome como impulsos estéreis numa Porto Alegre um tanto higienizada. “O Homem Que Copiava” (2003) é, de certa forma, o mais próximo de um cinema de exclusão a que Porto Alegre chega. O segundo longa dirigido por Jorge Furtado é ambientado na Zona Norte, onde o protagonista negro e funcionário de uma loja de fotocópias tenta impressionar a sua vizinha, que trabalha numa loja de roupas. Mesmo assim, as relações de poder se dão – com o humor juvenil tradicional da filmografia de Furtado – numa ordem de excluído para com excluído, evitando, de acordo com o restante da cinematografia porto-alegrense, um choque entre classes. Assim, descontextualizada daqueles que vivem à margem do circuito de bares, a Porto Alegre do cinema perde-se no meio de seus problemas de primeiro mundo e se constitui mais como um Projac nostálgico de um tempo passado do que como palco problematizador das tensões urbanas.

Divulgação

Mas, se as histórias são sustentadas apenas ao redor desses bairros boêmios, a cidade acaba por ser palco de um tipo muito peculiar de ações e discussões. “Cão Sem Dono” (2007), apesar de ter sido dirigido pelos paulistas Beto Brant e Renato Ciasca, reforça fielmente o imaginário bêbado que compõe a imagem de um porto-alegrense: jovem, classe média, recém-formado na universidade, Ciro mora sozinho no Centro Histórico e não sabe o que fazer da sua vida. Se o personagem extraído do livro “Até O Dia

Em Que O Cão Morreu” (2006), de Daniel Galera, lembra o indeciso Marcelo, de “Deu Pra Ti, Anos 70”, não é mera coincidência. Em “Cão Sem Dono”, o conflito existencial é o que guia a narrativa.

As tensões sociais implícitas e explícitas em O Som Ao Redor

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O FIM DO TEATRO INACABADO No ano em que completaria 50 anos de existência, o Teatro Leopoldina encontra-se irreconhecível atrás dos toldos imobiliários que anunciam seu futuro. O antigo Teatro da OSPA foi sentenciado a se tornar mais um prédio comercial da capital gaúcha, sem muitos protestos da população.

por Kathlyn Moreira

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Ăšltimo concerto da OSPA no Teatro

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Cristine Rochol


Cartazes com acusações já tomavam as ruas de Porto Alegre antes de "Roda Viva"

Arquivo Pessoal Pedro Paulo Rangel

s frases ironizavam a peça e a associavam com drogas

E

ra para ser um cinema - já tinha até o local para os equipamentos de projeção -, mas acabou transformado em um espaço para as artes dramáticas e, principalmente, para a música. Assim, com a iniciativa da família Satt, nascia o Teatro Leopoldina. Moderno para a época, já que de grande só havia o tradicional Theatro São Pedro – que estava decadente e passaria por reformas mais tarde –, o Leopoldina tinha uma característica peculiar: somente o primeiro andar fora concluído, restando os outros seis. As mudanças no Plano Diretor do período impossibilitaram a continuidade da obra. Era um esqueleto em Porto Alegre com um luxuoso teatro embaixo, capaz de comportar 1.230 espectadores. A primeira das inesquecíveis apresentações que marcaram a história do teatro foi “My Fair Lady”, com Bibi Ferreira e Paulo Autran em 1964. Seu palco também recebeu Sônia Braga com a peça “Hair”, polêmica na época pelas cenas de nudez. Outra peça marcante foi “Opinião” com Maria Bethânia, João do Vale e Zé Keti, uma das precursoras do chamado teatro de protesto.

o

Além desses, outros grandes nomes passaram pelo Leopoldina com shows de sucesso, como Gilberto Gil, em 1972, marcando sua volta do exílio, e Elis Regina, que fez questão de estrear na capital o musical “Transversal do Tempo”, característico por seu cunho social e político. “Naquela época, havia uma diferença” – compara jornalista Juarez Fonseca –,


Kathlyn Moreira

“os shows chegavam a ficar umas duas semanas em cartaz, hoje a gente está acostumado com show que tem uma apresentação só”. A fábrica dos sonhos Roberto Camargo chegou em Porto Alegre em 1978 com quatorze para quinze anos. Quando pensa no Teatro Leopoldina se acha velho, porque imagina que boa parte das pessoas conheceu o local como Teatro da OSPA, ou talvez nem isso. Sonhando em ser ator desde aquele tempo, Roberto lembra o que o prédio 925 da Avenida Independência representava para ele: “O Teatro Leopoldina era a possibilidade do sonho se tornar real. Era a minha fábrica de sonhos. Eu, que desde criança sonhava em ser artista, o que quer que isso significasse na ocasião, pude ter, a partir desse local mágico, acesso ao mundo encantado das artes e dos seres fantásticos que eram os artistas”. Só que a fábrica de sonhos não era acessível para um jovem como ele. A censura rígida não permitia que menores de dezoito anos assistissem a maioria das apresentações. Isso não desanimava Roberto. Por ser perto de sua casa, ele vivia rodeando o teatro. Na garagem, dentro, ou na saída dos artistas, estava lá. E foram nessas ocasiões que o ator conseguiu as relíquias que guarda até hoje: a foto do “Show Babilônia” com Rita Lee – o primeiro a que assistiu –, o registro de Maria Bethânia no camarim e da pose ao lado de Zezé Motta na garagem do teatro. “Foi lá, também, que beijei na boca pela primeira vez!”, lembra Roberto. Como se já não fosse suficiente, o Teatro Leopoldina também deu a ele a oportunidade de conhecer Elis Regina: “Depois do show me enchi

Pedro Paulo Rangel fez sua estreia em Roda Viva. de coragem, fui ao camarim e pedi um autógrafo, que guardo até hoje também. Ela escreveu, em diagonal no alto da página de um livrinho de cordel do Zé Ramalho, único papel que eu tinha na bolsa: ‘Roberto, um abração, Elis’”. Em conversa com o filho da cantora, João Marcelo Bôscoli, anos depois, Roberto descobriu que a escrita em diagonal era algo típico da Pimentinha: “Até a agenda dela era assim”. Seguindo carreira nas artes dramáticas, Roberto Camargo passou de espectador para artista em sua fábrica de sonhos. O ator chegou a se apresentar no Leopoldina, uma vez, junto ao Grupo Tear com o espetáculo “A Piscina”. Ainda assim, não escapou da censura ao longo da vida profissional: “Antes do espetáculo estrear, a gente fazia um ensaio geral para os censores assistirem. Eles emitiam o parecer dizendo se a peça estava liberada ou não. Se estava liberada inteira ou com cortes”. Os “maconheiros comunistas” chegam ao Leopoldina Talvez o fato de ter aberto suas portas no início da Ditadura – e de ser uma casa para a expressão artística – já deixasse iminente que o Teatro Leopoldina não passaria ileso pela intervenção militar.

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Em 1968, a peça “Roda Viva”, escrita por Chico Buarque e dirigida por José Celso, causava polêmica e inquietação dos militares. Pedro Paulo Rangel, hoje conhecido ator da dramaturgia brasileira, tinha 19 anos. Não havia nem concluído o curso de teatro quando decidiu entrar para o coro da peça. “Eu não tinha formação política nenhuma. Aí que fui tomar posição política. Minha posição mais radical era que eu era fã da Marlene, não da Emilinha! [referindo-se a rivalidade entre as duas cantoras durante o concurso “Rainha do Rádio” nos anos 50]”. “Roda Viva” contava a história de um cantor ingênuo que foi transformado em ídolo nacional pelo empresário e pela imprensa corrupta. Pedro Paulo imaginava que seu papel no coro seria calmo, mas se enganou. Ele e os companheiros eram responsáveis por interagir com a plateia para retratar as mutações do personagem principal. Muitas vezes, tocavam fisicamente os espectadores, algo pouco utilizado até então. “O coro representava as macacas de auditório, a sociedade do consumo. Então agarrávamos o público e dizíamos ‘Compre, compre!’. Foi chamado até de teatro de agressão na época”. As reações do público podiam ser variadas, mas o fato era que a peça despertava interesse. Inclusive do Comando de Caça aos Comunistas, que invadiu o teatro e comandou agressões no dia da estreia em São Paulo. Para Pedro Paulo Rangel, tudo no enredo contribuía para a intervenção: “Ele [a personagem principal], quando virava cantor de protesto, usava um chapéu de cangaceiro com a foice e o martelo [símbolos do comunismo]. Após o ataque, eles levaram o

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Show Babilônia com Rita Lee chapéu como um prêmio, mas aquilo era uma alegoria, não era para ser propaganda de nada”. A ação do CCC não motivou o grupo a encerrar as apresentações de “Roda Viva”, mas também não calou os conservadores. Quando o elenco chegou em Porto Alegre para se apresentar no Teatro Leopoldina, a cidade estava repleta de panfletos. Pedro Paulo os descreve com entonação: “Alguns diziam: ‘Gaúcho, levanta-te e luta contra espetáculos inspirados pela maconha e LSD que vêm destruir tuas tradições’, e outros eram irônicos: ‘Gaúcho, tu és evoluído, vai assistir a esses espetáculos, o que dirão os teus amigos?’”. No dia seguinte à chegada, o Leopoldina estava todo pichado. O horário da estreia atrasou e a apresentação terminou quase meia noite. Na saída, o elenco se separou em grupos. Um dos músicos sangrava no saguão do hotel após ter sofrido agressões. Outro grupo foi para a casa de um amigo gaúcho. “Era cômico depois eles contando. A avó dele [do amigo] descascando laranjas, eles jantando naquela cena típica familiar, e do lado de fora se ouviam tiros, com gritos de ‘Comunistas!, Filhos da puta!, Maconheiros!’, e eles apavorados”, conta Pedro Paulo Rangel, que ficou no hotel também escutando gritos da rua. A atriz Elizabeth Gasper [que substituía Marília Pêra na peça] e outros colegas foram levados para o meio do mato e obrigados a representar uma cena da peça com armas apontadas para eles. Feito isso, o elen-


Arquivo pessoal Roberto Camargo

co foi intimado a ir embora naquela noite, sem poder ficar mais um dia na cidade. “Nós perguntávamos onde estavam aquelas pessoas, as da casa da laranja e as do mato, e eles só diziam ‘Elas vão aparecer’. Daí nos enfiaram num ônibus que não era fretado, cheio de pessoas, que nós nem sabíamos o que poderiam fazer. Foi uma viagem horrível”, lembra Pedro Paulo. A viagem tensa durou até as proximidades de Curitiba. Assim, a temporada de “Roda Viva” em Porto Alegre encerrava-se. A peça estava censurada agora para todo o país. Teatro da OSPA e depois o fim

Maria Bethânia no camarim

Nos anos 80, o Teatro Leopoldina entrou em declínio. A família Satt parecia não ter mais interesse no local, que foi fechado em 1981. Somente em 1984, as portas do 925 da Avenida Independência se abriram para a população porto-alegrense, só que dessa vez com um novo nome: Teatro da OSPA. A situação que a Orquestra Sinfônica de Porto Alegre enfrentava, no início dos anos 80, era bem semelhante à atual. Sem lugar fixo para os ensaios, o maestro Eliezer de Carvalho ameaçava abandonar o posto. O presidente Ivo Nesralla – que também ocupa o cargo atualmente –, prometeu providências e alugou o Teatro Leopoldina para transformá-lo em Teatro da OSPA. Naquele tempo, o aluguel era pago pelas empresas Ipiranga e Banco Maisonnave. Para Nesralla, a presença da OSPA no Teatro preenchia uma lacuna: “O concerto inaugural foi um grande sucesso. Nós tivemos que repeti-lo por mais dois dias seguidos. Isso mostrava que a população estava ávida por um programa cultural que não existia”.

Roberto com Zezé Motta

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Tudo pronto para a construção do prédio comercial no local

Músico da Orquestra há 35 anos, Elsdor Ricardo Lenhart recorda que a aceitação dos integrantes foi positiva: “Era nossa referência como casa. Tínhamos perdido a exclusividade de tocar na Reitoria e ensaiávamos em vários lugares”. Para o jornalista e comentarista de música Juarez Fonseca, o aluguel do Teatro trazia um novo caráter ao local: “Ele passou a ser um teatro público, mesmo sendo alugado. E com a agenda de ensaios e apresentações

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da OSPA, ele perdeu sua mobilidade [no sentido de reduzir o número de espetáculos de fora]”. Juarez também lembra que a estrutura do Teatro já não estava nas melhores condições quando a orquestra chegou. Isso reduziu a permanência da OSPA no local, como admite o presidente Nesralla: “O Teatro estava sem manutenção, não se podia aplicar dinheiro do Estado no privado. A acústica era muito ruim,


sua nova casa, ensaiando em diferentes lugares. O último concerto que o teatro abrigou foi em 2008 com a regência do maestro Isaac Karabtchevsky. Cerca de 1.500 pessoas ocuparam os assentos pela última vez. “O pessoal estava um pouco apreensivo com a mudança. Não foi uma despedida muito confortável, alegre, porque não tínhamos uma grande perspectiva, tanto que ainda hoje estamos em uma situação precária”, lembra Elsdor. Ao final da apresentação, como ritual tradicional para o fim das atividades de um teatro, a orquestra saiu pela porta da frente, acompanhada de Nesralla e da então Secretária da Cultura, Mônica Leal. O Teatro Leopoldina/ da OSPA dava seu último suspiro. Um teatro a menos, um edifício a mais “Não me surpreende, só me escandaliza. Isso acontece a toda hora no Brasil”, reage Pedro Paulo Rangel ao saber que o Leopoldina será transformado em um prédio comercial. Já o ator Roberto Camargo parece mais conformado com o destino de sua fábrica de sonhos: “Contanto que o prédio não continue abandonado como esteve durante muitos anos, ou mesmo inacabado como sempre foi, desde os tempos do Leopoldina, acho válido. O tempo passa, tudo tem seu tempo de duração e é importante que a cidade se renove. Melhor seria que o Teatro tivesse sido mantido. Mas, já que isso não aconteceu, que venha o novo, a novidade, o crescimento”.

Juliano Antunes fora o problema de segurança, porque o sistema eletrônico era deficitário e o gás amônia que matinha o ar condicionado podia vazar e matar muitas pessoas lá dentro”. Sem querer assumir o risco – e com a falha na negociação de compra pelo governo do Estado –, a OSPA deixou o Teatro após 24 anos e segue, até hoje, aguardando a finalização de

Desde a construção do Leopoldina, Porto Alegre recebeu novos teatros e espaços para cultura. No entanto, a falta de interesse em investir na conservação das artes parece clara na capital. O jornalista Juarez Fonseca destaca algumas perdas com a demolição: “Nem o Teatro do Bourbon Country, nem o Teatro do SESI têm a qualidade, a visibilidade, a arquitetura, a acústica que aquele Teatro tinha. Em Porto Alegre, não se fez teatro tão bem construído como ele. É lamentável”. Sobre a construção de um prédio comercial no local, Paulo Satt justifica a opção da família em uma frase: “Simplesmente interesse imobiliário”. Se a geração antiga considera-se velha por lembrar-se do número 925 da Avenida Independência como Teatro Leopoldina, as próximas nem saberão que ali existiu um teatro. Quem passa por ali agora vê o que já se tornou comum em Porto Alegre: mais um prédio alto. Nesse caso, um edifício comercial com tudo, menos um teatro.

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Do prote consc


E sto à ientização ambiental

m janeiro de 1975, o estudante de engenharia Carlos Dayrell subiu no alto de uma tipuana na Avenida João Pessoa para impedir que ela fosse cortada. O traçado do viaduto que iria ser construído no local teve que ser alterado e a árvore continua no mesmo local, 39 anos depois. O fato deu visibilidade para o movimento ambientalista no Rio Grande do Sul e virou marco histórico para o começo de uma das épocas com maior efervescência para o ativismo ambiental no Estado.

por Laura Pacheco

Rodrigo Lorenzi

Quem inspirou o jovem estudante a tomar a atitude foi o engenheiro agrônomo José Lutzenberg, um dos fundadores da primeira instituição ambientalista do Estado, a Associação Gaúcha de Proteção ao Ambiente Natural (Agapan). Junto com ele estava outra figura icônica do movimento ambientalista, o exmilitante do partido comunista e funcionário público Augusto Carneiro, que até hoje, aos 90 anos, continua a lutar pela preservação ambiental. Com 26 sócios fundadores, a Agapan surgiu em abril de 1971, com a ideia de levantar denúncias sobre o descaso do poder público e de grandes corporações com a preservação do ambiente e da biodiversidade. Alfredo Ferreira, atual presidente da Agapan e um dos sócios fundadores, acredita que o poder de comunicação de Lutzenberger e a maneira como as suas denúncias eram fundamentadas foi crucial para que a associação ganhasse força diante da população. Além disso, por estar em uma época de grande censura política, muitos se aliaram a esta maneira de ir contra o regime em um setor que ainda não sofria com a repressão.

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“Nós estávamos em um regime de exceção, no regime militar. Não podia haver contestações do lado político, então muitas pessoas se aliaram, porque era uma maneira de reclamar desse sistema que favorecia os grandes empreendimentos em detrimento do pequeno agricultor. Mesmo urbana, a Agapan teve uma penetração muito forte nesses setores agrícolas e com aquelas pessoas que tinham um descontentamento com o regime como um todo.” disse. Além disso, os movimentos ambientalistas surgem em um contexto histórico de mudança social e política. Com influência do maio de 68, o ativismo estudantil passou a questionar os valores políticos, sociais e culturais aceitos até então. O movimento de contracultura tinha ideias semelhantes aos do ambientalismo, visto que ambos eram anti-industriais e condenavam o consumismo e os valores materiais. Consciência ambiental A Agapan abriu espaço para que novas organizações ambientalistas se instalassem no estado. Hoje, existem por aqui cerca de 20 instituições de maior porte. Mesmo com esse aumento, o trabalho dos ativistas ainda é grande e apresenta inúmeras dificuldades. Como a maioria dos movimentos sociais, a falta de engajamento e de persistência resulta em esvaziamento das instituições. Por serem normalmente organizações sem fins lucrativos, sua manutenção e financiamento são ainda mais complicados - a contribuição dos associados, por sua vez, é voluntária. Para Sarah Bueno Motter, secretária do Instituto Gaúcho de Estudos Ambientais (Ingá), uma das maiores dificuldades é a falta de consciência ambiental. “Os paradigmas da sociedade atual são voltados principalmente para a questão econômica e tecnológica, tentam-se soluções para a preservação ambiental e a conservação da biodiversidade dos ecossistemas dentro de paradigmas que não comportam a totalidade da natureza. A gente está conectada com ela de uma maneira muito mais profunda do que acreditamos e do que é ditado por esses paradigmas.” comenta. O Ingá trabalha para além do ponto de vista biológico nas questões ambientais, aliando uma perspectiva interdisciplinar na transformação social, promovendo a justiça ambiental e modos de vida saudáveis, em harmonia com a natureza. Mesmo com a criação de diversos fóruns internacionais e o surgimento de várias ONGs, a maioria dos

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problemas ambientais continua se agravando. A mudança somente irá acontecer quando a sociedade, a esfera política e as empresas trabalharem juntos e se preocuparem com todos os abusos já visíveis no presente e refletir sobre o futuro. “Acho que as pessoas têm um conhecimento maior, mas ainda é preciso uma reflexão muito mais profunda para a gente entender sobre os ecossistemas e a natureza e a própria crise ambiental que estamos passando.” completa Sarah. Alfredo Ferreira , presidente da Agapan, comenta que, mesmo dentro de conselhos ambientais organizados pelo governo, as derrotas são constantes, já que normalmente menos da metade das pessoas está


Agrotóxicos Uma das principais reivindicações dos movimentos ambientalistas no estado é o uso de venenos na agricultura. Mesmo com algumas conquistas, como o uso da palavra agrotóxico no lugar de “defensivos agrícolas”, o combate ao seu uso ainda está longe de terminar. O Rio Grande do Sul é o único no país em que a venda de agrotóxicos banidos no país de origem é proibida, sendo também o primeiro a ter leis que regulamentem o uso de tais substâncias. Aliando o cultivo de lavouras geneticamente modificadas e a expansão do uso de agrotóxicos, o Brasil já está na liderança mundial na ingestão de venenos agrícolas, superando a marca de 6 litros de agrotóxicos consumidos ao ano por um habitante. O assunto sempre está em pauta por ser um dos mais difíceis de ser superado, devido à grande força do agronegócio e das indústrias fabricantes.

do lado ambiental. “O poder público, em uma forma geral, ele age como um moderador entre os grandes interesses, até mesmo porque parte das campanhas políticas são patrocinadas por esses grandes conglomerados econômicos. E do outro lado, está o clamor popular, que a gente procura fazer com o maior alarde possível, porque no final acaba sendo uma disputa de espaços e de seguidores.” relata. O alcance reduzido na mídia tradicional é outro empecilho no trabalho dos movimentos ambientalistas. Segundo Sarah, o fato de a mídia convencional estar dividida em editorias específicas, como de economia e política, dificulta para que pautas ambientais sejam retratadas, já que elas envolvem mais de um desses fatores. Na mídia alternativa, esses assuntos são mais facilmente abordados, e de uma forma mais complexa e em sua totalidade - embora o público ainda seja muito restrito. “Na mídia tradicional, os olhares estão muito atrofiados, cartesianos, lineares. Eles não conseguem abarcar as coisas de uma maneira que realmente faça a diferença.” comenta Sarah.


“Você coloca a planta transgênica no ambiente e ela causa uma série de malefícios, inclusive porque algumas cruzam com plantas que não são transgênicas e levam para essas plantas a parte modificada. Daí vem o veneno, que deixa as pessoas doentes, e quem é que produz o remédio? As mesmas empresas que fazem os transgênicos e os agrotóxicos.”ressalta Alfredo. Ademais, esses alimentos por não terem sido selecionados naturalmente, são menos nutritivos e apropriados para o consumo humano. Atualmente, umas das principais lutas contra os agrotóxicos é para que não seja autorizado o cultivo e o comércio de variedades de soja e milho tolerantes ao herbicida 2,4 D, o agente laranja utilizado na guerra do Vietnam, extremamente tóxico, que pode ser substituído por outros de menor toxicidade.

Luta diária A luta ambiental acontece no dia -a-dia, nas ações pessoais - na busca por uma vida com menos bens materiais - ou públicas, como os protestos e acampamentos para a não derrubada de árvores. Dos anos 70 para cá, a luta ambiental deixou de ser novidade e já conseguiu a implantação de políticas públicas sustentáveis e a criação de diversas instituições em prol do meio ambiente. Mas o ambientalismo, de fato, só conseguirá ter objetivos completos com a ajuda da população e do poder público na construção de uma sociedade mais sustentável e consciente das consequências de seus atos, prezando por uma vida em harmonia com a natureza.

Jade Knorre

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Quintal do CasarĂŁo onde fica o INGĂ : aproveitamento de recursos naturais para o sustento


PARAR NÓS VAMOS SÓ


QUANDO o mundo acabar, a bomba explodir, o sangue jorrar por Giovani de Oliveira e Nidiane Perdomo Juliano Antunes

U

ma das maiores representações da inquietude das ruas é o punk. E uma das maiores representações do punk no Brasil (talvez no mundo) é de Porto Alegre e completou 30 anos em 2013. Óbvio que 30 anos não cabem em uma reportagem. Então, optamos por reduzir o espaço da nossa fala e nos limitamos a escolher trechos das conversas que tivemos com o ex-baterista e vocalista Carlos Gerbase e com Cláudio e Heron Heinz, Cléber Andrade e Júlia Barth, os Replicantes que continuam na estrada, segundo Cláudio, “enquanto houver paixão no ar”.

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Show dos 30 anos Gerbase: Esse ano eu me dei conta que Os Replicantes tinham começado em novembro de 83, portanto, estaríamos completando 30 anos. Até falei com o Heron, e ele disse “Não, a gente acha que o começo dos Replicantes é em maio de 84”, nosso primeiro show. [...] Mas realmente o começo, pra mim, foi nos ensaios na garagem da minha casa. Aí eu propus reunir Os Replicantes de todos os tempos num show, pra comemorar os 30 anos. Julia: Eu tava na feira ecológica do Bom Fim, sábado de manhã, caminhando, e esbarro no Gerbase e no Wander, numa banquinha, comendo um pão de queijo, toman-

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do um suco. E aí eles falaram sobre essa ideia. Eu acho que o Gerbase é o grande incentivador [...] E pra ele essa história é muito importante e ele é muito importante pra essa história. Turnê europeia, 2014 Heron: Nós já fizemos duas. A ideia seria justamente pra comemorar os 30 anos. [...] Eu tava com o Zé, ele tava falando com o amigo dele finlandês que tem uma banda. [...] Bom, aí esse cara tem uma banda que vai fazer uns shows aqui em março, e aí o Zé já meio que fechou uns shows nossos com eles, e o cara disse assim: “Aí vocês vêm em maio e eu arrumo uns 5, 6 shows aqui na Finlândia”.

Julia: Eu nunca fiz turnê com os Replicantes, mas a minha experiência europeia, eu acho que tem diferença no tipo de público, a coisa dos anarquistas… Eles têm uma organização underground que eu acho que é maior que a nossa, de fazer shows fora do eixo, com o que eles têm, nesses lugares que são lugares onde eles moram e também são lugares onde as pessoas frequentam… Cléber: Acho que a maioria dos shows que a gente fez foi assim. Em espaços que eram organização de uma gurizada, muitos lugares que eles invadiram, moravam lá, tinham bares e faziam os shows… Cláudio: A Europa, esses circui-


tos que a gente faz meio leste europeu: o polo norte fica perto da Suécia e na Noruega… É menos longe ir de um lugar pra outro. E lá tem uma outra economia e uma outra ideia, então onde a gente vai tocando tem uma banda nos acompanhando; Tá sempre rolando música no circuito. Julia: E tem vários festivais alternativos também… Cláudio: Esses dois grandes festivais que a gente tocou, grandes entre aspas, mas que são maiores, reúnem várias bandas em três dias. A gente tocou duas vezes, agora em Hamburgo vai ser a terceira vez. Da primeira vez foram quatro ou cinco noites, a gente tocou na noite do Dead Kennedys. Na segunda vez, em 2006, a gente já foi fechar o show. Tem uma coisa assim de gente que vai acompanhando, e eles têm informações de todo mundo, em vários shows, pessoas que tinham ido no anterior, que não nos conheciam, nem conheciam a letra das músicas, mas que foram ver o nosso outro show da tour. Eu tenho gravado o show que a gente fez em Tromse, na Noruega. Ali dá pra ver o que acontece, as pessoas vão começando a gostar, e ficam loucos… Tu vê que elas tão olhando e começam a dançar, e daqui a pouco já tão loucos, já tão cantando sei lá o quê, e isso é uma coisa super emocionante: quer dizer que a música foi a linguagem, porque nenhum deles tava entendendo o que a gente tava falando. Cléber: Nesses shows cada banda tem a sua lojinha, [...] a gente fez dois shows em Berlim e depois a gente foi tocar em Hamburgo, e aí a gente chegou e tinha várias pessoas na plateia com camisa do Replican-

tes, que viram os shows lá e foram até Hamburgo pra ver de novo.

nd que tem é o Ocidente, que já não é mais underground.

Underground em porto alegre

Heron: Eu acho que o underground tá na periferia. Não tá mais no Bom Fim, na Cidade Baixa […] O Underground tá na esquina oposta do Opinião ali. Onde tem um monte de bandas que tocam ali, mas ninguém sabe. É isso, é underground, ninguém sabe.

Julia: Porto Alegre não tem mais underground. São pouquíssimos os shows em que vão pessoas, bandas importantes fazem shows e não tá cheio, é bem difícil fazer show aqui. O interior é o que salva. Heron: A grande Porto Alegre também. Julia: Na capital é super difícil e dá uma tristeza, porque as pessoas pagam caríssimo pra ir em festas, mas não pagam pra ver shows. Tem uma cultura maior do DJ do que do músico. Cléber: Mas, por outro lado, tem dois shows que a gente fez que eu me senti que nem na turnê europeia que foram em Alvorada e no Morrostock, que foi aquela coisa bem alternativa, underground, todo mundo trabalhando. [...] É essa organização que tu vê e antes tu não via isso, os caras fazem um projeto e, claro, tem uma história de apoio cultural, mas é uma história bem alternativa e de organização das próprias bandas do pessoal do meio, com uma qualidade boa, um som bom, mas que tão botando bandas ali que não são do circuito comercial e tão fazendo as coisas acontecerem. Cláudio: Eu acho que o underground continua o mesmo. Julia: Mas a gente não tem mais um lugar underground em Porto Alegre pra fazer show. A gente não tem nem o Jekill, não tem mais o Garagem. O lugar mais undergrou-

Cláudio: O rock parou de dar dinheiro quando aconteceu o punk rock, o resto todo é pós punk. [...] E lá (Europa), continua a mídia sendo forte, não tem bandas tocando na mídia, bandas underground. Eu lembro que o número de discos vendidos da banda de gravadora era o mesmo número do Conflict, que era uma banda independente. Hoje não adianta, não tem mais... O Dead Kennedys não enriqueceu, ninguém do underground enriqueceu. Começo da banda Cláudio: Tava acontecendo toda uma mudança na história. Há pouco tempo tinha acabado a ditadura militar, há pouco tempo tu conseguia comprar disco importado. Tava acontecendo um momento histórico junto com a banda. Gerbase: Foi um momento perigoso da nossa história. Em relação aos resquícios da ditadura, o que nós tínhamos era uma constituição que ainda mantinha a censura prévia. No cinema e depois quando a gente começou a fazer música. Dois filmes em que eu trabalhei tiveram cenas cortadas, e o primeiro disco do Replicantes teve uma música que teve a letra proibida, não podia entrar nem no disco, e quatro ou cinco que não podiam tocar no

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rádio. E nós lidávamos com isso botando a boca no trombone, xingando todo mundo. Heron: O nosso primeiro disco tinha 13 músicas, 9 não podiam tocar no rádio. Então ainda era… 85, que saiu nosso primeiro LP. Situando isso em Porto Alegre, o que era underground há 30 anos atrás era o Ocidente, era o Lola… O Ocidente existe até hoje então ele tem toda uma carga… O Opinião era uma casinha na José do Patrocínio… Cléber: Era um corredor. Heron: A gente era jovem, e tinha o Scalpi, que era um cabeleireiro famoso que tinha ali na Ramiro, frequentador do Ocidente, aquelas locurama… Aí nós fizemos um festivalzinho, puxando a luz lá da casa do Walter, do Salão dele lá. Vai tentar fazer isso hoje em dia na cidade de Porto Alegre! A cidade era diferente, o Bom Fim era diferente… Gerbase: Quem lançou (o punk no Brasil) foram as bandas de São Paulo, em 78, o Festival do Fim do Mundo, o Grito Suburbano, que acho que é de 80, 81. Mas esse movimento punk do ABC não chegou com força aqui, o que chamou a atenção foi o lançamento dos discos punks tardiamente aqui em Porto Alegre. “Nevermind the Bollocks”, foi lançado em 79, e depois “Clash” e um pouquinho depois “Ramones”. A música que nos chamou atenção pros aspectos estéticos e políticos do punk. E o Camisa de Vênus é uma banda precursora. Isso aí abriu caminho pra gente começar a ouvir outras coisas. Cláudio: Eu não sei se não é no mundo todo parecido, é, e foi, porque a gente tava começando a fazer

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isso quando na Europa há pouco tempo tinha começado o punk rock, a new wave, foi tudo vindo junto… Heron: Não, dez anos... o punk rock na Inglaterra foi dez anos antes, até doze.

parte de uma questão de ter atitude. Ou, que nem Os Replicantes fizeram, ter a cara de pau de gravar uma fita cassete, levar na Ipanema. Isso tu não consegue mais fazer, mas tu consegue outros espaços através da internet. [...] Outra coisa que tá consolidada é que a mídia vai atrás.

Gerbase: Achamos que ia dar certo, porque éramos todos ignorantes e ninguém iria querer impor regras, e o primeiro ensaio foi muito caótico, porque ele (Wander) não conseguia entrar no ritmo, ele errava todas as entradas, ele não conhecia as músicas, pra ele era um mundo muito distante. Aí então, o que fizemos foi gravar em uma fita cassete as melhores versões que conseguimos fazer das músicas ali na garagem mesmo. Ele escutou durante o verão inteiro e quando voltou já conhecia as músicas. [...] Quando Os Replicantes surgiram em Porto Alegre, nós assustamos as pessoas. Meio que a gente apresentou o punk, porque nem as rádios tocavam Sex Pistols, Clash, acho que por ignorância mesmo. Claro que devia ter pessoas que conheciam. Nós estávamos nos anos 70 ainda, rock progressivo e alguma coisa de rockabilly. As bandas que eram contemporâneas dos Replicantes eram a Taranatiriça e Garotos da Rua. Na esteira dos Replicantes teve um monte de coisa.

Claudio: E depois larga. Quando vê que é contraditório, que não é a maneira que eles sabem operar, ou que é perigoso, eles largam. De repente eu não sei, tô com mania de perseguição, mas pra mim eles vão lá, pegam dinheiro e derrubam de novo. O rock nunca mais subiu. Conhece alguma banda de rock, nos últimos 20 anos, que esteja na mídia e que reivindica alguma coisa? Que fala alguma coisa? Nada. Só porcaria que faz refrãozinho.

Cleber: Ali, durante a abertura, o Rock chegou ao Brasil, as bandas começaram a fazer show, mas na verdade foi um movimento underground, e o que aconteceu, foi que a grande mídia se apoderou disso. Onde eles viram que tinha público que dava dinheiro, aí eles foram lá. Botaram as bandas no mercado, botaram nas rádios, aí deu aquele bum. Então o underground sempre existiu, só que quando a coisa começa a funcionar [...] a gravadora vai lá e contrata. Só que é isso, tudo

Julia: A gente tá num retrocesso careta que é assustador, parece que resolveram destruir tudo o que tinha de bom e divertido na cidade. Ainda bem que tem gente tentando ocupar a Redenção, fazer coisas mais interessantes. É que isso também começa e esvazia, é que nem as passeatas, as pessoas começam a enlouquecer, e aí fica confuso, ninguém sabe exatamente…

Gerbase: É o que Os Replicantes fizeram historicamente, que é: não se furtar a estar de um lado, politicamente falando. Eu acho que essas bandas que evitam misturar a sua obra com a política [...] perdem uma perspectiva interessante, que é a perspectiva de interagir com a sociedade. Os Replicantes nunca tiveram medo tomar posição, ter um lado. [...] O que enfraquece qualquer obra artística é ficar eternamente nesse não-lugar. Manifestações

Gerbase: Eu vi de duas maneiras. Eu achei saudável que tenha acon-

tecido essa livre organização pela internet. [...] Eu acho que o governo se sentiu devidamente pressionado, demorou para reagir, mas os resultados foram de um modo geral positivos, barrando o aumento das passagens de ônibus, fazendo o governo ver que não pode tomar medidas que vão de encontro ao que a população quer e que cedo ou tarde essa população pode voltar às ruas. [...] Por outro lado, eu vi que houve uma responsabilização de ditos anarco punks ou punks, misturados às manifestações. Eu não vi vídeos que me provassem cabalmente que eles estavam entre os piores vândalos. Se eles estavam, tem alguma coisa errada acontecendo. Normalmente, o que os punks fazem é manifestar-se esteticamente e abrirem a boca, berrarem. Agora o negócio de bater nas pessoas, depredar, é coisa de careca, é coisa de movimento Oi!, que é movimento tipicamente fascista. [...] Eu não sei se os punks depredaram alguma coisa, se depredaram não são punks de verdade, por que tem que ser punk, mas não ser burro. Trocas Wander e Gerbase Gerbase: Lá em 89, depois da gente gravar o Papel de Mau, o Wander decidiu largar a banda pra ser um artista solo. Nós pensamos o que íamos fazer, colocar alguém no lugar dele pra cantar? O que seria muito difícil, porque ele era a cara dos Replicantes, e eu pensei, bom já que eu canto, faço um monte de backing e sei as letras, eu vou tentar. Aí veio a ideia de trazer o Cléber pra tocar bateria, e resolvemos fazer uns dois shows: se o público não me matasse, a gente continuava. Heron: Quando o Wander saiu a primeira vez, nós não precisamos procurar um vocalista, porque o Gerbase queria cantar e o Cléber

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era nosso produtor, tocava com o Cláudio nos Cobaias né, então foi outra escolha tranquila. Gerbase: Aí em 2002 eu tava travando a banda, tava cansado, dando aula, e não tava mais disposto a encarar viagens de 6 ou 7 horas. Heron: E incrível que, quando o Gerbase disse que ia sair da banda, o Wander apareceu assim, sabe, por coincidência, apareceu, na Vórtex lá. Cléber: Ele já veio com a despedida sugerindo o novo vocalista. O Gerbase chamou uma reunião e disse assim: “Bá, não vai dar, eu tô com muitas coisas e tal, tô afim de sair da banda, porém, eu acho que o Wander podia voltar e ser o vocalista da banda”. Gerbase: Já tinha falado com o Wander, ele topou. Aí eles fizeram

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uma reunião lá e o Wander voltou. Eu negociei assim: eu tô saindo, mas tô devolvendo o vocalista original. Nunca houve uma briga cruel, tremenda entre Os Replicantes, as pessoas simplesmente fizeram opções com o passar do tempo. O Wander quis sair porque ele tem essa coisa de ser realmente um músico profissional, ele vive da música. Nenhum outro dos Replicantes vive da música, nunca viveu e não vive ainda, todos tem sua profissão ou suas coisas pra fazer. Os Replicantes são uma coisa importantíssima na vida de cada um, mas não tiram dali o sustento. Então, Júlia Barth Cleber: Depois da saída do Gerbase, o Wander retornou pra banda. A gente fez as tours europeias. O Wander meio que dividia as tarefas dele entre os Replicantes e a carreira solo. E a gente teve a ideia

de fazer um show com mulheres cantando Replicantes. A gente convidou várias vocalistas de bandas e amigas para escolherem músicas e a gente fazer esse show no Ocidente. E a Júlia já como vocalista dos Alcalóides, que já tinha assistido ao primeiro show dos Replicantes, diz a lenda, sentada em uma cadeira, enquanto bebê, fez esse show. Depois rolaram outros shows, a gente fez um na Redenção, no dia do Rock, e a Júlia substituiu o Wander. E a identificação dela com os Replicantes foi super legal. Heron: A escolha de Júlia foi perfeita. Jamais o Gerbase e o Wander vão ficar chateados, porque ela é amiga deles. E com o público, a gente sabia que a Júlia era melhor que os dois. Júlia: Eu acho que a gente se identificou nos show que a gente fez juntos. Tinham várias outras


vocalistas que eram cantoras melhores do que eu. Mas eu acho que tinha uma coisa, de repente de uma pegada, que é de amor mesmo a esse estilo musical. Sabe, nas minhas outras bandas eu tocava Replicantes, eu gostava muito. Claudio: Essas coisas aconteceram ao natural, nada foi planejado. No Replicantes nada é planejado. Cléber: A entrada da Júlia tem duas situações, uma que é alguns fãs antigos dos Replicantes que pensam “Ah, uma mina cantando Replicantes, nada a ver.” Aí os caras vão no show e comprovam que a Julia é muito mais macho que os

outros dois. E o segundo lugar é que ela trouxe um público novo pra caralho pra banda. Essa identificação do público feminino com uma vocalista, é legal.

legais. Eu destacaria “Solo é pra minhoca”, que eu acho muito legal e essa última, “O inverno está chegando”, que tem um clipe feito com imagens das manifestações.

Júlia: Eu não fico magoada quando falam mal de mim, mas eu fico quando falam que Os Replicantes não são uma banda sem eles. Por que eu acho uma falta de respeito com os Replicantes que estão aqui.

Cláudio: O Gerbase e o Wander saíram, porque eles precisavam sair, fazia parte da vida deles. Não foi por inimizade ou por brigas. As pessoas têm que entender. Nós queremos continuar. Eles são tão sinceros quanto nós. E continua com a mesma ideia do início, que é tocar o que se gosta. Se não, a gente não estaria mais tocando. Então todas essas coisas se encaixam pra que exista uma paixão no ar, que é Os Replicantes.

Gerbase: Vendo Os Replicantes tocando, com a Júlia, dá pra ver que é Os Replicantes de sempre, que ainda apresentam uma novidade muito grande que é a Júlia. E tem algumas músicas novas muito


UMA NOITE, 30 ANOS

Uma segunda-feira chuvosa foi o dia 7 de dezembro. As preocupações de Carlos Gerbase sobre se fazer um show numa segunda se mostraram desnecessárias. Nove da noite, Opinião lotado. Gente velha, gente nova, junta e separada. Dava pra ver quem era do tempo de qual vocalista pela camiseta, quase um uniforme. Antes do show foi exibido um documentário com a história da banda. Em cada clipe ou trecho de música, o público gritava e cantava junto, antes mesmo dos Replicantes pisarem no palco. Nos primeiros acordes, Cléber, Heron, Cláudio e Júlia encontraram uma platéia com sede de roda punk. Gerbase e seu clássico macaquinho cinza foi o primeiro convidado a subir no palco. Nos vocais ou na bateria, em clima de quem tá matando a saudade. E matou, se jogando do palco nos braços dos fãs que o carregaram até o fim daquela música.

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Na sequência, Wander Wildner e a gritaria que fez dos Replicantes a banda que é. Com a entrada da Luciana Tomasi, o amor em fúria escorria pelos amplificadores. A roda não parava. A banda não parava. Com certeza, iríamos juntos até o sangue jorrar. Todos os Replicantes de todos os tempos, num show que fez uma multidão atravessar a noite pulando. Banda punk emenda a última na penúltima. Cléber começou “Festa Punk” e todo mundo achou as forças que tava guardando pro final. Na pista, o vapor que saía dos corpos em movimento refletia a luz do palco. Obrigado por virem. Mas ainda não. A platéia não deixava, não queria que acabasse. Um bis de verdade, em que a banda volta pro palco sem ter guardado o hit no bolso. Cláudio Heinz, incansável, pega a guitarra e pergunta: mas o que é que a gente vai tocar? Até o fim das últimas cinco músicas, o público responde: punk, Cláudio. Por mais 30 anos, por favor.


SOBRE LA

LIBERTAD por Jéssica Ocaña

P

az apenas foi.

Há quatro anos, no Brasil, Paz Berti foi parar em Florianópolis de uma carona que pegou em Buenos Aires, onde morava até então. Estava formado em psicologia. E sentia que estava na hora de colocar uma mochila nas costas e ir.

disse que Florianópolis era legal pra gente chegar pela primeira vez. Foi maravilhoso.” A capital catarinense teve uma importância muito grande na vida de Paz. Foi lá que escutou pela primeira vez, numa boate, o funk. Não se abalou muito quando ouviu as pessoas comentando que o funk era música ruim ou quando diziam, com uma carga de preconceito, que era música de SUBÚRBIO. O que rolou foi exatamente o contrário, “Bah, daí foi onde eu mais me entusiasmei pra saber do funk.”

“Na verdade foi meu irmão que

O cronograma do mochilão mu-

O destino dele era a Colômbia. Mas no meio do caminho se deparou com aquele batidão, as letras estranhas que não entendia.

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dou quando lhe contaram que a origem do funk era carioca. Depois de seis meses em Florianópolis, ele se mudou para o Rio de Janeiro, para o Morro da Providência, favela situada na zona portuária da cidade. Paz não parou de procurar, participar, conhecer. Até que, então, descobriu os bailes funk e, a partir daí, entendeu o funk como uma cultura, uma cultura SUBURBANA. Paz é natural da Patagônia e morava no subúrbio. Mas nunca morou em favela antes de chegar no Rio. Quando se mudou pra lá, em 2010, começou a compreender as


Já há um ano na cidade, Paz participou do #OcupaRio, um dos braços do movimento mundial #OccupyWallStreet que denuncia a desigualdade econômica e social. “Estávamos acampando na Praça da Cinelândia, e eu sabia que existia um grupo de pessoas que veio do punk que estavam fazendo um estilo de funk protesto”, relembra Paz. Esse grupo era o Anarco Funk. “Era mais ou menos o que eu queria fazer.” Chegou lá no meu morro, prometendo luz e água. Só quis ir lá na vila pra iludir a gurizada. Dentro da ocupação, Paz conheceu o pessoal do grupo e começou a militar com eles. Ele já gravava e fazia seu próprio som, suas bases, na brincadeira, mas foi depois do Anarco Funk que começou a fazer

shows nas favelas. O coletivo Anarco Funk está na ativa há dez anos (Paz está com eles há três). Um grupo de pessoas começou a militar na favela, com o mas na favela ninguém se interessava por esse som. Por causa do entusiasmo em querer divulgar o anarquismo, o grupo trocou o estilo mais pesado por outro que a favela já ouvia. Começaram a tocar funk com letras anarquistas. Apesar de até hoje manter contato com os meninos - Paz deixa bem claro que rola um respeito absurdo pelo coletivo - sua ideia era criar seu próprio projeto, com suas ideias que vão além do anarquismo. “Anarco Funk fala exclusivamente de uma linha política. Eu, particularmente, sou libertário. Sou tão libertário ao ponto de não conseguir ser anarquista.” O projeto de Paz possui muitas vertentes, “Não queria ser chamado de Anarco

Funk. Eu não tenho por que pegar esse projeto”. Para Paz, o pessoal do coletivo são os verdadeiros anarquistas, anarquistas 24h. “Anarco Funk é foda, é isso. Respeitando isso, eu faço um projeto paralelo.” Paz já estava com uma ideia de projeto que articulasse o que estava fazendo com o coletivo do Rio de Janeiro, mas que também misturasse ritmos latino-americanos. “Há um tempo eu já queria fazer música experimental. Como poderia resultar o funk misturado?” Foi então que retornou à Patagônia, no ano passado, depois de seu último show com o Anarco Funk e a banda anarco queer Solange, Tô Aberta!. No mesmo ano, veio à Porto Alegre para a Feira Anarquista. Fez shows com o Anarco Funk, mas também com algumas letras e bases que já estava começando a compor. Eles dizem representação, nós

ilustração Lucas Barbosa

letras do funk e entendeu que elas eram carregadas de assuntos que as pessoas não queriam ouvir.


dizemos experimentação. Eles dizem identidade, a gente diz multidão. Eles dizem crise, nós dizemos revolução. Paz define seu trabalho como funk ativista libertário. O anarquismo fez parte da sua formação e ele se identifica com a ideologia, mas acredita que “Não podemos nos fechar. Tem que ir além disso. E acho que é nesse além que a gente tenta trabalhar.” Uma ideologia sem paredes. Para ele, o próprio anarquismo se fechou muito. Precisa ter mais abertura, mais tolerância pra galera que quer aproximar. O próprio fato de muitos teóricos anarquistas serem heterossexuais já mostra que Paz é minoria dentro da ideologia. “Acho que o anarquismo acaba quando falam que tal coisa não é anarquismo. O anarquismo tá falando exatamente de quebrar todas essas coisas”. Para Paz, ainda existe muita contradição dentro do anarquismo. Esquerda, direita, tudo que é partidário não faz parte da vida dele há muito tempo. O que se aproxima mais da política séria de hoje é o anarquismo e o que ele faz, que é libertário. “O resto é só mentira. O mesmo rolê de sempre. Machista. Não me identifico nem um pouco com o resto”. A proposta de Paz é criar algo que seja conceitual, criar umas bases, com um DJ que toca em boates, toca pop, toca funk e “sempre falando de uma linha que é a libertária, em que a galera mais se identifica.” O artista já fez teatro e participou da Escola de Canto Coral do Rio de Janeiro. Isso influenciou não só sua música como sua performance. Em seus shows, leva muita cor, muita originalidade, sua ideia é “Representar a nível visual tudo

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aquilo que queremos falar. Da vida, da realidade social, da sexualidade. Dar pau no estado. Uma realidade que eu vejo, que quero acordar nas pessoas.” Às vezes recebe, às vezes, não, mas Paz sempre está lá, do mesmo jeito, tocando com a mesma energia. “Como artista independente, tem que ralar pra caralho. Para não cair na porra do sistema e vender o cu pra qualquer um, é melhor trampar pra caralho.” Quem o acompanha em muitos shows e trabalhos são seus amigos MC Cholita, que conheceu no #OcupaRio e DJ Frede Beck, que conheceu esse ano. Além do produtor do seu disco “Sabote”, Vini Alves. Quem já foi em algum show dele, sabe. É multidão, é ajuntamento. Corpos. União. Liberdade. “Chegamos com roupa e queremos que todo mundo tire na hora. Isso é libertário. É isso que a gente propõe. Sabotear o Estado. Nos juntar.” É a classe libertária que não quer classificar, é a classe libertária que quer se misturar. Nos juntar. E depois? Esse talvez seja o maior desafio, a parte mais complicada e impossível de controlar no ativismo de Paz. Para ele, é muito fácil a gente tudo junto misturado se divertindo e passando bem, mas e depois? E quando cada um vai pra sua casa? “Aí que eu vi muito fracasso. Ser anarquista oito horas por dia que nem trabalho escravo é muito fácil. Quero ver ser anarquista 24h, quero ver não ser machista, não ser homofóbico 24h, não ser consumista inconsciente 24h. Eu vi coisas absurdas: vi anar-

quista comendo no Mc Donald’s e tomando Coca-Cola e sendo feliz.” As contradições estão aí, de fato. “Machismo tá tão instaurado, tão em nosso inconsciente que, às vezes, eu me surpreendo com as pessoas que estão perto de mim. Eu preciso explicar.” Se a classe média consome pornografia, porque não curtir um Furacão 2000 que preza pela putaria? O funk, pra ele, não começou com as músicas de putaria, “Putaria no sentido de machismo grotesco.” Mas o machismo é apenas um dos preconceitos que Paz luta contra. Seu protesto vai também contra as contradições do próprio funk. “Hoje, tem uma guria fazendo publicidade pra camisinha e a gente fala em distribuir camisinha de graça e ela faz publicidade disso, sabe. As pessoas tem que pagar por uma coisa que o Estado tinha que dar. Tomar no cu dela.” Além do funk ostentação, “Ai, como explicar”, que canta sobre carros, mulheres e dinheiro. “O funk é um estilo musical que vinha com outra linha e acabou caindo na mesma raia que o capitalismo oferece.” Isso tudo tem a ver com a ascensão financeira da antiga classe C, agora, nova classe média. As pessoas que não podiam consumir, agora consomem. É aquela velha história: o capitalismo se apropria do que pode gerar lucro e o transforma. “Não vende para a classe média falar de um funk manifestação, pobreza na favela, a polícia que bate. Falar disso não é comercial para o funk.” A velha classe média até possui uma música própria feita


pra ela. “A gente cai em pau na velha classe média que vai ao baile funk e prefere ficar no camarote, acho absurdo, patético. Nada pra eles!” Essa apropriação também aconteceu no hip hop e no samba, ritmos saídos da periferia, lugares de opressão do Estado, que acabaram caindo nas graças do capitalismo. “As pessoas se incomodam em escutar sexo no funk, mas não se incomodam em ver um cara falando de amor, [tocando um violão] olhando pra porra nada, transmitindo um amor capitalista, um amor machista, um amor mentira e as pessoas aplaudindo.” Mas o que impera mesmo é o repúdio ao Estado. É ele que devemos sabotar. “Existem alternativas de hackear o sistema. Temos que ser hackers do sistema.” Seu projeto não se limita apenas às músicas de protesto, contra as injustiças que vê e vivencia no dia a dia. Ele também dá oficinas de funk no subúrbio, ensina os moradores a criar, compor, rimar. Recentemente, viajou à Selva Misionera: Tento chegar nesses lugares. Viajando pela América Latina, vendo as injustiças e criando a partir delas”.

JOÃO AMA JOSÉ

JOSÉ AMA MARIA MARIA AMA ANA RITA E ANA RITA AMA JOAQUINA

E A JOAQUINA, ELA NÃO AMA NINGUÉM

E ASSIM ELA ESTÁ BEM

O Estado é o inimigo. “O tráfico existe porque o Estado propõe ele como alternativa de consumo”. Quantas alternativas o Estado dá para aquele menino de 15 anos vendendo droga? Quantas alternativas o Estado dá para quem quer sair da favela e trampar? “Eu vou acusar um cara da favela de ser traficante quando os principais traficantes tão no Estado?” Onde começa a primeira discriminação? Na escola. “Respeito os professores por serem trabalhadores, mas são eles que alimentam um sistema de educação absurdo!”

CONSIGO MESMA E SOZINHA

O baile funk é de graça. Lá, tem bebida e drogas, você que escolhe se quer usar. O funk veio de uma classe social oprimida. Que se identifica e se diverte. “E se a gente reprime o funk, tu tira praticamente tudo do cara.”

MULHER COM HOMEM HOMEM MULHER

E A JOAQUINA ELA AMA TODO MUNDO

SEU CORAÇÃO É DO MUNDO E ASSIM ELA ESTÁ BEM, SOLTINHA HOMEM COM HOMEM MULHER COM MULHER

HOMEM COM HOMEM, MULHER MULHER


A

cobertura das manifestaçþes em Porto Alegre

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por Cristiano Goulart, enviado via iPhone

E

u mal conseguia abrir os olhos no meio da correria. O cheiro do gás lacrimogêneo, em meio à chuva, dificultava muito a respiração. Ao meu lado, corriam quatro rapazes carregando um jovem que passava mal. O sentaram no cordão da rua. Imediatamente, chegou um outro garoto com uma garrafa pet. Provavelmente com vinagre. O vinagre salva. Na manifestação do dia 20 de junho, éramos eu e mais cinco colegas os responsáveis por cobrir, para a principal rádio do Estado, um dos acontecimentos mais importantes das últimas décadas no Rio Grande do Sul. Outros cinco colegas faziam a cobertura das mobilizações em São Paulo, Brasília, Salvador, Recife e no Rio de Janeiro. Naquele dia, o Brasil parou.


Supõe-se como artigo do contrato social do repórter, independentemente do meio do qual este se utilize para fazer a divulgação das informações apuradas, o compromisso com o relato verossímil do acontecimento jornalístico. Talvez seja este o maior desafio a ser superado por quem exerce ou se propõe a exercer a profissão. Com a emergência de tecnologias que permitem a divulgação do fato em tempo real, a chamada “prestação de serviço” nocauteou, durante as manifestações, a possibilidade de demonstrar que 20 mil pessoas protestando nas ruas são mais importantes do que agências bancárias depredadas. A construção da notícia impressa, que só é divulgada no dia seguinte, permite essa reflexão por parte do repórter. No entanto, o mesmo jornalista teria muita dificuldade de criar similar reflexão na plataforma online ou no rádio, como era meu caso. Por dois motivos: quando a manifestação

está acontecendo, não é o momento mais apropriado para refletir sobre, mas de empenhar-se na descrição do fato. No dia 20 de junho, o protesto começou às 19h e terminou por volta da meia-noite. Mais de 70% do período se resumiu a confrontos com a polícia e depredações. O grande problema é que os veículos organizavam-se à espera e procura desses acontecimentos. A prometida reflexão sobre a mobilização popular, agendada para o dia seguinte, dava espaço à caça aos prejuízos que, por sua vez, maculavam o acontecimento histórico. Os jornais estampavam, sem compreender, as depredações às agências bancárias. Do outro lado, as propostas mídias alternativas cometiam a mesma bestialidade; mitificavam todas as ações dos manifestantes, abstraiam-se de capacidade crítica sobre os atos e ignoravam fatos que tomavam con-

ta de grande parte das mobilizações. Se nos grandes veículos os radicais apareciam apenas com paus e pedras, na mídia alternativa e jornais universitários, estes eram exibidos erguendo bandeiras, confrontando a polícia e jamais envolvidos em depredações. Em ambas situações, a atividade jornalística sofreu um golpe e fomentou a alienação. Às 21h58, eu estava em frente à agência do Banrisul na Avenida João Pessoa. Um rapaz de pele branca e olhos claros passou correndo com o rosto coberto por uma camisa preta. Os vidros do banco já estavam aos pedaços e a porta, desnecessária naquele momento, foi completamente destruída. Uma multidão atirava pedras e poucos tentavam impedir a ação. A cerca de 200 metros, avançava a Tropa de Choque que, neste momento, já passava da esquina com a Jerônimo de Ornelas. Ouvíamos o som dos

IGOR NATUSCH COBRIU AS MANIFESTAÇÕES PELO SUL21 Foi um dos momentos mais intensos da minha vivência como jornalista até o momento. Durante o mês de junho, parecia que tudo tinha entrado em uma voltagem particular. E só mais tarde, depois que a poeira baixou, deu para entender mais claramente como tudo aquilo era a culminância de um processo que vinha de muito tempo - na minha leitura pessoal, pelo menos desde outubro de 2012, com o incidente envolvendo o Tatu Bola no centro de Porto Alegre. Dentro da nossa leitura, era difícil atuarmos de forma destacada em uma cobertura de tempo real, pelas limitações de pessoal e tudo mais - mas podíamos fazer uma cobertura de mais conteúdo, o que passava por oferecer contexto ao que estava acontecendo e tentar

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documentar os protestos tão bem quanto possível. A nossa abordagem crítica à atuação do Estado, na forma da Brigada Militar, é algo que eu também considero um acerto, tanto que pude perceber uma guinada de outros veículos nessa direção - evidentemente não condicionada pelo Sul21 diretamente, mas por uma demanda da opinião pública que nós tivemos a felicidade de perceber primeiro. Vendo em retrospecto, eu acho que além desta questão do imediatismo que não tivemos, talvez pudéssemos ter ido mais fundo na contextualização mesmo - resgatar material antigo nosso, por exemplo, mostrando as origens dos protestos contra o aumento de passagem, algo que nós cobrimos bastante desde o início.


Cristiano Goulart cacetetes batendo no escudo. Dois helicópteros sobrevoavam o local. As bombas de gás lacrimogêneo cruzavam o céu. Mais um avanço da polícia e os manifestantes recuaram um pouco. Agachei-me e entrei pela porta da agência. Fiquei atrás de uma parede me protegendo das pedras e objetos que vinham da rua. Quase não conseguia abrir os olhos. Peguei o celular no bolso - a mão tremia -, apontei-o na direção dos manifestantes que quebravam a agência e registrei a ação. Entendia perfeitamente o significado daquela atitude, da revolta, da não identificação com o sistema. Mas a descrição daquele momento já não dependia mais apenas de mim. Na redação e, posteriormente, na Internet, a imagem adotou um significado completamente diferente aos olhos de uma

elite que há séculos se beneficia e “administra” a pobreza no país. A produção de conteúdo multiplataformas é uma tendência em todos os veículos de comunicação. A mudança não necessariamente reduziu o número de profissionais nas redações, mas provocou uma diminuição considerável na faixa etária e contribuiu para uma perda da qualidade dos boletins noticiosos. Contribuiu? O repórter multiplataforma de rádio tem acumulado diversas funções, que vão desde a tradicional intervenção radiofônica até o registro em imagens do fato, além da publicação desse material na Internet. Obviamente, as multitarefas acumuladas não refletem no bolso; portanto, há uma economia significativa para os

veículos, ao passo que ampliou-se o espaço do rádio e não houve representativo aumento de profissionais. É provável que o catalisador do processo de ampliação das funções dos jornalistas seja o celular. Durante a década de 90, o aparelho móvel permitiu ao repórter a sincronização entre o fato e o relato, haja vista que o profissional poderia, desde então, reportar do local do acontecimento jornalístico e no momento em que este estivesse ocorrendo. O uso do celular tornou-se imprescindível para o rádio. Com o aperfeiçoamento e agrupamento de novas tecnologias ao aparelho, estenderam-se também as possibilidades do repórter. Entre os anos de 2000 e 2010, as principais rádios gaúchas já possuíam sites

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GLAUBER FERNANDES COBRIU AS MANIFESTAÇÕES PARA OS VEÍCULOS DO GRUPO BANDEIRANTES DE COMUNICAÇÃO A participação nesse tipo de cobertura representou para mim um grande episódio na minha carreira jornalística. Fazia muito tempo que protestos desse tipo não eram registrados no Brasil (acredito que último grande ocorreu durante o “Fora Collor”, ainda no início da década de 90) e por isso me deu a oportunidade de acompanhar um momento importante da história brasileira. A minha prioridade era trazer informações para a rádio. No entanto, em uma era de redes sociais e avanços tecnológicos é quase impossível ficar apenas com essa função. Por isso acabei auxiliando na cobertura online com postagens no Twitter que continham textos e fotos, além de imagens de vídeo já que tínhamos um acesso a locais que as televisões não chegavam.

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na Internet e, neste mesmo período, as potencialidades do celular mudaram completamente a rotina dos produtores de conteúdo. A questão é: o radialista perde tempo de apuração com a preocupação de alimentar outras plataformas ou este novo conteúdo complementa o relato do acontecimento jornalístico? Creio que as duas afirmações estão corretas, mas é preciso achar um ponto de equilíbrio dentro desta realidade. A minha função principal era registrar em fotos e vídeos a manifestação daquela noite. Saí da redação pouco antes das 17h. Fui para o 1º Batalhão de Polícia Militar, no Menino Deus, onde quatro manifestantes detidos em flagrante supostamente cometendo crimes durante os protestos anteriores deveriam se apresentar à polícia. Às 18h, todos eles já haviam chegado. Um deles estudava economia na UFRGS e levou um livro. Chegou, apresentou-se à polícia e pediu para ir ao supermercado, estava com fome. Voltou com duas sacolas com pães, bolachas, refrigerantes, e salgados. Convidou-me para lanchar com eles. Recusei, estava com a cabeça em outro lugar. Entrei no ar, relatei que os rapazes já haviam chegado e parti para o Centro Histórico, onde já estavam outros dois colegas. Comecei fazendo um vídeo curto, de 50 segundos, onde a câmera (de IPhone) passava pelo meio da multidão mostrando as principais reivindicações dos manifestan-

tes expressadas nos cartazes; “Foda-se a Copa” e “Queremos escolas padrão Fifa” se destacavam. Fiz 8 cortes, editei-os direto no aplicativo IMovie, inseri as vinhetas da rádio, já salvos no aparelho, coloquei o crédito das imagens, e mandei, por e-mail, para a redação. Os meios de comunicação não perceberam esse fenômeno, que culminou nos protestos, desenvolvendo-se. E, quando surgiu, erraram nas escolhas. As depredações, condenáveis e inúteis na proposta de mudança do status quo, tornaram-se a cereja das emissoras. Ouvi manifestantes sendo chamados de bandidos em uma rádio. Lembreime da redação parar, à tarde, para ouvir o comentário infeliz do Lasier Martins. Porque quem paga esse conservadorismo é quem vai para a rua. Éramos nós. E na noite de 20 de junho era isso que acontecia. Meu crachá ficava no bolso interno do casaco. Tiramos todas as identificações do celular e, para entrar no ar, tínhamos de tentar não ser notados. O clima estava pesado para os repórteres dos grandes veículos. A aversão não era apenas ao que estava sendo produzido em termos de conteúdo atualmente, mas também à trajetória dos veículos. E as histórias são trágicas. Neste período, jornalistas foram confundidos com instituições. Relatar, registrar e se esconder. A realidade era esta. A caminhada dos manifestantes começou tranquila. Saiu da Prefeitura, subiu a Borges até a Salgado, pegou a João Pessoa até a Ipiranga e aí o bicho pegou. Havia um exército em frente ao prédio da Zero Hora. Era muito policial. No outro sentido da Avenida, em frente à Empresa Pública de Transporte e Circulação


(EPTC), outro grupo de militares fazia a barreira. Eu via as pessoas mais receosas voltando na direção da Avenida João Pessoa. Sabiam o que iria acontecer. O patrimônio do Grupo RBS era impenetrável. A bateria de um dos meus celulares estava terminando. A “comissão de frente” da manifestação se aproximava da área de confronto. Corri para uma rua atrás da Ipiranga, na Prof. Freitas e Castro. Minha intenção era chegar até o prédio da ZH por trás, pegar um celular novo e voltar. Logo que acessei a rua, vi dois agentes da Defensoria Públi-

ca - no protesto anterior, as reclamações por excessos cometidos por parte da polícia foram muitas. Um dos agentes abordou-me para avisar que a passagem estava impedida pela polícia; respondi que trabalhava no prédio da ZH e precisava ir até lá trocar de celular. O defensor pediu ajuda para eu atravessar o grupo, já que a Brigada Militar os impedia de cruzar a rua. Um absurdo. Fiz sinal para que viessem comigo e seguimos na direção da ZH. Um militar ergueu a arma em nossa direção e eu gritei: “Sou repórter! Tô indo

pra redação!”. “Não te perguntei, filho da puta. Podem voltar”, respondeu-me o brigadiano, fazendo sinal para recuarmos. Voltei. O que aconteceu na Ipiranga foi o mesmo registrado nas manifestações dos dias anteriores: balas de borracha, gás lacrimogêneo, bombas de efeito moral, gente ferida, desmaiada, pedras voando na direção da polícia, lojas sendo quebradas, revolta. Eram mais de 20 mil pessoas sendo evacuadas. E esta evacuação custou e ainda custará muito caro.


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GENTE DE PRETO


O passado e o presente dos Black Blocs

por Caetano Cremonini e Murilo Zardo


Em São Paulo, na noite de sexta-feira, 25 de outubro de 2013, durante um protesto organizado pelo Movimento Passe Livre, o coronel da Polícia Militar Reynaldo Simões Rossi foi agredido por um grupo de black blocks. De acordo com nota divulgada pela PM, o coronel teve “a clavícula quebrada e muitas escoriações na região da face e da cabeça”. No dia seguinte, a presidenta Dilma Rousseff, por meio de seu reativado Twitter, prestou solidariedade ao coronel Rossi e classificou as ações como “barbáries antidemocráticas”. Dois dias depois após o pronunciamento de Dilma, o ministro-chefe da Secretaria Geral da Presidência, Gilberto Carvalho, trouxe panos quentes ao debate. Segundo ele, o governo brasileiro buscaria interlocutores para abrir o diálogo com os black blocks e, quem sabe, “compreender este fenômeno social”.

Dentre as novidades que surgiram no Brasil após a explosão de junho de 2013, poucas têm causado tamanha polêmica quanto esses grupos de jovens que, vestidos de preto e com os rostos cobertos, misturam-se às manifestações, entram em confronto com a polícia, quebram vidraças de agências bancárias e concessionárias de veículos e atacam ônibus e lixeiras. A política institucionalizada tem tido dificuldades de lidar com esse novo fenômeno social. Exemplo disso foi a reação ao grande protesto dos professores do Rio de Janeiro na noite de 8 de outubro, que terminou em uma ação black blocks no centro da cidade. O presidente nacional do PSTU, Zé Maria de Almeida, publicou um pequeno texto no qual acusava os black blocks de prejudicar as lutas dos trabalhadores e ajudar o trabalho policial; na mesma linha, dois dias depois, Roberto Robaina, membro da executiva nacional do PSOL, escreveu que as ações violentas de depredação do patrimô-

nio por parte de pequenos grupos facilitam a política repressiva. Na contramão, o Sindicato Estadual dos Profissionais de Educação do Rio de Janeiro, linha de frente da greve e diretamente envolvido nas ações, divulgou nota saudando os black blocks. O black blocks, no entanto, não é um movimento político. Trata-se de uma tática, uma ação de guerrilha urbana utilizada dentro das manifestações. Não há um movimento black blocks. De acordo com Bruno Lima Rocha, cientista político, professor e ex-militante da Federação Anarquista Gaúcha, a tática black blocks é uma espécie de versão urbana do foquismo (conceito de criação de diversos focos de revolução, inspirada na frase de Che Guevara de 1967 sobre criar “um, dois, três, muitos Vietnãs”). E sua origem não está no Brasil. Schwarzer block O ano era 1980, a Guerra Fria

Michel Cottez

O

Brasil pós-junho


dividia o mundo entre leste e oeste e existiam duas Alemanhas. Foi no lado ocidental que surgiram os primeiros black blocks. Na época, o autonomismo alemão, movimento político de esquerda contrário à burocratização dos Estados modernos e que propunha experimentos descentralizados de gestão, tinha dois grandes pilares: os squats e a República Livre de Wendlad. O primeiro deles era a ocupação de imóveis vazios para a moradia coletiva e criação de centros culturais, ação que começava a pipocar nas grandes cidades do país. Já a República de Wendland, experiência que durou entre maio e junho, foi um acampamento de ativistas em meio a uma floresta, na região de Wendland, onde seria construída uma usina nuclear. Em meio à ofensiva policial que atingiu os squats e a República de Wendland, surgiu uma nova força de autodefesa dos movimentos. Sua estreia foi no 1º de maio de 1980, numa manifestação em Frankfurt que terminou em confronto com a polícia. A partir daí, grupos que vestiam preto e se utilizavam de armas improvisadas para se protegerem da ação policial tornaram-se frequentes nas ações dos autonomistas alemães. Em 1981, foram chamados de schwarzer block (bloco negro) por um promotor público. O nome caiu na mídia e passou a ser utilizado para denominar aqueles que compunham a parte mais violenta das manifestações. Nos anos que se seguiram, a Alemanha viu diversas ações black blocks – tornaram-se famosas as mobilizações de Hamburgo (1986) e as de Berlim Ocidental, em 1987 e 1988, em resposta à visita do presidente-ator dos EUA, Ronald Reagan, e à reunião do Banco Mundial, respectivamente. Pouco tempo depois, a tática começou a se globali-

zar, popularizando-se nos Estados Unidos. Ações famosas ocorreram em Washington (1991) e São Francisco (1992). Até que veio Seattle. A batalha de Seattle Em 1999, o neoliberalismo vivia seu auge e o sonho da globalização era levado a cabo pelas marcas das grandes corporações. Em Seattle, estava agendada para o dia 30 de novembro uma rodada de negociações da Organização Mundial do Comércio (OMC). Com meses de antecedência, diversos movimentos antiglobalização organizaram um grande protesto com o intuito de impedir o evento. Quando o dia chegou, dezenas de milhares de pessoas dos mais diversos grupos – sindicatos, anarquistas, ecologistas e estudantes – espalharam-se em pontos estratégicos da cidade, bloqueando ruas e cruzamentos e impedindo os delegados de chegarem ao local do encontro. Nesse ato, houve uma importante mudança de postura dos black blocks. Normalmente vinculados à autodefesa do movimento, os blocos dessa vez depredaram vários prédios de corporações – bancos, lojas e cadeias de fast foods – recusando-se, dessa forma, a ser uma força meramente reativa à ação policial. Essa postura gerou conflitos dentro da mobilização, que, extremamente heterogênea, abrigava desde pacifistas convictos até os entusiastas da violência enquanto forma de luta política. Antes de Seattle, jamais havia sido vista uma agressão simbólica tão intensa contra o Capital. Acompanhado de tudo isso, veio, é claro, uma grande batalha urbana que tomou conta da cidade. A rodada da OMC foi impedida, a polícia perdeu o controle de diversas áreas – onde foram estabelecidas Zonas

Autônomas Temporárias – e foi imposto o toque de recolher. O então presidente Bill Clinton, sempre diplomático e jovial, pronunciouse dizendo que os atos deixavam claros que havia interesses que não estavam sendo ouvidos e que o sistema deveria “ser aberto para que essas pessoas participem”. As habilidosas palavras de Clinton não foram capazes de inibir o grande número de ações desse tipo que aconteceram nos anos seguintes. Gênova Depois de Seattle, encontros de grandes organizações, como o FMI e o Banco Mundial, tornaram-se lugares comuns para a presença maciça de black blocks. Assim foi em Washington (2000), Praga (2000), Quebec e Gênova (ambas em 2001), esta última palco de um episódio paradigmático. Se Seattle foi o símbolo da ofensiva black blocks contra os símbolos do grande Capital, Gênova apresentou uma repressão em níveis ainda não vistos contra os movimentos antiglobalização. Em 2001, Silvio Berlusconi era primeiro-ministro da Itália pela segunda vez e Gênova receberia o encontro do G-8 em julho. No mês anterior, protestos haviam acontecido em Barcelona e Gotemburgo. Para essa ocasião, foram mobilizados cerca de 20 mil policiais e foi criada uma “zona vermelha” no centro da cidade – área inacessível aos que não eram moradores locais. Nos dias 20 e 21 de julho, os milhares que foram às ruas o fizeram com uma intenção: entrar na zona vermelha. O resultado do embate entre duas vontades tão distintas foi violência, espancamentos, torturas e um morto – o genovês Carlo Giuliani, morador de um squat da cidade.

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No caos que varou Gênova, Giuliani fazia parte dos black blocks. Quando morreu, 20 de julho de 2001, ele tinha 23 anos. Seu algoz, 21. Em meio à batalha urbana, Giuliani se aproximou de uma land rover policial com um extintor de incêndio em suas mãos. Um dos carabinieri dentro do veículo era Mario Placanica que, a pouco mais de quatro metros de distância do possível agressor, atirou. A bala entrou

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pelo rosto de Giuliani, coberto por uma máscara de esqui. Após o disparo, o veículo policial passou duas vezes sobre as pernas do ativista morto. Com o argumento de legítima defesa, Placanica foi absolvido em 2009 pelo Tribunal Europeu dos Direitos do Homem. Nessa mesma noite, a escola Diaz, que abrigava um grande número de militantes, foi invadida

pela polícia. Na madrugada, cerca de duzentos policiais arrombaram o portão e ingressaram nos dormitórios improvisados. Como resultado, 93 pessoas foram presas e 63 foram levadas ao hospital com lesões e machucados, três em estado grave e uma em coma. Os relatos do local dão a imagem de uma noite de torturas e abuso de força por parte dos policiais. O jornalista inglês Mark Covell, que estava no lo-


cal, relatou em depoimento ter sido espancado três vezes. Ao gritar que era jornalista, recebeu a resposta “você não é jornalista, você é black blocks e nós vamos matar todos os black blocks”. Covell levou como recordação de Gênova um pulmão danificado e oito costelas, uma mão e dez dentes quebrados. Pietro Troiani, então chefe de polícia local, admitiu que coquetéis molotov foram plantados nos pertences dos manifestantes para justificar o ataque à escola. Ativistas denunciaram um grande número de policiais e neonazistas infiltrados, fato confirmado pelo depoimento de um dos comandantes da ação policial, Francesco Colucci, que indicou haver cerca de 600 infiltrados nos atos de Gênova. A forte repressão policial, os infiltrados, a morte de Giuliani: tudo isso levou a um forte questionamento dos black blocks por grande parte da esquerda. Se nunca fora uma unanimidade, o modelo de ações iniciado em Seattle agora era alvo de críticas de todos os lados. Egito Ainda que tenha havido alguns atos black blocks após 2001, é fato que eles foram muito mais esporádicos do que a crescente de ações que vinha até Gênova. Com o movimento Occupy Wall Street nos Estados Unidos, houve uma volta desse tipo de ação à pauta – o jornalista Chris Edge chegou a escrever que os black blocks eram o “câncer do movimento Occupy”, num controvertido artigo. Foi, no entanto, do outro lado do Atlântico que um black blocks gigantesco voltou a chamar a atenção: no final de janeiro de 2013, dois anos após o início dos levantes que derrubaram Hosni Mubarak,

emergiu no Egito uma nada desprezível força de defesa das manifestações frente à repressão do regime de Mohamed Mursi e da Irmandade Muçulmana. Nesse caso, não houve ataque a lojas e lanchonetes multinacionais; os jovens que compuseram o black blocks do país serviram como uma tropa de assalto contra as forças de repressão. Sallie Pisch, repórter do jornal inglês The Guardian, relatou a ação dos black blocks contra a tentativa de violência sexual que ela e outras mulheres sofreram na Praça Tahrir. Em artigo publicado em 27 de janeiro, ela conta que, em meio ao caos de gritos e agressões , viu chegar “homens com máscaras pretas de esqui e longas facas e porretes”, que entraram em confronto com os agressores para protegerem as mulheres. O black blocks foi logo considerado uma ação terrorista no Egito e, em poucos meses, rapidamente desmantelado pelas forças do Estado. Com a queda de Mursi, as ações desse tipo começaram a escassear no país. Ecos da província Dentro do Bloco de Lutas pelo Transporte Público, principal mobilizador das marchas contra o aumento da passagem em Porto Alegre, há um grande número de diferentes coletivos de esquerda – de trotskistas a anarquistas – que, por uma razão estratégica, foram capazes de se manter em unidade durante o ano de 2013. No Bloco, as ações black blocks são extremamente polêmicas. Diego Vitello, militante da Corrente Socialista dos Trabalhadores do PSOL, afirma que a posição de seu coletivo é defender os black blocks da repressão policial, mas,

ao mesmo tempo, fazer a crítica às suas ações. “Nós achamos que a tática dos black blocks não contribuiu para que o movimento de massas, grandes setores da população trabalhadora e da juventude, tomem a História em suas mãos”. Ele pergunta e responde “Quando que se baixou as passagens de ônibus? Quando milhões foram às ruas. Não foi por um número de ônibus queimados”. O cartunista Carlos Latuff, figura com trajetória junto aos movimentos sociais, pensa diferente. Para ele, se os protestos não tivessem sido violentos, o Estado não teria sido incomodado. Ele explica que, ainda que quebrar um banco não tenha grandes funções práticas, a ação se justifica pelo poder da imagem. “É o poder do simbólico. É isso que é muito forte. E isso preocupa as autoridades.” Matheus Crespo, ex-militante do PSTU e atual membro do Movimento Revolucionário Socialista (MRS), também defende os black blocks. Ele analisa que há um caráter progressivo na tática, por negar o modelo de esquerda institucionalizada da política representativa e recuperar o conceito de autodefesa. Crespo classifica os comentários de dirigentes de PSOL e PSTU como ações “eleitoreiras e institucionais”. Nos protestos, o MRS “costuma ficar na linha de frente, junto com os black blocks”, até o momento em que, segundo Crespo, a polícia chega com bombas de gás e balas de borracha. “É aí o que acontece: 95% do ato se dispersa, porque são trabalhadores, pessoas desorganizadas, que não tem culpa por se dispersarem diante da fúria de gente armada e treinada para bater. Mas, quem é do PSOL e do PSTU e saí nessa hora, fugiu. Porque, para nós, é um ato consciente, pois é gente que sabe o que

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ia acontecer e foge. Nós participamos da reação, com certeza”. Ele continua: “A classe trabalhadora tem que passar a entender que, em algum momento, terá que parar de apanhar quieta. E é o papel das organizações de esquerda fazer isso. Não é pedir voto: é fazer esse tipo de coisa”. A militante anarquista Lorena Castilho deixa claro que a organização da qual participa (a FAG, Federação Anarquista Gaúcha) não utiliza táticas black block. Eles legitimam essas ações, sem deixar de tecer algumas críticas. “Para nós, é interessante afirmar que as táticas de rua que visam a autodefesa do movimento social são totalmente necessárias”. Além disso, a FAG defende “a liberdade de todo mundo se colocar da forma que achar pertinente nas ruas”. A discrepância vem com algumas atitudes, por

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exemplo, “o fetiche de quebrar tudo que é vidro, como se isso fosse um ato extremamente revolucionário. Não necessariamente isso produz uma ação importante para a sociedade, para o restante da população”. Lorena deixa claro, no entanto, que a FAG apóia os black blocks e que considera as críticas de partidos de esquerda a essa ação muito mais uma tentativa “de auto -afirmação”. Bruno Lima Rocha, cientista político e ex-militante da FAG, entende que a internet teve um papel importante na chegada do black block ao Brasil. Na história da militância anarquista brasileira, essa tática não é comum. Ela só vai aparecer porque as pessoas tomaram contato com os protestos antiglobalização da Europa e América do Norte no início do século XXI, por meio da rede mundial de computadores. “É

engraçado, os níveis de disparidade social baixam e os níveis de agressividade social de quem está reivindicando aumentam. Até os anos 2000 era o contrário. A gente tinha uma sociedade muito desigual com uma política muito pacífica. Agora, parece que está se equilibrando isso. A cultura social, que é violenta, está se transferindo para uma radicalidade nos protestos de rua.” Os black blocks vão continuar? Tudo indica que, no futuro imediato, sim. Esse novo fenômeno social tem confundido os setores de esquerda historicamente ligados às demandas da rua. Desde sua origem e popularização, a tática atravessou o mundo, provocando polêmicas por onde passou. Estará ela presente no ano que vem? Bruno Lima Rocha é sucinto: “2014 vai ser um ano muito quente, em todos os sentidos”.


DESMILITARIZAÇÃO DA POLÍCIA BRASILEIRA: quanta opressão cabe num camburão? por Lissara Bergamaschi

A

polícia no Brasil mata cinco pessoas por dia e é uma das mais letais do mundo. O dado, extraído pela ONG Fórum Brasileiro de Segurança Pública, retrata claramente um dos maiores problemas que assola hoje a população brasileira: uma polícia ineficiente cuja ação menos feita é proteger e garantir os direitos da população. A segurança militarizada vem se mostrando incondizente com o ideal de direitos humanos. Em hipótese alguma, podemos imaginar que uma corporação policial que utiliza como símbolo a figura de uma fava cravada em uma caveira pode de alguma forma garantir e respeitar os direitos humanos.

O tema da desmilitarização policial vem sendo amplamente discutido já há algum tempo e ressurgiu com força como uma das reivindicações clamadas pelos manifestantes nas recentes manifestações de Junho de 2013 e é um assunto que precisa ser discutido pelo poder político e pela sociedade em geral. Temos, hoje, uma das maiores populações carcerárias do mundo com 550 mil presos - perdendo apenas para EUA, China e Rússia, respectivamente.Comparando o número de presos entre os anos de 2011 e 2012, houve um aumento de 9,39% da população carcerária, enquanto o acréscimo de vagas nas penitenciárias foi de 2,82%. Qual seria a conexão entre o fato de termos uma polícia apoiada sobre

uma estrutura militar, cujas estruturas se baseiam na ideia de que há um inimigo a ser aniquilado e não uma população para respeitar e proteger, e esse dado alarmante que qualifica nosso país como a 4ª nação com maior número de presos no mundo? Esse amálgama entre corporação policial e Forças Armadas no Brasil vem de longa data, intensificando-se nos períodos ditatoriais pelos quais o país passou. Não temos hoje uma polícia que esteja preparada para assegurar ao cidadão seus direitos e cobrar seus deveres de modo salutar. A revista alemã Der Spiegel, por exemplo, escreve em uma de suas matérias que a PM do Rio de Janeiro é “pior do que gangues”. Não

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há nenhuma dúvida de que muitos moradores dos morros cariocas concordariam com a afirmação, ilustrando a frase que já é vista em muitas pixações nos muros das cidades brasileiras: “Na favela a bala é de chumbo”. O sistema carcerário no Brasil tem fortes indícios de racismo e discriminação social para com os mais pobres e grupos minoritários, que sofrem na pele as consequências de uma instituição pública destreinada, corrupta e desumana. Favelas e bairros economicamente desfavorecidos são alvo de ações policiais violentíssimas onde podem ser vistas verdadeiras cenas de uma guerra, a guerra contra o tráfico, que na verdade aniquila a população pobre e reforça um estigma social com o qual ela já se vê obrigada a conviver todos os dias. O Instituto de Segurança Pública (ISP) registrou um aumento significativo do número de desaparecidos nas 18 primeiras comunidades do Rio de Janeiro que receberam UPPs (Unidades de Polícia Pacificadora): de 87 casos em 2007 para 133 casos em 2012, apresentando crescimento de 56%. O recente caso da tortura e morte do ajudante de pedreiro Amarildo na favela da Rocinha executado por policiais militares, figura como um caso dentre centenas que reforçam a ideia de que o policiamento enxerga o pobre como um inimigo a ser exterminado. Segundo dado extraído do 7º Anuário do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 70% da população não confia na polícia brasileira. Muitos policiais são treinados e, em certo ponto, acabam sendo cooptados a exercer autoridade através de atitudes truculentas e arbitrárias.

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A PEC 51 de autoria do Senador Lindberg Farias (PT-RJ) traz à tona a questão da desmilitarização policial, principalmente através de uma reforma na Constituição Federal que alteraria o artigo 144, o qual normatiza o funcionamento da polícia brasileira. Hoje, a Constituição prevê a divisão policial entre civil e militar, o que acarreta em grande percalço à execução de uma política de segurança pública verdadeiramente eficiente. Entre muitas propostas que a PEC levanta estão a perda de vínculo da polícia com as forças armadas, ordenamento em carreira única, execução de ciclo completo de policiamento, autonomia estatal para decidir sobre o formato de suas polícias - podendo criar uma divisão de polícia a partir do tipo de crimes sobre os quais iria atuar ou até mesmo uma divisão territorial que levasse em conta todas as características peculiares a determinado local, ter os direitos trabalhistas dos policiais assegurados, expansão das responsabilidades da União principalmente na educação e treinamento dos egressos. A mudança mexeria com as estruturas básicas da nossa sociedade, mas possui um caráter urgente e vital. Não podemos mais conviver com uma instituição pública que maltrata os cidadãos, que os amedronta. É o que defende a Comissão de Defesa do Consumidor, Direitos Humanos e Segurança Urbana da câmara de Vereadores de Porto Alegre, que realizou um documento chamado “Dossiê manifestações em Porto Alegre: Violações de direitos humanos por parte da Brigada Militar”, no qual levanta inúmeros casos de abusos policiais cometi-

dos contra os manifestantes. Desde o fatídico episódio do Tatu (em que policiais faziam a segurança extensiva de um boneco inflável contra um grupo de jovens manifestantes), onde ocorreu forte enfrentamento de civis e policiais, vemos seguidos episódios de abuso e violência por parte da Brigada Militar acontecerem. Muitos desses fatos foram espalhados pela conveniência e facilidade da internet e alguns, inclusive, contam com filmagens feitas pelos próprios manifestantes. Löic Wacquant, em seu livro “As prisões da Miséria”, condena a forma como a nova política de segurança pública adotada nos EUA a partir das décadas de 80 traz consigo a ideia de que “o Estado não deve se preocupar com as causas da criminalidade das classes pobres (...) mas apenas com suas consequências, que ele deve punir com eficácia e intransigência”. Afinal, existe algo mais presunçoso do que simplesmente ignorar razões sociais que limitam de maneira cruel as possibilidades de um indivíduo? Fechar os olhos ao racismo, ao preconceito que existem hoje na sociedade é negar aos mais pobres a chance de modificar aquilo que os aprisiona. A criminalização da pobreza que acontece dentro da atual política de estado contribui para que a desigualdade social nunca encontre seu fim ou tenha, pelo menos, suas cicatrizes amenizadas. A polícia, como um órgão extremamente preconceituoso, reprime os anseios sociais, quando na verdade deveria funcionar como mecanismo de reforço democrático, não como a mão de um Estado opressor (uma mão com punhos bem cerrados, por sinal).


ENTREVISTA Marcos Rolim Para complementar o tema, conversei com o especialista na área de segurança pública e ex-deputado federal pelo PT entre 1999 e 2003, Marcos Rolim. Com uma reconhecida história na luta em favor dos direitos humanos, ele comenta sobre a necessidade de se pensar na questão de desmilitarização da política e traz argumentos para nos ajudar nesta importante reflexão.

Michel Cortez


Marcos Rolim – O que é típico do Brasil é que nunca deixamos de ter uma polícia desvinculada das forças armadas. Até hoje, de acordo com o artigo 144 da Constituição, as polícias militares estaduais são forças de reserva das Forças Armadas nas quais espelham sua hierarquia e sua formação, uma formação mais voltada para a guerra, para o enfrentamento e o confronto, para a destruição do inimigo. Eu entendo a ideia de desmilitarização da polícia como a independência dessa instituição perante as Forças Armadas, tendo sua própria estratégia de formação, havendo possibilidade de escolha do formato policial feita pelas federações. Ou seja, é possível existir polícias militares, mas sem que permaneçam com essa ambiguidade que hoje possuem por terem essa ligação com as Forças Armadas do país. Outro fato a ser analisado é que em cada Estado existem duas polícias: a polícia civil e a polícia militar. Se nós reduzirmos o termo da reforma das polícias ao simples fato de acabar com a polícia militar, é como se passássemos a ideia de que a polícia civil é boa e isso não é verdade. A polícia civil brasileira tem tantos problemas quanto a polícia militar, talvez até alguns mais. Ou seja, a discussão a ser feita é sobre o conteúdo das atividades dessas polícias. A polícia civil vem do campo da justiça e a polícia militar vem do campo da defesa, sem que nunca tenham conseguido formar no Brasil um

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campo de segurança pública. Então, nós temos duas realidades que são estruturais, orgânicas e simbolicamente vinculadas a campos que não são da segurança pública. Cada uma dessas polícias é responsável por apenas metade do ciclo de policiamento. No restante do mundo, ele é executado na íntegra por cada instituição de segurança pública. Isso, na prática, significa que nós temos não duas polícias, mas sim duas metades de polícia atuando em cada estado e disputando permanentemente uma com a outra, de forma a definir e reforçar suas atribuições. Cria-se, assim, uma beligerância, uma hostilidade entre essas ins-

tituições onde não só não há colaboração entre elas como também existe o boicote entre ambas, porque intuitivamente elas percebem que precisam das atribuições da outra para serem polícia de fato. É muito improvável que esse modelo esquizofrênico dê certo, criando uma forma muito ineficiente de trabalho, pouco atrativo para que as pessoas queiram constituir uma carreira e tudo isso deve ser repensado além da militarização. S - Qual a função que a polícia desempenha hoje na sociedade? MR - Isso depende muito do comando político que é dado a essa força. Historicamente, no Brasil, a PM até mais que a Polícia Civil sempre foi utilizada como polícia de Estado. Quer dizer, ela não é uma polícia da sociedade, que defenda a cidadania, mas sim um instrumento usado pelos políticos, pelos governadores, para garantir a segurança do Estado. Então, é por isso que ela é uma polícia que enfrenta os movimentos sociais,

ilustração Lucas Barbosa

Sextante - No que consiste uma polícia militarizada?


as manifestações; é uma polícia de choque que tem intuito de dispersar protestos. Durante o período da ditadura militar esse perfil foi muito fortalecido: a polícia que trabalhava à procura do inimigo do Estado - o que marcou muito a sua experiência contemporânea no Brasil. Atualmente, no Brasil, nós já temos policiais formados com uma nova ideia e que desejam que haja uma reforma nesse órgão de forma a efetuar uma transição para um modelo mais democrático. A dificuldade, no entanto é muito grande, pois esbarra-se, aí, em limites culturais, institucionais, estruturais que são difíceis de ser superados. Esse é um tema muito difícil, o qual não é nem mesmo bem compreendido pelos próprios gestores de segurança pública dentro dos órgãos políticos, os quais tendem a evitar qualquer mudança que acarrete em desgaste eleitoral. Mesmo os governos do PT, que se imaginava que poderiam fazer reformas mais profundas, na experiência atual, têm mostrado que não fazem, optando por evitar o confronto. As polícias são instituições muito fortes na sociedade pelo volume de pessoas que elas influenciam; elas têm um poder político não desprezível e são capazes de produzir crises. Então, os políticos acabam resolvendo a situação mediante um pacto invisível de “boa vizinhança”. S - Quais os efeitos dessa polícia militarizada para a sociedade? MR - Uma polícia que, como regra, é despreparada, recruta mal, recruta pessoas com baixa formação - uma vez que os salários iniciais são muito baixos -, uma polícia

que é sabidamente violenta - especialmente na abordagem aos mais pobres, mais humildes, negros, homossexuais, travestis, prostitutas, grupos minoritários em geral, geralmente sofrem abordagens desrespeitosas, pra não dizer abusiva mesmo. Há relatos de moradores de vilas daqui de Porto Alegre que afirmam que a polícia entra nesses locais como se fosse uma força de ocupação do território inimigo. Ela não está ali exercendo um papel de proteção ao cidadão, que merece respeito e consideração, não está ali para protegê-los; ela está ali para manifestar a sua força sobre aquele grupo, cujos integrantes são todos tratados como suspeitos por serem pobres e morarem na periferia. Esse padrão de abordagem violento é uma tragédia do ponto de vista do Estado brasileiro porque grande parte dessas pessoas, que se sentem lesadas por essas atitudes, enxergam o Estado basicamente através da ação da polícia. Esse é o setor público que mais próximo deles está, e com o qual mais essas pessoas têm interação. Se esse setor é abusivo, violento, corrupto, essa também é a visão que terão do próprio Estado, o que acarreta em uma enorme perda de crença nos governantes, no estado, na política, não acreditando mais na justiça - e tudo isso acaba estimulando a violência e dinâmicas de vingança pessoal. O fato é agravado nas duas últimas décadas pela questão da corrupção. Não é uma questão de [os políticos] terem melhor ou pior índole que os demais cidadãos, mas sim de que essa proximidade cria oportunidades de corrupção muito mais fortes para esses agentes do

que para o resto da população. Para um cidadão que nunca esteve diante de um traficante com a possibilidade de prendê-lo, ou não, é simples ser um bom cumpridor da lei. S - Quais os principais benefícios que a população pode sentir ao acontecer a desmilitarização desse órgão? MR - Uma polícia eficiente e respeitadora é decisiva para a população, porque ao conseguir isso ela vai ser um instrumento básico para defender e preservar os direitos dos cidadãos, a serviço da comunidade. A gente não pode pensar democracia sem polícia, ela faz parte da experiência democrática, justamente por essa função de responsabilização penal - isso deve existir para aqueles que não cumprem a lei. O fato é que nós não temos essa estrutura policial sendo, inclusive, esse órgão parte do problema a ser superado e não parte da solução. O Brasil teria muito a ganhar com a reforma do modelo de polícia. os policias honestos, não-violentos e dedicados que hoje estão constrangidos dentro das suas instituições também ganhariam muito com isso. S - A que se deve o grande crescimento da população carcerária no Brasil? MR – Temos uma população carcerária gigante e existem aspectos muito peculiares a serem analisados como, por exemplo, sua grande maioria pobre, mostrando um perfil nitidamente social de encarceramento - o que mostra que as prisões no Brasil foram pensadas para aprisionar os

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pobres . Raríssimas são as vezes em que pessoas com maior poder aquisitivo são presas. E não é que a polícia não queira efetuar a prisão de bandidos ricos, mas o sistema que temos não seleciona os crimes praticados pelos ricos no sistema de polícia. Basta pensar na estrutura do 190 ou o que é um registro de ocorrência: quem de nós liga para denunciar um crime de corrupção, poluição de meio ambiente ou sonegação de impostos? Esses são os crimes praticados pelos mais ricos, ou seja, esse sistema de denúncia faz com que chegue até o conhecimento da polícia os crimes praticados pelos marginalizados. Grande parte dos policiais brasileiros correm o risco de passar trinta anos trabalhando sem que nunca cheguem a efetuar a prisão de um bandido ou um suspeito rico pela simples razão de que o sistema de polícia no qual ele trabalha não seleciona os crimes praticados pelas elites. Outro problema que agrava fortemente o aumento da população carcerária é a lentidão da justiça no tratamento dos crimes. Aproximadamente 40% dessa massa carcerária são presos provisórios, ou seja, são pessoas que estão presas sem terem sido julgadas e condenadas, o que se caracteriza como mais uma forma de abuso, nesse caso, praticado pelo poder judiciário. O poder judiciário no Brasil é um poder extremamente conservador. Os juízes e os promotores são de direita, são pessoas conservadoras que não conhecem a realidade social brasileira, aliás, nunca lidaram com o povo.Eu conheço juízes que nunca entraram dentro de um presídio, promotores que não conheceram a

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realidade prisional e passam a vida inteira mandando pessoas para dentro de cadeias. Essa aplicação diferenciada da legislação de acordo com a origem social e a classe dos indivíduos é uma marca da história brasileira que segue presente hoje na aplicação desse tipo de lei. Esse tipo de brecha deveria merecer uma reforma legal no âmbito de garantir direitos aos cidadãos, onde a prisão deveria ser cada vez menos usada, reservada para crimes mais graves que, de fato, exigem a segregação pelo risco que a comunidade sofre com a liberdade do infrator. Pois é a pena de prisão um dos maiores fatores para a formação do crime em qualquer lugar -não nos damos conta, mas ao aumentarmos o número de presos acaba-se por aumentar o número de crimes, porque as pessoas que estão presas vão sair das prisões e, em geral, organizadas em facções criminais que antes elas não conheciam. Ficam habilitadas, por assim dizer, a praticar crimes mais graves. Quando isso não acontece, o sujeito cumpre sua pena é libertado e, ao procurar emprego, o fato de ter sido preso inviabiliza sua reinserção social.Então, todas as portas são fechadas para esse ex-presidiário e ele é empurrado para a sobrevivência ilegal. É um caminho estúpido, mas é uma estupidez apoiada pela maioria da população. S - O dossiê elaborado pela Comissão de Defesa do Consumidor, Direitos Humanos e Segurança Urbana da Câmara

Municipal de vereadores relata diversos abusos por parte da Brigada Militar. Que tipo de ações devem ser tomadas para evitar esse tipo de violência por parte dos policiais? MR - É preciso perceber que isso é uma luta que envolve um processo de muitos anos, na qual não podemos ser conformistas - mas precisamos ter paciência. Não vai se resolver o problema de violên-


cia policial de uma hora para outra, então o grande tema é dar gana e visibilidade para os atos violentos cometidos por parte da polícia, fazer a denúncia, constranger os agressores. A cada momento que essas denúncias são efetuadas, aumenta-se o controle, o Estado vai se mexendo no sentido de tomar ações que punam os responsáveis e a cobrança por parte da opinião pública pressiona os governos a tomarem essas atitudes. Hoje, a possibilidade de filmar os abusos e violências proferidos por parte da brigada se mostra como uma ferramenta importantíssima em prol da defesa dos direitos dos cidadãos. Antigamente, não havia métodos para provar isso; um fil-

me de uma repressão policial era algo raro. Agora, qualquer pessoa com um telefone celular na mão pode registrar um ato de violência. Essa exposição de fatos e denúncias tem um impacto enorme na opinião pública, porque as pessoas que estão em casa e não participam diretamente das manifestações indo às ruas não tem noção do que é a violência policial - e quando a gente mostra, elas se sensibilizam. A forma mais eficiente de combater a violência é torná-la pública.


Caetano Cremonini Giovani de Oliveira Corrêa

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Caetano Cremonini Giovani de Oliveira

Comissão Editorial Giovani de Oliveira, Jéssica Kilpp, Kathlyn Moreira, Paula Moizes

Corrêa

Júlia Ber tê

Pacheco

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Hartmann

Revisão

Matheus

Giovani de Oliveira, Jéssica Kilpp, Júlia Bertê, Kathlyn Moreira, Nidiane Perdomo P Michel Cortez, Paula Moizes Caetano Cremonini Cristiano Goulart Filipe Rau

Diagramação

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Corrêa Paula Moizes e Rodrigo Lorenzi Pacheco Hartmann

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“Porque o jornalismo é uma paixão insaciável que só se pode digerir e humanizar mediante a confrontação descarnada com a realidade”

Gabriel García Marquez


Agradecimento especial ao Prof. Wladymir Ungaretti pela compreensĂŁo e paciĂŞncia. Equipe Sextante 2013/2


Jade Knorre

SEXTANTE 2013/2


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