Sextante 2018/2 - Porto Alegre fora do mapa

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EDITORIAIS A CIDADE QUE IMPORTA

FEITA DE VÁRIOS NÓS

Porto Alegre foi o tema escolhido pelos alunos desta edição da revista Sextante. Eles poderiam dizer que, no mapa, a cidade está situada em torno do paralelo 30 e do meridiano 50 e que possui uma área de quase 500 Km². Mas isso falaria muito pouco do que é a capital dos gaúchos. Talvez pudessem optar por contar que a estátua do Laçador foi definida por lei municipal como símbolo oficial da cidade, ou mostrar pontos turísticos, como a Usina do Gasômetro e a Praça da Matriz. Não foi nada disso que fizeram, pois isso falaria muito pouco de quem são esses alunos. Os autores das reportagens e das fotos desta revista não se contentam com o óbvio. Vieram de diferentes lugares, com diferentes histórias, muitas delas de luta para conquistar um espaço onde apenas os privilegiados entravam. Encontramse na universidade e nesta cidade que conseguem enxergar já com olhos de verdadeiros jornalistas. Eles sabem que na profissão que escolheram o que mais importa não são os números e os dados, mas, sim, as pessoas. Não por acaso, foi essa a turma que inaugurou a parceria da Sextante com o site Humanista, produzido também pelo curso de Jornalismo da UFRGS, sob o comando do professor Felipe de Oliveira, e que traz matérias exclusivamente sobre Direitos Humanos. Por isso, muitas das reportagens desta revista têm sua versão digital no site*. O que você vai ler nas próximas páginas são histórias que acontecem em locais que aparecem pouco na mídia, ou histórias pouco contadas de lugares já conhecidos da cidade. A Porto Alegre que está aqui não só está fora do mapa, mas também, normalmente, fora dos veículos jornalísticos. O motivo é simples: esses alunos sabem que todos devem ser ouvidos, e isso inclui quem dorme numa praça, quem trabalha embaixo de um viaduto ou em um terminal de ônibus, quem ocupa espaços para conseguir viver, quem luta por uma causa ou por uma comunidade. É a voz dessas pessoas que aparece nesta Sextante, e é essa a cidade mais bonita para quem tem capacidade de olhar.

Quem ouve falar de Porto Alegre pensa automaticamente no Guaíba, no Mercado Público e no Parque da Redenção. Esses lugares marcam a memória dos moradores da cidade e o imaginário de quem nunca pisou em solo porto-alegrense, mas conhece a tradição desses espaços. Para além de pontos turísticos, a capital faz com que trajetos e vidas se cruzem no dia a dia. Moradores de outras cidades vêm para trabalhar ou para estudar. Pessoas que precisam de assistência médica especializada se deslocam para receber atendimento nos grandes hospitais. Quem não pode ficar, mas tem carinho pela cidade, encontra outras formas de marcar presença. Na rotina que todos já conhecem, sair do lugar comum é uma tarefa difícil. Mostrar quem pouco ou nunca teve espaço em veículos jornalísticos requer sair da zona de conforto. Nesse processo, muitas dúvidas e dificuldades se apresentaram. Talvez por isso os personagens das próximas páginas pareçam invisíveis para o grande público. São muitos bairros, ruas, construções, prédios, histórias, alegrias, tristezas e sujeitos que também constroem a cidade com sua vivência. Do Triângulo da Assis Brasil à Praça da Alfândega. Do Campo da Tuca ao Edifício Santa Cruz. Do Hipódromo à Praça XV. Do Arado Velho, na Zona Sul, à Conceito Arte, na Zona Norte. Tudo isso passando pelos Territórios Negros, que criaram suas rotas de resistência. Porto Alegre apresenta, para além do que todos já conhecem, lugares essenciais na construção da sua identidade e na de seus habitantes. O que Porto Alegre tem para oferecer de diferente? Ela pode surpreender quem vem de fora e quem já está aqui? A cidade retratada nos filmes, nos livros e nas canções foi deixada nas cenas, nos capítulos e nos versos dessas obras. Nas próximas páginas, procuramos mostrar a Porto Alegre de todos os dias, que passa despercebida na pressa do cotidiano de todos nós.

Thaís Furtado | Professora-editora thais.furtado@ufrgs.br

* As reportagens marcadas com tem uma versão digital no site www.ufrgs.br/humanista

Comissão editorial

Sextante é um instrumento que mede a distância angular entre um astro e a linha do horizonte. Com ele, os navegadores calculam sua posição e podem corrigir eventuais erros de navegação


ÍNDICE Terminal Triângulo

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Praça da Alfândega

10

Ocupação Pandorga

16

Territórios Negros

20

Praça Capitólio

26

Edifício Santa Cruz

30

Viaduto do Brooklyn

36

Ensaio | Esqueletão

40

Campo da Tuca

42

Hipódromo do Cristal

46

Conceito Arte

50

Templo Positivista

54

Praça XV de Novembro

58

Ocupação Mirabal

62

Fazenda Arado Velho

66

Estádio da Timbaúva

70

Cemitério da Santa Casa

74

Glauber Cruz

Rene Almeida

Maí Yandara e Vanessa Petuco Maira Miguel Ásafe Bueno

Arthur Ruschel Thuanny Judes

Glauber Cruz e Mariana Barcellos Samara Onofre

Wagner Meirelles Patrícia Barbosa Hugo Silveira Júlio Câmara Luana Cruz

Natalia Henkin

Gabriel Omelischuk

Gabriela Martins Dias


LUISA NUNES


TERMINAL TRIÂNGULO

Fora dos horários de pico o Triângulo é um lugar de silêncio, sono e espera


ENQUANTO O DIA NÃO CHEGA A VIDA NO SEGUNDO MAIOR TERMINAL DE ÔNIBUS DE PORTO ALEGRE CONTINUA EXISTINDO QUANDO A NOITE É ALTA NO CÉU E BOA PARTE DA CIDADE ESTÁ MERGULHADA NO SONO Texto: Glauber Cruz Fotos: Vanessa Petuco glaubeercruz@gmail.com vanessa.petuco@gmail.com

São 18h30. A noite está começando quando a confluência entre as avenidas Assis Brasil e Baltazar de Oliveira Garcia se transforma em um ponto furioso onde reinam as luzes dos carros, o som dos motores e as vozes das pessoas. As jornadas de trabalho se aproximam do fim, e as vidas que vêm de todas as zonas da cidade cruzam uma pela outra na aorta da Zona Norte de Porto Alegre: o Terminal Triângulo. Segundo dados da Empresa Pública de Transporte e Circulação (EPTC), diariamente circulam pelo terminal mais de 30 mil pessoas da Capital e da Região Metropolitana. Uma dessas pessoas é a estudante de Jornalismo Mariana Moraes, 20 anos, que sai do estágio todos os dias e no final da tarde cruza pelo Triângulo para ir para casa, a poucos metros dali. Desde 2012, ela observa o terminal da janela do seu apartamento, que passou a ser um elemento sem o qual não imagina sua rotina e sua história. “Eu passo no Triângulo desde que eu tava no segundo ano [do Ensino Médio], e agora eu tô na faculdade. Então, acho que o Triângulo me viu crescer bastante”, diz Mariana.

A estudante já está em casa quando o último T1 sai do terminal, faltando poucos minutos para a meia-noite. É quando o Triângulo passa a ser ocupado pelos olhares desconfiados, pelo silêncio e pelo medo do assalto. São os passageiros que, junto daqueles que se embriagam nos bares próximos e utilizam o terminal como um imponente e espaçoso banheiro, veem as últimas linhas do dia circulando. O movi-

mento, embora menor, não para nunca. Quando a madrugada deita sobre a cidade, os “madrugadões” começam a fazer seus grandes trajetos, transportando vidas acordadas, enquanto tantas outras dormem.

TRABALHADORES EM UMA CIDADE ESCURA Uma dessas linhas, a M21 - Corujão Baltazar/Assis Brasil, sai do Centro de SEXTANTE Dezembro de 2018

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Porto Alegre e passa pelo Triângulo por volta das 4h40min, quando a vendedora Caren Silva, 50 anos, chega. Desde 2014, Caren cumpre uma rotina inversa a de muitos trabalhadores. Dorme às 17h e acorda à meia-noite para preparar os mais de 20 litros de café preto, os sanduíches e os pães de queijo que lhe garantem o sustento. Quando chegou no Triângulo, não era permitido vender em bancas no terminal. “Não podia botar nada aqui, a SMIC [Secretaria Municipal da Produção, Indústria e Comércio] não deixava e levantava todo mundo”, relembra Caren. Apontando de um lado a outro do terminal, ela indica o trajeto que fazia para vender, em um carrinho de supermercado, os seus produtos: da fila da linha 520 Triângulo/24 de Outubro até a fila de passageiros que aguardavam o T7. De fila em fila, a rotina fez com que Caren se tornasse conhecida na paisagem do Triângulo e também com que ela mudasse. Quem a vê falante talvez nem associe a ela a figura silenciosa que era antes de chegar no Triângulo. “Eu precisava trabalhar né, aí quebrei o gelo. Aprendi a falar mais e aprendi a sorrir mais.” Antes de chegar em Porto Ale-

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gre e dar início às suas jornadas noturnas, Caren morava em Sapiranga, na Região Metropolitana, onde trabalhava como revisora em uma fábrica de calçados. “Eu trabalhava quietinha, não podia falar, senão o chefe ia xingar.” Do ambiente de trabalho que a isolava dentro de quatro paredes, ela passou para um ambiente sem parede alguma, onde o vento circula incessantemente e é possível ver a noite alta no céu. São quase 5h. Os ônibus vindos já passam lotados de passageiros que saem deles em linha reta na direção de outra fila. No ar, uma disputa acirrada entre os cheiros de café e fritura das coxinhas de galinha. Nos ouvidos, a algazarra dos sons dos ônibus e das moedas de troco que os cobradores, já preocupados, procuram em uma banca e outra. O som das moedas também faz parte da vida de Felipe Azevedo, 33 anos. Jornaleiro há 14 anos, há oito ele trabalha no Triângulo. Não só chegou no terminal quando o telhado de policarbonato ainda estava inteiro (antes de ser destruído por um temporal em 2014) como viu o terminal nascer. “Isso aqui era uma parada de ônibus, eu me

lembro. Quando não existia Triângulo, eu trabalhava ali naquela sinaleira”, diz apontando para a esquina da Avenida Baltazar de Oliveira Garcia. “Eu sou o mais antigo aqui.” A sentença comprova-se verdadeira com a agilidade no manuseio das moedas para o troco, na relação com os vendedores do entorno e na venda silenciosa de jornal, como se conhecesse o rosto e os hábitos de cada um dos compradores que circulam por ali quando a cidade ainda está dormindo. Já imune ao mau humor recorrente nas horas em que o dia ainda nem é de fato dia, Felipe ganha a vida ao lado da banca de Caren. Nas horas escuras do Triângulo, a dobradinha jornal e café é o pontapé inicial da rotina dos trabalhadores que vêm da Zona Norte e da Região Metropolitana.

MÃOS E BRAÇOS Às 5h33min, o primeiro T1 sai do Triângulo. Alguns passageiros compram café e saem apressados, temerosos com a ideia de atraso no itinerário de um dia de trabalho. A grande massa ali é formada por domésticas, diaristas, vendedores, seguranças, funcionários terceirizados. São as mãos e os braços


dos serviços de Porto Alegre, que degustam no terminal alguns minutos de uma sonolenta tranquilidade antes da jornada de trabalho começar. A amizade entre Caren e Felipe começou ali e, da mesma forma, a relação dela com algumas clientes começou no entorno de sua banca. “Elas vêm aqui, tomam café comigo todos os dias e vão trabalhar”, conta Caren. “Tenho amizade aqui graças ao meu serviço.” Sob um céu que começa a azular e no meio das filas que começam a crescer, a doméstica Rosimeri Dias, 53 anos, sentencia: “A gente tem muita amizade aqui”. Para ela, que conheceu Caren indo de uma fila à outra na época que vendia café em seu carrinho, o Triângulo é um lugar que vai muito além de finais de linha. “Quando eu não venho pra cá eu sinto falta.” São 6h20min quando o céu entre as frestas do telhado não deixa dúvidas àqueles muitos trabalhadores de que o dia chegou. A essa altura, Rosimeri responde, com uma única palavra, o questionamento sobre como seria a sua vida sem o Triângulo: “Triste”. Para Caren, nem ao menos existe uma palavra: “Eu, sem esse mundinho aqui…” e deixa que o som dos motores e o cheiro do café finalizem a resposta por ela. Felipe, por sua vez, responde com a mesma agilidade com a qual executa seu trabalho: “Gosto, gosto de trabalhar aqui. Gosto de me comunicar com as pessoas, de conversar.” Às 7h, as luzes do terminal se apagam e a rotina da estudante Mariana Moraes começa mais uma vez. Até ela voltar, o Terminal Triângulo vai continuar sendo, como ela mesmo define, um grande lugar de contato humano, como poucos em Porto Alegre.

Disponível em versão digital

Para Caren e Felipe, o Triângulo é mais que um terminal por onde passam cerca de 950 ônibus por dia. Dele, eles tiram o seu sustento e nele construíram importantes laços SEXTANTE Dezembro de 2018

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PRAÇA DA ALFÂNDEGA

ANOITECEU NA PRAÇA QUANDO O DIA TERMINA, O SILÊNCIO REVELA AS OUTRAS FACES DE UM DOS LUGARES MAIS MOVIMENTADOS DE PORTO ALEGRE Texto: Rene Almeida renealmeida.jornal@gmail.com Fotos: Isadora Garcia e Nicolle Marazini isadorasmagarcia@gmail.com nicolle.marazini@gmail.com



Cai a tarde de mais um dia qualquer na capital dos gaúchos. As estátuas de Mário Quintana e Carlos Drummond observam mais um pôr-do-sol porto-alegrense entre as árvores que as cercam na praça. Ao seu redor, o cenário, outrora agitado, vai se esvaziando aos poucos. Os vendedores, os jogadores de dama, os engraxates e mesmo quem só está ali descansando rumam em direção às suas casas. As estátuas permanecem ali, firmes e fortes, como guardiãs incansáveis, aguardando o início de mais um dia. Já é noite fechada, em outros lugares da cidade o movimento está só começando. Enquanto isso, é hora de um dos lugares mais bonitos do Centro de Porto Alegre descansar: a Praça da Alfândega. Barulhenta durante o dia, a praça fica em silêncio durante à noite. Os vendedores de artigos hipies se despedem uns dos outros com muita cordialidade, As estátuas dos poetas Carlos Drummond de Andrade e Mario Quintana acompanham o movimento do fim do dia no Centro de Porto Alegre

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“SE EU PUDER ESTAR DENTRO DA PRAÇA, PASSAR A NOITE AQUI, VOU TER MUITA COISA PARA FAZER. SE A GENTE INVENTAR DE FAZER UM CHURRASQUINHO NA MADRUGADA, TOMANDO UMA CACHACINHA, JOGANDO CONVERSA FORA E CONQUISTANDO UMA NAMORADA, A GENTE FAZ” Antonio Ferreira (Kashowpa) Artesão

o artesanato das bancas desaparece, a graxa dos engraxates seca e os bancos passam a ser inúteis. Algumas pessoas diriam que esse é o cenário perfeito para tudo que não presta. Não é o que mostra a experiência de quem frequenta o local há anos.

ROTINA “Eu costumo dizer que até umas 20h ou 21h a praça é do povo, depois disso a praça não pertence a ninguém”, comenta Vera Regina Pereira, 57 anos, 13 deles como a primeira mulher engraxate na Praça da Alfândega. De sapato em sapato, ela passa quase 12 horas no local durante o dia. Enquanto lustra um par de calçados ao preço de 13 reais, conta que herdou a cadeira do pai e conseguiu sustentar seus dois filhos com o dinheiro de seu trabalho. “O engraxate é a mais baixa das categorias profissio-


nais. Ele está abaixo do gari. O gari ainda é formal, tem carteira assinada, o engraxate não. É um serviço por conta própria. É uma profissão como outra qualquer. Você tem que ter pontualidade e assiduidade para ser um bom profissional. Eu me sinto realizada na arte de ser engraxate”, celebra. Vera afirma que sente-se segura ali de dia e revela que, há quatro ou cinco anos, esqueceu sua carteira junto com o material de trabalho, que na época ficava guardado na praça à noite, no lugar onde hoje fica o chamado Caminho dos Jacarandás. “Eu tinha talão de cheque, cartão de crédito e todo dinheiro da semana. Vim com meu carro, estacionei na frente do Banrisul, botei os faróis aqui. Cheguei era quase meia-noite. Era lindo de ver essa praça, tinha umas luzes amarelas, a praça parecia que tava dormindo. Eu cheguei, abri a cortina, peguei a carteira, fechei a cortina, entrei no carro e fui embora. Ninguém me viu.” Apesar da tranquilidade, a engraxate ressalta que a praça não parece segura à noite. “Como sou engraxate, sou respeitada. Mas a praça é deserta à noite. Não se vê quase ninguém passar. Eu não aconselho vir aqui à noite, porque sabemos que nessa troca de plantão da polícia o povo fica meio desprotegido. Ela não é segura à noite, mas é muito linda”, defende. O vendedor Antonio Edgar Ferreira, 61 anos, conhecido como Kashowpa, possui em sua banca artigos dos mais exóticos possíveis: desde pulseiras e

“A PRAÇA DA ALFÂNDEGA É O CORAÇÃO DE PORTO ALEGRE. ELA ABRANGE MORADOR DE RUA, BANCÁRIOS, POLÍTICOS, PROSTITUIÇÃO, TRÁFICO DE DROGAS, APOSENTADOS, DESOCUPADOS, JOGADORES, PESSOAS QUE DESCEM AO MEIO-DIA, ARRANHA-CÉUS, PRÉDIOS HISTÓRICOS, TUDO SE CONCENTRA AQUI NA PRAÇA, CADA UM NO SEU ESPAÇO” Vera Regina Pereira Engraxate

colares com caveira e cruzes até cajados de cobra e chifres. De postura humilde e receptiva, o artesão nascido em São Francisco de Paula, na Serra do Rio Grande do Sul, conta que já foi morador de rua no Rio de Janeiro e em São Paulo. Mas foi em Porto Alegre que encontrou sua casa. “Quando eu cheguei no Rio

Grande do Sul, não tinha dinheiro, não tinha material, não tinha casa. Eu tinha a malandragem da cidade grande. Em três ou quatro horas eu já estava aqui dentro da Praça da Alfândega”, relata. Kashowpa revela que morou em uma caixa de papelão na praça durante seis meses no ano de 1980. Ele conta que tinha a ajuda da Brigada Militar para se alimentar e das antigas casas noturnas e cabarés que havia em volta da praça para lavar sua roupa. “Eu tinha tudo para ser traficante ou qualquer coisa ruim. Não estaria vivo agora. Sempre dei muita sorte e uma delas foi ter chegado em Porto Alegre garoto de rua. Esse é o ponto de referência, porque ali começava a surgir das cinzas, do lixo, uma pessoa folclórica, um cidadão de Porto Alegre”, conclui. Sua banca fica aberta até às 18h ou 19h. Durante o dia, ele elogia a presença da polícia no local. “Qualquer pessoa que esteja atenta pode passar aqui com celular, com rádio, com bom óculos. Esse pessoal que passou aqui [policiais] nós temos que aplaudir. A cada 15 ou 20 minutos eles vêm, fazem a ronda, cumprimentam todo mundo e vão embora. Se você está devendo, as câmeras denunciam. Eu nunca fui pego. Sempre usei cabelo longo e roupa batida, nem por isso Kashowpa, o artesão, e Vera Regina, a engraxate, trabalham há mais de 10 anos na Praça da Alfândega

RENE ALMEIDA

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fui agredido por alguém”, destaca. O artesão revela seu apreço pela Praça da Alfândega até à noite. “Se eu puder estar dentro da praça, passar a noite aqui, vou ter muita coisa para fazer. Se a gente inventar de fazer um churrasquinho na madrugada, tomando uma cachacinha, jogando conversa fora e conquistando uma namorada, a gente faz”, propõe.

SEGURANÇA De fato, o policiamento na Praça da Alfândega é ostensivo. Os policiais a cavalo permanecem ali durante todo o dia circulando para aumentar a segurança. Atendem o local até por volta das 19h. Mas nem sempre foi assim. O gari Eduardo Pereira, 53 anos, trabalha na praça há pouco mais de um

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ano e meio. Segundo ele, até pouco tempo a insegurança era maior. “Agora está muito bom, teve um tempo que tava bem ruim. O pessoal ficava meio receoso de passar por aqui, porque era bem escuro. Hoje está bem melhor, mais iluminado. Não se vê mais gente amontoada nos cantos. Praça nunca foi 100% segura, mas se está escura é pior. As pessoas têm receio de praça no horário que não é frequentado”, revela Eduardo. No início dos anos 2000, o Programa Monumenta, do Ministério da Cultura, foi o responsável pela revitalização da Praça da Alfândega, podando folhagens, árvores e recuperando a iluminação e o calçamento. Além do policiamento feito pela Brigada Militar, a Praça da Alfândega

possui oito câmeras de vigilância – uma pertencente à Secretaria de Segurança Pública do Estado (SSP) e as demais pertencentes a Guarda Municipal de Porto Alegre – que monitoram 24 horas o local. A central de videomonitoramento fica no Departamento de Controle e Comando Integrado da SSP. Tanto a SSP como a Guarda Municipal são responsáveis por atender as demandas de segurança da praça 24 horas por dia. A engraxate Vera Regina brinca que os assaltantes duvidam da segurança do local: “Tem pessoas que não acreditam, principalmente os maus elementos, que acham que podem vir aqui e fazer bobagem. Eu aviso: ‘tem câmera monitorando vocês’, mas eles não acreditam”.


O SILÊNCIO À medida que o movimento de pessoas vai diminuindo, os trabalhadores vão se esvaindo. Os jogadores de dama terminam suas últimas partidas. Revanches atrás de revanches, já são quase 20h. Idosos aposentados mexem naquelas tampinhas de garrafa em cima do tabuleiro com muita atenção. “Contra ele sempre chega nisso”, diz um deles dando a entender que já se esgotaram as possibilidades de jogadas no confronto entre os dois. Prejuízo pequeno, já que a derrota custa apenas uma “tiração” de sarro ou alguns poucos reais do bolso. O importante mesmo é o passatempo que a dama proporciona. Tabuleiro recolhido e pronto! Fim de mais um dia na praça. Os ratos

escondidos nos canteiros já podem sair, e os poucos moradores de rua já podem se acomodar. Quem ainda precisa passar pelo local o faz no passo mais rápido possível, com medo de assaltos, criando um contraste com a tranquilidade dos poucos frequentadores que estão ali. Apesar de tudo isso, o lugar não perde o seu encanto. Luminárias antigas preservam a claridade no local e o embelezam ao mesmo tempo. As lancherias do Caminho dos Jacarandás prolongam a noite da praça. Logo o silêncio toma conta. Os pássaros e o pouco trânsito ao redor fazem a trilha sonora. As estátuas de José Artigas, Barão de Rio Branco, Breno Caldas e Marquês do Herval permanecem atentas ao movimento.

O ciclo nunca para, há sempre uma alma humana na praça. “A Praça da Alfândega é o coração de Porto Alegre. Ela abrange morador de rua, bancários, políticos, prostituição, tráfico de drogas, aposentados, desocupados, jogadores, pessoas que descem ao meio-dia, arranha-céus, prédios históricos, tudo se concentra aqui na praça, cada um no seu espaço”, define a engraxate Vera Regina. Pois é assim, como um coração que nunca para de bater, que a praça descansa. Seja de dia ou à noite, um ponto é comum: a beleza e o sentimento agradável de estar à toa num dos principais pontos turísticos de Porto Alegre.

Garis e jogadores de dama são os últimos a ir embora quando a noite chega

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OCUPAÇÃO PANDORGA

EM CONSTANTE RESSIGNIFICAÇÃO DE SEU ESPAÇO E DE SUA IDENTIDADE, A PANDORGA PEGA IMPULSO EM VENTOS TURBULENTOS Texto e fotos: Maí Yandara e Vanessa Petuco amoraomeiodia@gmail.com vanessa_petuco@hotmail.com

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No dia 18 de julho de 2015, um grupo de viajantes mexicanos ocupou dois galpões em um terreno de 1.122 metros que estava abandonado pela Prefeitura de Porto Alegre. O local, situado na Rua Professor Freitas e Castro, número 191, acumulava lixo e era utilizado como boca de fumo no Bairro Azenha. Intitulado de Ocupação Pandorga, aquele espaço ocioso transformou-se em um ponto cultural da região. Oficina de circo e bicicleta, saraus, atividades musicais e cinematográficas começaram a integrar a programação da Pandorga, voltada para os moradores da vila Cabo Rocha – comunidade de origem quilombola vizinha à ocupação – e de toda a Capital gaúcha.

Do lado de fora dos galpões, encontram-se dois portões de ferro pintados com grafites coloridos onde se pode espiar, através de um pequeno buraco, o que acontece no universo interno da ocupação. Do lado de dentro, uma grande quadra de futsal que, mais adiante, dá acesso à cozinha, iluminada pela claridade dos raios de luz que entram através da janela aberta, próxima ao fogão, o qual tem um adesivo do Xadalu, artista visual ativista da causa indígena. Na sala, claves para malabarismo sobre o sofá cor de mostarda se misturam com utensílios pessoais dos ocupantes. Alguns treinam malabares, enquanto outros atravessam o espaço


UNIVERSO

CULTURAL NA AZENHA

rapidamente, organizando as instalações de luz da cozinha, que estavam desativadas. Um pátio com um palquinho de madeira e uma grande horta – xodó dos moradores – integram o ambiente a céu-aberto da Pandorga. Não há um canto que não seja cheio de cor e arte. No jardim, botas e tênis velhos viram vasos de plantas, e a base de um cacho de banana transforma-se em moicano na cabeça de uma manequim. Felipe Farinha, 40 anos, senta no pátio após trabalhar junto com a equipe de instalação de luz do local. Morador e membro ativo da Ocupação Pandorga, ele conhece o espaço desde a sua criação, quando eram promovidas intensas atividades culturais para a comunidade

porto-alegrense. Formado pela Escola de Circo do Rio de Janeiro, Farinha conta que sua vida de artista levou-o para vários lugares, não se sentindo pertencente a um só local: “Não nasci cigano, mas tenho a alma de um”. Junto com os outros moradores, agora ele se prepara para realizar futuras apresentações nas ruas de Porto Alegre. “Estamos criando a Associação de Circo Gaúcha, que será uma ferramenta que abrirá muitas portas, além de viabilizar os planos futuros da ocupação”, projeta Farinha, enquanto acaricia Tupã, o cachorro morador da Pandorga, que chama atenção por seus olhos verdes e sua amorosidade. A música latina e o perfume de comida temperada com açafrão-da-

terra indicam o caminho à cozinha, onde o cão atravessa muito à vontade entre os utensílios circenses. Ali, Yeni Alonso, 27 anos, cozinha couve para o almoço. A jovem de cabelos cacheados e sorriso largo veio de Montevidéu, no Uruguai, para o Brasil em dezembro de 2017 e começou a morar na Pandorga há menos de um mês. Ela conta que sempre quis cantar e expressar os sentimentos que transbordam nela por meio da música, mas confessa que tinha muita insegurança, colocando limitações a si mesma. No Brasil, a amizade com uma menina ajudou a diminuir um pouco sua vergonha. Yeni acredita que a ocupação tem a cara das pessoas que moram nela, e SEXTANTE Dezembro de 2018

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por isso está em constante mudança: “Aqui vive gente que viaja, o que faz com que sempre haja rotatividade de seus moradores. Então, ela muda com as pessoas que somos”. Atualmente, a Pandorga abriga no máximo 15 moradores fixos. Por ser um lugar de trânsito, nenhum dos fundadores do espaço continua vivendo lá. Um dos lugares mais queridos pelos ocupantes é a grande horta, onde são cultivadas Plantas Alimentícias Não Convencionais (Pancs) diversas, como maria gorda, inhame e transagem; chás como boldo e hortelã; além de pés de mamoeiro, abacateiro, pitangueira e mangueira. Muito do que é plantado serve de base para a alimentação dos moradores. Alimentos orgânicos da feira do Menino Deus também são aproveitados pelos ocupantes, que os adquirem por meio de troca: eles realizam a limpeza do local e, em contrapartida, ganham o que não é vendido pelos feirantes. Ao sair por uma porta da cozinha que dá acesso direto à quadra de futsal, Pedro Augusto, 24 anos, recebe as crianças da vila Cabo Rocha para uma tarde lúdica na ocupação. Os garotos jogam futsal e andam de skate livremente no espaço. Em meio a um gol e outro, é possível ouvir os gritos alegres dos meninos que já se acostumaram a brincar todos os sábados no espaço. Pedro, que mora na ocupação desde novembro de 2017, é malabarista do Interior de São Paulo. Ficou sabendo da Pandorga por indicação de amigos, como um lugar que abriga viajantes. “Eu vejo a Pandorga como um laboratório de experiências sociais. A gente testa novos tipos de organizações, novos tipos de relações e é um lugar de experimentação”, analisa. No corredor, entre a cozinha e a sala da ocupação, um jovem de cabelos escuros treina malabares. Camilo Avurto Pedro Augusto é do Interior de São Paulo. Conheceu a Ocupação por meio de seus amigos. Yeni encontrou na Pandorga o conforto para expressar sua arte

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tem 24 anos e nasceu em Portoamor, no Chile. Após visitar a Argentina e o Uruguai, o chileno passou a morar na Pandorga há, aproximadamente, um mês e seguirá viagem para o Paraguai em breve. Antes de sair de seu país natal, Camilo estudava Medicina Veterinária e se cansou do estilo de vida que levava. Hoje, ele faz malabares nos semáforos e tem aprendido a construir diversos objetos artesanais. “O que me parece mais importante na Pandorga é o que está acontecendo agora, que é abrir as suas portas para as crianças da comunidade brincarem em um lugar seguro. Esse é um espaço para eles e deles, porque aqui já existia muito antes de ter sido ocupado”, defende.

IDENTIDADE ANARQUISTA A Pandorga é definida pelos seus moradores como uma ocupação anarquista e de resistência, onde os ocupantes vivem em um sistema antagônico ao estatal. O fluxo financeiro é mínimo. O que sustenta a comunidade são as trocas: humanas, através das inúmeras atividades culturais, e alimentícias. A Pandorga também é um lugar de ressignificação, em que materiais que seriam descartados no lixo são reaproveitados como objetos artesanais e de sustentabilidade, como as eco blocks, feitas de garrafas pet e plásticos variados, utilizadas como tijolos para bioconstrução. Por ser um coletivo cultural anarquista, a Pandorga foi um dos alvos


de uma operação policial que tentou enquadrá-la como uma organização criminosa. Era a operação Érebo (nome de deus mitológico grego das trevas e da escuridão), comandada pela 1ª Delegacia de Polícia de Porto Alegre, que cumpriu 11 mandados de busca e apreensão em organizações políticas anarquistas e coletivos culturais da Capital gaúcha e região metropolitana, além de Viamão e Novo Hamburgo. No dia 25 de outubro de 2017, a Polícia Civil arrombou o portão de entrada da ocupação sob a alegação de combater associações criminosas que praticavam ataques a viaturas de policiais civis e militares e que faziam uso de artifícios incendiários e explosivos contra institui-

“EU VEJO A PANDORGA COMO UM LABORATÓRIO DE EXPERIÊNCIAS SOCIAIS” Pedro Augusto Morador da ocupação

ções públicas e privadas na Capital. Na ação, foram apreendidos livros, cartazes, fanzines, faixas, panfletos, adesivos, material da oficina de serigrafia, além de computadores, tablets, celulares e pendrives. Os eco blocks, produzidos pelos moradores, foram qualificados como material explosivo pela polícia.

A principal prova apresentada pelos policiais foram livros de literatura anarquista apreendidos. Ninguém foi preso. “A justiça negou o pedido de prisão preventiva de algumas pessoas por não haver provas concretas de qualquer ato terrorista”, afirma Patrick Mayer, advogado da Pandorga. A operação foi acompanhada por grandes veículos de televisão, sendo transmitida em rede nacional. “Esse acontecimento gerou um prejuízo acima do material para nós, interferindo diretamente no social. As pessoas têm medo que vir para cá. Acreditam que é um lugar perigoso. Buscamos desconstruir essa ideia da Pandorga, criando diversas atividades culturais para que as pessoas conheçam o espaço”, diz Pedro Augusto.

VOLTANDO A VOAR Frente a essa situação, o grupo está trabalhando em uma agenda cultural. Segundas e quartas-feiras, das 7h às 9h, os moradores da Pandorga oferecem a oficina Respirando Juntos, que busca trabalhar o corpo e a respiração. Nas quintas-feiras, às 7h começa o ensaio dos artistas da ocupação, que também é aberto ao público. Esse é o momento em que é preparado um espetáculo, o qual é apresentado depois das 10h nos semáforos da cidade. Os finais de semana ficam reservados às crianças, com os projetos Pandorga Brincante e Oficina de Bicicleta. “A ideia é que as pessoas venham e que a gente tenha uma comunhão, se divirta e veja um novo horizonte juntos através da parte lúdica da vida”, explica Pedro. Mesmo em ventos turbulentos, a Ocupação Pandorga resiste e segue seu vôo em constante ressignificação.

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Camilo (acima) trocou o curso de Medicina Veterinária por uma vida mais tranquila. Farinha, morador e membro ativo da Pandorga, conhece o coletivo desde a sua criação SEXTANTE Dezembro de 2018

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TERRITÓRIOS NEGROS

QUANTO SANGUE


ESCORREU AQUI? ESPALHADOS POR DIVERSOS LUGARES NO CENTRO DE PORTO ALEGRE, OS TERRITÓRIOS NEGROS SÃO LUGARES HISTÓRICOS PARA A CULTURA AFRO-BRASILEIRA DO RIO GRANDE DO SUL, QUE, APESAR DAS INTERVENÇÕES E DO APAGAMENTO, RESISTEM ALÉM DO TEMPO Texto: Maira Miguel mairamiguel91@gmail.com Fotos: Amanda Araújo e Lyz Ramos amandam.araujo99@gmail.com lyzf@outlook.com

Na frente da Igreja Nossa Senhora das Dores se localizava o antigo Pelourinho, onde, no século XIX, os escravos eram torturados


É domingo. Famílias se reúnem em praças em uma tarde ensolarada. O sentimento de estar perto da natureza é o de paz, mas nem sempre tarde na praça foi sinônimo de paz, muito menos na Praça Brigadeiro Sampaio. Algumas pessoas até devem saber quem foi o tal Brigadeiro, mas o que quase ninguém imagina é que o local que leva seu nome também é conhecido como “Largo da Forca”, um dos diversos territórios negros espalhados por Porto Alegre. O Largo da Forca fica ao lado do Museu do Trabalho e está na boca da Rua dos Andradas, um dos principais logradouros da cidade. Durante o século XIX, o lugar era destino de condenados ao enforcamento, sendo, em sua maioria, escravos que desafiavam seus senhores. Eram enforcados em praça pública até 1857, mas a atualidade presenteou o local com um pingo de esperança. Na praça existe um monumento denominado Tambor, construído em 2010, que

foi uma das intervenções propostas pelo Museu de Percurso do Negro, projeto sobre os territórios, buscando visibilizar a comunidade afro-brasileira com a instalação de obras de arte em espaços públicos da cidade. O monumento é adornado com 12 figuras que traçam a trajetória do povo negro, marcado por dor, alegria, luta e perseverança. Seu significado permeia religiosidade e comunicação através do eco de suas batidas. Todos os dias, durante o caminho para o trabalho, Caroline Camargo, funcionária pública, passa em frente à Igreja Nossa Senhora das Dores, faz o sinal da cruz e segue apressada ao seu destino. Talvez fosse fácil imaginar que, se estivesse no século XIX, ao cruzar pela Avenida Padre Tomé, na frente da igreja, estaria passando pelo antigo Pelourinho, lugar que era palco para tortura de escravos. Mas o difícil de encarar foi a descoberta feita por ela ao pesquisar a árvore genealógica da

“O PROJETO TERRITÓRIOS NEGROS É RESISTÊNCIA. ELE É IGUALZINHO À HISTÓRIA DA POPULAÇÃO NEGRA. É UMA HISTÓRIA INVISÍVEL, UMA HISTÓRIA QUE NÃO INTERESSA” Fátima Rosane Silva

Mediadora do projeto Territórios Negros

família. Um de seus antepassados foi trazido como escravo para a Capital e, possivelmente, segundo os estudos, tenha levado chibatadas até a morte. “A dor é grande, a paisagem bonita de hoje ameniza, mas não apaga o que aconteceu”, conta a descendente. A Igreja das Dores é a mais antiga de Porto Alegre e é marcada pela lenda de que um escravo chamado Josino, que foi condenado à morte por um crime que não cometeu, declarou que a igreja, que estava em construção, jamais ficaria pronta. A obra começou a ser erguida no início de 1800 e levou 97 anos para ser construída. Atualmente, qualquer um que passe pode confundir sua fachada branca com uma obra inacabada, mesmo que a igreja já tenha sido reformada. Perto dali, em outro dia comum, o hábito de estender o pano de TNT no chão e colocar os produtos expostos e mais tarde repetir o ato ao contrário é a rotina de muitos refugiados, como Ndiaga Babuka, senegalês e vendedor ambulante da Rua dos Andradas. Ele constantemente frequenta os bancos da Praça da Alfândega para descansar. Certa vez, em um dia atípico de pouco movimento no Centro da cidade, O monumento Tambor foi construído em 2010 e é uma das iniciativas do Museu de Percurso do Negro

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A Pegada Africana foi construída em 2011 e seu formato representa o continente africano

perto do meio-dia, Ndiaga percebeu algo no chão que chamou sua atenção. A Pegada Africana foi construída em 2011 e remete ao continente da África, marcando a presença, mesmo que forçada, do povo de sua origem. Assim como o Tambor, também faz parte das intervenções propostas pelo Museu de Percurso do Negro. Para Ndiaga, passar pela pegada é como estar mais perto de casa. “É bom passar por aqui e lembrar de onde veio, e que você não vem sozinho jamais, temos raízes aqui também.” Também na região central, o Mercado Público é um dos grandes pontos turísticos da cidade e tem em seu centro o símbolo do Orixá Bará, que é o senhor dos caminhos para as religiões de matriz africana. O mosaico circular marrom e amarelo com desenhos de chaves, além de ser um marco da territorialidade negra, é símbolo de resistência. Durante as celebrações religiosas, moedas são depositadas sobre ele, como oferenda de prosperidade. Em uma dessas ocasiões, um senhor espera os religiosos se retirarem e, sem demora, rouba todas as moedas para si. Será que a cena se

repetiria com a caixinha de dízimo de qualquer igreja católica da cidade? O desrespeito e o apagamento dos símbolos afros não são de hoje. “Nós, religiosos de matriz africana, estamos constantemente sob ameaça, mas acredito que o Bará resistirá”, declara a mãe de santo Iara Pascal, que explica que o Bará é o guardião do Mercado, garantindo prosperidade e proteção para que o lugar nunca pereça. “O Mercado pode sofrer incêndios e enchentes, mas jamais será destruído.” Iara também acredita que o fato de o ponto ser turístico protege o mosaico, garantindo que ele jamais seja removido. O barulho dos tambores ecoava, grupos negros se encontravam no parque mais próximo de suas moradas antes da gentrificação que removeu diversas famílias para áreas distantes da cidade. Redenção remete à liberdade, e foi essa a essência do nome dado a essa área verde de Porto Alegre, em 1884, em razão da libertação dos escravos do terceiro distrito da Capital, registrando a significativa vitória da luta abolicionista local. O segundo nome, Parque

Farroupilha, carrega homenagem a uma revolução que recebeu a vitória com a espada honrosa dos Lanceiros Negros e com a mesma arma os apunhalou. A resistência está no nome, que é popular até hoje, mesmo com a designação de “Farroupilha”, instituída por decreto-lei em 1935. Segundo a historiadora e mediadora do projeto Territórios Negros Fátima Rosane Silva, o Parque da Redenção era um ponto de encontro de negros. “Grande parte da população negra morava na região central da cidade, em bairros que hoje são chamados de Rio Branco e Cidade Baixa. Depois, com a higienização, foram despejados para as periferias da cidade. Enquanto moradores do Centro, frequentavam muito a Redenção.”

MARCAS DA RESISTÊNCIA A vila que era constantemente inundada pelas cheias do arroio Dilúvio, a Ilhota – conjunto de casas humildes na Avenida Ipiranga, aos arredores do Ginásio Tesourinha e do Teatro Renascença –, ainda resiste e guarda as marcas de um povo negro e pobre que habiSEXTANTE Dezembro de 2018

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O depósito de moedas e balas para o Bará, no Mercado Público, representa oferenda de prosperidade

tava o centro da cidade desde o início dos anos 1900. Seus moradores eram vistos como marginais, e sua presença incomodava. Marta Ângelo era criança quando sua família foi uma das últimas da época a deixar o local. “Meus pais iam e voltavam pro trabalho a pé, sobrava mais tempo pra tudo, lembro das brincadeiras na água, era um tempo bom.” Marta viveu com os pais e quatro irmãos até 1959 na Ilhota. Hoje, em meio aos prédios e casas de alto padrão da Avenida Érico Veríssimo, uma parte da comunidade ainda permanece. A historiadora Fátima relembra de, ao fazer o trajeto dos territórios com pessoas mais velhas, presenciar grande emoção. “Elas vinham às lágrimas. Outras arregalavam os olhos, pois jamais imaginavam tais histórias.” A Ilhota foi berço do artista Lupicínio Rodrigues, um dos grandes sambistas brasileiros, que viveu quase a vida inteira no lugar e que, dentro dos casebres vistos com maus olhos, compôs canções que o consagraram como o “rei do cotovelo”. Esse apelido lhe foi dado pelas desilusões amorosas figuradas em suas letras. Lupicínio foi autor de músicas cantadas por muitos gaúchos, entre elas o hino do Grêmio Foot-Ball Porto Alegrense. Não distante dali e igualmente estigmatizados, vivem os moradores de uma rua pequena e sem saída, com

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construções singelas. O Areal da Baronesa pertenceu aos Barões de Gravataí e era uma casa de campo com aposentos para seus escravos. Mesmo depois da morte de seus senhores, a comunidade que lhes serviu permaneceu no lugar, resistindo a pessoas que lhes queriam cobrar aluguel pela moradia. Hoje, da extensa terra que cuidaram e habitaram, sobrou um beco. O lugar que sempre lhes pertenceu foi oficialmente cedido à comunidade quilombola no dia 11 de julho de 2013, sob ordem do então prefeito José Fortunati.

REDENÇÃO REMETE À LIBERDADE, E FOI ESSA A ESSÊNCIA DO NOME DADO A ESSA ÁREA VERDE DE PORTO ALEGRE, EM 1884, EM RAZÃO DA LIBERTAÇÃO DOS ESCRAVOS DO TERCEIRO DISTRITO DA CAPITAL, REGISTRANDO A SIGNIFICATIVA VITÓRIA DA LUTA ABOLICIONISTA LOCAL

SOU NEGRO E ESSA É A MINHA HISTÓRIA “Professora, hoje eu vou levar a minha namorada no Tambor. A senhora disse que eu seria multiplicador de conhecimento, e eu estou sendo”, ouviu uma vez a historiadora Fátima, como mediadora do projeto Territórios Negros, de um dos alunos das tantas escolas públicas que o projeto levou para realizar o percurso negro na cidade. A associação entre a Companhia Carris Porto Alegrense de Transporte Coletivo, a Secretaria Estadual da Educação (Seduc) e a Companhia de Processamento de Dados do Município de Porto Alegre (Procempa) consistia em levar turmas de escolas municipais para conhecerem os territórios de ônibus. O historiador Manoel José dos Porongos começou a trabalhar na Seduc em 2007 e, em reuniões da formação permanente para educação das relações étnico raciais, iniciaram-se a discussão e a articulação do projeto. Com ônibus e motorista cedidos pela Carris, Manoel e demais parceiros realizaram o primeiro percurso em 2008, voltando a realizá-lo em 2009 e, a partir de 2010, com a primeira escola a bordo, o projeto decolou. “A sensação de estar produzindo conhecimento e dando aula dentro de um ônibus era inexplicável”, relembra Manoel. Dar aula fora da sala de aula era algo que Fátima, que além de historia-


dora é funcionária da Carris, sempre reforçava aos alunos quando realizava o percurso. Tendo proximidade e interesse pelas temáticas negras, passou a atuar no projeto em 2012. “Chovia pedidos, tinha dias que a gente trabalhava nos três turnos, manhã, tarde e noite”, recorda. Até 2017 o projeto estava em funcionamento, mas foi encerrado por falta de investimento. Em um país que mata um jovem negro a cada 23 minutos, segundo a campanha Vidas Negras da ONU, resgatar o sentimento de luta e orgulho da raça não tem importância. Fátima faz um comparativo: “O projeto Territórios Negros é resistência. Ele é igualzinho à história da população negra. É uma história invisível, uma história que não interessa”. Tanto Fátima quanto Manoel valorizam outros projetos semelhantes, como o já mencionado Museu de Percurso do Negro. “Ele é itinerante, porque o negro está em percurso, passando, vivendo, utilizando esses espaços”, afirma Fátima. Hoje, Manoel tem esperança que o projeto retorne, pois, para ele,

sua importância pedagógica transformadora é única. O educador fala com orgulho de ter trazido crianças da periferia para conhecer o centro de sua cidade. “Havia uma troca de olhares entre quem estava dentro do ônibus e quem estava fora”, relata Manoel. “Para a pessoa que enxergava aquele ônibus

colorido e com o nome do projeto escrito na sua lateral, era como se alguém dissesse que o território que ela vive, que ela passa, é um território do povo negro.”

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Algumas casas da Vila da Ilhota ainda resistem (acima). Já o Parque da Redenção era um ponto de encontro da população negra antes da gentrificação

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PRAÇA CAPITÓLIO

MORTE E VIDA AS CONTRADIÇÕES E DUALIDADES PRESENTES NA RUGA ENTRE OS BAIRROS CENTRO HISTÓRICO E CIDADE BAIXA Texto: Ásafe Bueno asafebf@gmail.com Fotos: Bibiana Davila davila.bibiana@gmail.com

Após as 18h, enquanto a massa trabalhadora deixa a região central em direção às suas casas nos extremos da cidade e adjacências, fugindo o mais rápido possível em direção ao trem ou aos ônibus, um punhado de almas faz o caminho inverso. Vindos dos quatro cantos da Região Metropolitana, adolescentes, jovens e adultos bebem, riem e comem nos bares gourmetizados e botecos de litrão da CB – apelido afetuoso dado pelos boêmios ao pequeno bairro Cidade Baixa. Risadas, gritos e cantoria podem ser ouvidos junto ao som de funk, música eletrônica e sertanejo universitário, que ecoa dos restaurantes, casas noturnas e bares. No final da Rua José do Patrocínio, que leva o nome de um intelectual abolicionista do século XIX, começa a Rua Demétrio Ribeiro, logo após o cruzamento com a Rua Coronel Genuíno. O farmacêutico Zé do Patrocínio defendia um mundo mais igualitário e era contra a subjugação de um ser humano por outros. Demétrio foi um membro das elites econômicas e intelectuais gaúchas, um político republicano e positivista. Já

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NA CIDADE

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Genuíno compunha o Exército Imperial Brasileiro, lutando na Guerra do Paraguai junto à Tríplice Aliança e também contra os revoltosos da Revolta Praieira. É onde essas três ruas se encontram que está a Praça Capitólio: um punhado de terra em formato de um triângulo, com mal cuidadas árvores, mal pintadas cercas de metal e um parquinho. Da praça se avista dois dos símbolos de uma Porto Alegre que os positivistas – o pessoal do Demétrio – queriam tornar uma espécie de Paris: o majestoso prédio do Cine Theatro Capitólio, com um letreiro luminoso parecido com aquele que Michael Jackson metralhou no clipe de Smooth Criminal; e a ampla Avenida Borges de Medeiros, que homenageia outro político da galera do Demétrio. Nesse complexo mundo de poucas dezenas de metros quadrados, cada milímetro diz muito – e cada voz diz mais ainda.

OLHOS ATENTOS O porteiro Juscelino Cardoso, 37 anos, é um rapaz tranquilo e de poucas palavras que trabalha em um prédio em frente à praça há um ano. Demora uma hora e 40 minutos do trajeto da praça até sua casa, no Bairro Restinga. Passa 12 horas, dia sim, dia não, olhando o movimento e aprendendo; sobre a rotina dos moradores – muito solidários, segundo ele –; sobre o comportamento dos bêbados durante Paulo trabalha na praça durante as madrugadas. Seu Zé canta Tim Maia e fala alegre sobre sua realidade

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“É MAL CUIDADA. TEM QUE DAR ASSISTÊNCIA PARA ESSAS PESSOAS QUE ESTÃO MORANDO NA PRAÇA” Juscelino Cardoso Vigilante

a madrugada e sobre o conteúdo do Ensino Médio, enquanto estuda para o Supletivo na bancada da guarita onde cumpre o dever profissional. O silêncio das frias noites porto-alegrenses não o amedronta. O que lhe causa apreensão são justamente os barulhos. “Quando tem festa, tipo como tá tendo agora ali no Harmonia [os festejos do mês Farroupilha, em parque próximo], muita gente passa alterada, bêbada. Pessoas que moram em muitos lugares passam por aqui pelo Centro”, conta Juscelino com os olhos treinados, direcionados para o portão do prédio. Não sente medo de ir até a praça quando vem trabalhar. Mesmo sabendo dos diários assaltos ao redor dela. Para ele, o local deveria receber mais atenção das autoridades. “É mal cuidada. Tem que dar assistência para essas pessoas que estão morando na praça”, afirma o vigilante. Para Juscelino, o ambiente é bom até. O bairro é agradável e não difere muito da Restinga. “Lá é um pouco mais perigoso. Aqui não é perigoso pra mim, para as outras pessoas, sim. Eu sei me cuidar, fiz cursos de segurança”, garante Juscelino.

ESPERA, VOLANTE E ASSALTO “Olha que sacanagem, depois querem falar mal do político, olha que casa ruim a dela. Tem que prender tudo essa gente”, esbraveja um taxista em uma pequena guarita de madeira da praça, com um café puro na mão e um cigarro na outra, ao assistir a uma matéria sobre pessoas de classe média e alta, residentes de bairros nobres do Rio de Janeiro e que acumulam pensões e auxílios a pessoas carentes. Muita gente acredita que a falta de segurança se deva justamente à desigualdade e ao dinheiro que não vai para os lugares certos. E se há quem precisa lidar com segurança, ou com a falta dela, são os três taxistas que trabalham no ponto Capitólio e que aguardam passageiros do lado da praça que dá para a Avenida Borges de Medeiros durante as madrugadas. O taxista Paulo Tosi trabalha no ponto há 10 anos. Os olhos cansados do taxista informam que já é tarde. Mas ele segue lá. Não tem escolha. “De dia é bom, à noite aqui fica deserto, naquela parada até mataram gente”, conta ele, que já foi assaltado por passageiros, ao referir-se a uma parada de ônibus a 100 metros do local. No entanto, Paulo aponta uma contradição da praça: ao mesmo tempo em que é movimentado pela boemia, e pelo público de uma lanchonete que fica aberta 24 horas, bem em frente, o perigo sempre ronda, e parece que ele está sozinho. Um dos colegas de Paulo, Celso Guimarães, residente em Canoas, na Região Metropolitana ganha um salário mínimo da Previdência Social e paga


800 reais de aluguel. “Sou aposentado e tenho que trabalhar. A segurança é zero. Tu vê algum brigadiano aqui? Só estão cuidando lá da farmácia. Te acontece alguma coisa, a câmera pega [há câmeras ao redor da praça] e não acontece merda nenhuma. Não é isso, Paulinho?”, diz Celso, chamando o amigo de lida para confirmação. Paulo não escuta ou não quer acompanhar a fala do colega. “Não tá ouvindo o que eu tô falando? Tá dormindo?”, ri. Um taxista, que não quer se identificar já aponta outro problema, o parquinho que, para ele, é um “cachorródromo”. Ainda assim, os taxistas se reúnem esporadicamente para um churrasco na praça, a despeito de tudo que ocorre ao redor. Criam um espaço de confraternização, com muita carne e cerveja. Bem em frente, o bar do Seu Oclésio, onde diariamente se encontram senhores aposentados e jovens das faculdades próximas, vende a bebida. Bem como os colegas, também foi assaltado. “Dois guri. Levaram carteira, dinheiro e documentos. Deixaram o táxi. Não chegaram a agredir”, conta o taxista.

O LIMBO E A RISADA Passando pela praça, em direção ao Centro, três jovens – falando alto, alegres – se sobressaltam e apressam o passo quando o repórter se aproxima, pedindo por entrevista. Quando ouvem a palavra UFRGS, param e olham para trás. Camila Welch, 22 anos, Gabriele Cardoso, 18, e Gabriel Gomes, também 22, voltavam do Shopping Praia de Belas. Costumam evitar a área, preferem o viaduto do Brooklyn. Mas se obrigam a passar pelo local quando voltam da Cidade Baixa ou do shopping, já que residem fora de Porto Alegre e precisam pegar o trem. “Com essa praça eu tenho um pé atrás”, admite Gabriel, que também já frequentou os brechós que acontecem ao redor do local, conhecidos como “Caminho dos Antiquários”. “Com essa praça eu não me sinto muito [segura]. Passo corridão“, acompanha Camila. “Mas azar, é o caminho”, completa Gabriela, que pausa a fala e olha para trás quando

O bar do Seu Oclésio reúne de mendigos a advogados

passa um motociclista. Se tiverem que passar por aqui, garantem os três, vão passar. “É o caminho mais seguro”, fala, meio relutante, Camila. O repórter pergunta se, de fato, ela acha o mais seguro. Ela ri. “Não acho nada, na real.”

A CASA NA PRAÇA No lado da praça que dá para a Demétrio, cerca de 10 pessoas dormem ao chão, na calçada ou entre os arbustos. Uma senhora que se alimenta com uma marmita usando as próprias mãos, certamente acima dos 60 anos, foge do repórter quando ele se aproxima. Ela reside na praça. Perto dela, dois rapazes, muito magros, acendem cachimbos metálicos e encaram o repórter de forma pouco amistosa. Não é o caso de José Luis Saraiva, 63 anos, oriundo de Uruguaiana, município localizado a 630 quilômetros de Porto Alegre. Ele nasceu nos anos 1950, quando o sonho dos positivistas por uma Porto Alegre parisiense, progressista e avançada já tinha perdido força. Hoje Zé, como se refere a si próprio, mora na praça ao lado da rua de um desses positivistas. Tem como companheiros uma mochila, um colchão, um cobertor e a “pequena” – uma cachaça barata. Viciado em álcool, Zé deixou um lar regular por “problemas com mulher”. Segundo ele, trabalhava em um estacionamento quando aconteceu. Optou

pela rua há seis meses. “Os momentos da vida são complicados. Entra mulher. É um monte de coisa. Aí tu diz assim: ‘vou dar um tempo’. Eu quero recomeçar ”, conta Zé. “ Tem mulheres aí... vou te dizer bem sincero, tu é um menino, mas cara, eu ainda não tô preparado para arrumar uma mulher. Eu bebo, fumo cigarro e, te digo mais, não passo disso aí, não fumo maconha, não.” Com uma voz que lembra a dos maiores locutores do Rio Grande do Sul e uma dicção que parece treinada, Zé fala sobre as dificuldades da vida, se emociona ao contar sobre sua rotina. Recebe ajuda dos vizinhos, tem local para banho e consegue se alimentar até quatro vezes por dia com doações de instituições de caridade e restaurantes. “Sou um cara feliz. Se ninguém põe a mão em você, se ninguém mexe no teu... eu tenho minha carteira, minha bolsa, meus quatro reais. Aqui é uma tranquilidade. Não me sinto desprotegido. É uma paz de espírito.” Na praça que fez de casa, José não se sente violentado, pelo contrário, se sente alegre. “Será que eu não tô falando demais, cara? Jornalismo é entrevista né, não tô te deixando perguntar”, fala em bom humor o morador da praça. “Jornalismo é feito de pessoas, seu Zé.”

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EDIFÍCIO SANTA CRUZ

A moradora do último andar, Marília, chama seu apartamento de oásis


ODA RUAGIGANTE DOS ANDRADAS CONSIDERADO O MAIOR PRÉDIO DA CAPITAL, O EDIFÍCIO SANTA CRUZ POSSUI 107 METROS DE ALTURA, 31 ANDARES E MAIS DE 50 ANOS. O QUE ELE PODE NOS CONTAR?

Texto: Arthur Ruschel ruschel.arthur@gmail.com Fotos: Camile Belmonte, Guilherme Rangel e Luísa Nunes camilebelmonte@gmail.com haaserangel@gmail.com luisanunesc@hotmail.com


Uma das primeiras moradoras, Marília, 66 anos, tinha apenas 13 quando mudou-se para o prédio

GUILHERME RANGEL

Rua dos Andradas, Centro Histórico de Porto Alegre. Quem passa pela estreita passagem, perde-se entre um emaranhado de prédios nos dois lados da via. Quase é impossível perceber que, ali mesmo, está incrustado um imponente gigante: o Edifício Santa Cruz. Com uma área que abrange 50 mil metros quadrados entre a Rua dos Andradas e a Rua 7 de Setembro, o edifício foi feito de forma escalonada: cada bloco é menor do que o seu antecessor. O método é utilizado, no meio arquitetônico, para distribuir o peso da estrutura e proporcionar um ar de leveza à construção. Além disso, é possível evitar que, ao redor do prédio, formem-se uma grande quantidade de sombra. É o que os arquitetos chamam de “Ângulo de Insolação”. Devido a sua inclinação, talvez seja difícil reconhecê-lo de baixo para cima. São tantos prédios ao redor que sua altura é despercebida facilmente. Manter a visão sobre os números é a

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“ESSA É A COISA MÁGICA DO APARTAMENTO. QUANDO EU ESTOU LÁ EMBAIXO, ESTOU CANSADA E PENSANDO EM TODAS AS COISAS RUINS QUE A CIDADE TEM. QUANDO EU SUBO E CHEGO AQUI: LUZ, SOL, SILÊNCIO. EU APENAS DIGO PARA OS NAVIOS: ‘OI! TUDO BEM? BEM-VINDOS AO PORTO’” Marília Levacov Moradora

melhor solução para encontrá-lo, apesar de a numeração 1234 já estar um pouco apagada. Com seus 107 metros de altura e 31 andares – todos sustentados por 120 pilares de aço e concreto –, o prédio possui uma fachada de mármore que estampa o nome do maior arranha-céu da capital gaúcha. O corredor amplo leva para o hall, como se fosse o coração do gigante. Um grande número de pessoas circula por ali todos os dias. “Isso aqui é uma cidade”, desabafa o zelador do prédio, Vanderlei Gomes de Souza, 63 anos. Com salas comerciais que vão do primeiro ao 24° andar, o prédio só possui moradores a partir do andar seguinte, indo até o 31°. Não é loucura pensar que, quem mora no último andar, vive no lugar mais alto da Capital. Ao todo, 11 elevadores são encarregados de dar fluidez ao formigueiro. São 45 segundos que demarcam a subida do térreo ao último andar do prédio, e é lá, no topo, que habita a moradora mais


LUÍSA NUNCES E CAMILE BELMONTE

antiga do Santa Cruz. Marília Levacov, 66 anos, doutora em Novas Tecnologias, vive no menor apartamento do andar, com 200 metros quadrados, três quartos e três banheiros. Além do dela, existem mais três locações, mas apenas uma dessas em uso. Segundo ela, a definição para a sua moradia já está na ponta da língua: “Bem-vindo ao meu oásis”, disse ao repórter. O Santa Cruz foi planejado em 1956 pelo arquiteto Carlos Alberto de Holanda Mendonça, que viria a falecer um ano depois. O projeto ficou sobre a alçada de Jayme Luna do Santos, que realizou uma série de modificações até a inauguração, em 1965. Foi nesse ano que Marília, então com 13 anos, mudou-se com a família para o local. Produzido e montado pela Companhia Siderúrgica Nacional, o gigante serviria como sede administrativa e agência matriz do extinto Banco Agrícola Mercantil, também conhecido como Agrimer. Sua arquitetura remete

ao Modernismo Europeu, marca dos anos 1910 a 1950, que só chegaria em peso no Brasil na década de 1970. Aço e concreto eram utilizados para passar um ar de leveza e de simplicidade aos prédios modernistas, além de oferecer uma base sólida, essencial para construções cada vez mais altas. Marília lembra muito bem do período em que o prédio estava em obras. “Na época da construção, víamos os pedreiros transportarem os parafusos incandescentes pela construção. Eles eram fixados ainda quentes nos buracos da estrutura”, recorda. A ideia de morar no Santa Cruz partiu do pai, o engenheiro e arquiteto Paulo Ricardo Levacov, já falecido, entusiasta da nova onda de prédios construídos na Capital da década de 1950. “Ele estava há tempo animado com o projeto, por ser algo inovador para a cidade”, lembra Marília. Conforme a moradora, para entender a construção, é preciso compreender

como era o Centro da época. “Ele era bem frequentado. Tudo passava por aqui: lojas, bancos, pessoas da mais alta classe porto-alegrense. Era extremamente seguro, pois tudo era aqui.” Dois motivos foram elencados pelo pai de Marília para a compra do apartamento. De acordo com ela, o engenheiro era sempre atento aos mínimos detalhes: “Primeiro: esse era o único apartamento que possuía janelas de vidro que iam do chão até o teto. Isso permitia que a luz entrasse com toda a intensidade em todas as peças”. E completa: “O segundo motivo: o apartamento está virado para o norte. Podemos ver da ponte do Guaíba até a Zona Sul de Porto Alegre. Tenho a vista mais linda da Capital. Posso ver o sol nascer de manhã e se pôr no final da tarde”. A vista, segundo a moradora, é a marca registrada do último andar do prédio, o que a faz ser apaixonada por ele. Os 107 metros de altura que separam o chão do “oásis” de Marília fizeSEXTANTE Dezembro de 2018

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LUÍSA NUNCES E CAMILE BELMONTE ACERVO DO MUSEU DE PORTO ALEGRE JOAQUEM FELIZARDO

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ram com que as memórias de tempos de outrora permanecessem enraizadas. “Meu pai dizia: ‘Estou tão alto como se tivesse próximo a Deus’.” Não à toa, Paulo Levacov tinha uma rede bem em frente à janela da sala para apreciar a visão que possuía. Ela está lá até hoje. “Eu e minha mãe costumávamos olhar os navios que entravam no porto. Ela me ensinou a diferenciar cada um deles”, explica Marília. De acordo com a moradora, toda vez que eles chegavam ou saíam, ela os saudava com um “Até logo, navio!”, ou “Bem-vindo! Deve ter feito uma longa viagem!”. Os anos morando no topo do Santa Cruz também fizeram de Marília uma especialista no assunto. “Está vendo a marca vermelha no casco? É sinal de que ele ainda não está carregado. Quando ele é abastecido, essa parte fica abaixo d›água”, explica apontando para uma embarcação que recém entrou no porto.“Espera”, alerta. “Vou pegar um binóculo para a gente ver”, diz ao repórter. Apesar dos anos de glamour que vivenciou, o Centro do dias atuais não é mais o mesmo da inauguração do Santa Cruz. “A degradação de hoje não nos permite imaginar o ‘chiquê’ que era”, lembra Marília. “E o pior é que não faz tanto tempo assim”, lamenta. “Quando eu tinha 13 anos”, conta, “tudo acontecia aqui, eu gostava. Agora, esse Centro degradado, mal cuidado, não é o Centro da minha adolescência”. A situação atual fez com que Marília pensasse em vender o apartamento, mas a insegurança da região e a falta de garagem no prédio tornam difícil a procura por novos moradores. A loucura do dia a dia na região onde está pregado o gigante Santa Cruz pode parecer desanimadora. Entretanto, quando Marília sobe até o topo, tudo isso muda. “Essa é a coisa mágica do apartamento. Quando eu estou lá embaixo, estou cansada e pensando em todas as coisas ruins que Para distribuir o peso da estrutura, o Santa Cruz foi contruído de forma escalonada (abaixo), método revolucionário para os anos 1960


a cidade tem. Quando eu subo e chego aqui: luz, sol, silêncio. Eu apenas digo para os navios: ‘Oi! Tudo bem? Bemvindos ao porto’”.

UM SENHOR MUITO BEM CONSERVADO “Tu pode olhar que ele não tem nenhuma rachadura”, gaba-se o atual administrador do Santa Cruz, Vitor Hugo Ostrowski, 71 anos. No comando do prédio desde primeiro de dezembro de 2017, Ostrowski já está na sua segunda gestão – a primeira foi de 1980 até 1993. Ele fala com orgulho: “Todas as gestões se preocuparam em mantê-lo bem cuidado”. Mais de 50 anos se passaram, e o Santa Cruz constantemente se atualiza. De acordo com Ostrowski, por conta da idade do prédio, ele precisa ficar 24 horas “ligado”. “Os problemas mais corriqueiros são em relação às tubulações de água e de adaptação às normas dos bombeiros. Só agora os elevadores começaram a dar defeito.” Dos 11 elevadores, três são encarregados de levar pessoas do térreo ao 11° andar. Quatro levam do 11° até o 24°. Outro dois, localizados em uma

“É UM PRÉDIO QUE TU NÃO PRECISA DIZER: ‘RUA DOS ANDRADAS, Nº 1234’. SE CONHECE PELO NOME: SANTA CRUZ, O PRÉDIO MAIS ALTO DE PORTO ALEGRE” Vitor Hugo Ostrowski Síndico

ala mais próxima à Rua 7 de Setembro, sobem do térreo ao 12°. Todos já citados servem às salas comerciais. Dois elevadores são exclusivos para os moradores: eles levam do 25° até o 31°andar. O número de elevadores serve para dar vazão a grande quantidade de pessoas que passa pelo saguão do prédio. Conforme dados levantados pela administração, somente no ano passado, mais de 4 mil pessoas – entre moradores e não moradores –, circularam dentro do Santa Cruz. “É um prédio antigo, mas moderno. Imagine em 1965 o arquiteto progra-

Além de 11 elevadores, o edifício tem uma escada que leva até o 31° andar

mar 11 elevadores para um número pequeno de moradores. Eles devem ter pensado: ‘Mas para quê isso? Por que tanto elevador?’”, ressalta Ostrowski. Para o administrador, escolhas como essa só reforçam o pioneirismo do edifício. “Se não fosse isso, o Santa Cruz não estaria imponente até hoje. Foi uma concepção diferenciada e com visão de futuro”. Ostrowski não esconde seu orgulho pelo prédio: “É um senhor muito bem conservado”. Destacado ou discreto; conhecido ou desconhecido; velho, mas moderno, o edifício continua pregado na Rua dos Andradas, tornando-se o resquício de um Centro que já não existe mais. Olhar para cima pode não ser a melhor solução: foque no número. Ele pode estar um pouco apagado devido ao tempo, mas o tempo não apagou o gigante. “É um prédio que tu não precisa dizer: ‘Rua dos Andradas, nº 1234’. Se conhece pelo nome: Santa Cruz, o prédio mais alto de Porto Alegre”, afirma Ostrowski. SEXTANTE Dezembro de 2018

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DANILLO LIMA

VIADUTO DO BROOKLYN

A solidariedade do Prato Feito das Ruas é uma das formas de transformar o espaço


RESSIGNIFICANDO

CONCRETO E AÇO PAISAGEM OBRIGATÓRIA DE QUEM ANDA ENTRE O CENTRO E A CIDADE BAIXA, O VIADUTO DA AVENIDA JOÃO PESSOA MOSTRA QUE A DIVERSIDADE É CAPAZ DE TRANSFORMAR QUALQUER ESPAÇO

Texto e fotos: Thuanny Judes Fotos: Danillo Lima e Lucas Borghetti tujudes@gmail.com d_anillolima@hotmail.com lucas.borghetti@ufrgs.br


O vento frio na noite de inverno não afasta a vontade de ir para a rua. Do aglomerado de pessoas ao lado do viaduto Imperatriz Dona Leopoldina, sai o grito que avisa que é hora do intervalo. Wesley Conceição, 20 anos, passa entre os participantes e senta no degrau baixo de uma das lojas quase escondidas na Rua Sarmento Leite. O jovem é um dos organizadores da Batalha do Brooklyn, que acontece quase todas as sextas-feiras sob o viaduto. O nome do evento vem da forma como a construção ficou conhecida no final da década de 1990, quando skatistas instalaram rampas e muretas, criando outro significado para o espaço. Em 2017, o grupo de jovens apaixonados pela cultura hip hop se reuniu pela primeira vez em uma praça na Avenida Oscar Pereira, mas identificou na estrutura de concreto e aço da Avenida João Pessoa o espaço perfeito para abrigar as batalhas. Influenciados por outros grupos da cena underground de Porto Alegre que já recorriam ao viaduto nos dias de chuva, passaram a se reunir ali quinzenalmente. Com o decorrer do tempo, a reunião passou a ser semanal, com exceção da última sexta-feira do mês, quando o evento ocorre em Canoas para a chamada Batalha da Morte. Como espaço para difundir vários tipos de cultura, o Brooklyn, como é conhecido, abriga a diversidade. Em dias de batalha, o vão reverbera as vozes que se enfrentam entre rimas e batidas. “Eu acho muito bom pra espalhar o que é a cultura hip hop, sabe? Porque tem muita gente que não faz a mínima ideia do que seja”, afirma Wesley. Os duelos, moldados por versos com os mais diversos temas, chamam a atenção dos que passam. Antes do início da 35ª Batalha do Brooklyn, Rafael Delgado, 23 anos, destacou a movimentação em torno do local: “Tu viu aqui, enquanto a gente tá conversando, passou umas três, quatro famílias”. O escritor e ativista cultural ressalta a ideia de que o local é uma “zona morta” da cidade, mas que, quando tomada pelo grupo, ganha outro sentido. “O rap acaba se encontrando com essas paradas sem

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querer, né, com essas coisas meio na marginalidade. Porque isso aqui, por mais que seja uma área central, ela tá à margem dos olhos dos governantes”, destaca. Durante o dia, o viaduto é um caminho do qual grande parte dos pedestres desvia. A insegurança que toma conta do cotidiano dos porto-alegrenses marca lugares ociosos como viadutos, gerando uma sensação de abandono. Para quem se apropria desses espaços à noite, a sensação é de acolhimento. Wesley discorda da maioria e considera o viaduto uma área de ampla diversidade. “Eu tenho convicção de falar que aqui não é inseguro”, defende. Contudo, para a estudante Pietra Schuquel, 17 anos, que também ajuda a organizar as batalhas, o local pode ser perigoso mesmo em noites movimentadas. A jovem revela que já foi assaltada no local durante uma batalha. Para além dos assaltos, o viaduto também é mal visto por conta dos desabrigados que se instalam ali, mas Wesley não vê dessa forma: “A gente que tá ocupando o espaço deles, não o contrário, entendeu? Então, a gente que tem que chegar respeitando”. Pietra conta que existe mobilização por parte do grupo, que reúne roupas e cobertores para essas pessoas. Na movimentação noturna, o espaço ganha mais vida e propaga cultura para quem estiver disposto a parar e conferir.

PELA MANHÃ, SOLIDARIEDADE O movimento intenso da sexta-feira à noite dá lugar à calmaria nos sábados pela manhã. Ao abrigo da chuva e do sol, um grupo de amigos e cozinheiros aquece o coração de quem passa e alimenta a esperança de quem não tem a oportunidade de fazer uma refeição completa diariamente. “Não tinha ninguém trabalhando aqui”, afirma a pedagoga Claudia Conceição, uma das organizadoras da ação Prato Feito das Ruas. Com mais de dois anos de atividade, o grupo tem mostrado que, para fazer uma mudança na vida de alguém, basta uma boa pitada de solidariedade. O projeto começou com quatro pessoas

“É MUITO MAIS ESSA COISA DO DIÁLOGO E DE CONSTRUIR COMO A GENTE VAI OCUPAR ESSE ESPAÇO. E ISSO NÃO É A ARQUITETURA QUE FALA, É A RELAÇÃO ENTRE AS PESSOAS” Daniela Cidade

Professora de Arquitetura e Urbanismo da UFRGS

servindo 50 refeições. No decorrer dos meses, os idealizadores assistiram à chegada de mais voluntários interessados em ampliar a ação e o atendimento. Hoje, o grupo serve em média 900 refeições a cada sábado, incluindo suco, sobremesa e a possibilidade de levar uma marmita para casa. Entre os assistidos, crianças, adultos e idosos. Alguns vivem nas ruas, outros, em albergues. Muitos têm casa e família, mas a renda baixa dificulta a alimentação. Segundo Claudia, a situação dos idosos é ainda mais delicada, já que muitos têm que escolher entre comprar medicação, da qual são dependentes, ou se alimentar. Para o grupo, o espaço precisa ser ocupado para mais ações como essa. Os eventos diurnos, assim como os noturnos, também são necessários e dão outro significado à área, muitas vezes ociosa. “Depois que a gente entra, é muito difícil de sair. A gente se torna uma família pra eles”, revela Claudia, emocionada. De acordo com a pedagoga, o viaduto é o espaço ideal para a ação. O arquiteto e urbanista Jean Michel Fortes dos Santos propôs, em seu trabalho de conclusão de curso, um projeto de intervenção para o viaduto. Novas diretrizes de infraestrutura urbana foram pensadas a partir do que Jean chama de narrativas, ou seja, relatos de quem utiliza o viaduto. “Pra isso eu fui ali trocar ideia com as pessoas que têm alguma relação com isso”, relata. Ao ouvir quem convive diariamente com o


LUCAS BORGHETTI DANILLO LIMA

A vontade de fazer o bem ao próximo é o que move o grupo voluntário PF das Ruas

THUANNY JUDES

Brooklyn, o arquiteto constatou que o aspecto hostil, para muitos caracterizado pela presença de pessoas desabrigadas, passa uma sensação de insegurança. Para ele, o poder público ajuda a alimentar a má fama do local, uma vez que se utiliza de ações higienistas que não resolvem o problema de quem busca abrigo e também não trazem segurança para os cidadãos. Para tentar resolver esse e outros problemas detectados nas narrativas, Jean pensou áreas de convivência para estimular a circulação e a ocupação do local. Uma cafeteria e uma oficina de bicicletas também fazem parte do projeto do ex-estudante, que procurou integrar pessoas e criar um ambiente agradável. As ideias seguem apenas nas pranchas utilizadas para apresentar o trabalho à banca avaliadora. Jean continua acreditando que uma renovação, como a que foi pensada por ele, seja extremamente significativa para a cidade e seus habitantes. A professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) Daniela Cidade acredita que para que espaços públicos como esse possam ser formalizados para manifestações culturais, feiras e eventos, uma boa iluminação e uma estrutura básica que permita à população uma diversidade de usos devam ser prioridade. No entanto, assim como Jean, Daniela não crê que o espaço seja o mais importante: “É muito mais essa coisa do diálogo e de construir como a gente vai ocupar esse espaço. E isso não é a arquitetura que fala, é a relação entre as pessoas”, explica. O que todas essas pessoas têm em comum é a esperança na ressignificação de espaços urbanos para integrar e beneficiar a população, mostrando que o projeto mais rico que uma cidade pode ter é o da apropriação feita por seus próprios cidadãos.

As batalhas que ocorrem nas sextas-feiras ajudam a movimentar o espaço vazio que costuma ser evitado pelos pedestres SEXTANTE Dezembro de 2018

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ENSAIO

ESQUELETÃO Eu vejo a cidade do alto desde a década de 1950. Com meu corpo grande e inacabado, pintado em cores de tijolo sem reboco, sou um pedaço do passado cravado no chão do Centro de Porto Alegre. Enquanto muitos vieram e muitos foram, eu fiquei. Sou moradia, depósito e história. Sou presente, passado e futuro. Sou o esqueleto de tudo isso e muito mais: do descaso, da desigualdade, da burocracia e da curiosidade. O que há por trás de minhas paredes? Como é ver a cidade daqui de cima desse grande esqueleto que eu sou? Me querem ver no chão, mas já faço parte do cenário e da história dessa cidade que eu vejo do alto.


Texto: Glauber Cruz glaubeercruz@gmail.com Fotos: Mariana Barcellos barcellmari@gmail.com


CAMPO DA TUCA

TACIANA FARIAS

A Rua D é a principal via da comunidade e fica localizada ao lado do campo de futebol


FUTEBOL, MÚSICA E OUTRAS PAIXÕES HISTÓRIAS DE ORGULHO E SAUDOSISMO DA COMUNIDADE QUE SE FORMOU DENTRO DO BAIRRO PARTENON Texto: Samara Onofre Fotos: Glauber Cruz e Taciana Farias samara.onofre@ufrgs.br glaubeercruz@gmail.com tacifariasmartins@hotmail.com

Animada ao falar sobre o Flamenguinho, Vó Gilda pede para esperar que ela coloque a camiseta do time para tirar a foto. Aos 77 anos, não joga futebol, mas ainda encontra disposição para estar perto do clube do coração. “Sempre acompanho meu Flamenguinho, onde eles forem. Pode faltar jogador, mas eu não falto”, conta. Nascida em Porto Alegre, Gilda Maria dos Santos morava na Vila Nova, Zona Sul da cidade, quando em 1962 se mudou para o Campo da Tuca, na Zona Leste. Teve dez filhos e criou outros tantos que não eram biológicos. O Sport Club Flamenguinho foi fundado em 9 de novembro de 1975 por Adroaldo Padilha de Moraes, conhecido como Dom, e herdado por três dos filhos de Dona Gilda: Paulo Roberto, Silvio Roberto e Gilson Santos. O clube do Campo da Tuca costumava desenvolver atividades além do esporte. Oficinas, desfiles, festas para crianças em dias temáticos e até uma ala especial no grupo carnavalesco Imperadores do Samba. Saudosista, Gilda mostra os troféus do time e explica que hoje, com o desenvolvimento tecnológico e outras distrações disponíveis, as novas gerações da comunidade já não têm tanto interesse em participar das ações do clube, por isso não existem mais com tanta frequência, mas pessoas

como ela ainda são grandes incentivadoras da manutenção da cultura local. Quando se mudou para a Zona Leste, Vó Gilda foi morar no antigo casarão, uma das primeiras construções naquela parte da cidade que hoje vem a ser a comunidade do Campo da Tuca. O espaço era uma pensão em que os inquilinos pagavam em torno de 70 cruzeiros. O casarão, que já não existe mais, pertencia a Adilles Meirelles, a dona Tuca, uma senhora que não morava lá, mas tinha pessoas de confiança que ficavam responsáveis por receber o dinheiro dos aluguéis e de cuidar do local. A comunidade que se localiza dentro do Bairro Partenon cresceu em torno do campo de futebol e hoje tem os seguintes limites estabelecidos popularmente: ao leste, o riacho, ao sul e oeste, a Rua Largo da Paineiras e, ao norte, a Avenida Veiga. Formado há cerca de 60 anos, o Partenon não tem nenhuma grande indústria ou prédio alto e abriga casas de funcionários públicos e famílias que moravam em outros cantos da cidade. A capital gaúcha passou na década de 1950 por um processo de gentrificação. Populações pobres, como a família da vó Gilda, foram obrigadas a se deslocar para zonas mais periféricas, em nome do encarecimento e da higienização por parte da administração pública.

Devido a esse movimento para lugares como o Bairro Partenon, surgiu então a preocupação da dona Tuca em manter o espaço do campo de futebol preservado. Hoje o local recebe seu nome como homenagem.

O SURGIMENTO DAS ENTIDADES Durante muito tempo, a vila não recebeu nenhuma atenção da Prefeitura Municipal. Até os anos 1980, não tinha água canalizada, luz e saneamento, e todas as casas eram feitas de madeira. As pessoas que ali moravam não eram assistidas por nenhum órgão, nem tinham seus direitos básicos garantidos. Isso começou a mudar com o surgimento de entidades, como os clubes de futebol, que ocupavam o campo, e a Associação Comunitária do Campo da Tuca (ACCAT), formada em 1978 por moradores insatisfeitos com o descaso público. Entre os fundadores está Antônio Matos, militante, produtor cultural e ainda um dos líderes comunitários. Incisivo quando precisa defender a comunidade, aos 68 anos ainda luta para que o lugar seja reconhecido como uma referência em cultura e oportunidades. Bom de papo, Antônio senta na sala de sua casa e conversa sobre qualquer assunto: política, economia, música, futebol, morte e outras coisas. Foi morar na Tuca quando criança. Daquela época SEXTANTE Dezembro de 2018

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se lembra bem das dificuldades que não só sua família, mas a vila inteira passou. O mais novo entre dez irmãos descreve sua mãe como uma mulher batalhadora. “Ela sempre dizia quatro coisas: respeitar a Deus, respeitar os mais velhos, trabalhar, e o quarto ponto eu não me lembro agora, mas não era para estudar, nós não éramos incentivados a isso”, conta. Casado há mais de 40 anos com Leci Soares Matos, Antônio toca com a esposa alguns projetos da Associação. Além disso, também é o presidente da cooperativa de reciclagem local, espaço que, por meio de parcerias com a Prefeitura, gera renda e trabalho para pessoas da comunidade através da separação de parte do lixo municipal. Apesar da companheira, do filho, dos netos e de uma comunidade inteira que se conhece, Antônio revela que está começando a sentir a solidão chegar. Perdeu a mãe, oito dos nove irmãos e viu muitas pessoas da Tuca partirem. “Quando você tem uma família muito unida como a minha e você vê todo mundo indo assim, você sente que é o próximo”, diz.

RECONHECIMENTO CULTURAL Assim como no futebol, as gerações anteriores eram muito mais participativas nas ações culturais da comunidade do que as de agora. Antigamente eram mais frequentes as oficinas de música, reciclagem, esportes e artes, e o campo era mais utilizado para as festas em datas comemorativas. Dentre os momentos inesquecíveis da comunidade está o dia 7 de fevereiro de 2006, quando um dos principais artistas da música brasileira e, na época, Ministro da Cultura, Gilberto Gil, foi recepcionado na vila da Zona Leste ao som de tambores. Cerca de mil pessoas viram Gil inaugurar um totem que marcava simbolicamente a identidade e a força dos trabalhos desenvolvidos nos Pontos de Cultura da Região Sul. Gil cantou Domingo no Parque com a comunidade. Hoje em dia, a comunidade é prestigiada pelo Pagode na Cervejaria, que acontece nas sextas-feiras, e pelo Baile Funk da Tuca, geralmente nos sábados. Esses eventos são muito frequentados pelo público de fora da comunidade e são importantes

“HOJE TUDO ACONTECE ATRAVÉS DA INTERNET, ENTÃO É ALI QUE ESTÁ A NOVA CULTURA DA TUCA” Pedro Acosta

Ex-morador da comunidade

fonte de renda, pois os moradores aproveitam para vendas ambulantes ou em seus próprios comércios. “Sinto que não tem mais nada de cultura aqui, nada que incentive e oriente as crianças”, diz Magali dos Santos Barreto com um ar meio desesperançoso. Ela, que tem 44 anos e mora na Tuca há 43, conta que costumava promover festas e oficinas para as crianças da comunidade, mas com o tempo foi parando por achar que aquilo estava tomando um outro rumo. Segundo Magali, as coisas passaram a ser muito comerciais. Na concepção dela, as ações

Antônio e Leci ajudaram a fundar a Associação Comunitária do Campo da Tuca

GLAUBER CRUZ

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ARQUIVO ACCAT

na vila não são mais feitas pela cultura e sim pelo dinheiro envolvido. Seu pai, Eloíno do Santos Barreto, conhecido como “Cabeludo”, foi um dos fundadores do time local “União da Tuca”. Ele tinha um boteco no bairro e conhecia todo mundo. Magali se recorda da infância e da adolescência, quando participava ativamente das ações culturais. Ela lembra com sorriso no rosto de concorrer para ser rainha e princesa do Flamenguinho e dos desfiles na Imperadores. Morando com o atual marido, Daniel da Silva Becker, as três filhas, Maísa Diuly, Demillyn Patrícia e Danielly e o neto, Miguel, Magali tem uma loja de variedades no bairro. Gosta muito da vizinhança e sempre se sentiu segura no local. Magali se casou pela primeira vez com 15 anos, teve a primeira filha, Maísa, com 21, e tentou se manter estudando. Conseguiu terminar o Ensino Médio, mas com a chegada da segunda filha já não foi possível uma especialização. Maísa foi a primeira da família a entrar em uma faculdade. Ele ela cursa Publicidade e Propaganda na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Quem também já aproveitou muito as ações da comunidade foi Pedro Acosta. Filho de pai frentista e mãe empregada doméstica, hoje tem 38 anos e cursa doutorado em Etnomusicologia na UFRGS. Cresceu no Campo da Tuca junto com suas quatro irmãs mais novas. Os pais se separaram quando ele tinha 11 anos, e a vida da família mudou bastante desde então. A mãe e os filhos se mudaram para outra casa um pouco mais acima no morro, mas Pedro sempre voltava para a Rua Comunitária para rever os amigos. Algum tempo depois, conseguiram voltar a morar na Tuca. Ele fala de sua mãe, Líbia Regina Acosta, como uma mulher trabalhadora e forte que criou, educou e incentivou os filhos a sempre estudar e trabalhar para não passar dificuldades. Pedro estudou na creche da Associação Comunitária do Campo da Tuca (ACCAT), participou durante a infância e a adolescência dos projetos e oficinas que eram ofertados no lugar

e ali viu se desenvolver ainda mais seu interesse pela música. Cresceu com a influência do pai tocando instrumentos de percussão, participou da bateria da escola de samba “Os Filhos da Candinha” e também foi um dos integrantes do grupo de pagode “Swing da Gente”. Pedro lembra que, quando completou o Ensino Médio, sentiu a pressão e a necessidade de ter um trabalho de carteira assinada para ajudar a família. Conseguiu um emprego como lavador de carros, onde ficou por dois anos. “Em determinado momento eu quis largar o trabalho, pensei que tinha que investir na música, já que eu tinha uma banda de pagode e amava fazer isso”, conta. Com o dinheiro da rescisão, ele fez a carteira profissional na Ordem dos Músicos. Primeiro passou pelo teste prático e depois fez um curso teórico para poder lecionar. Foi aí que Pedro voltou para a ACCAT como oficineiro e professor voluntário. “Eu lembro que cheguei lá, depois de muito tempo, e estava tocando ‘Bonde do Tigrão’, as crianças cantando, e eu cheio de preconceito em relação ao funk”, relata. Após isso, Pedro fez magistério, licenciatura em música e mestrado, onde apresentou a dissertação Bailes, festas, reuniões dançantes, trampos, montagens e patifagens: uma etnografia musical no Campo da Tuca, ‘a capital do Funk no Sul do país. Nessa pesquisa, Pedro traz muitos dados e entrevistas que contam

O campo de futebol sempre foi um dos principais pontos de encontro da comunidade

a história do Campo da Tuca e como se desenvolveu a cultura musical no local. Hoje trabalha na Escola Municipal Especial de Ensino Fundamental Professora Lygia Morrone Averbuck e na Fundação de Atendimento Socioeducativo do Rio Grande do Sul (FASE-RS). O professor já não mora mais na Tuca, vive com a esposa e o filho em um apartamento perto da avenida Protásio Alves. Lá sente falta de participar da comunidade ativamente, não costuma nem conversar com os vizinhos direito. Quando pode, volta para a Tuca para visitar a mãe e os amigos e para tocar seu projeto na Rádio Web Tuca, atividade de extensão nascida dentro da disciplina Encontro de Saberes, na UFRGS, e que agora tem continuidade dentro da comunidade. “Na minha época foi muito interessante como a maioria da comunidade se desenvolveu com as ações comunitárias. Hoje tudo acontece através da internet, então é ali que está a nova cultura da Tuca”, explica Pedro. Quem sabe ele tenha encontrado o caminho para revitalizar a cultura do local.

Disponível em versão digital

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HIPร DROMO DO CRISTAL

GIOVANA SCHENATO

As corridas no Hipรณdromo acontecem nas sextas-feiras a partir das 15h

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CAVALOS


A ROTINA DO JOCKEY CLUB NA ZONA SUL DA CAPITAL Texto: Wagner Meirelles wagner.meirelles19@gmail.com Fotos: Camila Pessôa, Carolina Pastl e Giovana Schenato camilafpessoa9@gmail.com carolinamlpastl@gmail.com giovanachiesschenato@gmail.com

MOVENDO

VIDAS

Terça-feira, 8h. Céu fechado, nuvens escuras. Os raros raios de sol acinzentam as primeiras horas do dia. O frio se deve à proximidade com o Rio Guaíba. Além disso, uma garoa fina cai sobre as cocheiras. Mesmo úmida, a terra fofa não chega a virar lama. O estacionamento é guardado por apenas um funcionário que ficará ali até o final da manhã. Ele também é responsável por abrir e fechar as duas cancelas manuais e metálicas da entrada. Os treinadores e jóqueis já aprontam os cavalos para os primeiros trabalhos. Encilhados, os animais troteiam calmamente até as pistas de corrida. Sem se assustarem com o constante vaivém dos funcionários no hipódromo, os cavalos agem em ritmo de rotina. Apesar do som dos passos e das batidas das ferraduras contra o chão, ainda é possível ouvir o canto dos bem-te-vis e dos quero-queros. O veterinário Guilherme Gonçalves, 32 anos, atua no Jockey Club do Rio Grande do Sul desde 2010. Ele destaca que, para cada cavalo, em média oito profissionais estão envolvidos. Atualmente, o hipódromo atende cerca de 470 animais. Guilherme expõe as dinâmicas cotidianas do Jockey Club desde a chegada dos cavalos por meio de caminhões: “Tem o nosso funcionário que recebe o cavalo, confere a documentação. Tem o escovador ou cavalariz, que é a pessoa que lida direto, limpa a cocheira, que a alimenta o cavalo. Vai ter o treinador. Tem o variador, que trabalha os animais na raia. O jóquei é aquele que trabalha e monta nos dias de corrida. Vai ter um veterinário envolvido. Vai ter um SEXTANTE Dezembro de 2018

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ferreiro. Tem a pessoa que traz a cama do cavalo, a serragem que ele fica. Tem quem retire o esterco. Mais os profissionais que trazem a ração e a alfafa, que é o que ele come no dia a dia”.

VISITANTES E APOSTADORES “Muitas pessoas não sabem, mas não é necessário pagar ingresso para entrar no Jockey”, aponta Guilherme. “Se quiser vir passar o fim de semana com a família, é só chegar. O valor mínimo das apostas é dois reais e nem precisa apostar, só se quiser”, esclarece. De acordo com a administração do hipódromo, geralmente os apostadores só comparecem ao estabelecimento durante as corridas equestres. Essas ocorrem toda sexta-feira das 15h às 18h. Existem apostadores que também são proprietários dos cavalos, que costumam acompanhar os animais a partir do relato dos treinadores e veterinários. Quase sempre, os donos mantém uma

relação indireta, confiando na rede de profissionais contratada. O Jockey de Porto Alegre depende de parcerias com outros clubes para se sustentar. Fora as colaborações, as apostas têm contribuído na manutenção do clube. Atualmente, sem o apoio de meios de comunicação, o principal canal de acesso às corridas tem sido o site oficial do hipódromo. O clube conta com duas pistas ovais para o turfe. A menor é usada nos treinos diários dos animais. A maior serve apenas para as corridas nas sextas-feiras. A última também fica mais próxima das arquibancadas, da plateia de apostadores e visitantes. No espaço central do menor trajeto, se localiza a ambulância que atende os jóqueis. Em dia de corrida, ela fica próxima ao partidor. Dada a largada da prova, a viatura ambulatorial acompanha o ritmo dos cavalos. Segundo o enfermeiro Alexandre Rodrigues, 45 anos, a atividade segue a regra: quanto

menor o tempo de espera, melhor o atendimento ao paciente. Quando começou a trabalhar no hipódromo, em 2003, o enfermeiro estranhou a rota da ambulância. “No início, eu não tinha noção nenhuma. Davam a partida e a ambulância corria atrás.” Na entrada do prédio que dá acesso às pistas, há duas bancas de apostas. À esquerda de quem chega, ficam as competições locais, as que acontecem no Jockey Club e as de outros Estados, como Rio de Janeiro, São Paulo e Paraná. À direita, os apostadores podem dar palpite nas competições internacionais, como do Canadá e Estados Unidos. Junto das bancas há televisores que transmitem as disputas nacionais e internacionais. Cada um dos Jockey Clubs regionais realiza a sua competição em dias diferentes. Enquanto a gaúcha acontece na sexta-feira à tarde, as outras provas equestres ocorrem de sábado a segunda-feira.

ENFERMARIA DO CLUBE De acordo com o enfermeiro Alexandre, a principal função da enfermaria é o primeiro atendimento. O maior número dos casos em que o espaço de saúde é acionado é relacionado às quedas, tanto nos trabalhos matinais na raia quanto nos dias de corrida. Além disso, o enfermeiro trabalha na orientação dos profissionais da instituição sobre drogas, alcoolismo e doenças, como DST’s e tuberculose. Enquanto os treinadores cuidam dos cavalos e os frequentadores fazem suas apostas, o veterinário Guilherme está à disposição dos animais antes e depois das corridas

GIOVANA SCHENATO

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GIOVANA SCHENATO

CAROLINA PASTL

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A maioria dos funcionários vêm do Interior do Estado. “As pessoas vem de outro círculo, acostumadas com familiar morando no Interior. Um ambiente muito mais família. E chegam aqui e é uma outra realidade. Então, a gente trabalha aqui para integrar elas à situação [da Capital]. Estou aqui há quinze anos e, graças a Deus, temos conseguido tirar um pessoal do vício das drogas, do alcoolismo”, aponta o enfermeiro. Alexandre explica que o trabalho com os animais ocorre num determinado horário e que existe muito tempo livre. “Como muitos não conhecem a cidade grande, eles ficam muito aqui e acabam caindo nesse círculo vicioso. Aí se opta: ou pelo álcool ou pela droga. Tanto para esquecer o lado emocional e a falta dos familiares como para ocupar o tempo. A gente tenta conversar, orientar para que a pessoa tente sair desses vícios”, esclarece. “É bem complicado, porque tu não tá as 24 horas com a pessoa. Eu tenho o meu horário. É o horário que tenho para sentar, conversar, mas depois se torna rotina. Eu não tenho mais contato com eles, só no outro dia. É bem complicado: 99.9 % parte da pessoa. Tu orienta, tu conversa, mas tem que partir da pessoa mesmo.”

2009, o clube propôs que ele trabalhasse como escovador. Em uma semana, o rapaz deixou a madeireira. No início, a mãe se opôs ao filho se tornar jóquei: não assinou a matrícula na escola de hipismo. Somente após a maioridade, William pôde montar os cavalos. Com o tempo, o jovem conquistou a simpatia do clube: de escovador, se tornou variador e, por fim, jóquei. Em junho de 2011, ele venceu a sua primeira corrida. Em 2014, sofreu um acidente quatro dias antes de disputar o seu primeiro Prêmio Bento Gonçalves, o mais importante do Jockey Club do Rio Grande do Sul. Durante os trabalhos na cocheira, um cavalo trombou contra o rapaz. Resultado:

uma fratura no fêmur da perna direita o afastou das pistas de corrida. Em 2016, de volta ao turfe, ganhou o Bento Gonçalves. A partir de então, despontou no esporte. Hoje, compete nos Jockey Clubs de São Paulo. Terça-feira, 18h. Os portões do hipódromo se fecham. Cada um dos 470 cavalos já está na sua cocheira. Os trabalhadores tomam o caminho para suas casas. No outro dia, todos retomam a rotina. O que se escuta? O trotear dos cavalos. As passadas do vaivém dos funcionários. O canto dos quero-queros e bem-te-vis. Enfim, o anúncio de mais um dia no Hipódromo do Cristal.

EVENTOS DO HIPÓDROMO Janeiro: GP Turfe Gaúcho Diferente das outras modalidades, é realizado em cancha reta. Ou seja, parte da pista oval é fechada com o objetivo de fazer os cavalos correrem em linha reta Maio: Taça Ladies Day Uma homenagem às mulheres. Um torneio com joquetas de outros países. Segundo os organizadores, tem chamado bastante público Setembro: GP Protetora do Turfe Disputa que comemora o aniversário da instituição Outubro: Grande Prêmio Bento Gonçalves Principal foco do hipódromo. Reúne maior público por ser a competição de maior expressão nacional

William Silva, 26 anos, morava na antiga Vila Areião, onde hoje fica a Avenida Diário de Notícias. Na época, os pais eram cozinheiros, sustentavam dez filhos. Em 2004, o pai faleceu. “Minha mãe sempre correu atrás para não nos deixar passar fome”, relata o rapaz. “Não tenho vergonha de falar: antes de entrar para o Jockey, muito pão pedi na padaria para não faltar comida em casa”. Diante da situação familiar, aos 15 anos, William começou a trabalhar em uma madeireira. O guri tinha dois cavalos e uma carroça. “Trabalhando na madeireira, daqui para ali, fazendo o meu serviço, ia ao Jockey buscar restos para o meu cavalo. Ver quem tinha ração para dar. Levava uma vassoura para os caras das cocheiras”, conta. Em

GIOVANA SCHENATO

HISTÓRIA DE SUPERAÇÃO

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CONCEITO ARTE

AFETO QUE 50

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RENOVA


Imagine uma praça, dessas que ficam no interior dos bairros. Um espaço, geralmente, com um número pequeno de brinquedos para as crianças, talvez uma quadra de futebol, algumas árvores e bancos espalhados. A Praça Oliveira Rolim, na Vila Elizabeth, bairro Sarandi, possui todas essas características. Contudo, existe um diferencial: a “casinha” da Conceito Arte. Olhando de fora, se vê a pequena construção amarela, cheia de cores e pallets que ajudam a destacar a sua presença no meio do ambiente. Na sua volta, um jardim com diversas espécies de plantas dá vida e movimento ao lugar: com a passagem do vento, as folhas se mexem e levam adiante o seu sutil aroma. Ao entrar na Conceito, o que se apresenta de fato parece uma casa convencional, com sala de estar, cozinha, banheiro, despensa. O que chama a atenção, porém, é o seu colorido. São rosas, azuis, verdes e tantos outros tons que decoram as paredes, os sofás e os demais objetos que pertencem à casinha. São diversos desenhos, grafites e cartazes que contam um pouco da história do espaço e mostram ao visitante a sua energia.

A CADA TEMPO, UMA NOVA CARA

CONHEÇA A HISTÓRIA DO ESPAÇO CULTURAL LOCALIZADO NO SARANDI QUE DESCENTRALIZA A CIDADE E VOLTA OS OLHARES PARA A PERIFERIA PORTO-ALEGRENSE Texto: Patrícia Barbosa Fotos: Isabel Gomes e Heloíse Bordin patricia.barbosa@ufrgs.br isabellgomes26@gmail.com isebordin@gmail.com

O esboço do que viria a ser a Conceito Arte começou a ser idealizado em 2013. Naquele ano, o grafiteiro Filipe Harp, 31 anos, levou seu filho à Praça Oliveira Rolim para passear quando notou a casa abandonada. A partir disso, passou a buscar pela sua chave, que chegou até ele por meio dos servidores da Prefeitura de Porto Alegre. Em março de 2014, o artista não sabia ao certo o que fazer com o espaço, mas, após algumas reuniões com seus grupos de amigos, a ocupação deu origem, também, ao coletivo Conceito Arte. “Existia o lugar, e depois, com o tempo, passaram a existir as atividades. Fomos nos reunindo, e nisso foram ficando uns, outros não puderam continuar, e foi mudando, até como está hoje”, conta Gabriel da Rosa, 31 anos, membro do coletivo. SEXTANTE Dezembro de 2018

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Anteriormente, a casa, que oficialmente é um módulo da Prefeitura, passou por diferentes situações. Durante os anos 1990, era utilizada para guardar materiais esportivos. Na quadra ao lado da construção, estudantes de escolas do bairro faziam Educação Física, bem como grupos de adultos praticavam ginástica durante alguns dias da semana. Já nos anos 2000, a Praça Oliveira Rolim ganhou um aspecto de esquecimento. As atividades foram diminuindo, e o lugar passou a ser menos utilizado. Com o tempo, a casinha foi preenchida com entulhos e teve sua estrutura danificada e, além disso, grupos se reuniam para usar crack. O espaço virou sinônimo de insegurança e passou a ser evitado por boa parte de quem vive ali. A moradora do Sarandi e integrante da Conceito Priscila Macedo, 26 anos, relembra que frequentava o local quando era criança, mas que parou de visitá-lo após o seu abandono: “No momento que começou a ocupação da casinha, aí sim eu senti mais segurança para voltar para a praça, porque antes eu não sentia”.

UMA CASA SEMPRE EM REFORMA É difícil tentar definir a Conceito Arte, e talvez essa não seja uma tarefa possível de ser realizada. De forma

“NÃO SE TEM INVESTIMENTO DO ESTADO, E AS PESSOAS QUEREM CULTURA, QUEREM CONSTRUIR, TER UM ESPAÇO PARA SE OLHAR” Carol Ferraz

integrante da Conceito Arte

geral, a ocupação e o coletivo são tratados como um espaço cultural que visa a descentralizar a cultura porto-alegrense, por vezes restrita às regiões centrais da cidade. Além dessa breve descrição, a Conceito é feita de pessoas, que têm ideias, trajetórias e influências próprias e, sendo assim, conforme os membros mudam, a casa e o coletivo se transformam também. “Engraçado o nome ter sido Conceito Arte, porque a filosofia cria conceitos, e a casa foi muito isso, de criar muitos conceitos, de recriar, repensar, refletir sobre eles. Tudo foi acontecendo muito ao natural”, comenta a integrante Natashe Inhaquite, 28 anos. “É uma espécie

de movimentação que não é fixa, mas que se dá como um levante, com grupos de afeto que refletem juntos, têm afinidades políticas, de amizade, e por meio disso conseguem construir juntos e fazer acontecer.” Em pouco mais de quatro anos de existência, a casinha já sediou múltiplas atividades. Saraus, rodas de conversa, aulas de yoga, brechós e cine-debates, além de diversas oficinas, como de criação literária, grafite e fotografia, ajudaram a trazer ainda mais vida para o espaço. As mudanças provocadas pelo coletivo ajudaram, também, a transformar a praça. Com a reforma da construção, o cuidado com as plantas e a instalação de luzes no entorno da quadra de bocha “vizinha” da Conceito, a Praça Oliveira Rolim ganhou novos e convidativos ares. O afeto dos integrantes do coletivo é percebido em cada detalhe, seja nas placas espalhadas pelo local, que versam sobre temas como preservação da natureza e amor, seja pelas iniciativas que ali tomam forma. Dentro da casinha, existe a Biblioteca Comunitária Girassol, onde os moradores do Sarandi podem levar livros para casa sem custo algum. “Estava acontecendo uma roda de leitura e chegou Cristian, pé descalço, bicicletinha, sete anos, no meio da contação de história, e no final ele implorou para que não terminasse. Isso, para mim, é um dos melhores momentos daqui”, relembra a bibliotecária e integrante da Conceito Priscila Macedo. A cultura de periferia, a descentralização da cidade e a autonomia de pensamento são pilares valorizados pelos membros da Conceito Arte. O que se quer construir é um ponto de encontro para os moradores da Zona Norte, especialmente do bairro Sarandi, e que não deixa de ser aberto à Capital como um todo. Uma opção que seja próxima da realidade de quem reside ali e que A Conceito Arte recebe mais visitantes durante os finais de semana, que vão ao local para curtir uma tarde na praça ou para aproveitar os eventos do coletivo

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exalte as vivências dos seus moradores. “Isso não acontece só na Conceito. Isso é um processo muito maior, que se replica aqui porque é uma necessidade presente em todas as periferias. Não se tem investimento do Estado, e as pessoas querem cultura, querem construir, ter um espaço para se olhar”, comenta a integrante do coletivo Carol Ferraz, 25 anos.

DE PORTAS ABERTAS PARA TODOS Você está dentro de algum ônibus da linha Sarandi, imerso em seus próprios pensamentos e, quando passa ao lado da Praça Oliveira Rolim, repara naquele lugar pouco convencional, com uma casa e um jardim. Fica olhando para o lado, junto de outras pessoas do transporte coletivo, até que ele segue para a próxima parada. Ou, então, você está andando pela Avenida Toledo Piza quando avista a pequena construção cheia de cores e plantas e, a partir disso, não anda mais olhando para a frente. Cenas como essas são comuns de acontecer para quem cruza seu caminho com a Conceito Arte. O local, no mínimo, provoca a curiosidade de quem está perto e por vezes consegue atrair mais pessoas para conhecê-lo por dentro. Tem quem visite a Conceito com frequência, tem quem esteja entrando pela primeira vez na casinha. Foi o caso do pedagogo Hugo Maciel, 24 anos, que é de Fortaleza e veio para Porto Alegre por meio da Rede Nacional de Bibliotecas Comunitárias: “Eu acho bacana essa ideia, reunindo várias pessoas diferentes. Quem passa aqui pode se sentir à vontade de chegar”. Hugo visitou o local junto da sua amiga, a bibliotecária Yasmin Wink, 21 anos, que mora no bairro Partenon e frequenta a ocupação desde 2017. “É um lugar de muito afeto, todo mundo se sente muito à vontade pra ser quem é, e o que mais me chama a atenção aqui é que toda vez que eu venho o espaço muda.” Um dos problemas levantados pelos membros do coletivo é o receio que alguns moradores do Sarandi sentem de participar das atividades da Conceito Arte. “Isso é algo da idade, nós não

Dentro e fora das paredes da casinha, as atividades, o jardim e a Biblioteca Comunitária Girassol dão vida à Conceito

vamos conseguir chegar em todos. Os mais velhos não se veem aqui, eles veem mais a gurizada, porque é a gurizada que vai lá e faz”, explica a integrante Nany Queiroz, 18 anos. Além disso, outro motivo que pode resultar em menos moradores na casinha é uma visão estereotipada, como conta a membro Carol Ferraz: “Eles não dão o valor que deveriam, porque aqui tá impregnado de uma imagem do que é periferia, e o que damos valor é o caro, é o shopping, parcelar no cartão de crédito”. Apesar desses impasses, há quem viva no Sarandi e aproveite o que a casinha tem para oferecer, como o escritor de poemas Leco Bittencourt, 42 anos, que é ativo na Conceito desde a sua fundação. Sob o nome artístico “Viu S/A”, ele constrói seus textos, mesmo que de maneira tímida. Em um dos saraus da Conceito, os membros do coletivo leram uma de suas poesias para o público. “Fiquei meio abalado pro bem. Pensei, ‘bah, o cara tá lendo o bagulho que eu escrevi’. Até então, eu não mostrava pra ninguém, e agora esses tempos eu consegui ler uma [poesia], baita evolução.” A cultura e o afeto transformadores da pequena casinha da Praça Oliveira Rolim estão abertos para quem quiser sentir e construir junto.

SEMENTES As raízes fortificam e alegram toda a família que se mantém unida enfrentando tudo e todos qualquer barra pesada que se tem na vida na rapidez que o tempo passa a família se esforça pra não deixar tu sumir o peito aperta, o coração dispara a vida continua a família não desiste mesmo triste, luta, não se atrapalha a família sente aqui estão duas sementes que por ti foram plantadas a família agradece... fazendo-lhe uma prece e seguindo sua jornada... Viu S/A* Poema criado por Lecpo Bittencourt, que frequenta a Conceito Arte desde sua fundação

Disponível em versão digital

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TEMPLO POSITIVISTA

Segundo a doutrina positivista, conceitos básicos estruturam a civilização


UMA RELIGIÃO

SEMSANTOS DEUSES E

PORTO ALEGRE TEM O ÚNICO TEMPLO POSITIVISTA EM ATIVIDADE NO MUNDO Texto e fotos: Hugo Silveira hsilveira91@hotmail.com

Era uma manhã de domingo quando entrei pelo velho portão da Avenida João Pessoa. De imediato, parei para pensar sobre o que queria dizer aquela estranha sentença na fachada do prédio. Para um desavisado que passasse em frente ao edifício, datado do princípio do século passado, a frase poderia indicar que ali estaria alguma vertente alternativa do espiritismo ou algo semelhante: “Os vivos são sempre cada vez mais governados necessariamente pelos mortos” Talvez poucos que transitem por aquela calçada perto do Parque da Redenção, numa zona boêmia da Capital, saibam que ali encontra-se o único templo positivista em atividade no mundo hoje. Trata-se de um prédio que mantém viva a religião fundada pelo filósofo Augusto Comte, da longínqua França do século XIX. Jamais imaginaria Comte que, quase dois séculos depois, uma cidade no sul do distante Brasil seria o principal endereço de resistência da denominada “Religião da Humanidade”. Idealizado por um grupo de positivistas gaúchos sob a liderança de Carlos Torres Gonçalves, o templo foi fruto de

uma campanha financeira. No ano de 1912, foi lançada sua pedra fundamental, porém o edifício só foi inaugurado em 1928. Desde lá, poucas alterações ocorreram, apenas algumas restaurações. O outro templo que há no país, e que representa a sede da Igreja Positivista do Brasil, fica no Rio de Janeiro, porém encontra-se fechado atualmente. Subindo lentamente a escadaria rumo à porta, fui lendo palavra por palavra cravada em cada degrau, entre elas estavam politeísmo, monoteísmo, patriciado, proletariado, humanidade e fraternidade, além de outras expressões que simbolizam o desenvolvimento da civilização na concepção da doutrina. A arquitetura segue as características de outros prédios históricos de Porto Alegre, já que grande parte do patrimônio arquitetônico da cidade data do início do século XX, época de forte influência positivista no cenário político gaúcho. Ao chegar no topo da escadaria e erguer os olhos, por entre os raios de sol que cortavam o letreiro, consegui identificar o lema imortalizado de forma resumida na bandeira nacional: o amor por princípio e a ordem por base, o progresso por fim. O fato do trecho sobre

o amor não estar na bandeira já gerou muitos questionamentos, com direito a projeto de lei apresentado por parlamentares que defendem a inclusão do lema positivista por completo na bandeira. Mais acima da fachada, há uma figura feminina com uma criança no colo e o letreiro: “Religião da Humanidade”. Enquanto observava a bela fachada do prédio, meus ouvidos eram envolvidos pela música que vinha de dentro do templo. O som de um órgão dava uma atmosfera barroca ao lugar. A sensação era de deslocamento do tempo. Antes de entrar no edifício, ainda pude observar nas duas portas auxiliares os dizeres: “Viver para outrem e viver às claras”. Lá dentro, quem tocava aquela bela música era Érlon Jacques, o guardião do templo e atual diretor da Igreja Positivista do Rio Grande do Sul. O final de semana em questão marcava o início da Semana da Pátria, quando, anualmente é realizada no local uma cerimônia especial: uma centelha do fogo simbólico da pátria é levada do Monumento ao Expedicionário até a pedra fundamental do templo. Nesse dia, a pira foi conduzida por Júlio Cezar Benites Teixeira, representante da Liga SEXTANTE Dezembro de 2018

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da Defesa Nacional, entidade que colabora com a igreja. Depois dessa cerimônia inicial, nos dirigimos ao interior do templo para o início da chamada prédica dominical. Na sala principal, onde ocorrem os cultos, encontram-se quadros e esculturas de personalidades históricas para a doutrina. Augusto Comte elaborou um calendário no qual o ano divide-se em 13 meses. Cada mês leva o nome de uma figura que contribuiu de alguma forma para o progresso da humanidade. São personalidades de variadas áreas do saber, entre eles Homero, Aristóteles, Shakespeare e Dante. Cada um deles tem um busto na parede do templo. No centro, há um altar com a pintura de uma mulher segurando uma criança no colo, imagem semelhante à da fachada do prédio. Ela representa a humanidade e seria inspirada na figura de Clotilde de Vaux, escritora francesa e musa de Comte, que tem um busto seu junto à imagem. Próximas ao altar estão as bandeiras do Brasil e do Rio Grande do Sul. Foi no estado gaúcho que a influência

“A RAZÃO EXISTE PARA SERVIR À EMOÇÃO. O AMOR POR PRINCÍPIO, A ORDEM POR BASE E O PROGRESSO POR FIM” Érlon Jacques Guardião do templo

positivista se tornou mais presente no país. A Carta Constitucional Estadual de 1891 simboliza muito bem isso, através das ideias de Demétrio Ribeiro e Júlio de Castilhos. Ao mesmo tempo, a doutrina positivista teve significativa influência no período de instauração da República Brasileira, inspirando os que faziam oposição ao regime monárquico de Dom Pedro II. Na concepção do Estado Brasileiro Republicano estão presentes os ideais positivistas, definidos pela Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil, também de 1891, e que marca a transição para o sistema republicano.

Na sala principal, há ainda um mezanino onde antigamente ficavam os grupos corais. No subsolo, descendo uma estreita escada em forma de espiral, há uma biblioteca onde se encontram verdadeiras relíquias literárias, como edições originais de obras de Comte e de muitos outros pensadores de séculos passados. Alguns desses livros são, inclusive, em latim. O responsável pela biblioteca é Éder Bertotti, que é mestre adjunto do templo. Anexa à biblioteca, há uma sala fechada onde, segundo Éder, no período da ditadura militar, quando reuniões públicas foram proibidas e o próprio templo teve de ser fechado, os positivistas passaram a realizar reuniões clandestinas. As paredes do templo são cheias de imagens, esculturas e letras. Para onde direcionava o olhar, eu encontrava alguma referência histórica ou intelectual. De acordo com o sociólogo Gustavo de Lacerda, professor da Universidade Federal do Paraná (UFPR), que esteve presente na igreja para apresentar uma palestra a respeito da doutrina, o prédio apresenta um

Em frente ao templo, é realizada a cerimônia de celebração da Semana da Pátria

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sem-número de detalhes arquitetônicos que, no conjunto, constituem uma aula de positivismo. Érlon, como um mestre de cerimônias, sempre dá início ao culto com um gesto em que leva uma das mãos à altura da cabeça e repete o mesmo lema positivista presente na fachada do templo. Depois disso, há um agradecimento aos presentes, e ele inicia sua fala, onde aborda, com seu profundo conhecimento e com o dom da oratória, temas relacionados aos princípios positivistas.

O GUARDIÃO Perguntei ao guardião como sua vida cruzou com a do templo. Ele contou que na infância seu pai e ele passavam em frente ao local a caminho do Parque da Redenção. O lugar já o despertava curiosidade. Além disso, há a lembrança de um tio avô lhe falar que a doutrina positivista seria a solução para o Brasil. Nos seus primeiros contatos acadêmicos, chegou a estudar superficialmente a doutrina e, em 2007, teve seu primeiro contato mais próximo com o guardião da época, a quem se refere como “querido mestre” Afrânio Pedro Capelli. Segundo Érlon, no primeiro encontro já nasceu uma sincera amizade. Ao mesmo tempo em que ele procurava “algo diferenciado” na vida, o mestre buscava um aprendiz disposto a estudar a doutrina. Nos primeiros meses que começou a frequentar o templo, já foi acolhido como membro. Afrânio, então, comprou um computador, instalou telefone e internet no local. Érlon passou a assessorá-lo em tudo, criando e-mail, redes sociais, enquanto estudava a doutrina. Logo passou a representá-lo em palestras e cerimônias: “Refletíamos constantemente sobre a história da humanidade, do Brasil, do Rio Grande do Sul, fenômenos, teorias, mitos, lendas e religiões”. Depois de algum tempo, identificaram a necessidade de regularização jurídica. “Ele seria o diretor da Igreja, mas faleceu antes do final dos trâmites. Fui indicado por ele quando estava hospitalizado e posteriormente aclamado pelo grupo, quando então

assumi a direção, após seu falecimento.” O sociólogo Lacerda me explica os princípios básicos da doutrina: “De promoção do altruísmo, busca da paz e da harmonia, à vida ativa, relativismo e historicismo”. De acordo com ele, esses ideais são compartilhados por várias filosofias, crenças e religiões. “O que o positivismo faz é sistematizá-los e celebrá-los, lembrando às pessoas que, em meio às evidentes diferenças existentes entre todos nós, é fundamental termos sempre em mente o que nos une”. Nas palavras do guardião Érlon, o ensinamento básico da doutrina é: “Devemos ter altruísmo ao sentir, pensar e agir. A razão existe para servir à emoção. O amor por princípio, a ordem por base e o progresso por fim. Saber para prever, a fim de prover”. Todos os domingos pela manhã, ocorrem os cultos no templo (as prédicas dominicais), contando com convidados e palestrantes, como professo-

O guardião Érlon abre o culto dominical com um breve discurso. Acima, os bustos que representam o calendário positivista

res, pensadores, artistas e políticos locais. Os membros dirigentes da igreja são chamados de apóstolos, e os frequentadores ou colaboradores, de confrades e confreiras, que somam aproximadamente 50 atualmente. Além deles, há sempre um público habitual de curiosos que entra no templo para descobrir do que se trata. O local também costuma receber a visita de intelectuais e adeptos estrangeiros da doutrina. Conforme Érlon, o templo desde o seu surgimento até hoje sobrevive na base da contribuição de seus próprios membros, sem qualquer auxilio de verba pública. Atualmente, a igreja realiza uma campanha de arrecadação para fins de preservação e restauração do edifício. SEXTANTE Dezembro de 2018

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PRAÇA XV DE NOVEMBRO

O Abrigo da Praça XV resistiu ao fim dos bondes e permanece atendendo milhares de pessoas por dia no Centro de Porto Alegre

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UM ABRIGO NO CORAÇÃO DA CIDADE


UM PONTO DE ENCONTRO QUE RESISTE NO CENTRO HISTÓRICO ATENDENDO PORTO ALEGRE DESDE A DÉCADA DE 1930 Texto: Júlio Câmara julioscamara@gmail.com Fotos: Matheus Leite, Pedro Nakamura e Taciana Farias mathrl98@hotmail.com pedronakasc@gmail.com tacifariasmartins@hotmail.com SEXTANTE Dezembro de 2018

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Às 6h as primeiras cortinas de ferro são levantadas. A subida barulhenta desperta meia dúzia de homens que ali se abrigaram para passar a noite protegidos do sereno. O alerta sonoro também chama os primeiros clientes que chegam ao balcão e fazem pedidos que não variam muito: pastel, torrada e café com leite. Enquanto um funcionário inicia o atendimento do dia, outro pega um balde e uma vassoura e começa a limpar a calçada da lancheria. As marquises que hoje protegem a população em situação de rua nas noites frias durante muitas décadas abrigaram grande parte da população de Porto Alegre. Construído em 1930, o Abrigo dos Bondes, localizado na Praça XV de Novembro, era o principal ponto de embarque e desembarque no Centro da cidade. Naquela época, as lancherias já atendiam e fidelizavam o público passageiro. José Sadi da Silveira é protagonista nessa história. Trabalha há 57 anos no Abrigo e exibe com orgulho as fotografias de quando começou a trabalhar ali em 1961. Em 1970, os bondes deixaram de circular, e o abrigo permaneceu com as lancherias cercadas pelos trilhos. Em 1972, José deixou de ser empregado e abriu a própria lancheria. Com 78 anos, não anda animado com a passagem do tempo: “Antes era um ponto turístico, hoje é [um lugar] de gente humilde.” Arquitetonicamente, o Abrigo impõe seu charme. O projeto assinado por

Christiano de La Paix Gelbert expressa a forma aerodinâmica de um bumerangue. A silhueta do Abrigo é riscada pelos antigos trilhos dos bondes que hoje se confundem com os paralelepípedos. De um lado, mesas acomodam os fregueses com maior conforto. Do outro, os bancos apertados próximos aos balcões dão conta dos clientes solitários e dos pedidos para viagem. Dos 26 espaços em que é dividido o Abrigo, apenas três não são lancherias: o posto da Brigada Militar, que ocupa uma ponta do prédio; a Banca 08, que oferece serviços de impressão e xerox; e a Tabacaria 38, que ocupa há mais de 50 anos a banca de mesmo número. José reconhece que é essa “gente humilde” que mantém abertas as portas do seu negócio há décadas. Nas lancherias do Abrigo estão os lanches mais baratos do Centro. Cercada pelas principais paradas de ônibus e ruas movimentadas, a Praça XV é passagem de milhares de pessoas que têm suas atenções disputadas pelos atendentes. “A gente tem que chamar atenção. Para muitos, todas as bancas são iguais”, justifica Ricardo Leotti, que trabalha ali há três meses utilizando uma vasta lista de interjeições para conquistar os transeuntes e clientes em potencial. A história do Abrigo se confunde com a urbanização e com o processo de organização de Porto Alegre. O local resistiu à atualização dos modais de transporte urbano. Mesmo sem os bon-

des, segue no coração do fluxo humano que diariamente movimenta o Centro da cidade. Está a 290 metros do terminal Parobé, onde operam mais de 70 linhas de ônibus. Até o terminal do Camelódromo, de onde partem os ônibus para a Zona Norte e Região Metropolitana, são 450 metros. Do terminal Uruguai, onde se dividem ônibus para a Zona Sul e para a Zona Leste, dá menos de três minutos caminhando. Dados divulgados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) do Censo de 2000 indicam que 400 mil pessoas circulam diariamente pelo Centro de Porto Alegre. Muitas delas cruzam a Praça XV. Sentados às mesas ou junto ao balcão, os fregueses das mais variadas ocupações são atendidos. Garis, policiais, vendedores, cabos eleitorais, estudantes, estagiários. E também desempregados, como Guilherme Sangenido, 28 anos. “Comecei a comer aqui quando trabalhava no Mercado Público e agora venho procurar trabalho e é aqui que consigo comer.”

FAMÍLIA DOS DOIS LADOS DO BALCÃO Numa quinta-feira de sol, foram poucos os momentos de muitas mesas vazias. Os comerciantes não ficam à vontade para falar sobre as vendas, mas é notório que o xis é o mais pedido. Geralmente acompanhado de refrigerante ou de um copo de suco. São poucos os pedidos que ultrapassam 10 reais. Um desses poucos custou 25 reais e serviu uma família inteira. “Quando viemos juntos no Centro, comemos aqui. É bom e barato”, conta Marta de Souza, auxiliar administrativa, acompanhada do marido e dos dois filhos. Do lado de dentro do balcão, apertado entre o caixa, o freezer e a chapa, José apresenta o filho Marcelo, que virou sócio e inspirou o nome que hoje estampa o maior letreiro do Abrigo: Marcellus Lanches. Qual o segredo para o negócio dar certo? “Comprar bem para manO movimento se intensifica no horário do almoço, exigindo esforço dos atendentes para não perder clientes

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ter os preços baixos”, responde José. “A concorrência é muito forte, e também é preciso atender bem, como uma família.”

RESISTÊNCIA À “REVITALIZAÇÃO” Durante décadas atendendo o povo da cidade, o Abrigo da Praça XV se consolidou como um lugar histórico e democrático. Por mais de 30 anos, foi cercado por lonas laranjas de camelôs que vendiam todo tipo de produtos até a inauguração do Camelódromo em 2009. Os governos municipais “limparam” a praça com a proibição dos ambulantes e revitalizaram as adjacências do Abrigo. O Largo Glênio Peres ganhou um chafariz e decks de madeira foram instalados na frente das lancherias do Mercado Público. Outro prédio histórico, o Chalé da Praça XV, entregue à iniciativa privada, nos últimos anos se transformou em um empreendimento que contrasta com os outros estabelecimentos a poucos metros de distância. Segundo uma reportagem do Jornal do Comércio, a ampliação do negócio em 2011 recebeu investimento da ordem de 1,5 milhão de reais, e o permissionário Edenir Simonetti planeja novos investimentos para ampliar e melhorar as instalações atuais. Os permissionários reclamam que falta iniciativa da Prefeitura para valorizar o local. Há um desconforto entre os

O Chalé da Praça XV, inaugurado em 1885, passou por revitalização recentemente, contrastando com o prédio velho do Abrigo

comerciantes para falar sobre a relação com a gestão municipal. Uma comerciante, que não quer se identificar, diz que até hoje as reformas que foram feitas não agradaram. “Diminuíram espaço das lojas e não diminuíram os aluguéis”, reclama. “E toda a limpeza, manutenção e pintura são feitas por nós. A Prefeitura só recebe o aluguel.” O presidente da Associação dos Comerciantes do Abrigo da Praça XV de Novembro, Lair José Rempel, se recusa a comentar a relação entre os permissionários e a gestão do Abrigo, justificando ter sido orientado pela Prefeitura a não dar entrevistas.

ches. “Pode ser pelo preço mais alto, ou porque demora um pouco mais. O povo quer fast food”, opina Fagner. As comidas rápidas dominam. Xis de carne com maionese, alface, tomate, milho e ervilha custa 4 reais. Incrementado com calabresa fica 5 reais. Pastel de carne, frango ou queijo não passa de 3 reais. Risoles e bolinhos de batata estão na mesma faixa de preço.

MEIO-DIA

BOA NOITE PRA QUEM FICA

“Por volta do meio-dia, chegamos a perder clientes. Não tem lugar pra todo mundo, e alguns acabam indo pra banca do lado”, diz Fagner Lozetti, 25 anos, que atende até do lado de fora do balcão para que a quantidade de pessoas aglomeradas não desanime os clientes. “Xis carne completo? Pediu, foi pra chapa!”, grita para tranquilizar o freguês, mostrando que o pedido já está sendo preparado. O atendente chegou a trabalhar poucos meses como garçom em um restaurante da cidade, ficou desempregado e agarrou a oportunidade de trabalhar ali. No almoço, os anúncios de à la minuta não têm chance na disputa com os lan-

À tarde, a Praça XV continua sendo espaço de passagem de centenas de pessoas. Caindo a noite, cai também o movimento. Os ônibus do horário de pico já partiram para os bairros, e a circulação diminui consideravelmente. Às 20h, o movimento mais forte é o da limpeza para encerrar o dia de trabalho. Às 21h, baixa a última cortina de ferro que soa como uma liberação do último espaço a ser ocupado por quem procura um lugar coberto para dormir. Pelo menos até às 6h, quando novamente a Praça XV de Novembro se transformará em um dos espaços mais movimentados e pulsantes da vida de Porto Alegre. SEXTANTE Dezembro de 2018

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OCUPAÇÃO MIRABAL

EXISTIR É RESISTIR OCUPAÇÃO COMPLETA DOIS ANOS NO ACOLHIMENTO DE MULHERES VÍTIMAS DE VIOLÊNCIA EM PORTO ALEGRE

Texto e fotos: Luana Cruz Fotos: Júlia Provenzi e Mariana Ramos luana.scruz@outlook.com provenzijulia@gmail.com mariana.gindri@hotmail.com

Rua Duque de Caxias, 380. No Centro Histórico de Porto Alegre, um prédio tem seu azul desbotado decorado por faixas desde o dia 25 de novembro de 2016. Assim é anunciada a Ocupação Mirabal, uma casa que acolhe mulheres vítimas de violência. O nome é uma homenagem às irmãs Mirabal, mulheres torturadas e assassinadas numa emboscada ordenada pelo ditador Rafale Leónidas Trujillo, na República Dominicana, também em 25 de novembro, mas de 1960. O fato estimulou um movimento de libertação na República Dominicana, que seis meses depois viu o fim do regime ditatorial de Trujillo. A Ocupação Mirabal surgiu a partir do Movimento de Mulheres Olga Benário, que foi criado em 2011. Três anos depois, o Movimento chegou ao Rio Grande do Sul. Em 2016, as participantes passaram a planejar a ocupação de um espaço como forma de protesto

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às medidas que vinham sendo tomadas, como a extinção da Secretaria de Políticas para as Mulheres pelo Governo Estadual. Por parte do Movimento, já havia a experiência de outra casa ocupada em Belo Horizonte para abrigar vítimas de violência doméstica, a Tina Martins, realizada em 8 de março de 2016. Andressa Guedes foi uma das integrantes do início da ocupação. Ela lembra que aconteciam neste período ocupações da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), onde estuda. Lá, foram convidadas a participar algumas estudantes. Aproximadamente 50 mulheres ocuparam o prédio da Duque de Caxias. No início, não havia acolhidas, a primeira foi a mãe de uma das militantes. Andressa conta que já nos primeiros dias fizeram contato com outros lugares, como a Delegacia Especializada de Atendimento à Mulher (DEAM), avisando sobre a casa: “Ocupamos um espaço e, se precisarem de

um lugar para enviar as mulheres, podem contar com a gente”. A Mirabal passou a receber mulheres vítimas de violência, muitas vezes encaminhadas por órgãos como a DEAM. Andressa estima que já tenham atendido cerca de 200 mulheres neste período, abrigando a mais de 70. Um dos grandes desafios é superar a falta de experiência das próprias coordenadoras. Elas fazem isso através de formações oferecidas por colaboradores da ocupação, como psicólogos, assistentes sociais e enfermeiros. Também existe uma rede de apoiadoras do jurídico, que pensa nas ações necessárias para quando uma mulher chega na casa. Muitas acolhidas ainda não têm medida protetiva quando procuram ajuda, por medo de enfrentamento com o agressor e desconhecimento do processo. O objetivo é esclarecê-las sobre o que fazer, oferecendo acompanhamento: “Informação é vida, muitas não sabem quais são os seus direitos”.


JÚLIA PROVENZI E MARIANA RAMOS JÚLIA PROVENZI E MARIANA RAMOS

Mirabal ocupa nova sede , a antiga Escola Benjamin Constant SEXTANTE Dezembro de 2018

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LUANA CRUZ

A organização da Mirabal acontece com a coordenação de voluntárias e de apoiadores, que se dividem em escalas por turnos ou dias para atender à ocupação. As coordenadoras têm mais compromissos, como assembleias, reuniões de acolhimento (nas quais discutem os casos com profissionais da saúde) e acompanhamento das acolhidas. Ainda que alguns casos exijam maior atenção, o objetivo é sempre estimular a autonomia das mulheres. Quando chegam na casa, um dos questionamentos é sobre o que precisam para se restabelecer. Já houve casos de mulheres que ficaram mais de meses dentro da casa sem sair, por medo. Mesmo que aos poucos, procuram dar o apoio necessário para que as acolhidas consigam se sentir independentes. O estímulo da autonomia é um dos pontos que mais chamou atenção da Irmã Michele, que pertence à Congregação do Imaculado Coração de Maria. “Essa questão do empoderamento feminino que tem nos trabalhos da casa ajuda nesse resgate do ser mulher, do se sentir viva, como uma pessoa que pode reconstruir sua vida.” Ela estuda Teologia e passou a fazer um estágio em março de 2018 na Mirabal, para uma disciplina de Teologia Feminista. Uma vez por semana, faziam rodas de conversa, nas quais tentava perpassar questões sobre teoria feminista, resgate da dignidade humana, entre outras. De apoiadora, passou a sentir-se parte da Mirabal.

“INFORMAÇÃO É VIDA, MUITAS NÃO SABEM QUAIS SÃO OS SEUS DIREITOS” Andressa Guedes

Coordenadora da Ocupação

No passado, o prédio ocupado na Rua Duque de Caxias pertenceu à Congregação do Imaculado Coração de Maria. Foi doado à Inspetoria Salesiana São Pio X para finalidade social. O imóvel sediava o Lar Dom Bosco, que atendia crianças em situação de rua e vulnerabilidade social. Desde 2013, o prédio estava fechado para reformas. Os salesianos tentaram judicialmente a recuperação do prédio desde o início da ocupação. Mais de uma vez, a reintegração de posse do imóvel foi um fantasma na Mirabal. “Toda a tentativa [de reintegração] é horrível, receber a notícia e ter que sentar e conversar com elas [acolhidas] sobre o que pode acontecer”, relata Andressa. No entanto, a maioria reage manifestando a vontade de ficar e resistir. A terceira tentativa de reintegração de posse na Mirabal aconteceu em 2017, após a ocorrida na Ocupação Lanceiros Negros. Houve resistência da Brigada Militar em tratar a Mirabal da mesma forma, devido ao reconhecimento que a

casa oferecia um serviço que faltava por parte do Estado. Isso provocou a ideia de um Grupo de Trabalho para discutir possíveis destinos para a ocupação, formado por representantes da Mirabal, órgãos do Município e do Estado, além de congregação da Igreja Católica. Após algumas tentativas, não foi encontrado um lugar. Os poucos oferecidos não atendiam à estrutura necessária. Foram em torno de sete meses de negociação. O prazo já havia esgotado quando o Estado ofertou ao Município a Escola Benjamin Constant, na Zona Norte de Porto Alegre, para que fosse cedida à Mirabal. Porém, retomada a posse do imóvel, o Município negou o repasse ao movimento. Ameaçado por mais uma reintegração de posse, o Movimento de Mulheres Olga Benário ocupou o prédio da Escola destinado à Mirabal, na madrugada do dia 7 de setembro deste ano. Mantiveram por 20 dias as duas ocupações, a fim de fazerem adaptações na nova sede e a mudança das acolhidas. No dia 27 de setembro, foi realizada a entrega das chaves do prédio da Rua Duque de Caxias ao oficial de justiça e representantes dos proprietários, acompanhados pela Brigada Militar.

A VIDA DAS MULHERES “Todo mundo que chega lá se sente acolhido.” Essa é uma das descrições da Irmã Michele sobre a Mirabal e uma das mais repetidas por quem conhece a casa. São promovidas diversas atividades, como rodas de conversa, debates, oficinas, brechós. Muitas vezes, compartilha-se café, lanche, bolos, sucos com quem está participando. As paredes mesclam cartazes de regras de convivência com mensagens de empoderamento feminino. Os brinquedos e desenhos dos filhos e filhas das acolhidas também decoram os ambientes. No caso da Vera Lúcia Rodrigues, de 39 anos, são os brinquedos da neta. Ela é uma das acolhidas que está há mais tempo na casa, onde também mora a filha, mãe da menina. Foi encaminhada Visitantes deixam mensagens de apoio às moradoras da ocupação

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LUANA CRUZ

pela Defensoria Pública da União, pois estava sem moradia, morando de favor na casa de pessoas conhecidas. Como tem problemas de saúde, aguarda resposta da Previdência para concessão de benefício. A filha veio para a Mirabal depois dela, convidada pela mãe. Tem mais um filho de 19 anos e dois adolescentes, que moram com a avó paterna e não têm contato com ela. Conta que a separação dos filhos se deu quando adoeceu e precisou parar de trabalhar. Vera divide os dias cuidando da neta para ajudar a filha e tentando resolver a situação do filho, que é dependente químico e está preso. “É muita coisa para uma cabeça”, desabafa. Na ocupação, ela e a filha planejam conquistar alguma estabilidade e, se possível, compartilhar uma nova moradia. O número exato de acolhidas não é divulgado por questões de segurança. A maioria das mulheres vem com filhos. Elas também se organizam no cuidado das crianças, dividindo tarefas para possibilitar o trabalho das que não têm vagas em creches. A liberdade das acolhidas para a organização da casa e de suas rotinas é uma característica que diferencia a Mirabal e faz com que seja a opção de algumas mulheres na hora do encaminhamento. “No último caso que íamos receber, tinha vaga na Viva Maria, mas ela [acolhida] disse que não poderia ficar lá porque trabalha, precisava trabalhar, e lá não pode. A mulher precisa continuar com a vida dela”, explica Andressa. A DEAM registrou 7.028 casos de violência doméstica em Porto Alegre em 2018. Os dados são referentes aos registros de até 6 de agosto deste ano, o que equivale a uma média de 32 casos por dia, mais de um por hora. Nos casos em que há necessidade, as mulheres que procuram a Delegacia da Mulher são encaminhadas para o abrigo da Prefeitura, Viva Maria, especializado em receber mulheres vítimas de violência. O local consegue abrigar até 11 famílias. O número é aproximadamente um terço do registro diário de situações de violência. O Movimento Olga Benário finalizou em abril deste ano a organização de um projeto sobre o funcionamento

A antiga sede da Mirabal foi desocupada em setembro deste ano

da Casa de Referência da Mulher Mulheres Mirabal como uma associação beneficente e cultural. Conforme o documento, a Casa tem como objetivo “proporcionar um espaço de referência para mulheres em situação de violência de gênero em Porto Alegre - RS, acompanhadas ou não de crianças que estejam sob sua guarda, prestando acolhimento e acompanhamento psicológico, social e orientação jurídica às mulheres em situação de violência, de modo a fortalecer sua autoestima e possibilitar que essas mulheres se tornem protagonistas de seus próprios direitos, ampliando seu nível de entendimento sobre as relações de gênero”.

O projeto justifica-se nos altos índices de violência contra a mulher e apresenta como lema “é pela vida das mulheres”, presente nas faixas e em diversos materiais de divulgação da Mirabal. Ainda mais presente se faz na importância social que adquiriu, tornando-se um lugar de referência na luta contra a violência e no acolhimento humanitário às vítimas. Um lugar de Porto Alegre que existe porque resiste. Rua Souza Reis, 132. Existir continua sendo o maior ato de resistência.

Disponível em versão digital

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NATALIA HENKIN

FAZENDA ARADO VELHO

Fazenda Arado Velho vista da orla do Guaíba, em Belém Novo


QUANTO VALE A NOSSA MEMÓRIA? EMPREENDIMENTO COLOCA EM RISCO RIQUEZA E DIVERSIDADE DE LOCAL ÚNICO EM PORTO ALEGRE Texto e fotos: Natalia Henkin nati.henkin@gmail.com Fotos: Felipe Farias felipefarias.vibe@hotmail.com

Uma história plural, atravessada. Diferentes povos, incontáveis espécies. Uma grandeza que não se mede: a vista se perde em seu verde vasto, denso, diverso. Para quem escuta atentamente, à beira da estrada, o canto dos pássaros vence o dos carros. No ar, uma pergunta: onde tudo isso vai parar? Localizada próxima ao Bairro Belém Novo, na Zona Sul de Porto Alegre, a Fazenda Arado Velho é considerada, por especialistas e moradores, um patrimônio histórico, ambiental e cultural da cidade. Seu legado envolve passado, presente e futuro. Segundo uma pesquisa sobre os sítios arqueológicos históricos da área rural de Porto Alegre, publicada em 2013 pela Secretaria Municipal da Cultura, os 426 hectares da fazenda possuem um conjunto de “valores culturais materiais e imateriais” que lhe conferem alta

significância como patrimônio local e regional. Ou seja, sua importância não se resume somente à sua história, que vai desde ocupações indígenas précoloniais aos engenhos escravocratas, e tampouco se limita à sua relevância em termos ambientais. É justamente a combinação de elementos naturais e culturais, agregados em um só lugar, que faz da Fazenda Arado Velho um espaço tão singular. Hoje, ela vive um drama que já é clássico no país: especulação imobiliária versus preservação. A possível construção de um complexo habitacional, turístico e comercial coloca a Fazenda Arado Velho sob os holofotes e reacende o debate sobre progresso e desenvolvimento: o que são e o que representam esses conceitos? O que deve ser preservado? Quem decide que memórias vão e que memórias ficam?

O EMPREENDIMENTO Em 14 de setembro de 2015, a Câmara de Vereadores da capital gaúcha aprovou o Projeto de Lei Complementar do Executivo (PLCE) nº 007/14, reintroduzindo na cidade a Zona Rural, que havia sido extinta em 1999 pelo Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano e Ambiental (Lei Complementar nº 434/1999), em vigor até hoje. Parte da fazenda e algumas áreas de Belém Novo passaram a integrá-la. A advogada Michele Rodrigues, moradora do bairro há 15 anos, conta que o fato chamou sua atenção e de alguns vizinhos, pois a volta da Zona Rural era um pleito antigo dos produtores da região. No entanto, três semanas depois, no dia 05 de outubro, a mesma câmara aprovou o PLCE 005/15, que propunha alterações ao Plano Diretor. Dentre ela, estava a reversão de parte da área rural SEXTANTE Dezembro de 2018

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FELIPE FARIAS

da fazenda em urbana, possibilitando que se aumentasse o índice construtivo em alguns pontos do terreno. No dia 20 de novembro, o então prefeito José Fortunatti sancionou a Lei Complementar 780/2015, validando as mudanças propostas. Segundo Michele, rumores sobre a construção de um novo condomínio de luxo no bairro somaram-se a essa inconstância legislativa, mobilizando uma parcela de moradores do local. Os boatos revelaram-se verdadeiros: desde 2010, a fazenda é propriedade da Arado Empreendimentos Imobiliários Ltda., empresa que pretende utilizar o espaço para construir cerca de 1,6 mil unidades residenciais e um hotel, além de áreas comerciais e um pólo tecnológico. Michele é contundente em sua crítica: “Na justificativa para a lei [780/2015], vinha essa questão de ajustar o Plano Diretor ao projeto proposto para a área, que teria o objetivo de barrar o crescimento urbano pro extremo sul. Tu acreditas nisso?” Além da preservação da fazenda, existem as questões urbanísticas que afetam o bairro. É este um dos principais argumentos da campanha Preserva Arado, feita pelo Movimento

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Preserva Belém Novo, que já existia e trata de diversos assuntos referentes à comunidade. Michele trabalha de forma voluntária na campanha e diz que a lógica do desenvolvimento e da geração de emprego que um projeto como esse pode promover cativa mais os moradores do que a preservação da memória e do meio ambiente. Ela insiste: “A gente vem tentando mostrar como é frágil esse argumento de que a vinda de um empreendimento grande traz desenvolvimento. Não é bem assim. A Hípica [bairro da Zona Sul de Porto Alegre] foi o que mais cresceu nos últimos anos, e ali há ruas sem calçadas., Sei de associações de moradores que estão com problema de fornecimento de água. Então, a vinda de mais gente pra morar aqui não garante a solução de problemas, ela às vezes mantém os mesmos problemas, que só aumentam porque tem mais gente”. Com o apoio do Coletivo Ambiente Crítico, grupo multidisciplinar em defesa do meio ambiente, o Preserva Belém Novo fez uma denúncia ao Ministério Público Estadual (MPE). Foram reunidos inicialmente documentos que comprovam a existência

“CABRAL NEM IMAGINAVA EM VIR PRA CÁ E OS ÍNDIOS JÁ ESTAVAM AÍ” Uilson Xavier

Produtor rural, um dos primeiros a encontrar artefatos indígenas na Fazenda

de um sítio arqueológico indígena no local, além de um dossiê que aponta falhas no Estudo de Impacto Ambiental apresentado pela empresa, como a omissão de espécies que habitam a fazenda. O MPE procedeu com uma ação civil contra a Arado Empreendimentos e a Prefeitura de Porto Alegre e, em abril de 2017, a juíza Nadja Mara Zanella, da 10ª Vara da Fazenda Pública de Porto Alegre, suspendeu liminarmente a Lei 780/2015, alegando ausência de participação popular durante o processo legislativo. Desde então, o projeto está embargado, e os movimentos de preservação da região tem trabalhado para informar a população não só sobre a situação, mas também sobre a própria existência da fazenda, que ainda é desconhecida. Em períodos de chuva, a fazenda recebe água das cheias do Guaíba

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A Fazenda Arado Velho apresenta um patrimônio arquitetônico e histórico dos séculos XIX e XX, incluindo ruínas, um haras e o emblemático casarão no topo do Morro do Arado. Por volta de 1937, o então diretor do jornal Correio do Povo, Breno Caldas, adquiriu a fazenda e a organizou em diversos núcleos construídos, relacionados à produção de leite, arroz e para a criação de cavalos de corrida. Segundo André Roberto Conelli, ex-morador do bairro, quando a família Caldas era proprietária das terras, a fazenda era aberta à população. “A gente acampava lá na beira, na orla”, ele conta. “O jeito mais rápido [de se chegar à Ponta do Arado] é de barco. Um amigo tinha barco, era pescador, então a gente ia. Ficava lá uns dois meses, e quando precisava de alguma coisa, pegava o barco, vinha aqui no mercado, na farmácia, depois voltava”, recorda. No entanto, muito antes disso, a Fazenda Arado Velho já havia sido ocupada por grupos indígenas da etnia guarani. Em 1999, após quase um ano de pesquisas que confirmam a ocupação pré-colonial guarani na região, a arqueóloga francesa Patricia Gaulier registrou junto ao Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) o sítio arqueológico da Ponta do Arado (RS-JA-16). No decorrer de sua pesquisa, Patricia foi apresentada a Uilson Xavier, um dos primeiros a encontrar artefatos dos guaranis na fazenda, ainda nos anos 1960. Ele relembra os dias em que acompanhou a arqueóloga à fazenda: “A gente começou a caminhar no local, e depois de umas duas horas ela se abaixou e me mostrou uma cerâmica, igual às que eu tenho, e me disse: ‘Realmente, aqui tem coisa mesmo’. E aí começaram a cavar”. Em um artigo, a pesquisadora destaca o potencial do sítio arqueológico. “No relato, a Patricia diz que esse sítio pode ter até 800 anos. Então, Cabral nem imaginava em vir pra cá e os índios já estavam aí”, acrescenta Uilson. Recentemente, um grupo de indígenas guarani-mbya fez a retomada

NATALIA HENKIN

HISTÓRIA

Entrada para a fazenda pela Avenida Heitor Viêira

da Ponta do Arado, reivindicando não apenas uma terra que pertenceu a seus antepassados em algum momento da história, mas uma terra com condições ecológicas fundamentais à sua sobrevivência.

QUESTÃO AMBIENTAL A Fazenda do Arado se encontra em uma transição entre a Mata Atlântica e o Pampa. Patrimônio único de Porto Alegre, abriga espécies raras e em risco de extinção, além de servir de corredor ecológico para o fluxo de animais e plantas entre as zonas de conservação. Ademais, a área é baixa e serve como planície de inundação das cheias do Guaíba, com capacidade de absorver cerca de um bilhão de litros de água. Para a construção dos condomínios, seriam utilizados 276 hectares do terreno, dos quais se estima que ao menos 221 precisariam ser aterrados. Segundo dados do Coletivo Ambiente Crítico, tal medida devastaria os ecossistemas da fazenda. O engenheiro ambiental Iporã Possanti, membro do coletivo, critica a noção de compensação adotada pelas instituições quando se trata de contrapartidas para grandes empreendimentos. “Sempre se trabalha no paradigma de que tudo pode ser

compensado, de que não existe dano irreversível. Mas muitos danos são, sim, irreversíveis, como por exemplo, o dano à paisagem, ou o dano no caso de uma espécie extinta”, pondera. A publicitária Caroline Jacobi, também integrante do coletivo, reforça: “Não é calculada a soma de todos os danos ambientais. Hoje em dia, se tu quisesses reverter o aquecimento global plantando árvore, não ia ter área suficiente na Terra pra plantar. Se rouba tempo da natureza, os sistemas demoram pra se recuperar. Enquanto isso a gente tá ao mesmo tempo em diversos lugares, danificando a natureza, e a gente não calcula os danos”. Navegador desde criança, Uilson conhece a Fazenda como a palma da mão. “Do morro, tu tem uma visão tanto pro lado da Lagoa dos Patos como uma visão pro Centro da cidade. Tem banhado, viveiro de pássaros, tem jacaré. Já ouvi dizer que tem lontra, tem capivara, ratão, bugio, gato do mato, gambá, graxaim, tudo que tu pode imaginar. Aqui do lado, bem pertinho”, ele descreve. Por enquanto, o projeto segue embargado pela justiça, que deve definir uma sentença até o final do ano. Até lá, a fazenda permanece, nas palavras de Uilson, “um lugar magnífico”. SEXTANTE Dezembro de 2018

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ESTÁDIO DA TIMBAÚVA

Palco de grandes partidas do passado, o Estádio da Timbaúva foi dividido em campos menores e hoje é utilizado com pouca frequência


MEMÓRIAS DE

FORÇA E LUZ NA RUA ALCIDES CRUZ, CAPÍTULOS IMPORTANTES DO FUTEBOL PORTO-ALEGRENSE FORAM ESCRITOS. HOJE, AS MEMÓRIAS GUARDADAS NOS GRAMADOS DO GRÊMIO ESPORTIVO FORÇA E LUZ ESTÃO AMEAÇADAS Texto: Gabriel Omelischuk gabriel.omelischuk@outlook.com Fotos: Júlia Provenzi julia_provenzi@hotmail.com

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Em 7 de setembro de 1903, o Sport Club Rio Grande desembarcou em Porto Alegre para realizar a primeira partida de futebol do município. O amistoso entre os elencos A e B da equipe da Região Sul do Estado terminou sem gols, mas foi o ponto de partida para a tradicional história esportiva da capital gaúcha. Com a participação exclusiva da elite financeira nos primeiros clubes fundados, operários das fábricas e companhias improvisaram seus próprios times e iniciaram o processo de popularização do futebol na cidade. Os campos para a prática do esporte se espalharam pela Capital. Poucos resistiram ao tempo. Entre eles, está o Estádio da Timbaúva, um sobrevivente na memória futebolística de Porto Alegre. No contexto de expansão dos times de futebol operários da cidade, funcionários da Companhia Força e Luz e da Companhia Carris Porto-Alegrense fundaram, em 8 de setembro de 1921, o Grêmio Esportivo Força e Luz, um dos poucos clubes oriundos de empresas a atingirem o profissionalismo em Porto Alegre. Inicialmente, o time mandava suas partidas no Campo da Rua Arlindo, mas o espaço começou a se tornar pequeno para as ambições do Forcinha, como era carinhosamente chamado. Assim, em 14 de abril de 1935, foi inaugurado o Estádio da Timbaúva, localizado na Rua Alcides Cruz, número 125, Bairro Santa Cecília. O confronto de inauguração foi entre os donos da casa e o Internacional, terminando com vitória do time colorado pelo placar de 5x1.

O VELHO FUTEBOL Frequentar o Estádio da Timbaúva era um programa muito diferente do que figurar nos grandes palcos atuais do futebol porto-alegrense. O aposentado João Carlos Rimolo, 74 anos, conhecido pela alcunha de João Padeiro, costumava marcar presença nas arquibancadas do Força e Luz junto de seu pai na década de 1950. Revirando a memória, ele descreve que ir ao estádio era muito mais tranquilo do que atualmente: “Eu ia com meu pai. Naquela época não era

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“NÃO EXISTEM MAIS CAMPOS EM PORTO ALEGRE. QUANDO EU ERA GURI, NO MEU BAIRRO TINHA 10 CAMPOS DE FUTEBOL. HOJE, NÃO TEM MAIS NENHUM” João Padeiro

Antigo frequentador da Timbaúva

a multidão que é hoje. Naquele tempo não tinha problema nenhum. O estádio lotava, mas era pequeno”. João descreve a Timbaúva como um “estádio normal”. Os torcedores se posicionavam nas arquibancadas laterais do campo, paralelas à Rua Silva Só, enquanto o espaço atrás dos gols ficava vazio. Em 1955, o estádio recebeu um novo pavilhão de arquibancadas, o qual seria o protagonista da história mais curiosa do local. Aírton Ferreira da Silva era um centro-médio de muita técnica que desfilava sua juventude nos gramados da Timbaúva defendendo o vermelho e branco do Força e Luz. Aos 20 anos de idade, chamou a atenção dos dirigentes do Grêmio, que apresentaram uma proposta inusitada ao Forcinha: o jogador em troca de 50 mil cruzeiros mais um pavilhão de arquibancadas da antiga Baixada do Grêmio, que ficava localizada no atual Parque Moinhos de Vento. Após o Força e Luz aceitar a proposta, o atleta contratado pelo tricolor ficaria conhecido pelo apelido de Aírton Pavilhão, reconhecido como o maior destaque da história do Força e Luz. O atleta ficou marcado pelo seu lance característico de alta técnica que figurava nos gramados da Timbaúva, como descreve João Padeiro: “Ele pegava a bola lá na linha de fundo da defesa, na bandeirinha de escanteio, e atrasava de trivela para o goleiro. Ele ficava marcado por alguns jogadores, então dava o corpo para eles, porque

era muito grande, mas nunca fazia a falta”. Aírton Pavilhão não era conhecido apenas pela sua habilidade acima da média, mas também por protagonizar situações criativas e excêntricas no terreno do Força e Luz. “Tinha outro lance: o goleiro ia bater o tiro de meta, e ele ficava na linha da grande área. Quando o goleiro tocava a bola para ele, o Aírton entrava na área e agarrava a bola com a mão, já que para ela entrar em jogo precisa sair da grande área. Essa aí era bem famosa”, conta João Padeiro. Além de ser a casa de grandes atletas do futebol brasileiro, como Dorval, campeão do mundo em 1962 e 1963 pelo Santos de Pelé; e Abigail, que compunha o Rolo Compressor do Internacional, o Estádio da Timbaúva foi sede do primeiro confronto do Campeonato Brasileiro de Seleções Estaduais no Rio Grande do Sul, quando os gaúchos empataram com o selecionado do Distrito Federal por 3 a 3. A partida foi disputada em 7 de junho de 1936. Diversos clássicos entre Grêmio e Internacional também foram disputados no local. Em 1959, o Força e Luz fechou as portas do Departamento Esportivo pela primeira vez, fato que transformaria a história do Estádio da Timbaúva.

A NOVA TIMBAÚVA A movimentação esportiva no campo do Força e Luz sofreu transformações com o fim do futebol do seu anfitrião. O espaço passou a sediar jogos da extinta Copa Paquetá, que movimentava o futebol de várzea de Porto Alegre. Em 2006, o Força e Luz foi oficialmente extinto junto a Federação Gaúcha de Futebol após tentativas frustradas de retomar seu futebol, colocando, em seguida, o seu estádio para leilão. O novo proprietário da Timbaúva passou a ser o Grupo Zaffari, o qual arrematou o local por 9,5 milhões de reais. O antigo campo do Força e Luz foi repartido em quatro quadras reduzidas, mantendo um gramado natural. Os portões ficam fechados e guardados por cães. Segundo uma nota enviada pelo Grupo Zaffari, o espaço é utilizado por colaboradores da empresa como área de entretenimento e para prática esportiva.


A frequência de jogos realizados no local é muito pequena. Dessa forma, o Estádio da Timbaúva se transforma cada vez mais em apenas uma memória. “Era um muro normal, pintado e sem pichação nenhuma. O gramado do Força e Luz era muito bom”, descreve João Padeiro. O pavilhão de Aírton já não faz mais parte do cenário. As condições de preservação do antigo palco futebolístico deixam a desejar. Os muros que percorrem a Rua Alcides Cruz estão repletos de pichações, enquanto grades e portões sofrem com a ferrugem. Os campos também não apresentam a qualidade de antigamente. No terreno danificado, alguns trechos de terra chamam atenção, enquanto outros estão com excesso de gramado. A vizinhança do entorno do estádio reclama das condições da calçada de responsabilidade do Grupo Zaffari. A professora Júlia Maria Lima Silva, 60 anos, moradora da Rua Alcides Cruz há quase duas décadas, já procurou os proprietários do local para que providências fossem tomadas: “Os buracos são ao longo da calçada,

mas na parte da grama. O esquilo do Zaffari deveria visitar e fazer a festa. Quando entrei em contato, me responderam que encaminhariam para o setor responsável, mas, até hoje, nada”. Júlia considera a situação perigosa para os pacientes de uma clínica de olhos que desembarcam nos arredores do Estádio da Timbaúva.

O APAGAR DA LUZ Sem relevância para o atual cenário do futebol porto-alegrense, o Estádio da Timbaúva se mantém como um espaço de resistência da história esportiva da Capital, entretanto, os novos proprietários planejam mudar radicalmente a finalidade da área. Em nota, o Grupo Zaffari afirma que a antiga casa do Força e Luz será transformada em um centro comercial da empresa. O empreendimento está em fase de aprovação do projeto na Prefeitura de Porto Alegre. Em agosto de 2010, o jornal Correio do Povo já noticiava o início dos processos legais para transformação da área, os quais se arrastam até hoje. O Grupo Zaffari afirma também que

ainda não há uma previsão para o início das obras. Enquanto isso, antigos apaixonados pelo esporte, como João Padeiro, assistem aos palcos esportivos da Capital se transformando em novos empreendimentos. “Não existem mais campos em Porto Alegre. Quando eu era guri, no meu bairro aqui na Azenha e Menino Deus, tinha 10 campos de futebol. Hoje, não tem mais nenhum. Estão todos virando investimentos para construções”, lamenta João Padeiro. Na Timbaúva, já não figuram os embates emocionantes entre a dupla grenal ou os clássicos entre seleções estaduais. Os lances brilhantes de Aírton Ferreira da Silva, antes de ser Aírton Pavilhão, também ficaram na memória. Nem mesmo os jogos de várzea movimentam os gramados do antigo Força e Luz. Hoje, o Estádio da Timbaúva é um templo histórico do futebol portoalegrense que está prestes a cair.

Os muros que envolvem o antigo campo do Força e Luz estampam abandono e descaso

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CEMITÉRIO DA SANTA CASA


A VIDA NO ENTORNO DOS QUE JAZEM

A INTERAÇÃO DAS PESSOAS COM O CEMITÉRIO ATIVO MAIS ANTIGO DA CAPITAL GAÚCHA Texto e fotos: Gabriela Martins Dias gabrielamartinsdias@outlook.com


“Retorna ao teu lugar”, comunicam palavras grafadas em latim, logo à frente de quem sobe as escadas para entrar no Cemitério da Santa Casa. A mensagem, inscrita numa construção neoclássica, traz à lembrança a inevitável finitude da vida humana. Apesar de grande parte dos porto-alegrenses querer manter distância do espaço localizado no alto do Bairro Azenha, os portões ficam abertos ao público das 8h às 18h. Entre os muros, quase nenhum som é emitido, além do canto dos pássaros e do sopro do vento. O barulho do motor dos carros e das buzinas que passam pela Avenida Oscar Pereira, contudo, não deixam os visitantes esquecerem que a vida segue na capital. O ambiente com mais de 34 mil jazigos faz parte do cotidiano de Lindomar Ribeiro, de 53 anos, que atua como sepultador desde 2010. Ele realiza cerca de cinco enterros por dia, além de colaborar na exumação de corpos. O pedreiro, ex-funcionário do Hospital da Santa Casa, não imaginava que trabalharia no cemitério, mas encarou a posição com naturalidade quando foi convocado pela instituição para mudar de cargo. Ele conta que, quando era criança, vendia flores junto à tia em períodos de finados, o que contribuiu para que construísse uma visão tranquila quanto à morte desde cedo. “De uma maneira ou de outra a gente vai ir, uns mais cedo, outros mais tarde, mas todos vão”, lembra. Ao conversar sobre o emprego com outras pessoas, o sepultador percebe que algumas se espantam por imaginar

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ser uma atividade desagradável; outras, principalmente crianças, costumam perguntar se ele já enxergou fantasmas. Lindomar garante que nunca viu seres sobrenaturais, assim como defende que a profissão é igual a qualquer outra: cumpre um papel fundamental para quem permanece em vida. Ele entende que o contato direto com a morte faz com que tenha uma perspectiva diferente, comparada à da maioria da população. Mas apesar de estar habituado, reconhece que lida com situações tristes e, por isso, faz questão de separar a profissão da vida pessoal: “O que eu vejo aqui, não levo para casa”. O cemitério também faz parte da rotina da historiadora Juliana Mohr. Embora também nunca tivesse cogitado trabalhar lá, há quatro anos guia a visitação de grupos de estudantes e outros interessados em conhecer o local. Ela percebe que a morte é pouco abordada pela sociedade contemporânea, como resultado do aumento da expectativa de vida. Antigamente, era comum perder pessoas próximas desde cedo, assim como frequentar velórios para apoiar os familiares dos mortos. Interagindo com os visitantes, identificou uma proteção da juventude atual em relação a esses acontecimentos, sendo impedida muitas vezes pelos pais de frequentar rituais fúnebres de pessoas próximas. Para ela, os discursos de longevidade e saúde contemporâneos também reforçam um tabu, que vê como desnecessário, em torno do assunto. “A realidade da morte fica cada vez mais distante, mas ela ainda é presente”, pontua.

No momento em que a funcionária pública Tatiana Saede, de 43 anos, se deparou com a morte da mãe, em 2008, precisou tomar decisões impensáveis subitamente. Por sugestão da funerária, enterrou o corpo de Loni Steuernagel em uma catacumba, mais conhecida como “túmulo de gaveta” no Cemitério da Santa Casa, a mesma onde foi colocado o do pai, Nelson Seade, no ano seguinte. Para preservar o nome dos dois na história, escolheu a pedra, o vidro, colocou uma foto e a frase “saudades eternas”. Ela visita o cemitério de duas a três vezes por ano para limpar, colocar novas flores e orar pelos familiares. Ainda assim, salienta: “Não necessito do local físico como referência para me conectar com eles, pois é na minha memória e coração que eles se mantêm vivos.” Devido às crenças católica e espírita, pensa que a morte é apenas uma passagem para as pessoas, que continuam a vida em outra dimensão. Para ela, o cemitério é um espaço de homenagem, memórias e saudades, mas nunca de angústia.

PATRIMÔNIO CULTURAL No mesmo local, está o corpo do positivista do século XIX Júlio de Castilhos, cujo túmulo foi feito por um dos artistas responsáveis pela bandeira do Brasil, Décio Villares. Na época, os políticos do movimento que faleciam recebiam uma sepultura monumental do governo em agradecimento pelo que fizeram à sociedade. Também enterrado lá se encontra Casemiro Scepaniuk, pioneiro do paraquedismo do século XX, que construiu a própria sepultura para


não causar transtornos à sua esposa. O homem, falecido em 2016, criou um dispositivo de segurança sem o qual ninguém pratica a atividade atualmente. Junto à sua estátua, no epitáfio, deixou escrita a importância de materializar a sua memória. Ele desejava incentivar jovens a participar do Exército Brasileiro. O sepultador Lindomar conheceu o paraquedista, em vida, no Cemitério da Santa Casa. Ele conta que um dia encontrou Scepaniuk, com mais de 90 anos, sentado dentro do túmulo já construído, e disse: “O que o senhor quer aí dentro, Seu Casemiro? Não tá na hora de tá aí ainda.” O paraquedista respondeu que queria arrumar bem o local que seria a casa dele e da esposa quando morressem. Ao verificar que a sepultura estava úmida e infestada de formigas, o senhor pediu ajuda a Lindomar para tapar os buracos. Assim, os dois passaram a se encontrar, rotineiramente, para consertar a estrutura. Depois de resolverem o necessário, Lindomar passou a trabalhar também na casa do homem. Nesse período, após uma longa viagem de caminhonete, Scepaniuk começou a sofrer de trombose na perna, o que resultou no seu falecimento. Lindomar relata que sepultou o amigo, assim como ajudou a fechar a catacumba dele. E cada vez que passa pela estátua, durante sua jornada de trabalho, exclama: “Opa, Capitão Scepaniuk!”, com sentimentos positivos, ao rememorar a pessoa boa que foi o falecido. Juliana fica encantada com a diversidade de histórias que encontra no espaço cemiterial. “Todo o dia que vou

lá, sempre aprendo mais, tanto da parte histórica, quanto da humana.” O Cemitério da Santa Casa existe desde 1850, período em que o país era fortemente influenciado pela França, assim como pela religião católica. Sendo assim, as alamedas, árvores e sepulturas monumentais foram inspiradas no Cemitério do Père-Lachaise, de Paris. Para a historiadora, o local é um retrato das identidades de cada tempo. Atualmente, por exemplo, as famílias do Interior, mais religiosas, seguem preferindo sepulturas; as urbanas têm uma característica mais individualista, focando no tempo presente, e acabam optando pela cremação. Desde os anos 1980, o Cemitério da Santa Casa realiza visitas guiadas que, nos últimos anos, têm se tornado ainda mais frequentes. Além das turmas de Ensino Básico, recebe, uma vez por mês, pessoas interessadas ou marca visitações para grupos acima de dez pessoas. Todavia, Juliana acredita que o patrimônio funerário, ou seja, tudo o que envolve o morrer, como livros de registro, fotografias, técnicas de construção, ritos de morte, assim como o cemitério, precisa ser mais valorizado no Brasil. “Tem arte no local, principalmente do século XIX, que tu não vai encontrar em nenhum outro museu do país, só ali.” Segundo ela, em outras cidades, esse tipo de turismo já é consolidado, o que tem feito com que muita gente venha de outras viagens interessada no espaço. O professor Celso da Luz leva os alunos de 7º ano da escola Padre Jaeger ao cemitério há quatro anos para que aprendam sobre religião, português,

artes e história. Apesar de sempre ser questionado pelos pais quanto ao motivo da visita, acredita ser uma atividade importante na formação das crianças: “Eles correm, olham, tiram foto e perdem medo disso aqui”. A estudante Maria Eduarda Viana, de 13 anos, só foi permitida pela avó, sua tutora, de visitar cemitérios quando completou a idade atual. Durante a visita, descreveu o Cemitério da Santa Casa como um local bonito pelas estátuas e interessante por contar com túmulos de “famosos”. Ela, que participou do enterro de duas familiares nos últimos meses, diz que perdeu o medo de morrer e que deixou de encarar cemitérios como algo ruim. A jovem conta que, se a avó morresse, visitaria o túmulo e levaria flores como homenagem: “eu já aceitei [a morte] e é só para deixar a memória dela, porque tem gente que esquece”. Assim como foi para a Maria Eduarda, a historiadora Juliana considera que as reflexões sobre os ritos de passagem conferem aos visitantes uma visão diferente sobre a morte. E, acima de tudo, acredita na função social exercida pelas visitas ao cemitério, que têm colaborado para ressignificá-lo como mais um espaço da cidade, necessário, mas também de muita vida.

O túmulo de Casemiro Scepaniuk (ao centro), que criou o dispositivo de segurança dos paraquedas, é uma das atrações das visitas guiadas, como as promovidas pelo professor Celso da Luz com seus alunos do 7° ano (à direita)

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