Sextante 2014/2 - Mulher

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Eu só não te estupro porque tu não merece. Se os dois gemem, não é estupro. Vou te levar pra casa e acabar com a tua raça. Vou te levar pra minha cama e te esquentar. Vou ensinar esses gurizinhos a pegar mulher! Coloca o travesseiro na cara e cavalga. PUTA! Pensa no lado positivo, pelo menos tu é gostosa! Quero que tu 2

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me olhe e sinta todo o tesão que eu posso te dar. O que anda, eu pego. Eu sou um come cu de putas. Quem vê cara não come buceta. Vou morder a camisinha pra garantir pelo menos uns dois meses de foda. Mulher de batom vermelho não dá! Tu não é guria de ficar, é guria pra namorar. Mulher tem que se dar valor. 2014/2

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“Que nada nos limite... Que nada nos defina... Que nada nos sujeite... Que a liberdade seja a nossa própria substância..." Simone de Beauvoir


Editoriais 06 Entendeu ou quer que eu desenhe? O jornalismo se leva muito a sério, sem refletir sobre a sua responsabilidade O combate em rede Tudo que o é sólido se desmancha no ar Parto empoderado A mulher que aborta é uma de nós Amor no cárcere O corpo é meu, a luta é nossa: militância na rede Respeita a moça Das linhas invisíveis Eu canto para o teu preconceito Ao despertar já era outra Trabalhadoras, uni-vas! O lugar da mulher na política Entrevista com Yane Marques Ser prostituta As avós também transam Só é gorda quem quer? Martinha e a luta feminina em tempos de ditadura militar Não basta ser mulher

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UM JORNALISMO EM DESCONSTRUÇÃO

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esde o início, o projeto de uma Sextante com o tema “mulher” era desafiador. Daquelas pautas que são do tamanho do mundo. Sem resistência, a sugestão de assunto foi acolhida por toda a turma, e logo na primeira aula o tema estava definido. Algumas dificuldades surgiram já nas reuniões iniciais: não bastava ter como personagem uma mulher, seu papel deveria ser questionado. Não bastava falar de assuntos femininos sem procurar entender como se dá a construção de gênero na sociedade - e nos marcadores sociais, étnicos e estéticos que complexificam cada vivência.

ainda ser desconstruída. Talvez este tenha sido o primeiro exercício de alguns colegas de questionar o papel do jornalista na questão de gênero. Questionar o que seria relevante, como abordar as representações sem silenciar as vivências femininas plurais não é simples e não se aprende em um semestre. É diário e constante. Mais do que corrigir vírgulas ou erros de digitação, o trabalho das mulheres da Comissão foi de propor reflexão sobre o que estávamos escrevendo e reproduzindo. O clima foi de aprendizado.

O resultado são textos trabalhados em várias nuances de Escrever esses textos se entendimento e envolvimento. tornou um trabalho coletivo, de Com o professor, foi estabelecidiscussão. Nenhum assunto era do um já esperado conflito gerafácil - e necessitava a devida recional. Até pouco tempo, a luta flexão. Títulos, palavras, termos, era pela liberdade sexual. Para enfoques. Cada “detalhe” é nós, hoje, não basta alcançá-la. importante. Muita coisa precisa Queremos mais. Queremos a

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Presidência da República, mas também uma Secretaria de Políticas para Mulheres. Não queremos a igualdade pela igualdade. Queremos questionar as estruturas de poder, para que ninguém possa ser oprimido. Neste processo de desconstrução, vamos aos poucos enxergando quais são nossos privilégios. O exercício de empatia teve que ser constante - tentar entender x outrx é cada vez mais necessário ao jornalista que precisa representar um mundo plural. Há muitas mulheres que não puderam estar representadas nestas páginas. Para aquelas que dividiram suas lutas e histórias com estes que fizeram esta revista, a nossa gratidão.

Mulheres da Comissão Editorial

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AINDA PROCURO ENTENDER

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sta turma escolheu um tema que, de alguma forma, estava caindo de maduro. Ainda não tínhamos uma Sextante com esta temática. E o que é mais importante, o resultado final decorre de uma excelente participação, tendo ocorrido algumas discussões como há muito tempo não se fazia no processo de elaboração da revista.

ma foi por provocações minha em sala de aula. Em que pouquíssimos se manifestaram.

Considero importante deixar registrado um depoimento. Peguei os dois governos FHC já na condição de professor de jornalismo a FABICO/UFRGS. A minha unidade estava um lixo em termos de estrutura física e material. Baixa qualificação dos Por outro lado, o semestre foi professores com pouquíssimos marcado pela re(eleição) da pre- doutores; e, de um modo geral, sidente Dilma, fechando 16 anos funcionários e docentes aos berros pelos baixos salários. Negro com o PT no poder. Uma reeem sala de aula era africano de leição marcada por um elevado grau de intransigência, rachando convênio. A palavra que mais se escutava era sucateameno país quase que ao meio. Em que, mais uma vez, a mídia cor- to. E não estou me referindo a porativa "isentamente" desempe- discursos militantes. O quadro nhou o seu velho papel golpista. atual é exatamente o oposto. Nos governos Lula e Dilma não E, estranhamente, passei o semestre inteiro sem presenciar em faltou dinheiro nas universidades. A minha unidade se modernizou sala de aula, bar, corredores ou em uma velocidade espantosa. A outras dependências da Fabico qualquer discussão, conversa ou qualificação é a mais alta da história. Não temos, ainda, o nível debate sobre o país. Uma das salarial do dito primeiro mundo, poucas vezes que escutei algu-

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mas é infinitamente superior aos governos FHC. De um modo geral - e esta é a crítica dos setores mais à esquerda - a universidade, como um todo, só enxerga à sua frente o mercado. A preocupação é com formação e qualificação técnica da mão-de-obra que o país necessita para o seu desenvolvimento. Construção de um capitalismo mais civilizado. Negros em sala de aula, ainda poucos, são das periferias. Que a universidade melhorou, nos governos petistas, é visível. Esta geração, os alunos da atualidade, não imaginam o que era a universidade no tempo em que a "discussão" e ameaça era a privatização do ensino público superior. Ainda tento entender os motivos de tanto silêncio por parte da "massona" dos estudantes. Desse desinteresse pelo futuro!

Professor Ungaretti

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Imagem: Reprodução/LoveLove6


Entendeu ou quer que eu desenhe? por Thaís Seganfredo

Romper paradigmas. Quebrar tabus. Causar estranhamento. Se expressar de forma livre, a partir de diversas formas, conteúdos e traços. Essas são as táticas da nova geração de mulheres cartunistas, que vêm promovendo uma verdadeira revolução no campo das artes gráficas no Brasil. A meta: ocupar um espaço artístico de tradicional expressão e contestação política na história do país. A principal arma: as redes sociais. Os quadrinhos sempre foram um espaço histórico de dominação masculina. No mundo todo, salvo raras exceções como a iraniana Marjane Satrapi, era a partir da visão masculina que a mulher se via nas artes gráficas. As representações femininas criadas foram diversas, desde a inteligente e crítica Mafalda (de Quino) e a libertária Rê Bordosa (de Angeli), até as super-heroínas sexualmente objetificadas e seguidoras de um padrão de beleza absurdo imposto por cartunistas como Stan Lee. No Brasil, a situação está mudando com uma verdadeira profusão de cartunistas levantando suas vozes e canetas. Assim como outras mulheres de sua geração, Roberta Araújo, de 22 anos, viu nos quadrinhos

uma oportunidade de libertação. Presa no ambiente acadêmico das Belas Artes, ela criou uma página no Facebook para se divertir compartilhando ilustrações e quadrinhos de que gostava. As imagens compartilhadas traziam sempre o ponto devista das mulheres. Hoje, o Mulheres nos Quadrinhos (MnQ) tem quase 76 mil curtidas no site e em breve vai virar um livro. “A página começou a criar vontade própria, as meninas começaram a sentir que a página era um lugar onde poderiam apresentar seus trabalhos a outro público”, conta Roberta.

livros. A organizadora explica a seleção: “São pessoas com quem eu tenho um certo contato desde o começo, e elas têm os trabalhos mais curtidos e compartilhados pelo público”. Mais de 400 pessoas financiaram o projeto, que ultrapassou em oito mil reais a meta dos 15 mil necessários para a produção dos livros.

Além da libertação, os quadrinhos e ilustrações são uma forma eficaz de empoderamento feminino, especialmente com a ajuda das redes sociais. “Raramente vai ter alguém que passa por um quadrinho sem Pessoas de diferentes idades, dar um lida. Então, se de repente aparece um quadrinho contra ideologias e gêneros, de todos os estados do País, estão entre o machismo na timeline de um machista, dificilmente ele não os seguidores do MnQ. Entre vai ler, e aí já foi tocou ferida”, os temas preferidos das carturesume Roberta. “A cada dia nistas, flutuam desde críticas isso está mais visível, é bem sociais e protestos contra a opressão à mulher até questões aquela história de ‘entendeu ou mais intimistas relativas ao sexo, quer que eu desenhe?’”, completa a cartunista. ao amor e a dilemas internos, formando um vendaval de traRecentemente, o crowdfunços, cores e formatos. ding ajudou na concretização de outro projeto relacionado às Agora, O MnQ vai ganhar uma edição impressa, financia- mulheres cartunistas: o Lady’s Comics, site que reúne trabada de forma coletiva, por meio do site Catarse. Com a curado- lhos, entrevistas e artigos sobre ria de Roberta, 23 autoras e um o assunto. “HQ não é só para o seu namorado”, diz o slogan de coletivo de cartunistas foram selecionadas para compor dois apresentação da página. Ideia

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E quanto à representação mas Mariamma dá o recado: das mulheres nos HQs, es“se alguém tiver interesse (alô, pessoas!) em expandir o encon- pecialmente nas revistas de super-heróis, é possível pretro, podemos conversar”. ver um futuro em que a forma Para a jornalista, “os quadriEm outubro, elas realizaram objetificada com que somos um encontro em Belo Horizonte nhos são um instrumento de retratadas acabe? “Eu acho (MG), para discutir temas como criação e de liberdade, e muitas impossível, porque há um públimulheres se encontram nessa erotismo nos quadrinhos, webco que gosta disso”, sentencia arte por isso.” Ela cita o trabalho comics, pesquisa de personaMariamma. “Mas podemos gens e a transgressão da repre- das cartunistas Carol Rossetti e continuar questionando esses Gabi LoveLove6 (ver no box ao sentação feminina nos HQs. O estereótipos, expor mais como evento também envolveu oficilado), que tratam de temas como queremos ser representadas e, nas, intervenções e uma feira li- a sexualidade feminina. “Elas são principalmente, criar. Queremos vre para a venda de quadrinhos. provas de como os quadrinhos mais mulheres desenhando, não só colaboram no empoNo Catarse, foram mais de 20 escrevendo e colocando novas mil reais arrecadados, ultrapas- deramento das mulheres, mas histórias na roda”, completa. sando os 16 mil previstos. Ainda também dão um salto para outras discussões que nos envolvem.” não há previsão de expandir o encontro para outros estados, da jornalista e estudante de Artes Visuais Mariamma Fonseca, o site é gerenciado de forma coletiva por um grupo de mulheres.

Chiquinha A porto-alegrense Fabiane Bento Langona é formada em jornalismo, mas trabalha oficialmente como cartunista e ilustradora. Desde 2013, seus quadrinhos são publicados toda segunda-feira no caderno Ilustrada, da Folha de S. Paulo, junto às criações de mais quatro cartunistas mulheres. O trabalho da artista já apareceu também em revistas como TPM, Caros Amigos e Le Monde Diplomatique. Vida sexual, dilemas, ansiedades, anseios e críticas irônicas à sociedade são alguns dos temas retratados em suas obras.

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Lovelove6 Feminista e estudante de Artes Plásticas, Gabriela Masson publica seus quadrinhos de forma independente, em redes sociais, revistas alternativas e zines. Sua principal criação é a Garota Siririca, personagem que fala sobre sexualidade feminina e libertação, tocando em tabus como a masturbação. Seus quadrinhos envolvem também assuntos mais intimistas, como desilusões amorosas, além de críticas irônicas ao machismo.

Carol Rossetti A artista mineira fez uma série de ilustrações que se tornou viral nas redes sociais. De forma minimalista, os desenhos falam de machismo, sexualidade e auto -estima, a partir de micro histórias de diferentes mulheres. “Eu sempre convivi com uma série de pequenas restrições cotidianas sobre meu corpo e o das tantas mulheres que fazem parte da minha vida, e depois de um tempo isso começou a me incomodar. Esse controle é tão parte da nossa cultura que nem sempre nos damos conta de como ele é cruel e do quanto restringe nossas escolhas pessoais”, resume. As ilustrações podem ser compradas no site da artista.

Images: Reprodução

Laerte Aos 63 anos, Laerte Coutinho é uma das principais cartunistas do País. Parte da geração de ouro dos quadrinhos no Brasil, junto de Angeli, Henfil e outros nomes, Laerte é um expoente da resistência à ditadura militar, época em que ainda não se definia como mulher. A cartunista começou a descobrir sua orientação sexual e se entender como transgênero há 10 anos. Em 2009, assumiu publicamente sua identidade feminina e bissexual, a partir de tirinhas publicadas no caderno Ilustrada, da Folha de S. Paulo. As obras da cartunista falam de política e contestação social - como já fazia desde os anos 70 em revistas como O Pasquim e Balão -, além de apresentarem crônicas do cotidiano. A artista criou personagens como Deus, os Piratas do Tietê e a travesti Hugo Baracchini. 2014/2

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*tiras da pรกgina Mulheres nos Quadrinhos (MnQ)

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O jornalismo se lev a muito , a serio, sem refletir sobre a sua responsabilidade Entrevista com Fernanda Nascimento por Luana Casagranda e Nádia Alibio

Fernanda Nascimento é feminista e ativista no Grupo Gemis. Ela é repórter do Jornal do Comércio e faz mestrado em Comunicação Social na PUCRS, onde pesquisa as representações da homossexualidade nas telenovelas. O Gemis - Gênero, Mídia e Sexualidade, surgiu em 2014 e tem a proposta de discutir a maneira como a mídia trata de questões LGBT.

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des mais justas em relação a forma geral, o preconceito conoutras tem tudo a ver com tra a sexualia nossa concepção social [o jornalita] não dade é mais Gay Rubin fala que as sociede um todo. O jornalismo enraizado. dades ocidentais são organizatem uma responsabilidade tem um exercício A primeira das de uma forma que a gente de alteridade, que coisa que sobre isso que deveria tem uma hierarquia das sexuali- ser mais cobrado, deveé de se colocar tu aprende dades. No topo, estão as pesso- ria ter mais consciência. no lugar do outro. a xingar as heterossexuais: casais mono- Quando tu faz esse tipo o outro é gâmicos, sem sadomasoquismo, de matéria tu acaba recom "viado", sexo só entre duas pessoas. É o produzindo novas formas de porque é a coisa mais terrível topo da pirâmide. Mais pra baixo violência simbólica. Quando tu atacar a masculinidade ou femitem uma zona de constestação: coloca o nome de uma pessoa nilidade de alguém. Em todos gays e lésbicas monogâmicos. trans, no jornal, o nome que ela os espaços, a gente aprende Na última das últimas das casnasceu, ao invés de colocar o o que é ser homem, o que é tas estão as pessoas trans. São nome social, tu tá violentando ser mulher. No caso das trans, tidas como as ela de novo. Quanto quando essa fronteira tá mais mais anormais As pessoas tempo ela teve que borrada, as pessoas não connessa sociedade. enfrentar preconceito seguem entender. Talvez elas reinvindicam o Tem toda uma pra conseguir dizer tolerem homossexuais, desde direito de ser construção que meu nome é "fulano", que eles sejam casados e dispatologiza essas preconceituosas. aí vem um jornal pra cretos. Seja gay, mas seja bicha sexualidades e tordizer "o nome dele é", discreta, não venha enviadar pro na elas menores, daí é dele, né, nunca é dela. meu lado. A gente tolera alguinferiores em relação às outras. mas sexualidades que são mais O jornalismo também faz essas enquadradas na norma - que construções. Se tu for pensar, as Nesse sentido, qual é a o papel é heterossexual, monogâmica, transexuais mais aceitas - entre social do jornalismo? entre duas pessoas. as aspas - têm de fazer a cirurO jornalismo tem que percegia de redesignação sexual. E ber um pouco também que tem Quando tu faz esse se tu tiver um transexual que tem uma responsabilidade com isso. pênis, ele é travesti. Não existe tipo de matéria tu transexual sem ter feito a cirurgia. Essas coisas são muito fortes acaba reproduzindo É daí que vem essa visão essen- socialmente. O jornalismo tem novas formas de uma função social muito imcialista da identidade, como se portante, mas todas as nossas violência simbólica. tivesse uma essência do feminiconstruções sociais são baseano, sabe? das nessas hierarquias e nesses O mais difícil das identidades binários. A gente não consegue Qual é a diferença entre discritrans é que elas não são binápressupor uma identidade que minação e preconceito? rias. E tu não sabe lidar com fuja desses binários. nada que não seja binário, com Preconceito e discriminação A nossa educação, desde muito alguém que tenha uma fronteira não são a mesma coisa. Tu de identidade borrada. Fora que cedo, é baseada nessas hierarquias. pode ser preconceituoso desde o gênero tem que ser igual ao sempre com uma mesma coisa Tem uma coisa também que sexo. é diferente de outros preconcei- e nunca expor isso ou nunca discriminar alguém por causa tos. Em relação à sexualidade, Saiu dessas fronteirinhas, disso. E a discriminação é o tu não tem isso. As pessoas já começa a problemática. ato simbólico de discriminar reinvindicam o direito de ser Identidade de gênero não tem alguém. São dimensões de prepreconceituosas. Elas querem nada a ver com orientação seconceitos distintos. atear fogo em CTG’s porque xual. Mas eu dei toda uma volta pra dizer que essas hierarquias elas acham que tem o direito de de classificar algumas identida- serem preconceituosas. De uma

Como o jornalismo constrói as narrativas LGBT?

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Todos atributos associados ao Então, não dá pra gente simplesmente enquadrar tudo como masculino. o mesmo preconceito porque Mesmo quando tu fala sobre são vivências muito diversas. LGBTs, gay remete a quê? Ao Por exemplo, a segunda onda homossexual masculino. do feminismo universalizava Por exemplo, pensando na todas as mulheres. A existência minha pesquisa, que é a reprefeminina é o que faz com que tu sentação LGBT nas novelas. Nós sofra opressão. Não, eu acho que tivemos 116 gays entre 1970 e tu tem que pensar de forma inter- 2013 e 76 são homossexuais seccional. A experiência feminina masculinos. Os homossexuais negra é uma. A masculinos lésbica é outra. Tem toda uma construção são muito Esses termos mais visíveis que patologiza essas são importantes dessexualidades e torna elas dentro Tem uma problematização em politicamente sas reprerelação ao termo que não é muito pra gente tentar menores, inferiores em sentações. corrente. Seria mais adequado a problematizar e A sexualidarelação às outras. gente pensar em preconceito e/ visibilizar isso. de feminina ou discriminação contra gêneros é mais regue sexualidades não normativos. lada. Nas novelas, a gente tem Qual é o tratamento dado às uma diversidade de representaDe fato, nós lésbicas temos parlésbicas no contexto machista ções homossexuais masculinos. ticularidades. A gente não pode achar que o termo homofobia dá da sociedade? No caso das lésbicas, a gente só conta de todos esses preconceitem lésbica chique. Lésbica camiNa sociedade, tudo que é tos e discriminações. No caso normal e natural é o masculino. nhão tá fora, mesmo quando ela das lésbicas, tem uma invisibilidaé visível, ela tá mais regulada. São Sobre o que se fala? É o masde enorme. A maioria das doculésbicas pra homem ver. Gays culino. O feminino tá fora da mentações históricas não relatam são mais visíveis e mais diversos, norma. Ao longo dos séculos experiências lésbicas. As mulheenquanto lésbicas são menos quem detém o poder? Quem res eram tão invisíveis, pelo fato tem acesso à educação? Quem visíveis e mais reguladas. Isso de serem mulheres. No caso das se aplica, de um modo geral, em tá na esfera política? Quem lésbicas, elas são duplamente intodas as outras coisas. ocupa espaço de poder? São visíveis. Lésbicas sofrem também os homens. Mesmo se tu for Tem também a questão do pelo machismo, o que não pode pensar em sociedades superde- humor. Essas bichas que fazem ser ignorado. Tu é silenciado pelo mocráticas, como a Grécia. Que sucesso são tidas como engrateu gênero e tu é silenciada pela democracia era essa? era uma çadas, como o feminino é tido tua sexualidade. democracia em como engraçado. Então, quanNo caso das que a mulher não do tu se aproxima do feminino, A gente é ensinado existia. transexuais, por tu é engraçado. E o masculino pela ignorância de a gente estar Essa invisibilida- não é engraçado, o masculino nesse sentinão falar. é a norma. Logo, as lésbicas de de não contar mento binário, a não são engraçadas. Tudo que a história já é uma gente não confoge do masculino é diferente. delas. A nossa história não tá segue pensar em pessoas que Até 2013, a gente tinha quatro contada, foi silenciada. O manão são cisgêneros. Ser cisgêtravestis e mulheres trans em chismo tá institucionalizado nero é uma norma. É tão dado novelas. Homens trans não na sociedade, não só nessa que o teu gênero é igual ao teu questão, mas no ensino, nesses existem? sexo, que tu não vai discutir conceitos de o que é bom. O isso. Tu só vai discutir quando a que é bom é o que tá associado tua identidade de gênero não for ao masculino: a força, o poder... igual ao teu sexo que tu nasceu. Esses termos geralmente não são muito problematizados. Mas, na origem, o termo “homofobia” remetia ao termo fobia mesmo. Era o medo, uma aversão contra os homossexsuais. Isso foi utilizado pelas pessoas preconceituosas pra dizer que elas tinham um medo, que elas tinham uma fobia em relação aos homossexuais. Em muitos tribunais americanos, essas pessoas eram consideradas culpadas porque eram eles que provocavam fobia nos outros.

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Fotos: Nádia Alibio

Talvez agora, com toda essa mobilização que tem acontecido nos últimos tempos, os colegas se sensibilizem... Coisas básicas de gênero, de não saberem, por exemplo, que se deve falar A travesti e não O traTem essa hierarquia. Sempre tu vesti. Acho que não tem um exercítem que procurar um psicólogo cio de alteridade, que é de se colocar pra falar que gays e lésbicas são no lugar do outro. O que acontece normais. Quando a gente sabe é jornalista dando juízo de valor em que a medicina tá ligada a uma tudo na construção da narrativa. As construção moral. A ciência não coisas mais emblemáticas envolvem tá ligada a algo neutro. Ela tá ligaas pessoas trans. É muita falta de da a uma moral. Os colegas não respeito. O quão mais fácil seria se sabem muito do que tão fazendo tu começasse perguntando como a porque a gente não discute isso pessoa quer ser chamada. Se tu não de uma maneira geral. sabe como abordar, aborda com A Guacira Lopes fala várias coi- uma linguagem neutra. Mas é o que sas sobre essa questão de como eu tava falando de alteridade, de tu a gente é ensinado pela ignorância se colocar no lugar do outro. de não falar. Então o que acontece: As pessoas querem verdades a gente nunca discutiu isso e de absolutas e não tem uma resposrepente chega numa redação e ta pronta. Eu tento não universalitem que fazer uma matéria sobre. zar e dizer que a culpa é do jornaAo invés de pesquisar, tu parte com lista. Não, a culpa é toda de um todos os teus pressupostos, com sistema social, mas o jornalista toda a tua ignorância - que não é também tem culpa. A instituição juízo de valor, mas ignorância no que ele tá também tem culpa. sentido de não saber. Tu não tem uma reflexão porque tu não teve uma reflexão nunca.

Partindo da tua experiência em redação, como as questões de gênero, sexualidade e identidade são encaradas pelos colegas?

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O jornalismo tem uma crença de que tudo que diz é verdade. Aquela teoria do espelho nunca foi superada. O jornalismo se leva muito a sério, sem refletir sobre a sua responsabilidade. As narrativas trans são as narrativas mais problemáticas porque as pessoas não param pra pensar, elas não tão abertas pra ouvir. Muitas vezes o problema é que elas nunca ouviram. Porque, se tu nunca parar pra pensar, tu só vai reproduzir o senso comum. Na correria do dia-a-dia, é muito mais difícil pra tu pensar sobre isso do que se tu tiver parado pra pensar sobre isso nas redações. As opressões são todas inter-relacionadas. Tu não pode pensar só numa opressão de gênero e sexualidade, nem ficar isolando, categorizando ou hierarquizando. "Ah, ser pobre é uma opressão maior do que ser mulher". De onde que tu tá falando isso? De que lugar tu tirou isso? É um exercício diário.

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O combate em rede Integração, especialização e responsabilização do agressor. Saiba como esses princípios guiam o enfrentamento à violência contra a mulher no Rio Grande do Sul. por Ingrid Oliveira

Quando existe iniciativa O Rio Grande do Sul tem se tornado um exemplo quando o assunto é política de prevenção e enfrentamento à violência contra a mulher. A institucionalização da Rede Lilás permite que a Lei Maria da Penha seja cumprida integralmente. Além disso, iniciativas como a Patrulha Maria da Penha, o Observatório de dados e a ampliação da quantidade de delegacias especializadas garantem a articulação dos poderes, colaborando no combate à violência doméstica. Mas como o estado se destacou nesse tema, quando comparado ao restante do país? A Secretaria Estadual de Políticas para as Mulheres (SPM/RS) foi criada no governo Tarso Genro (2011 - 2014), o primeiro a instituir um órgão específico para o tema. Quando 18

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a SPM foi criada, não existiam registros específicos de dados referentes à violência contra mulher, o que dificultava o início das atividades da Secretaria. Os primeiros anos após a criação foram necessários para apurar números e reorganizar o funcionamento dos serviços. No entanto, pouco tempo foi necessário para os resultados das iniciativas serem percebidos. O Rio Grande do Sul diminuiu os crimes contra as mulheres no primeiro semestre de 2014. A principal queda ocorreu no número de femicídios: 32,7%. Os dados foram levantados pelo Observatório da Violência contra a Mulher, vinculado à Secretaria de Segurança Pública (SSP). As ocorrências que também tiveram queda foram: estupros (18%), lesões corporais (5,3%) e ameaças (3%).

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no brasil ´ ocorre, em media, um femicidio

a cada uma hora e meia fonte: Ipea

No Brasil, entre 2009 a 2011, mais de

17 mil

mulheres foram assassinadas fonte: Ipea

61% dos óbitos eram mulheres negras 29%

dos casos de femicídio ocorreram no domicílio das vítimas

O Rio Grande do Sul teve uma redução de

32,7%

Nenhuma mulher foi morta nas áreas das Patrulhas Maria da Penha no RS

nos casos de femicídios em 2014 fonte: SPM- RS

Telefone 243 atendimentos no RS em 2010

lilás 3.134

atendimentos no RS em 2013

Infográfico: Nádia Alibio

fonte: SPM- RS


Hoje, esta indiferença começa a perder lugar para campanhas de enfrentamento. Mesmo assim, Esta é uma história que poo Brasil é o sétimo colocado no deria ser contada por várias muranking mundial de assassinatos lheres, pois, infelizmente, ela é de mulheres, o que o coloca encomum em vários lares. A nossa tre os países mais violentos do personagem é Maria: pele moremundo. De acordo com a ONG na, média estatura, 30 anos, do Mulheres, a estimativa é que 66 lar. Com quatro filhos jovens, de mil mulheres tenham sido as15 a 20 anos, ficou viúva há cinsassinadas por ano pela simples co anos. Enfrentando a dificuldarazão de pertencerem ao gênero de de criar os adolescentes sofeminino, entre 2004 e 2009. No zinha e a tristeza de uma grande Brasil, foram 43,7 mil assassinaperda, Maria pensou que seriam das entre 2000 e 2010. assim os seus próximos anos: saudade, solidão e desamparo. Não era o que desejava para si e O perfil da violência para os filhos. Conheceu, então, A violência doméstica contra a Carlos - um homem dez anos mulher segue um perfil comum mais novo, alto e com cabelo em muitos casos. O local onde escuro - que seria o refúgio dela ocorrem a maioria das agressões para tanta tristeza. Maria tinha ou o assassinato é o lar da vítima, agora a esperança de construir o que faz com que ela se sinta uma nova relação, não por preci- mais segura na rua do que na sua sar ter alguém, mas por querer. própria casa. Os companheiros

Capítulo 1 A história por trás de Maria

“Fui agredida pelo meu marido, desta vez foi fisicamente também, porque psicologicamente e verbalmente acontece sempre. Ele me acusa de ter amantes (que só existem na mente dele, que é muito ciumento) e procura me acuar de todas as formas. Desta vez eu fui orientada a ir à delegacia de mulheres, eu nunca tinha ido a uma delegacia antes. Fui também ao IML porque ele me causou lesões físicas. Não me separei porque não tenho como sobreviver, sempre fui pressionada a não trabalhar e agora com quase 50 anos, fica complicado começar no mercado de trabalho. Também não gostaria de acabar com minha família, não fui educada desta forma. Estou aqui torcendo para que agressores que não são presos recebam uma punição suficiente para não querer fazer de novo, caso a mulher não se separe por inúmeros motivos.” Lili - São Paulo SP *depoimento feito ao Fundo Fale Sem Medo.

Os nomes das personagens nesse relato foram trocados a pedido da entrevistada. Devido a sua condição vulnerável, foi necessário preservá-la, guardando imagens e dados específicos. Para muitas mulheres nessa situação, dar um depoimento como este é um desafio. O medo está sempre presente. A coragem de Maria possibilitou que conhecêssemos essa história.

Femicídio Femicídio ou feminicídio é a designação dada ao assassinato de mulheres em razão de pertencerem ao gênero feminino. O termo se refere a um crime de ódio, justificado socioculturalmente por uma história de dominação da mulher pelo homem e estimulado pela impunidade e indiferença da sociedade e do Estado, que, durante anos, não tomaram ações de combate em relação ao tema.

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ou ex-companheiros com quem a mulher mantinha ou havia mantido relações íntimas, de afeto e de confiança, são os que cometem a violência doméstica. Segundo dados do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), a proporção de mulheres assassinadas pelo parceiro é 6,6 vezes maior do que a proporção de homens assassinados pela parceira. O tempo levado para uma mulher fazer a primeira denúncia chega a 13 anos. Segundo a titular da Secretaria de Políticas para as Mulheres do RS, Ariane Leitão, a dependência financeira, os filhos e a afirmação dos familiares e vizinhos de que o parceiro é um bom pai, são alguns motivos que levam a vítima a ficar em silêncio. “Essa maneira que a sociedade foi organizada, ou seja, de uma forma patriarcal e machista, que coloca o homem como dono da mulher, é o principal motivo que leva elas a sofrerem violência.”, afirma.

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A violência doméstica, seja ela física, psicológica ou verbal, não afeta somente a vítima de forma Maria estava se recompondo direta. Ela atinge todos que prede todos os traumas e perdas. senciam ou convivem com essa Projetava uma vida melhor dessituação. Os filhos são os mais de que encontrou Carlos. Não afetados, por presenciarem quase foi o que aconteceu. cotidianamente os casos. Eles “É difícil dizer quando isso co- podem passar a reproduzi-los, meçou. Quando me dei conta, agindo de forma semelhante com apanhava várias e várias vezes, a irmã, colegas de escola e, futentando entender o porquê”. turamente, com a namorada ou companheira. Algumas consequAos poucos, Carlos mostrava um lado que Maria não conhecia. ências da violência doméstica em crianças são: ansiedade, dificulUm sentimento de propriedade dades de aprendizagem, preocutomava conta do homem. Os controles começaram sutis, com pação excessiva, sentimento de perguntas e acessos de ciúmes, culpa por não ter como cessar a violência e por sentir afeto (amor e situações comuns entre vários ódio) pelo agressor e medo de se casais. Com o tempo, começou a ficar mais evidente. “Chegou ao separar da mãe para ir à escola ou a outras atividades cotidianas. ponto que eu não podia atender meu celular longe dele. Quando Uma pesquisa do DataSenado alguém me ligava, eu era obriga- de 2013 sobre violência contra da a colocar no alto-falante pra a mulher constatou que 99% que ele soubesse da conversa. das mulheres já ouviram falar da Não bastava eu dizer quem era. lei Maria da Penha no Brasil. O Ele tinha que ouvir tudo”. número é válido para todas as Quando um dos filhos foi pre- idades, níveis de renda e escolaridade, credo ou raça. Apesar so por envolvimento no tráfico de drogas, Maria entrou em de- disso, a pesquisa mostra dados que contradizem o real conhecipressão. Era necessário tomar mento dessa Lei: mais de 13,5 uma série de medicamentos para conseguir manter a rotina. milhões de mulheres já sofreram algum tipo de agressão; desO choro vinha sem que ela pudesse controlar. A sensação de tas, 31% ainda convivem com o agressor. O ciclo de violência não poder proteger o filho das consequências de suas próprias não termina aí: das que convivem com o agressor, 14% ainda escolhas era a pior dor. Não sofrem algum tipo de mal trato. importa o que ele tenha feito.

Capítulo 2 Por chorar pelo filho

Para uma mãe, a ideia de que a pessoa que sempre foi cuidada e cercada de carinhos está sofrendo é insuportável. Carlos parecia não entender o sofrimento que causava o choro de Maria. Era motivo suficiente para passar do controle psicológico à agressão física.

Contudo, a pesquisa também revelou um fato curioso: 66% das mulheres dizem que se sentem mais protegidas após a sanção da lei Maria da Penha. No Sul, sua eficiência é reconhecida por quase 80% das mulheres. O grande desafio é: como fazer com que essa lei saia do papel e seja realmente eficaz no combate à violência doméstica contra a mulher?

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“Uma mulher que apanha do marido só vai à delegacia quando ela está no seu limite, depois de sofrer muito. Fui queimada com ferro de passar roupa por me negar a ter relações sexuais com meu marido. Fui à delegacia dar queixa e a delegada perguntou se eu tinha testemunhas do fato. Ora, eu estava ali queimada. Só me senti uma mulher livre para criar meus dois filhos depois que enfrentei meu marido com um facão. Foi só aí que ele parou de me espancar. Após seis tentativas de separação, fui vítima de cinco balas disparadas por meu ex-marido, e eu carrego todas essas marcas e a cicatriz na alma. Ele foi condenado a apenas cinco anos de prisão, mas, mesmo assim, a Lei Maria da Penha é um avanço e uma esperança.” Roseni - Brasília DF “Não aconselho ninguém a perdoar a violência na primeira vez, porque depois fica muito mais difícil conseguir. A minha família não sabe do acontecido, eu não fui corajosa o suficiente para denunciá-lo, mas se voltar a acontecer comigo, eu não pensarei duas vezes. Não quero ter o mesmo sofrimento que eu já tive.” Luciana Andrade - Foz do Iguaçu PR *depoimento feitos ao Fundo Fale Sem Medo.

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“Toda vez que ele me batia porque eu tava chorando ele se Em 2006, foi sancionada pelo arrependia e pedia desculpa. então presidente do Brasil, Luiz Na hora eu sempre pensava em Inácio Lula da Silva, a Lei Maria largar tudo, mas depois ele vinha da Penha, a qual estabelece arrependido e pedindo uma nova rigor nas punições às agressões chance. Eu gostava muito dele. contra a mulher quando ocorJá tinha perdido alguém, não ridas no ambiente doméstico queria perder mais uma pessoa”. ou familiar e prevê medidas Maria desenvolveu uma ideia protetivas, como impedir o comum a mulheres em situação companheiro de se aproximar de agressão. O constante medo e até mesmo prisão se houver de permanecer na própria casa, risco para a vítima. A lei ganha somado às agressões físicas e esse nome em homenagem à psicológicas, faziam-na acredicearense Maria da Penha Maia tar que ela realmente “precisava Fernandes. Em 1983, seu made correção”. Os vizinhos e rido, Marco Antonio Heredia amigos ainda colaboravam para Viveros, tentou matá-la duas vezes: primeiro, atirou com arma o silêncio dela. Aparentemente, Maria tinha que suportar aquilo de fogo simulando um assalto; sim, porque “Carlos era um hona segunda vez, tentou eletrocutá-la. Maria ficou paraplégica mem tão bom pra ela que não valia a pena perder tudo só pordevido às agressões sofridas. que ficava com raiva às vezes.”. Com 69 anos e três filhas, hoje ela é líder de movimentos de de“Eu acho que eu merecia fesa dos direitos das mulheres. mesmo sabe. Por isso não de-

A Lei Maria da Penha

Um dos grandes avanços da lei Maria da Penha é o reconhecimento de que existe violência doméstica, tema que não era sequer falado profundamente antes. Porém, a Lei não consegue frear sozinha a violência sofrida pelas mulheres, pois, geralmente, não é aplicada em sua totalidade.

Capítulo 3 Refém do medo Então, a agressão passou a fazer parte daquela vida que, no início, era uma promessa de um futuro melhor. O fato de Maria chorar pelo filho a tornava fraca e covarde na visão de Carlos. A visão arcaica de que “quem não chora é mais forte” prevaleceu. A visão da mulher “sexo frágil” e submissa também.

novembro de 2013. É um dos únicos estados do Brasil que aplica a lei Maria da Penha integralmente a partir da instituição da Rede Lilás. A principal ferramenta de articulação desta Rede é o Telefone Lilás 0800 541 0803, uma central de apoio gratuito que monitora a proteção das mulheres que buscam ajuda, acionando os organismos públicos e os conselhos da mulher.

Segundo a secretária da SPM/ RS, Ariane Leitão, o trabalho em diálogo com vários departamentos (Patrulha Maria da Penha, Sala Lilás de perícias, delegacias da mulher, Defensoria Pública, Ministério Público e Juizados Especializados) colaboram para um atendimento adequado, rompimento da violência e punição dos agressores. “A Rede Lilás cumpre exatamente o que a Lei Maria da Penha propõe que é enfrentamento e atendimento. O principal papel da Secretaria é nunciei. Às vezes ficava com raitrabalhar com transversalidade, va daquela situação e partia pra atuando em conjunto. A mulher cima dele com tapas. Gritava e que denunciou fica acompanhaxingava...”, declarou. da durante todo o processo e é A mulher conta que uma vez encorajada permanentemente a chegou a chamar a polícia porcontinuar na rede.”, explica. que estava sendo agredida, mas Em muitos casos de femicídios, não levou a denúncia adiante. se descobria, posteriormente, que “Ele pediu desculpas, então rejá existiam registros de outros delitirei as queixas e apenas deixei tos que antecederam o homicídio. registrada a ocorrência”. Isso acontecia porque as delegaEssa história ainda não tem um cias especializadas no atendimenfinal feliz, mas Maria deseja que um to à mulher trabalhavam isoladas dia isso acabe. Apesar de não ter do Judiciário e não tinham apoio denunciado o parceiro, resolveu de outras esferas do próprio deixar a cidade do interior na qual governo. Hoje, quando ocorre a moravam e se mudar para Porto denúncia, ela é encaminhada para Alegre, onde o filho está preso. atendimento com psicólogo, assistente social e delegacias especializadas, sendo acolhida e proteTrabalho da secretaria gida durante todo o processo.

em rede

As Delegacias Especializadas O Rio Grande do Sul tem uma da Mulher (DEAMs) também são rede específica de atendimento e importantes nesse processo, enfrentamento à violência desde

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pois elas fazem o atendimento humanizado, registram as ocorrências, orientam e encaminham as medidas protetivas ao Poder Judiciário. Atualmente, existem 20 DEAMs no estado; sete foram criadas entre 2011 e 2014.

Patrulha Maria da Penha As Patrulhas Maria da Penha se tornaram peças essenciais no enfrentamento e acompanhamento das vítimas. De acordo com Ariane, “as patrulhas aproximam a polícia do cidadão e as mulheres se sentem mais abrigadas com o carro lilás presente no bairro, criando até uma relação de amizade com as brigadianas”. Com essa iniciativa, a Brigada Militar fiscaliza o cumprimento da medida protetiva de urgência. A patrulha realiza visitas à casa da mulher e presta o atendimento necessário no pós-delito. Instituída em 2012, atualmente está presente em 16 municípios. São 22 Patrulhas em exercício, e Porto Alegre e Canoas contam com o maior número, seis e duas respectivamente. Uma patrulha Maria da Penha é formada por quatro policiais militares - dois homens e duas

mulheres - que contam com uma viatura diferenciada para facilitar na identificação e na reafirmação de que aquela mulher está protegida, especialmente para os vizinhos e para os agressores. Os profissionais que atuam na Patrulha passam por uma capacitação com aulas sobre temas relacionados à violência doméstica, psicologia forense, andamento de processos, depoimento sem dano, entre outros. Ariane conta que, para existir o enfrentamento necessário à questão, a mudança teve que “começar de dentro”. Os profissionais de diversos órgãos públicos envolvidos no trabalho tinham que entender pelo quê estavam lutando e, para muitos, foi necessária uma mudança na maneira de agir no próprio trabalho e, acima de tudo, na maneira de ver o papel da mulher na sociedade.

ingressam com uma formação voltada para os direitos humanos e política para mulheres.”.

Salas Lilás Além da Patrulha Maria da Penha, a Secretaria de Segurança Pública do RS implementou outras experiências para coibir a violência doméstica. Um exemplo é a Sala Lilás, um espaço de acolhimento exclusivo às mulheres no Instituto Geral de Perícias (IGP) e a integração da base de dados entre os atores envolvidos nessas iniciativas. O objetivo desse espaço é oferecer um atendimento especializado à mulher vítima de violência física, sexual e psicológica, sem colocá-la em situações de constrangimento. Antes, a pessoa ficava numa sala de espera geral para fazer o exame de corpo de delito, muitas vezes junto com o próprio agressor ou com outros agressores. Agora, essa sala propicia um ambiente diferenciado para fazer o exame de lesões e a perícia psíquica, onde é colocado à disposição o atendimento com psicólogas e assistentes sociais.

“Foi necessário pautar os homens em relação a esse tema. Muitos demoravam a entender o porquê de patrulhar numa viatura com adesivo lilás, mas era necessário. A Rede prevê também a formação de profisHá sete municípios que consionais. Então os patrulheiros jovens que estão recém entrando, tam com esse serviço e outras ou seja, sem os vícios da corpo- 13 salas estão em fase de imração e dispostos a colaborar, já plementação. Entre outubro de

Imagem: SPM

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2012 e junho de 2014, foram realizados 14.379 atendimentos. Além do acolhimento humanizado, a Sala Lilás tem a função de qualificar a coleta de provas para materialidade do crime no processo, buscando a garantia da responsabilização do agressor.

Ônibus lilás

inclusão e garantia de direitos. Possibilitando o acesso à educação e ao trabalho com programas como o Pronatec, o Microcrédito Lilás, Cimento e Batom (na área de construção civil) e RS Mais Igual, a Secretaria promove a autonomia e a independência das mulheres gaúchas. “A ideia é que ela ingresse na rede para dar fim no ciclo de violência, mas permaneça nela, sendo dirigida a algum programa que garanta a independência da mulher para o mundo do trabalho e educação.”, comenta a secretária destacando que é difícil dizer o número de mulheres que já passou por todo o processo, pois a iniciativa da rede ainda é recente.

A SPM/RS possui duas unidades móveis que percorrem o interior do Estado, fazendo os serviços chegarem a parcelas da comunidade, como zonas rurais e litorâneas, que muitas vezes não teriam acesso às informações e ao atendimento. Com equipes multidisciplinares viajando de forma itinerante, é Ariane afirmou ainda que o feito o acolhimento de denúnGoverno do Estado, em parceria cias e dadas as orientações com o Tribunal de Contas (TCE), sobre os direitos contidos na Lei quer aprofundar o diálogo com Maria da Penha. as prefeituras e mostrar a imporDesde novembro de 2013, tância das Coordenadorias da quando iniciaram as atividades Mulher nos municípios. “O apoio do Ônibus, mais de mil mulhedo TCE é importante para ajudar res foram beneficiadas com pa- no diálogo com as prefeituras, de lestras e oficinas em 36 cidades. forma a responsabilizar os prefei175 foram acolhidas, e tiveram o tos e prefeitas que estiverem senencaminhamento para a rede lo- do negligentes com as políticas cal ou regional de atendimento. para as mulheres no RS”. “Sai do ciclo de violência, mas não sai da rede” Ariane Leitão explica que a SPM busca não só tirar mulheres da situação de agressão, mas também trabalhar com a ideia de

Outra iniciativa é o Projeto Metendo a Colher, da Superintendência de Serviços Penitenciários (Susepe), que busca combater os casos de reincidência. O objetivo é cons-

cientizar os agressores enquadrados na Lei Maria da Penha de que a segurança pública irá monitorá-los e educá-los, para que não voltem agredir. Outra ideia pioneira para evitar a reincidência de agressões é o uso de tornozeleiras para monitorar o agressor, fazendo com que a mulher se sinta livre e segura, e não o contrário. As tornozeleiras são as mesmas usadas no regime semiaberto e impedem que o homem, mesmo em liberdade, se aproxime da mulher que solicitou medida protetiva contra ele. Por fim, a Casa da Mulher Brasileira é um projeto ainda em fase de construção que faz parte do programa “Mulher: Viver sem Violência”. A iniciativa vai se consolidar como um espaço de atendimento integral para as mulheres, no Centro Vida da zona norte de Porto Alegre. Num único espaço, elas serão acolhidas por assistentes sociais, psicólogas e educadoras, pela delegacia da mulher, pela Defensoria Pública, pelo Tribunal de Justiça e pelo Ministério Público. Nessa Casa da Mulher, o trabalho será interligado por meio da Rede Lilás, garantindo mais direitos para as gaúchas.

Fotos: Ingrid Oliveira

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tudo o que é sólido se desmancha no ar Fotografias por Luana Casagranda, Nádia Alibio e Nathalia Tessler




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Parto empoderado Foto: Reprodução/Internet

por Martina Nichel Tem de ser uma sala grande, onde caibam obstetra, enfermeiros, anestesista, médicos residentes e o cinegrafista, é claro. O cenário é incômodo em seu minimalismo: tudo é iluminado demais, verde ou azul demais. Há instrumentos de metal por toda parte e equipamentos tecnológicos que são feitos pra salvar vidas. E salvam. Mas dão uma sensação de morte em um lugar destinado a receber a vida. Atrás de um tecido pendurado, se esconde a verdadeira protagonista desse momento. Ela está deitada, anestesiada, passiva. Ela não vê nada. O pano à sua frente impede que ela assista ao corte sendo feito na própria barriga, mas impede também que ela veja a entrada do seu filho no mundo. Quando ele chega, é puxado, medido, pesado, furado, lavado. Como um pedaço de carne. É separado instantaneamente do cordão que o ligou à sua progenitora desde quando foi concebido. Para o bebê e para a mãe, esse laço não precisa ser cortado nos primeiros instantes. Para o hospital, é mais prático assim. Esse é o cenário do final de um percurso que iniciou nove meses antes. O nascimento conjuga, em um único instante, os elementos mais temidos pelo ser humano: vida, morte e sexualidade. Talvez por isso a gravidez esteja deixando de ser um evento exclusivamente feminino e passando a ser um evento médico: as pessoas esqueceram que parir é normal.

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Parirás com dor O modelo de assistência médica seguido até o século XX descrevia o sofrimento no parto como uma vontade divina, uma punição pelo pecado original. Houve tempos em que qualquer apoio que aliviasse os riscos e as dores desse momento era dificultado e mesmo ilegalizado. A partir da década 70, com o aprofundamento de técnicas, o nascimento começou a se artificializar, sendo cada vez mais comandado pelos mecanismos tecnológicos, ao invés dos ritmos fisiológicos que o ser humano desenvolveu.

A mulher passa a ser não mais descrita como culpada, mas sim como vítima da sua própria natureza, sendo papel do obstetra antecipar e combater os perigos. Alguns autores passaram a definir o parto como uma forma de violência intrínseca, um fenômeno que implicaria sempre em danos, riscos e sofrimento. A passagem da criança pelos genitais seria uma espécie de estupro invertido.

Uma vez que o parto é descrito como um evento medonho, a medicina oferece também o apagamento da experiência, com o advento da anestesia. No Muitos pesquisadores pasmodelo hospitalar dominante no saram a defender que essa Brasil, as mulheres têm o funcioinstrumentalização humanizou a namento do seu útero acelerado assistência aos partos. A obste- e reduzido. Elas são assistidas trícia médica passou a impor seu por pessoas desconhecidas, papel de resgatadora das mulhe- são separadas de seus parenres, resolvendo o problema da tes, pertences, roupas, e subdor, e reivindicando sua superio- metidas à chamada “cascata ridade sobre o ofício de partejar. de procedimentos”. Entre os Patricia e o marido prepararam juntos os detalhes para o momento do parto

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métodos de rotina, a episiotomia - abertura cirúrgica da musculatura e tecido erétil da vulva e da vagina - e, em alguns casos, uso de fórceps – instrumento que auxilia na retirada do bebê. Este é o modelo aplicado à maioria das pacientes do SUS hoje em dia. Para as mulheres do setor privado, esse sofrimento pode ser prevenido, por meio de uma cesárea eletiva.

Inversão da lógica No passado, se alguém perguntasse por onde nascem os bebês, a resposta teria de ser a seguinte: da vagina da mulher. Cesarianas eram muito raras, só aconteciam quando as vidas de mãe e filho estavam em jogo. A falta de técnica só permitia que o corte salvasse um dos dois. Geralmente, o bebê. As ferramentas cirúrgicas avançaram muito com o passar dos anos, Foto: Arquivo pessoal/Patricia Fietz

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permitindo que milhões de vidas sejam salvas todos os dias pelas cesáreas. O problema é que, atualmente, a resposta àquela pergunta mudou. Se considerado o número de cesarianas feitas no Brasil, pode-se dizer que os bebês nascem pela barriga.

vista psicológico, ou uma cesariana que também é ruim porque é uma agressão cirúrgica sobre a integridade física. Então elas escolhem a opção menos pior.”

O empoderamento delas

Quando se fala em parto humanizado, a imagem que vem à cabeça da maioria das pessoas A lógica mercantilista dos é uma mulher parindo em casa, hospitais e dos planos de saúde na água ou de cócoras. Não é também não favorece a escolha bem assim. A humanização do pelo parto normal. O nascimento De acordo com um levannascimento se estabelece em é um evento imprevisível. Pode tamento feito pela Fundação um eixo principal: o protagonisacontecer com 40 semanas de Oswaldo Cruz e pelo Ministério mo restituído à mulher. Ao congestação, como pode acontecer da Saúde em todos os estados trário do modelo que se consantes disso. Pode durar duas brasileiros, em média, 52% dos truiu de uma mulher cada vez horas, como pode durar 30. A nascimentos acontecem por mais alienada das decisões, o cesariana, por outro lado, permicesariana. Nos hospitais parmovimento propõe que ela tome te que o bebê seja extraído em ticulares, esse índice chega a o assento dianteiro e dirija esse menos de uma hora, de modo 88%. Esses indicadores estão processo com autonomia e libermuito acima da meta de, no má- que o médico pode voltar ao dade. Se ela quiser anestesia, vai seu consultório e atender outras ximo, 15% recomendada pela ter anestesia, se ela quiser uma Organização Mundial de Saúde. pacientes. “A tentação de marcar cesariana, vai ter uma cesariana, essa cirurgia é muito grande. Aí Os números também revelam se ela quiser ter um parto em os médicos de convênio empia lógica reversa do parto no casa, ela tem esse direito. lham pacientes em um horário país: as mulheres que menos De acordo com a psicóloga e que eles determinam para o nasprecisam de cesárea são as pesquisadora sobre a vivência cimento de todos esses bebês. que mais fazem. Ou seja, as do nascimento, Carolina Coelho Quem paga essa conta são as mulheres da classe média, que Palma, “o movimento do parto mães que são operadas, e os são mais bem nutridas, que têm humanizado está tentando mostrar bebês que são tirados, muitas mais condições, mais informaque é possível ter um parto normal vezes, antes do momento adeção e acesso à saúde e, teoride uma forma respeitosa, com quado de nascer. Portanto, vão camente, mais facilidade para práticas de alívio da dor, tentando ter problemas respiratórios não ter um parto normal, são as que diferenciar dor e sofrimento”. só imediatamente depois do menos fazem. parto, mas por toda a primeira Nesse sentido, as doulas tem Os dados mostram também infância. Isso é um problema de papel fundamental durante a que só 36% das mães chegam saúde pública”, avalia o obstetra. gestação, no parto e também no à rede privada querendo fazer Ricardo trabalha com humani- pós-parto. Elas são profissionais cesariana. Ao longo da gestação zação do parto há 28 anos, des- treinadas para dar o suporte que esse índice aumenta para os de quando era médico residente. a mulher precisa nesses mo88%. Já na rede pública, 15% mentos, ensinando técnicas de Ele não faz partos, mas sim os querem fazer cirurgia desde o respiração e tranquilizando-as acompanha: “Quem faz o parto início, e durante a gravidez há durante o trabalho de parto. A são as próprias mulheres.” Já um aumento que chega aos 40% doula tenta estabelecer um vínassistiu mais de dois mil deles, efetivamente realizados no SUS. sendo a grande maioria natural. culo com a mulher, de preferênDe acordo com o médico obsteAs mulheres que chegam ao seu cia antes do parto, para que elas tra Ricardo Herbert Jones, essas consultório já sabem de antemão possam combinar estratégias de mulheres escolhem pela dignidacomo vai ser aquele momento. que ele só marca uma cesárea de. “O que elas frequentemente em caso de risco comprovado Maria José Goulart, a Zezé, é fazem ao pedir uma cesariana é para a mãe ou para o bebê. “É doula há 10 anos, além de insuma espécie de escolha falsa. justo que a gente permita que trutora de yoga para gestantes. Elas se encontram diante de duas todas as pacientes entrem es“Eu falo para as minhas alunas opções ruins. Um parto muito pontaneamente em trabalho de que é como se fosse atravessar violento, muito agressivo, com parto”, salienta o obstetra. uma floresta à meia noite. Tu iria muitos descuidos do ponto de 42

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Isabela foi para os braços da mãe assim que nasceu

sozinha? Não. Então a doula é essa pessoa que acompanha numa caminhada que ela já viveu. A importância da doula é fortalecer aquilo que a mulher já tem dentro de si. Ao dividir a dor, fica mais fácil.” Quando suas alunas perguntam que horas devem chama-la para acompanhar o parto, ela responde: ‘a hora que tu precisar de mim, tu vai saber quando me chamar.’

É um divisor de águas. Essa força, essa capacidade que a gente tem de fazer outro ser, nós somos deusas naquela hora. É um momento muito forte, muito significativo, que vai mudar toda a vida para sempre. Eu vejo as mulheres chegando aqui umas meninas, durante a gestação eu vou acompanhando e no dia do parto vejo aquela mulher em estado pleno.”, reflete.

Ela fez curso de preparação de doulas após o nascimento do filho, experiência que mudou completamente a sua vida. Aos 40 anos, a gravidez foi considerada de altíssimo risco pelo médico que acompanhava o pré-natal, mas Zezé queria ter um parto natural de cócoras. Buscou, então, outro médico, que soube respeitar sua decisão. Seu parto foi exatamente como desejava, assim como acontece com as suas alunas. “O parto é uma pequena morte daquela que a mulher foi, para aquela que ela será.

Subversivo é ser natural No calor da última semana de 2013, Patricia Fietz deu a luz à sua primeira filha. Após mais de dez horas de espera, contrações e expectativa, Isabela nasceu no aconchego da casa dos pais. Com velas pelos cômodos e músicas selecionadas especialmente para aquele momento, o cenário não teve qualquer semelhança com o ambiente hospitalar.

Foto: Arquivo pessoal/Patricia Fietz

Ela frequentou as aulas da faculdade até o último mês de gravidez, em cujo semestre cursou a disciplina de Introdução à Obstetrícia. Estudar e vivenciar a gravidez ao mesmo tempo foi uma experiência que acabou revelando à Patrícia as divergências entre a medicina e a natureza do parto. “O hospital tem uma visão muito intervencionista. Na medicina, o corpo não funciona. O médico precisa sempre ajudar, sempre estar perto, ter muitos aparelhos. E é uma coisa muito tabelada também. Todas as mulheres têm que funcionar do mesmo jeito”, aponta.

Durante toda a gestação, ela se informou sobre parto domiciliar, mas tinha medo de assumir esse risco. “Eu ia para aula e via muitas coisas ruins e pensava assim: e se acontecer algum problema e eu estou em casa?” Só Patricia é estudante de medicina e sabia que quando tivesse no oitavo mês Patricia decidiu que iria parir em casa. Ao assistir a um um filho, seria de parto normal: “É muito o meu jeito, de acreditar parto no hospital e presenciar a episiotomia e o corte do cordão que o corpo humano funciona”.

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umbilical logo que o bebê nasceu, percebeu que teria que assumir uma postura de luta contra a equipe médica para ter o parto queria. Resolveu, então, realizar o sonho de que sua filha nascesse na água. A decisão foi mantida em segredo. Quando Patricia havia falado para os colegas da faculdade que tinha intenção de fazer o parto em casa, a maioria achou a ideia absurda. Mas a gravidez corria bem, e os exames trimestrais mostravam que não havia riscos, requisito fundamental para que o nascimento ocorra em casa. A previsão era de que Isabela viesse ao mundo no segundo dia de 2014, mas ela chegou em 29 de dezembro. Patricia optou por não usar nenhum tipo de anestesia. “Era uma dor sem sofrimento, é o processo. Teve um momento que eu senti que precisaria de ajuda, precisaria de anestesia, mas logo passou. É uma coisa de confiar no corpo.” Isabela veio ao mundo em uma pequena piscina montada para o parto. Sem pressa, sem puxões, sem intervenções. Logo que nasceu, foi para os braços da mãe, e as duas permaneceram unidas pelo cordão umbilical. Depois de alguns minutos, quando o cordão já estava quase branco, o pai de Isabela pôde cortá-lo. “O parto é como se fosse o meu troféu. Depois de tanta dúvida, tanto sofrimento para escolher o modelo, valeu muito a pena ter tomado conta da decisão. Foi uma escolha que eu tive que bancar, com a minha família e com os meus colegas. Eu senti que valeu muito a pena porque foi exatamente como eu queria.”

A violência nossa de cada dia Patricia não tem medo de hospitais nem se sente insegura dentro deles, afinal, escolheu ser médica. O problema de ter sua filha dentro de um centro obstétrico era estar sujeita a intervenções que são desnecessárias e que poderiam ser arriscadas, tanto para ela quanto para o bebê. Ela não quis ser vítima do descaso, da ironia, e do desrespeito que muitas mulheres enfrentam em um parto normal feito no hospital. De acordo com a psicóloga Carolina, atitudes que deveriam ser combatidas acabaram sendo naturalizadas. “Muitas vezes a mulher não sabe que está passando por uma violência, porque ela acha que é assim. Às vezes a mulher confia tanto nesse profissional de saúde que pensa que se ele está fazendo, é porque é assim.” Uma série de intervenções desnecessárias e atos violentos continuam sendo repetidos desde o pré-natal até o parto, sem que tenham sido comprovados cientificamente. Tais intervenções tomaram um cunho ritualístico, e rituais são repetitivos e padronizados. Para Ricardo, eles têm um valor simbólico muito importante. “Raspar os pêlos de uma mulher quando ela entra no centro obstétrico, por exemplo, tem o valor simbólico de infantilizá-la, mesmo que isso seja inconsciente. Uma mulher infantilizada obedece ordens, tem menos autonomia. Quando a gente pede para a mulher tirar as suas próprias roupas e colocar uma bata branca dentro do hospital, não existe nenhuma justificativa que diga que isso tenha alguma interferência no resultado do parto. No entanto, nós uniformizamos as mulheres porque um individuo uniformizado perde a sua identidade e é mais facilmente

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manipulável. Fazemos isso com soldados, com prisioneiros e com crianças na escola. Então quando se coloca todas as mulheres com a mesma roupinha, elas passam a ser todas iguais e não é preciso lidar com a diferença, com a diversidade. E como a gente chama as mulheres que estão ganhando seus filhos no hospital: mãezinha. A gente trata elas pela sua função, e não pela sua identidade. Então esses rituais nos levam aos valores básicos da nossa cultura. E é por isso que eles se repetem, porque eles não são racionalmente combatidos.” Patricia não passou por nenhum exame de toque durante o prénatal. Na faculdade ela aprendeu que o exame tem que ser feito todo mês a fim de conferir a dilatação, mesmo que essa informação não faça nenhuma diferença na gravidez. De acordo com Ricardo, nada do que é pregado pelos profissionais que lutam pela humanização do nascimento foge das pesquisas contemporâneas aplicadas ao parto. A humanização não é algo de ordem mística, religiosa, etérea ou estética. É ciência. Por ironia do destino, Patricia queria ser cirurgiã quando entrou na medicina. A experiência de ser protagonista do próprio parto lhe trouxe não só a plenitude como mulher, mas também a redefinição do futuro profissional: “eu comecei a ver a mentalidade dos cirurgiões, que, em sua maioria, veem o ser humano em partes. Até na hora da cirurgia, eles isolam todo o resto do corpo e trabalham com o intestino, ou com o braço. E eu não gosto mais dessa visão. Eu decidi agora que eu quero trabalhar com a saúde, não com doença,então eu me encantei pela obstetrícia e pela pediatria. Eu tenho essa vontade de fazer um trabalho humano, de acreditar que, na maioria das vezes, o corpo funciona.”

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´ A mulher que aborta e´ uma de nos por Martina Nichel

Sexualidade e reprodução são dois dos pilares sobre os quais se constrói a subordinação da mulher. A maternidade é imposta como uma obrigação e não uma escolha. Mas a decisão de não ser mãe, apesar de ilegal, é legítima. Assim como as mulheres, muitos homens também abortam, mas nem por isso são considerados criminosos.

Então, a relação que eu tinha naquele período com a ideia de gravidez era formar uma família em um tempo que eu ainda não estava querendo, ainda estava usufruindo da liberdade de estar na faculdade, de poder sair, de poder viajar.”

A interrupção da gravidez é a quinta maior causa de morte materna no Brasil. Mas existe aborto seguro e ele tem classe social: quem tem dinheiro A minha decisão mais difícil não faz. Hoje em dia não é difícil foi não ter. Foi ter conhecer alguém que já fez. Lá se vão mais de 30 anos Naquele tempo, também não de quando Eliana descobriu era. “Quando foi, foi. Dinheiro que estava grávida pela pricom amiga, amiga levou junto. meira vez. Na época, ela nem Lembro que era na Voluntários, podia imaginar que um dia teria edifício Santa Catarina. Não filhos e formaria uma família. A tenho mais lembrança nenhuprimeira gravidez foi diferente ma. Provavelmente eu levei das demais: ela decidiu não ter uma anestesia geral, apaguei. aquele filho. Era início dos anos Quando terminou, não deu com80, início da faculdade, auge plicação nenhuma. Era um fato da juventude. “Eu realmente que acontecia conosco, com não pensava em ser mãe. Eu outras amigas. Era uma coisa estava era vivendo e ter filho era entre a gente, do nosso univeruma coisa tão distante quanto so, da liberdade de todas nós estagnar, formar uma família e meninas daquela época. A decideixar de ter liberdade. Era uma são não podia ter sido outra, eu decisão, eu sabia que era proinão tinha refletido ainda sobre bido, mas também não se podia isso de ser mãe.” fazer sexo antes do casamento. 2014/2 2014/2

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Poucos anos depois, Eliana teve seu primeiro filho. Hoje, ela é casada e tem cinco, todos nascidos de parto normal. “A minha decisão mais difícil não foi não ter, foi ter. Porque aí eu assumi que eu estava realmente num relacionamento sério, que eu estava grávida, que eu tinha que contar para minha mãe, eu tinha que casar. Todas aquelas coisas que eu estava negando. Hoje, por exemplo, eu não faria, mas eu não nego nem condeno aquela adolescente que fez.” Ter feito um aborto não torna Eliana menos mulher, nem menos mãe. Ela fez o que mais de 7 milhões de brasileiras também já fizeram, de acordo com uma pesquisa realizada pela Universidade Nacional de Brasília (UNB). Dentre o total de mulheres que declararam já terem feito pelo menos um aborto, 64% são casadas e 81% são mães. Para uma parcela considerável da população, essas mulheres deveriam ter sido castigadas em praça pública - ou ao menos em uma sala de parto. A mulher que aborta é uma de nós. Ela é a sua irmã, é a sua vizinha, é a sua filha ou a sua mãe.

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´ carcere

Amor no

por Juliano Zarembski, Luana Casagranda e Nádia Alíbio

O sistema carcerário gaúcho abriga 27.346 homens e 1.864 mulheres atualmente. Os dados são da Superintendência dos Serviços Penitenciários, a Susepe. Em Porto Alegre, a Penitenciária feminina Madre Pelletier acolhe 208 internas, divididas em seis galerias. Hoje o local, que já foi um convento, dá lugar a mulheres que carregam histórias de crimes e fugas, mas também de amor, solidão e saudade. As grades, os cadeados e os caminhos restritos se colocam 46

no percurso dessas mulheres, mas não são tudo. A condenação não é o ponto final de suas histórias. Passados pelo detector de metal e com os pertences deixados na entrada, pudemos adentrar naquele território. As entrevistas aconteceram na sala de convivências, local em que familiares e demais visitantes são recebidos para conversar com as internas. A entrada às galerias não é permitida.

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Solidão e saudade A rotina é a mesma de segunda a sexta-feira: às 5h da manhã, acorda; às 6h, participa da conferência, que é a contagem diária das presas; às 8h30min, após o banho tomado, tem de estar pronta no portão da galeria para descer e trabalhar até as 17h. No meio dessa jornada, que costuma ser parada apenas para o almoço, Andréa Brum Barreiro, 37 anos, interrompe o serviço para nos receber na sala de convivências. Suas mãos estavam alaranjadas, resquícios do trabalho de empacotar temperos: “isso que eu tava de luva”. Apesar do tom leve da conversa, ela falou com firmeza sobre os crimes que a levaram à prisão, a relação com a família e solidão na penitenciária. Seu olho esquerdo, uma prótese, também chama atenção. Com uma condenação de 52 anos por diversos assaltos, Andréa foi presa em 2007 no

município de Minas do Leão, a 85 km de Porto Alegre. Naquele ano, na saída de mais um assalto a banco, se envolveu em um tiroteio com a Brigada Militar e foi atingida no rosto. “Depois de dar muito tiro na polícia, eu tomei um tiro no meio da cara e caí durinha pra trás. Achei que tinha morrido”. Não morrera, mas ficara em coma por dez dias. Quando acordou, já estava na Capital. Capturada pela polícia após o disparo no rosto, o Madre Pelletier era o destino. Dos 37 anos que tem de vida, oito foram passados dentro da Penitenciária. Mesmo que a sentença de Andréa determine sua prisão até 2059, ela trabalha para reduzir a pena e migrar para o regime semiaberto em 2020. Essa oportunidade é dada à presa após ser avaliada sua conduta carcerária dentro do sistema penitenciário e depois da realização de exame psicológico, feito todo ano.

De dois em dois meses, ela recebe a visita da filha Tainá. A jovem tem 19 anos e trabalha em uma danceteria. Quem estipula esse tempo entre uma visita e outra é Andréa. “Eu fico com pena da minha filha. Acho que ela não merecia tá aqui na porta da cadeia. Ela é tão boa, ela não merece”. Tainá hoje visita a mãe sozinha. Antes, ia acompanhada da avó materna, com quem viveu dos 14 aos 16 anos de idade. Andréa tem outros dois filhos. Patrick, de dez anos, mora com o pai, mas vai com a irmã visitar a mãe a cada dois meses; o mais novo, Éderson, que tem sete anos, a encontra uma vez por ano aproximadamente. Quem leva o pequeno até a cadeia é a avó paterna, de 75 anos. “Trazer ele de ônibus é bem difícil. Ela mora em Alvorada, aí fica complicado, coitadinha”.

Fotos: Nádia Alibio

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ficando grandinho, aí o nenê da outra, o meu nenê ia lá, puxava o bracinho do nenê das outras que Andréa não se considera uma tavam deitados, queria brincar, pessoa feliz. Ela se acha tão soqueria fazer os outros de bonelitária que resolveu marcar esse quinho. Aí a gente acabou tendo sentimento no próprio corpo há uma discussão, a guria veio e quatro anos. No braço direito, se avançou em mim - eu com tatuou a palavra saudade. No esmeu nenê no colo. Saímos se querdo, solidão. Com tantas marrolando no chão que nem dois cas na pele, a detenta traduz o bicho. Aí fui parar no castigo”. O receio que tem de fazer amizades castigo é um isolamento de dez na penitenciária. Hoje, não tem Ela também não tem fotos dias em uma cela no subsolo da amigas dentro do Madre Pelletier. dos filhos nas paredes da cela Penitenciária. “Amiga, amiga, de dizer ‘Ah, best em que vive. Em vez disso, deAndréa sabe que ainda falta senhou corações por todo o es- friend!’, eu não tenho nenhuma”. bastante tempo para deixar a Confessa que teve amizades no paço disponível. Quando sente prisão - no mínimo cinco anos, saudade, pega as imagens, olha começo de sua estada na penitenciária, mas elas iam embora, e caso consiga passar para o ree guarda de novo, senão “dá Andréa ficava. Hoje, não se ape- gime semiaberto em 2020. Por uma deprê”. “Tipo assim, né, aí ga mais e também não chora em isso, determinada, vive um dia de tu vai ali, tá olhando uma televicada vez. “Eu procuro viver o dia despedidas. são e pá, já tá sofrendo”. a dia”, ela conta. Quando sair, Apesar de manter boa relaAssistir à televisão, aliás, é um pretende voltar a Torres, onde ção com as colegas de cela, já dos passatempos preferidos de a família mora e tem casa, para brigou dentro da penitenciária. Andréa: é por meio do que vê recomeçar a vida. “Já fiquei muito “É difícil a convivência com as pela TV que ela descobre um tempo nessa vida. Barbaridade! outras presas aqui, é bem difícil. pouco o que está acontecendo Minha filha cresceu, e eu não vi”. O pior de tudo é a convivência”. fora da Penitenciária. Ainda que não possa votar, por já ser conde- Nos quase oito anos que já passou presa, brigou três vezes nada, acompanhou as eleições - de “sair no soco”, ela ressalta. de 2014. Mesmo assim, Andréa não se prende apenas aos notici- Uma das brigas foi na creche, ários: “Até propaganda de loja eu onde ficava o filho mais novo, olho. Pra ver assim os carros que Éderson. “O meu nenê já tava Mesmo matando a saudade dos filhos nas visitas, recebê-los é sentir o peso de tantos anos de condenação. Andréa prefere não vê-los a fim protegê-los do ambiente da penitenciária. “Vou te falar bem a verdade. Quando eu não vejo eles eu fico bem; quando eu vejo eles eu fico ‘ah, meu Deus do céu’, apavorada depois. Fico uns dois dias chorando”.

tão bombando, os telefones que tão bombando lá fora”.

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Amor e fuga “A vida de duas pessoas foragidas não é normal. Eu foragi por amor”, iniciou Luciane. Com dúvidas sobre como narrar sua história, ela se permtiu falar e ser ouvida por mais de uma hora. Foi assim que descobrimos ter sido o amor o motivo pelo qual ela foi parar atrás das grandes novamente. Luciane Fagundes de Sousa tem 33 anos e está presa desde o dia três de abril de 2013, quando ela e Graciela, sua namorada, foram pegas com 1 kg de maconha. O casal estava foragido desde 2011, ano em que fugiram do regime semiaberto. Hoje, Luciane está sozinha na Penitenciária. Graciela está livre desde abril. “A gente tá juntas, mas separadas pela nossa situação, e eu vou dizer pra vocês que o nosso amor é resistente”. As duas se conheceram em 2002, no pátio da Penitenciária. “A Duda, uma amiga nossa daqui de dentro, comentou comigo que a Graciela gostaria de me conhecer, e eu disse ‘ai, não’. Eu tava com um companheiro nesse momento. Quando fui pro semiaberto, meu companheiro já tava com outra pessoa”.

As duas estiveram separadas até 2010, quando Graciela também voltou. “Ela caiu por 155 (furto leve)”. No entanto, elas ficaram em galerias separadas – as galerias dividem as detentas em reincidentes, primárias e condenadas. Luciane estava na de reincidentes, e Graciela, na de primárias. Ela decidiu que faria de tudo pra reconquistar Graciela. A prova de amor foi conseguir serem transferidas para a mesma galeria. O chefe de segurança Oito meses depois, Graciela também foi para o regime semia- da época não permitira que as duas ficassem juntas. “Eu desci berto e as duas se reencontraaqui e disse que ia incomodar ram. “Eu comecei a mexer com se ela não descesse. Aí o cheela ‘ai, lembra de mim?’, daí ela fe não permitiu, e eu infernizei ‘claro que lembro, eu quis ficar tanto, tanto, que as gurias da contigo no fechado e tu não cozinha nem conseguiam dorquis’, e eu disse ‘tu não convermir. Demorou uns 40 dias, e ele sa, tu não fala. Pra ficá comigo liberou. Aí quando ele liberou a não tem que ter timidez. Eu sou gente ficou 30 dias juntos e ela geminiana e gosto de trovar”. foi embora”. Graciela foi para o As duas começaram a namosemiaberto, e Luciane, para a rar em 2003 e passaram um ano Penitenciária de Guaíba. e oito meses juntas, livres. Em Novamente no semiaberto, 2004, Luciane cometeu outros em 2011, as duas se reencontracrimes e acabou voltando para a ram. “A gente se encontrou e eu cadeia. Graciela ficou na rua. “A gente vem pra cá e começa a co- digo ‘ai, não fala comigo, eu tô nhecer outros crimes. Fiquei uns com nojo da tua cara. Tu não me procurou, não fez nada’”. As duas 40 dias, e a gente continuou”. voltaram na mesma noite. Em 2006, no entanto, Luciane Em uma das saídas, Graciela foi presa novamente, e as duas propôs que as duas fugissem. passaram pela primeira separa“Eu disse ‘ai, eu quero cumprir ção. “Eu caí com três assaltos minha pena e acabar com isso e daí eu fui condenada. Eu peaqui. Não aguento mais puxar caguei 32 anos, sendo que eu já deia’. Já era minha segunda catinha uma pena de oito anos”. deia. Eu tinha oito anos puxados Desesperada com o tempo que passariam longe uma da outra, ela já”. Porém, ela aceitou, e as duas evitou Graciela e se envolveu com não voltaram. “Nos primeiros outra pessoa. “Não deu certo. Eu dias, a gente morria de medo. Eu quis voltar atrás. Vi que eu amava mais, porque eu fiquei cinco anos presa e já era bem conhecida na ela, só que eu não consegui porJustiça. A gente até passou por que ela ficou magoada - ela me uma funcionária um dia e ela não amava muito mais do que eu”. nos reconheceu”.

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muito e não queria mais voltar. Isso aqui era uma crackolândia, era muita briga, muito atrito. Hoje em dia nós tamo numa cadeia modelo. Eu não queria puxar tráfico”. O Código Penal brasileiro prevê que, para progredir ao regime semiaberto, o reincidente e condenado por crimes hediondos (o tráfico é um deles) deve cumprir 3/5 da pena em regime fechado. Enquanto para outros crimes, Impedidas de trabalhar por como assalto a mão armada, a falta de documentação, as duas exigência para a progressão é o viviam do dinheiro que ganhavam cumprimento de 1/6 da pena em com a venda de maconha e coregime inicialmente fechado. “No caína. “Ela sempre se destacou tráfico, agora que eu caí com 1 nisso e disse ‘eu vou vender makg de maconha, eu peguei seis conha pros playboys, que é isso anos e cinco meses e tenho que que eu sei fazer’”. ficar quatro anos (3/5). O assalto No início, Luciane não traficava. tu puxa bem menos cadeia perto Tentou um trabalho informal como dos outros porque, pra Justiça, costureira. “Eu já tinha o dom, já tu mata as pessoas aos poucos sabia costurar daqui de dentro”. com o tráfico”. A Penitenciária Madre Pelletier é As duas foram presas na Vila responsável pela produção dos Nazaré, na zona norte de Porto lençóis, das toalhas, dos jalecos Alegre. “Há 15 dias a gente tinha e de outras confecções do Grupo ido lá, e os guris falaram que tava Hospitalar Conceição. Com ciútudo embaçado, que tava cheio me, Graciela convenceu Luciane de policial. No dia que ela me a desistir do emprego. “Ela comeacordou e disse ‘tu vai ou não çou a me mandar mensagem ‘E comigo?’ eu disse ‘ai, Graciela, aí, escrava, tá trabalhando muito? sonhei que a gente era presa. Ai, Tá louco, o que tu consegue num eu não queria ir pra cadeia, mas mês eu te dou num dia, com uma não vou deixar tu ir pra cadeia soligação’. Ela me infernizou tanto zinha, eu vou contigo’”. Quando que eu parei de trabalhar e cosaíam da Nazaré, a Brigada mecei a trabalhar no tráfico com Militar cercou o carro. “Ela disse ela. Eu gostava dela, né, fazer o ‘ai, que que a gente faz agora?’ quê”. Desde então, as duas se e eu ‘tu tem capacidade de me sustentaram só com o dinheiro dizer isso? Com dois tijolos de do tráfico. “A gente ia pras raves, maconha na minha bolsa? Nós ela vendia uns pó no final de setamo presa, desce do carro, nós mana. Durante a semana a gente tamo presa, cai na real’”. ficava só na tele, a gente ia pra lá Em frente ao juiz, Luciane e pra cá de carro”. assumiu a posse da maconha. Luciane conta que, apesar da “Eu fiz de tudo pra ela ir embora. vida boa que conseguiu com o Senão ela ia estar aqui”. Graciela tráfico, sentia que seria presa em trabalha com o pai e parou de algum momento e teria de voltar traficar. “Ela tá assustada e tá para cumprir sua pena. “Eu tinha numa provisória, a qualquer hora uma depressão profunda porque pode voltar”. As duas seguem na minha última cadeia eu sofri Entre 2011 e 2013, as duas trocaram de casa várias vezes: moraram com a mãe de Graciela, com a irmã de Luciane e passaram por apartamentos nas avenidas Farrapos e Cristóvão Colombo e na rua Ramiro Barcelos. “Por último a gente morava ali na Ramiro Barcelos, com a Rayka e o Russo - um casal de poodles. Eu sou louca por meus bichinhos”.

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juntas e se encontram duas vezes por semana. “Ela me traz comida na quarta pra durar até sábado. E sábado pra durar até quarta. Então eu como a comida da cadeia só no almoço”. Luciane conheceu a Peniteniciária quando tinha 18 anos, idade com a qual já tinha cometido 32 assaltos – a maior parte deles ao lado do antigo compaheiro, Ricardo. “Minha primeira cadeia foi pela aventura. Eu sempre trabalhei. Fui camelô, garçonete e faxineira. Com 17 anos eu já morava sozinha e conheci o Ricardo. Eu saía pra trabalhar e voltava, e ele tava sempre em casa. E ele começou a me contar que fazia assalto e tal. Ele tinha 27, e eu, 17. Vendi minha casa e fui pro mundo dele”. Ela afirma que essa é a sua última vez na cadeia. Durante o dia, ela trabalha como costureira. À noite, faz um curso de maquiagem. “Já separei salto alto e vestido para a formatura”, conta. As duas atividades contribuem para a diminuição da pena. Foi dentro da cadeia que ela se afirmou como mulher. “Eu sempre gostei de mulher. Eu sempre tive relacionamentos com mulher, desde nova. Mas eu pude revelar isso ao mundo quando eu vim presa porque aqui eu vi como é normal uma mulher ficando com outra. E eu consegui ser eu dentro da cadeia”. Hoje, depois de tudo que viveu com Graciela, ela é enfática quando afirma “Eu sei que ela é minha alma gêmea. A gente vai ficar juntas, independente da situação”.

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Fotos: Nádia Alibio

De mãos dadas Valéria e Vera chegaram à sala de visitas de mãos dadas e ficaram assim durante toda a entrevista. Sorriam enquanto falavam da história de amor que as une. Valéria Dias de Oliveira tem 28 anos e conta que foi a primera a se interessar: “Na real eu que corri atrás dela. Em 2009, quando ela caiu presa, toda vez que ela passava no corredor eu mexia com ela ‘ô, morena, psiu’. Mas ela nunca me dava bola”. Em galerias separadas, os momentos no pátio eram o lugar da troca de olhares. Vera Indiana Castro de Souza tem 33 anos e, tímida, rebate: “Eu não olhava pra ela porque já tinham me dito que ela era casada. Então, imagina, eu não ia ficar olhando aqui dentro, sabe como é. Quando ela voltou pra cá, eu considerava como amiga. Nós nos mandávamos cartas – mas como amigas”. A aproximação entre as duas veio anos mais tarde, em 2011, quando Valéria 2014/2

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voltou à Madre Pelletier. Desta vez ela estava grávida do David e ficou na galeria da creche. Com conversas pelas portinholas ou por meio de cartas, as duas mantinham a aproximação. Ajudadas pelos chefes de segurança, Vera e Valéria encontravam momentos para encontros. “Às vezes a Valéria pedia autorização pra eu ir visitar o David na creche no meu intervalo de almoço do trabalho. Quando me perguntavam o que que eu era do David, a Vera respondia: ‘ela vai ser a futura mãe dele!’ Nós ficávamos muito nervosas, porque não tínhamos o contato tão de perto. Foi lá nosso primeiro beijo’”. Foi Valéria quem propôs um outro passo: “um dia eu perguntei pra ela: ‘Vera, tu quer casar comigo?’ Aí ela olhou pra mim e disse ‘só um pouquinho!’, pensei que tinha assustado ela! Ela subiu correndo pra galeria e demorou, demorou. Pensei que ela não ia voltar mais. Mas daí ela voltou, me chamou, tava com os

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olhos cheios de lágrimas e me disse ‘eu aceito’”. As duas ficaram noivas. Valéria conta que muitas pessoas duvidaram do relacionamento: “diziam que a gente só queria casar pra diminuir nossa pena, mas eu dizia: ‘não, eu vou casar com ela por amor, porque é o meu sonho’”.

o pé, eu tava tremendo, tirei o sapato alto no meio da cerimônia e fiquei de pés descalços”. A cerimônia religiosa foi um marco, a primeira união entre mulheres realizada em cárcere no Rio Grande do Sul. Quando saírem, elas pretendem firmar a união em cartório.

O casamento ocorreu no dia nove de maio de 2014. Vera estava com um vestido de noiva, e Valéria, de terno. Elas foram casadas pelo sacerdote afro -umbandista Everton Afonsim. A cerimônia comoveu a família das duas e os funcionários da Madre Pelletier, que ajudaram a conseguir recursos para realizar o casamento. Vera conta do momento. “Eu estava esperando do lado de fora. Quando começou a tocar a música, já tava chorando. Me disseram ‘não chora, vai borrar tua maquiagem’. Eu tava tentando me controlar, mas não conseguia.” Ela estava de salto alto, algo que não usava havia anos. “O salto tava apertando

Em galerias diferentes, Vera e Valéria lutaram para ficarem juntas. Cada galeria reúne internas com um tipo de condenação. Valéria ficava na galeria das reincidentes, e a Vera, na das condenadas primárias. A insistência dos pedidos convenceu a diretora da instituição. “Infernizamos a dona Marisa, mas ela nos dizia que se abrisse exceção pra gente, teria que abrir pra outros casais. Tem muitos casais aqui que se separam rápido, mas a gente não, e a dona Marisa viu isso. Com a ajuda dela e uma ordem do juiz, fomos juntas pra mesma galeria. Nós moramos sozinhas.”

Valéria conta como sua esposa é dedicada. “Eu só sei bagunçar, a Vera arruma tudo, parece uma casa de bonecas. Eu sou muito mimada por ela”. As duas não dividem a cela com outras internas, possuem sua privacidade. Como decoração, elas têm um porta-retratos com o recorte da matéria do jornal sobre o casamento e outro com uma foto do David, filho de Valéria. Valéria cuidou de David até ele completar um ano no Madre Pelletier. É a idade permitida para os bebês de internas ficarem. Porém, Valéria não tinha ninguém para cuidar do seu filho fora de lá. Hoje, o menino tem dois anos e sete meses e está sob guarda provisória de um grupo de evangélicas que fazem cultos no Madre. Para Valéria, é uma chance de rever seu filho quando estiver em liberdade. Ela também é mãe de Ubiratan, sete anos. Ele era cuidado pela mãe de Valéria, que

Vera (E) e Valéria (D) se casaram no Madre Peletier em 2014.

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2008. Saí em condicional em 2010. Em 2011, eu fui visitar a dona da casa onde eu morava. A filha dela tava presa por tráfico e acabou mandando enxertar droga no meu sapato. Quando eu tava entrando de volta, na sala de revista, a funcionária encontrou a droga. Fui pega em flagrante lá em Guaíba e fui condenada a seis anos”. Valéria pode sair a qualquer momento. O defensor fez um pedido para ela sair em condicional, com tornozeleira eletrônica ou prisão domiVera também tem dois filhos, ciliar. Para o casal é uma mistura o Fernando e o Victor. Com os de tristeza e felicidade. “Se eu nomes deles tatuados nos brasair, vou ficar com dois corações, ços, ela sente o peso do distanvou vir, visitar ela sempre, vamos ciamento. “Faz seis anos que dar um jeito. Nós temos uma eu tô presa, então faz seis anos à outra“. Com planos para um que não vejo eles. O Fernando futuro juntas fora das grades do tem oito, e o Victor, sete. Eles Pelletier, elas querem reunir os estão separados, cada um tá quatro filhos e ainda aumentar a com uma madrinha”. família. “Estamos planejando de Vera foi presa por latrocínio. ter a Maria Antônia quando sair“Eu peguei 27 anos e três meses mos, por inseminação artificial, e tô aí”. Valéria, foi presa duas claro”, conta Valéria. vezes por tráfico. “Eu caí em está numa casa para idosos, sem condições de ajudar a criar o menino. Ele está num abrigo. “Faz dois anos que não tenho contato com ele. O que eu sei dele são as assistentes que me contam. Elas me dizem que ele gosta bastante de estudar, fazer cursos. Ele tá numa casa de passagem e é a criança mais velha de lá. Ele fala que ‘eu tô de castigo, que eu desobedeci a minha mãe e tô de castigo aqui na prisão’”.

Fotos: Nádia Alibio

Amor Incondicional “Se eu soubesse que tinha visita, tinha trocado a roupa do Gabriel. Ele tava brincando no chão, tá aprendendo a engatinhar”, avisou Luciana Ribeiro Cardoso quando entrou na sala de convivência. Junto a ela, vinha Gabriel, de um ano. O bebê, nascido dentro da Penitenciária, passava os últimos dias com a mãe.

com um ano já, tá esperando a audiência de guarda pra ele ficar com o pai”, explica Luciana. As detentas só podem ficar com os bebês até eles completarem um ano de idade. Depois disso, eles ficam sob a guarda de familiares ou conhecidos. Em último caso, são encaminhados para abrigos e podem acabar não revendo a mãe.

O Madre Pelletier tem uma galeria para as mulheres que chegam grávidas. Perto do final da gestação, elas passam para a creche, onde ficam com o filho até ele ir embora. “Eu cheguei com três meses de gestação, em março de 2013. O Gabriel tá

“Eu desci pra creche com seis meses de gestação. Se eu soubesse que era tão bom lá, tinha descido antes. Tem tudo, não falta nada. Tem micro-ondas, tem TV, DVD”, descreve. A estrutura da creche é diferente das demais galerias e é pensanda para

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acolher mãe e filho, ainda antes do nascimento. “Eu achava que ia embora antes de ganhar ele. Então, pra eu não ter aquele afeto com as crianças eu preferi não descer, pra não me antecipar no sofrimento. Eu escolhi me guardar do sofrimento”.

daquele envolvimento e não consegue. Se eu sair por um lado, vai acontecer do outro. Chega num certo ponto quando vê tu não tem como voltar. Vocês me entendem?”, questiona.

É da família que ela tira forças para seguir em frente. Conta que Luciana está na Penitenciária se relaciona bem com todas as pela segunda vez. Foi condena- detentas, mas, que lá dentro, só da por tráfico e tem de cumprir cultivou uma amizade verdadeira. “A Suzana, a gente já se conhecia uma pena de 12 anos e dez meses de reclusão. Ela e o pai da cadeia. Nos conhecemos aqui de Gabriel continuam juntos, e em 2002. Quando eu votlei, eu ele a visita a cada quinze dias. disse ‘Bá, mas eu te conheço de “Desde os seis meses, ele leva algum lugar. Daqui, né’. É uma amizade que eu quero levar pra o Gabriel pra rua. O Gabriel não tá preso, pode sair quando fora”. Dentro da creche, ela conquiser”. As outras duas filhas e vive com mais 22 mães e afirma a neta também aparecem, mas que a relação entre elas é de respeito. “A convivência é mais famicom menos frequência, já que moram em Santa Catarina com liar. Mesmo que não se goste, se convive, pelas crianças”. a avó materna. “Eu já sou vó. Tenho uma filha de 20 anos, a Para diminuir o tempo de Beatriz, e sou vó da Emanuela. reclusão, ela trabalha como canA de 14 é a Sarah. Ver elas faz tineira na cozinha e também faz eu pensar no que eu fiz, pra artesanato. “Tenho que puxar não fazer mais”. mais ou menos uns quatro anos, mas, com o pai dele vindo me ver Entre pausas para cuidar do e trazendo o meu neném, vai pasGabriel, que, no chão, brincava sar bem ligeirinho”. Determinada, com lápis de cor, ela confessa: “Eu fui a única pessoa da família ela afirma que esta é a sua última vez na cadeia. “Com uma família a sair dos trilhos”. No ano passado, quando foi presa, Luciana boa e que te apoia, você muda. Eu sou outra pessoa”. Quando trabalhava e tinha uma vida comum com a família em Capão da Gabriel já estava cansado de Canoa. Em função da demora do dividir a mãe e queria mamar, ela julgamento, teve de voltar para a confessa “vai ser muito difícil me Penitenciária anos depois de ter separar dele”. cometido o delito. “Eu caí nessa vida por acaso. O vento me levou muito longe. A gente não tem opção de escolha, quer sair

Segundo dados de 2013 da Coordenadoria Penitenciária da Mulher (CPM), 78% das detentas do Estado foram presas por tráfico. Destas, 60% levavam droga para os maridos e 47% sofriam ameças caso não cumprissem o pedido. 54

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Fotos: Nádia Alibio

Conhecer o mundo através das janelas A escola Julieta Villamil Balestro foi criada em 2006 e funciona dentro do prédio do Madre Pelletier. Hoje, conta com dez professoras e oferece Alfabetização e Ensino Fundamental e Médio às internas. A prática pedagógica dentro da instituição penal é garantida por lei e segue as Diretrizes Nacionais para Oferta de Educação de Jovens e Adultos em Situação de Privação de Liberdade nos Estabelecimentos Penais (Parecer CNE/CEB nº 4/2010 de 9/3/2010 e Resolução nº 2 de 19/5/2010 do CNE/ CEB). Visitamos a escola em um dia sem aula e conhecemos um pouco do trabalho pedagógico. 2014/2

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A maior diferença do espaço escolar não era a falta de trincos nas portas do banheiro ou as grades do lado de fora, mas as salas de aula: havia uma única mesa redonda com cadeiras em volta. Das grandes janelas do segundo andar, a vista para a rua contrastava com o resto dos ambientes internos. Jardélia de Sá é professora de alfabetização no Instituto de Psiquiatria Forense (IPF) e no Madre Pelletier. Formada em ciências sociais pela Universidade Federal de Pelotas (UFPel), ela cursou magistério e tem especializações na área da educação de jovens e adultos em espaços de privação da liberdade. Para Jardélia, o espaço da escola oferece um ambiente

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diferente às internas. “As que ficam, se sentem muito bem, porque aqui elas não são tratadas como prisioneiras. Elas se sentem um pouco livres pra conversar. São tratadas de uma forma mais horizontal”.

Jardélia (E) e Maria Paula (D) são professoras no Madre Pelletier

Nas paredes, cartazes e poesias das alunas. Nas janelas, vasinhos decorados com e.v.a. abrigavam mudas de temperos e chás. O projeto de plantar sementes foi feito pelas professoras Mariah de Paulo e Tatiana Almeida junto às alunas das turmas de Alfabetização e do Ensino Médio. A escola possui uma biblioteca e um laboratório de informática, em que serão implementadas aulas do Programa Nacional de Acesso ao Ensino Técnico (PRONATEC) em parceria com o SENAC. Maria Paula Dallagnol trabalha há 4 anos na escola. É vice-diretora no turno da noite e professora de matemática e biologia para o Ensino Fundamental e Médio durante o dia. Frequentar a escola é uma oportunidade para as

internas e uma das formas de diminuir suas penas. Porém, Maria Paula revela que é difícil para as internas manterem uma rotina escolar. “Hoje temos 89 alunas matriculadas nos três turnos, mas, que frequentam regularmente, umas 30”. Para ela, trabalhar dentro de uma penitenciária é uma tarefa que exige preparo emocional e psicológico muito forte por parte do profissional. “Eu preciso esquecer que estou num presídio pra dar aula. Se eu for me preocupar com quais são os crimes, na verdade, tu vai acabar te envolvendo numa área que não é a tua. Aqui, independente do crime, a escola tá aberta. Vai depender da vontade delas de vir.” Para Jardélia, o maior aprendizado é a humanização e a compreensão do outro: “A pessoa não é o crime, ela é mais do que isso. Nós estamos acostumados a analisar o fato em si, só o crime. É só isso que a sociedade vê. Não levamos em conta como aquela pessoa chegou a aquela circunstância.”

Fotos: Nádia Alibio

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#femfuture onlinefeminism.com Produced by Valenti Martin Media, authors of The Future of (Online) Feminism Designed by Megan Jett 2014/2 Sextante Adaptado ao portuguĂŞs por Camila Viero e Henrique Dellazeri

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O corpo e meu´ a luta e nossa: militancia na rede ^

por Camila Viero e Henrique Dellazeri

no ônibus sou uma batalhadora no trampo uma explorada na rua carne barata em casa uma mulher cansada no espelho sou uma menina - o reflexo nunca mentiu pra mim

tos em rede. Assim, ressignificam o discurso das militâncias, como é o caso de movimentos feministas que, incorporados a este cenário, passam a ser chamados de Ciberfeminismo.

Fóruns de discussão

Autora de um dos maiores blogs feministas do país, o Escreva Lola, Escreva, Lola Aronovich, 47, descobriu na página uma nova forma de se A jornalista Marina Gazire expressar. Além de blogueira, Lemos, na sua dissertação de é professora-adjunta de mestrado em Comunicação e Literatura em Língua Inglesa Semiótica datada de 2009 (PUC- na Universidade Federal do SP), explica que o termo aparece Ceará, e decidiu criar a página pela primeira vez em 1991, utiliem 2008, quando morava em zado pelo grupo australiano VNS Detroit (EUA), com o objetivo Matrix. Composto por mulheres, o de auxiliar na produção de sua Grazi, Feminismo Político coletivo se autoproclamou “ciber- tese de doutorado. Até então, a (Facebook) feminista” ao publicar o Manifesto autora colaborava com sites de Ciberfeminista. Era uma homecinema escrevendo críticas, mas nagem a Donna Haraway, teórica não tinha retorno. “Não era meu CIBERFEMINISMO estadunidense que propôs uma público. Além disso, eu não tinha releitura do feminismo nos anos liberdade editorial”. O blog surgiu “'Prática feminista em rede, que 1980. Donna sugeriu uma análise como consequência da busca tem por intuito, tanto politicamente, do movimento sob a ótica das nopor uma forma de expressão livre quanto esteticamente, a construção vas tecnologias, incluindo meios de intermediários, conta. “A mídia de novas ordens e desmontagem de de comunicação, além de propor tradicional abre pouquíssimo velhos mitos da sociedade através do novas formas de organização em espaço para mulheres, e menos uso da tecnologia1.“ rede e apropriação das tecnoainda para mulheres negras ou logias como forma de ativismo lésbicas ou trans. Na internet, político. A partir daí, o manifesto todas têm voz”. As tecnologias de comunica- se espalhou por meio de listas de Enquanto meios tradicionais ção, principalmente a internet e e-mails e fóruns para outras parbarravam - e ainda barram - o a telefonia móvel, oferecem aos tes do mundo. avanço de discussões feminismovimentos sociais diversas “O Ciberfeminismo tem como tas, a internet deu voz a muformas de expressão e engajapostulado a ideia de que a conjun- lheres como Lola. Em muitos mento. Mídias sociais e blogs ção com a tecnologia reconstrói casos, a reunião destas vozes recriam espaços de discussão, as sexualidades, as subjetividades alavancou a inserção de temas traduzindo-os para novos formaa partir da heterogeneidade que ligados ao feminismo na agenas redes eletrônicas possibilitam”. da dos meios de comunicação, 1 Definição de Ana Martinez Collado e Ana Navarrete, publicada em - Marina Gazire Lemos ampliando seu alcance. Nas Ciberfeminismo: também uma forma de eleições presidenciais de 2014, ativismo (2006) o aborto, por exemplo, ocupou 58

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um espaço maior dos debates em relação ao pleito anterior. Além disso, fica cada vez mais evidente o discurso evasivo que alguns candidatos apresentam ao se posicionar. Não fossem os blogs, páginas e sites que problematizaram o assunto, o tema possivelmente continuaria às margens de qualquer tipo de atenção, matando uma mulher a cada dois dias no Brasil (dados de 2013 da Organização Mundial da Saúde). O site Blogueiras Feministas é outro exemplo. Ele reúne diversas colaboradoras que fazem da pluralidade seu cartão de visita: defendem que o aprendizado deve ser conjunto, e a mudança, uma construção coletiva. “Esse é um blog feito por muitas mãos, olhos, cérebros, dedos, pernas, ouvidos, pulmões e corações. Uma colcha de retalhos que dialoga por meio de diversas vozes, opiniões, pensamentos e personalidades”. Bia Cardoso, representante do site, explica que a página “existe porque queremos vivenciar na rede a experiência de ser feminista. Escrever posts, apontar manifestações do machismo na sociedade, twittar, fazer vídeos, publicar fotos, organizar manifestações nas ruas e na rede, entre outras formas de espalhar essa ideia de que ainda tem muita coisa para mudar nas relações entre homens e mulheres”. A multiplicidade de vozes é despertada, com ainda mais intensidade, através da proliferação de páginas e grupos feministas em sites de redes sociais, como o Facebook. É o caso do Feminismo sem Demagogia. “A importância deste tipo de canal é ampliar a divulgação de informações, esclarecendo mulheres sobre o que é uma agressão machista, orientá-las a denunciar e apoiá-las”, resumem

as moderadoras da página. “Devido à culpa que a sociedade joga sobre a mulher nos casos em que ela sofre machismo, é muito comum o sentimento de culpa por uma agressão sofrida, ‘ele me bateu, mas eu provoquei com tal atitude...’. É importante dizer às mulheres que nunca será culpa delas ser vítima de violência. A página cumpre este papel dando apoio e instruindo como agir em cada caso”.

e transexualidade são aberrações. Isso dificulta a aproximação das mulheres com o feminismo”. Assim, parte delas vai estabelecer na internet seu primeiro contato com a causa, justamente porque a rede oportuniza aproximações sem algumas das amarras que persistem do outro lado da tela.

Mulheres que sofreram abusos, que passaram por uma gravidez indesejada, ou que não se adequam aos padrões de gênero e sexualidade, por exemplo, enfrenO Feminismo sem Demagogia surgiu quando uma das integrantes tam também o medo da exposição. É por essa razão que ocupar do coletivo começou a identificar que era vítima de violência domés- os espaços oferecidos na internet tica. Até aquele momento, ela não assume tamanha importância: “é uma forma de se fortalecer para tinha entrado em contato com o desafiar as situações de opresdebate sobre a opressão da musão”, ressaltam as moderadoras. lher. A página, então, propôs-se a dialogar com outras mulheres que Márcia Bernardes é doutoranda estavam em situação semelhante, em Ciências da Comunicação na tornando-se “um espaço de debaUnisinos e pesquisa sobre gênete, desabafo e denúncia de mulhero e tecnologias da informação. res vítimas de agressão machista”. Ela avalia que “as tecnologias Reunindo anseios de uma coImagem: Reprodução/Mike Licht letividade composta por mulheres com as mais diversas vivências, blogs, redes sociais e sites moldam narrativas em rede nas quais impera a pluralidade. Nestes locais, o respeito às individualidades ganha força através do conjunto. É ali que, muitas vezes, surge o primeiro contato de uma juventude que deseja se expressar. Inúmeras mulheres tomam os primeiros passos em direção à militância através das redes. “Faltam espaços públicos abertos à participação da sociedade”, avaliam as moderadoras do Feminismo sem Demagogia. “Muita gente ainda acha que ‘em briga de marido e mulher não se mete a colher’, que as mulheres devem se ‘comportar’ para não serem assediadas, que lesbiandade

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da comunicação, em especial a internet, são elementos de reconfiguração da vida social. Por um lado, trouxeram oportunidades para enfrentar os desafios sociais, encurtar distâncias, alterar as relações de tempo e espaço e possibilitar a inclusão, a liberdade de expressão e a participação social; por outro, as apropriações das tecnologias por diferentes setores sociais não estão desprovidas de relações de poder, assimetrias e desigualdades que envolvem tensões e disputas em torno de seus usos. Neste sentido, a internet se torna um espaço central não só para a difusão da informação renovada, como também para a permanente (re) construção das identidades e de práticas sociais. Atualmente, os processos culturais, a produção de sentidos e a construção das identidades sociais estão cada vez mais dependentes do fluxo de materiais simbólicos constituído pela internet.”

Informação e da Comunicação mostram que 85,9 milhões de brasileiros têm acesso à internet, pouco mais da metade da população do País. Entretanto, o acesso é concentrado: 98% das casas consideradas pertencentes à classe A têm acesso à internet. Enquanto a classe B tem 80%; a classe C 39%; e a classe D, apenas 8%.

Antes de conferir maior importância à internet do que ela realmente tem, é preciso avaliar que a rede é, de fato, construída com o auxílio de muitas mãos. Sendo assim, também é necessário perguntar: que mãos são essas? Além da dificuldade de alcançar um público que permanece segregado, a pesquisadora Márcia observa que “não existe um feminismo, mas feminismos, o que de certa forma é positivo. São vozes múltiplas e muitos lugares de fala”. Desta forma, nem sempre haverá consenso entre as opiniões. As particularidades devem ser respeitadas. “Os lugares de fala existem. O que ocorre Desafios é que os discursos são muitos Ao mesmo tempo em que e, em muitos casos, dissonanoportunizam um diálogo facilitado, tes”, conclui. Para a blogueira as mídias digitais estão longe de Lola Aronovich, algumas disestender a discussão ao grande cussões acabam se tornando grupo que permanece afastado do superficiais. Ela e Márcia susacesso às tecnologias. “A discustentam que parte das opiniões são aberta existe, mas talvez ela que surge na rede são rasas não tenha uma ‘massividade’ tão ou simplesmente opinativas. perceptível como no meio televiAlgumas acabam até reprodusão, por exemplo. Existe um gran- zindo preconceitos e discursos de número de iniciativas feministas, preestabelecidos. coletivos, grupos, ativistas, simpaOutro discurso que surge é o de tizantes, que debatem, discutem, ódio, explica a autora do Escreva, criticam e constroem o feminismo Lola, Escreva. As ameaças são nesses espaços. Mas talvez essas constantes: morte, estupro, despessoas não alcancem justamente membramento. A professora conta aqueles que precisariam de uma que até seu marido já recebeu discussão aprofundada sobre o ameaças: “Eu recebo pelo menos tema”, analisa Márcia Bernardes. uma ameaça por semana, e isso Dados de 2013 do Centro de faz mais de três anos. Já fiz um Estudos sobre as Tecnologias da boletim de ocorrência, só para me 60

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precaver. A ameaça mais recente que recebi dizia: ‘Aproveite enquanto pode, Lola, o Brasil é um país muito perigoso. As pessoas morrem. Uma professora universitária e seu marido mortos em uma tentativa de assalto, um latrocínio de autoria desconhecida. Nada de valor foi perdido’. E essa foi uma ameaça até leve, comparada às outras”, lamenta. No caso do Feminismo Sem Demagogia não é diferente. Uma versão anterior da página foi hackeada e ela teve de ser recriada. É comum, também, o recebimento de denúncias em massa a conteúdos da página, apenas para que sejam retirados do ar. “A internet também é um espaço em que facilmente os discursos de ódio se espalham, de forma que alguns ataques são bastante graves e demonstram muita intolerância”, avaliam. A mesma internet que dá voz ao feminismo e oferece amparo a mulheres em situação de opressão está a serviço de causas menos nobres. Enquanto houver pessoas dispostas a romper o ciclo de opressões, também haverá a resistência daqueles beneficiados pelo sistema. As agressões são inúmeras e parte delas se manifesta de maneira virtual. Pensando nisso, portais como o Safernet Brasil, criados para a denúncia de problemas relacionados ao uso indevido da internet para a prática de crimes e violações contra os direitos humanos, procuram impedir que a rede sirva a estas práticas. Ameaças como a que Lola sofreu devem ser reportadas para que sejam investigadas. O site da Polícia Federal também orienta vítimas de crimes virtuais a procurarem seus direitos. Na página, é possível fazer denúncias online.

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Um “novo feminismo”?

mo” não seria a forma mais correta de definição, pois ainda não Frente às transformações nas consquistamos o que o “velho” narrativas feministas, surge a feminismo buscava. “As mulheres pergunta: estamos presencianainda recebem salários mais baido um novo feminismo? xos desempenhando a mesma “O movimento feminista tem função que os homens; ainda são uma história de lutas e conquis- questionadas por suas escolhas tas e, hoje, parece buscar um privadas relativas à maternidade, afastamento da ideia global e parto etc; são vítimas de violência massificadora da construção so- doméstica; têm o direito ao corpo cial da diferença entre os sexos. questionado; são julgadas pela Os questionamentos ampliaram- roupa que vestem, entre tantas ouse, e o feminismo problematiza tras questões que fazem parte das a si mesmo, em um processo lutas dos movimentos”. O “novo de desconstrução e reconstrufeminismo” seria, na verdade, as ção”, avalia Márcia Bernardes. discussões do movimento, que Ela destaca que o combate às agregam novos valores e novas desiguldades e hierarquias de lutas àquilo que historicamente gênero, ainda longe de serem vem sendo construído. superadas, continua. Mas o que Para Lola, essa definição seria traz força para o movimento uma forma de rotular o movimené o fato de que “o feminismo to. “Eu rejeito rótulos. O único atual é um feminismo plural, rótulo que aceito de bom grado, multifacetado”. com orgulho, é ‘feminista’. O que Questionada sobre o surgimen- acontece é que muita gente jovem to de um novo feminismo, Márcia está começando a se assumir diz acreditar que estamos vivenfeminista mais cedo. E essas pesciando um processo de afirmação soas trazem suas vivências, seus do tema. Para ela, “novo feminisinteresses, suas necessidades. 2014/2

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Muitas vezes são parecidas às de mulheres mais velhas. Mas as lutas são as mesmas.” São essas novas vivências, interesses, necessidades, bem como a coragem cada vez maior de lutar contra ideais conservadores e machistas, que vêm modificando mesmo que lentamente - o cenário de preconceitos. As discussões abertas, o engajamento nas redes e a liberdade para expressar o que se sente - em inúmeras situações abaixo de ameaças -, dá cada vez mais esperança de que a sociedade pode sim mudar, que as mulheres podem conquistar um justo espaço na sociedade, que o medo de caminhar nas ruas pode sofrer expressiva queda e que todos serão, um dia, tratados como iguais.

Das redes para as ruas Em março deste ano, uma pesquisa do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) divulgou que 61,5% dos brasileiros entrevistados concordaram total ou parcialmente

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Em casos como este, para a blogueira Lola Aronovich, a internet é mais um espaço agregador, que incita as pessoas a partirem para a luta no dia a dia. “Promovemos boicotes, abaixo -assinados, protestos. Fazemos denúncias. Compartilhamos experiências. Isso tudo já é prática. Mas, para dar um exemplo mais concreto, no final de 2012 eu escrevi um post falando da cultura do estupro em um comercial da Nova Schin, sobre os ‘homens invisíveis’. Esse post Após a publicação de sua foto levou feministas que eu nem em frente ao Congresso Nacional, conhecia a marcar, em várias sem camiseta e com a frase “Não cidades do país, passeatas conmereço ser estuprada” pintada no tra a mídia machista.” corpo, Nana afirmou na página A Marcha das Vadias - originalda campanha: “Amanheci de uma mente SlutWalk - é outro exemplo noite conturbada. Acreditei na pesquisa do Ipea e experimentei do engajamento nas lutas contra na pele sua fúria. Homens escre- o machismo a partir da internet. O movimento começou em 2011, veram ameaçando me estuprar se me encontrassem na rua, mu- no Canadá, após ocorrerem dilheres escreveram desejando que versos casos de abuso sexual na Universidade de Toronto. Um poeu fosse estuprada”. licial, depois dos acontecimentos, advertiu que as mulheres deveriam evitar se vestir como vadias para não serem vítimas de abuso, o que causou revolta e indignação, afinal, que sentido tem as mulheres deixarem de ser vítimas para se tornarem culpadas, simplesmente pela roupa que escolheram usar? Em pouco tempo, a SlutWalk ganhou o mundo por meio de várias marchas com o mesmo propósito: lutar contra a suposição de que mulheres vítimas de estupro provocam a violência a partir de seu próprio comportamento. com a afirmação “mulheres que mostram o corpo merecem ser atacadas”. A pesquisa, de cunho machista e conservador, motivou a criação da campanha “Eu não mereço ser estuprada”, no Facebook. A página, criada pela jornalista Nana Queiroz, mostra fotos de mulheres nuas ou seminuas com cartazes de protesto contra a violência sofrida pelas mulheres. O movimento gerou enorme repercussão no país, ganhando mais de 40 mil curtidas.

Imagem: Reprodução/Mike Licht

No Brasil, a primeira Marcha aconteceu na cidade de São Paulo, em junho de 2011, a partir da criação de um evento no Facebook pela publicitária curitibana Madô Lopez e pela escritora paraguaia Solange De-Ré. Apesar de mais de seis mil pes-

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soas confirmarem participação no evento, somente cerca de 300 de fato estiveram presentes. Hoje, os protestos acontecem em diversas cidades do Brasil e do mundo, e a adesão é cada vez maior. A causa cresce todos os dias, levando mais e mais seguidores à luta. Ferramentas de denúncia de assédio nas ruas, como o Mapa Chega de Fiu-Fiu, são outro tipo de iniciativa na luta contra a violência. Quais são os locais públicos mais perigosos para as mulheres? Quais são os tipos de violência sofrida nas ruas? A ferramenta colaborativa foi criada justamente para tentar responder com o máximo de exatidão a essas perguntas. No mapa, cada mulher registra o caso e o local da violência que sofreu, colaborando para que a sua história - e a de tantas outras mulheres - não se repita. A luta é antiga. A luta é constante. A luta é imprescindível. Ela é única, e ao mesmo tempo uma só. O dia a dia oprime, e o silêncio engole. Nas ruas e nas redes, as vozes acusam e reivindicam um lugar tomado à força. Lutando contra inúmeras formas de agressão, físicas ou psicológicas, as manifestantes ajudam a desconstruir ideias que contaminam a sociedade. Uma peça de roupa tachada de provocante, um comportamento dito inapropriado, são normas impostas ao corpo da mulher por uma sociedade patriarcal, conservadora e machista. A batalha pelo poder de decidir sobre si é insdispensável. O grito é de igualdade, clama por justiça. Por mais lento que se dê o processo de mudança, a luta é movida por coragem e abre as portas para um futuro sem medo. Nele, talvez, ninguém precise ouvir uma frase tão absurda quanto “você merece ser estuprada”

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Respeita a moça Ilustrações: Nádia Alibio

por João Francisco de Campos Lima

Nas ruas. Dentro de casa. Saindo para passear. No trabalho. Em todos os cenários possíveis, a mulher está sujeita ao assédio. Sentimento de vergonha, insegurança e impotência se fazem presentes nesses casos. A mulher exige e merece muito mais respeito. Acredita-se que, por terem ascendido socialmente ao longo dos tempos e conquistado autonomia e independência, as mulheres brasileiras deixaram de ser submissas e conseguiram um espaço na sociedade equivalente ao dos homens. Esse quadro, no entanto, não corresponde a todo o universo feminino. Na prática, muitas mulheres ainda são rebaixadas e sofrem discriminações de gênero. Isso é diário, de esquina em esquina. Simplesmente por ser mulher. O medo, a vergonha, o silêncio e a naturalização do tratamento machista são atenuantes deste desrespeito ainda vigente. Movimentos feministas mobilizam-se, mulheres e homens não ligados a esses movimentos também apoiam a causa, mas ainda não chegamos ao mo-

mento de ter uma sociedade que trate os gêneros de forma igualitária e justa. Por isso, a luta é permanente e continua.

bre desrespeito às mulheres: só a partir de 2001 o assédio sexual passou a ser considerado crime, de acordo com a Lei n° 10.224/2001, em que foi acrescentada o item A no artigo As mulheres são as maiores vítimas de assédio moral e assédio 216 do Código Penal: “constranger alguém com o intuito de sexual. Assédio moral é caracteriobter vantagem ou favorecimento zado por “situações humilhantes sexual, prevalecendo-se o agene constrangedoras, repetitivas e prolongadas durante a jornada de te da sua condição de superior hierárquico ou ascendência inetrabalho e no exercício de suas rentes ao exercício de emprego, funções, levando a vítima a se cargo ou função” e determinou desestabilizar emocionalmente”. a pena, que é a “detenção de 1 Já o assédio sexual é definido (um) a 2 (dois) anos.” Os relatos pela Organização Internacional são dos mais variados, e o amdo Trabalho (OIT) como “atos, biente de trabalho muitas vezes insinuações, contatos físicos foré propício para o desrespeito. A çados, convites inconvenientes, dificuldade de reunir provas faz que apresentam as seguintes cacom que muitas vítimas desistam racterísticas: condição clara para das denúncias. Mesmo assim, manter o emprego, influência em a recomendação é de que as promoções na carreira, prejuízo mulheres busquem uma maneino rendimento profissional, humira de fazer a denúncia, para a lhação, insulto ou intimidação da vítima.” De acordo com a OIT, 52% Delegacia da Mulher ou, caso o assédio ocorra no trabalho, das mulheres ecodenuncie também para a ounomicamente ativas vidoria da empresa. já sofreram assédio sexual no ambiente Nas ruas são igualmente de trabalho. recorrentes os casos de Um exemplo que evidencia o porquê de ainda engatinharmos nesta discussão so-

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assédio. Alguns equívocos, como instruir as mulheres a não se vestirem com roupas

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justas para evitar algum abuso, prejudicam que a mulher possa avançar nessa luta e se comportar como bem quiser. Apesar de muitos movimentos bradarem em alto e bom som que o corpo é propriedade exclusiva da mulher e que ela veste o que bem quiser, ainda existe a crença de que o corpo feminino é público. Recentemente, uma pesquisa do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada divulgou que 26% dos brasileiros concordam que mulheres que usam roupas que mostram o corpo merecem ser atacadas. Uma pesquisa online feita com 7.762 mulheres constatou que 99,6% das mulheres já sofreram algum tipo de assédio sexual ou verbal nas ruas, ônibus, trens, metrôs, no trabalho e em festas. Das entrevistadas, 83% não consideram as cantadas como algo positivo, e aproximadamente 90% admitiram já ter trocado de roupa antes de sair de casa, receosas com o assédio que poderiam sofrer na rua. Adjetivos como gostosa, linda e semelhantes são ouvidos repetidamente pelas mulheres, a todo instante. Assoviar também é um ato frequente de quem pouco se importa em respeitar a mulher. A seguir, alguns relatos cotidianos colhidos pela reportagem. Histórias de quem já foi desrespeitada simplesmente por ser mulher. De quem vê diariamente outras mulheres sofrerem semelhantes abusos. De quem luta por uma sociedade mais igualitária. Acompanha.

Nathália, 24 anos “As mulheres podem sentir o machismo de diversas formas todos os dias. Vista enquanto “fêmea”, “reprodutora”, isto é, mulher, basta apenas caminhar pela rua. Basta esse movimento natural do ser humano para recebermos buzinadas, assovios e palavras atravessadas no nosso caminho. Isso é o básico. Podem vir também abordagens agressivas, como homens passando a mão pelo nosso corpo sem serem convidados, ou nos estuprando. Tudo isso porque vivemos numa sociedade onde o natural, o comum, são os homens tirando vantagens de sua condição de “mais fortes”, mais “inteligentes”. No meio político o machismo se reproduz de forma semelhante. Homens falam mais alto, espera-se deles a melhor proposta para resolver uma situação ou defender uma ideia. O que a mulher fala é quase sempre, de certa maneira, abafado. Muitas vezes temos as mesmas opiniões ou convicções do que companheiros ou adversários homens, no entanto nossa voz é a menos escutada. Na prática, vemos muito poucas mulheres ocupando cargos públicos de destaque. A grosso olhar podese dizer que não é intencional eleger majoritariamente homens. O fato é que todas as condições impostas nesta sociedade machista os levam, sempre em detrimento das mulheres, a um lugar de credibilidade maior. A luta feminista vem para enfrentar isso, com a ideia de que é possível exercer a igualdade de gênero entre os povos.”

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Maria, 56 anos “Trabalho como bancária há mais de 30 anos. Um caso que mexeu comigo foi quando, há mais de 20 anos, chegou na agência um gerente, casado e pai de família, extremamente machista e desrespeitoso com os colegas. Sempre fazia piadinhas e se insinuava para mim. Em um episódio, ele me convocou para trabalhar num feriado. Cheguei no banco e, para a minha surpresa, só ele estava no banco. Ele conversou sobre outros assuntos, que nada tinham a ver com os assuntos profissionais. Eu sempre me senti assediada e desconfortável com as ironias e me esquivava. Em uma ocasião, ele foi na piscina de um clube em que meu marido, minha filha e eu frequentávamos e me contou no outro dia que havia ido na piscina só para me ver com roupa de banho. Por ele ser meu chefe, sempre tive receio e medo de denunciar. Depois de um tempo, passei a evitar as conversas com ele ao máximo. Após essa minha atitude, ele me transferiu para um setor pelo qual ele sabia que eu tinha dificuldade, como punição. Ele também pediu para uma colega ir no apartamento dele, com o pretexto de ser um assunto profissional, e a recebeu só de cueca. Infelizmente, o homem se acha no direito de ter esse tipo de comportamento e até hoje vivencio casos diários de machismo, que agridem a mulher.”

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Renata, 26 anos “Com 25 anos, tomei uma decisão difícil na minha vida. Saí de casa, estava vivendo um momento não muito bom comigo e procurava um lugar para ter um tempo intimamente meu. Fui para a casa da sogra de uma amiga, onde viviam a minha amiga e o namorado, a mãe dele e o padrasto. Morei lá por aproximadamente três meses. Enquanto estava lá, notei um comportamento diferente do padrasto comigo. No início, não me importei. Porém, comecei a me incomodar, pois as coisas passaram do limite, sem a mulher dele perceber. Ele cruzava comigo dentro de casa e passava se encostando em mim, piscava o olho, sentava me abraçando no sofá. Eu não podia falar nada, porque por mais que me conhecessem, eu era uma estranha dentro daquela casa, por isso tive medo de falar. Ele também desrespeitou a própria enteada, que me contou que ele entrou se masturbando no banheiro onde ela estava tomando banho. Ela contou imediatamente para a mãe que, mesmo com o relato, continuou o seu relacionamento com este homem. Eu vejo muito desrespeito dos homens com as mulheres, apenas com seus olhares tarados já agridem as mulheres, que merecem maior respeito.”

Isabela, 24 anos “Trabalhei por três anos em uma loja automotiva, onde junto funcionava uma mecânica. Minha função era administrar a loja assim como atender o público, neste caso quase que 90% masculino. Ao longo desses três anos fiz amigos, aprendi muito sobre o setor, mas também passei por situações constrangedoras. A loja não oferecia uniforme, portanto sempre procurei ser discreta, usar roupas bem discretas, porque atender o público masculino não é uma tarefa fácil. Dificilmente passava um dia sem ouvir uma piadinha, do tipo ‘Não vejo aliança, linda assim e solteira?’. As investidas geralmente eram de homens mais velhos. Bem, os mais discretos pegavam na mão ao entregar o dinheiro e faziam elogios do tipo ‘Tu malhas na academia? É muito bonita’ ou ‘O que uma menina linda assim faz aqui?’, ‘Tem namorado? Linda assim e sozinha é uma tentação’. Alguns saíam da loja e imediatamente ligavam pra lá, sem coragem de falar pessoalmente, daí me convidavam para sair, ou me elogiavam apenas. Alguns mais caras de pau pediam o meu número, insistiam pra que eu saísse, me adicionavam nas redes sociais, chegavam a falar com meu chefe para que ‘ajudasse’ eles.

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Certa vez um cliente da loja, casado, começou a frequentar a loja todos os dias, sempre esbanjando elogios a mim. Um dia mandou flores e chocolate e junto um cartão de convite para jantar. Não satisfeito com o não, ele passou a me seguir. Todos os dias quando eu ia almoçar ele passava diversas vezes de carro por mim, quando eu retornava ao trabalho lá estava ele me esperando. Um dia dentro da loja me pegou pelo braço, insistindo que eu deveria dar uma chance a ele, dizia que se eu era solteira não tinha por que desprezá-lo. Eu gritei pra ele me soltar e meu chefe por sorte chegou e o expulsou. Alguns eram nojentos e diziam coisas de baixo nível, do tipo ‘tu és gostosa’, ‘delicia de loira’, tentavam tocar em mim sempre que tinham oportunidade. Acredito que em outros lugares esse ‘abuso’ seja muito maior, como em bares por exemplo, onde a presença de álcool incentiva. Hoje trabalho em uma empresa onde sou a única mulher, não há nenhum grande desrespeito contra mim aqui, mas mesmo assim já ouvi algumas piadinhas, mais amenas. Acho que o ambiente colabora ativamente para o comportamento da pessoa, essas experiências me fizeram ver o quanto a mulher ainda é frágil perante o homem, que não a respeita em seu próprio local de trabalho.”

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das

linh

as in por L uana

A questão da maternidade sempre foi uma coisa bem forte. A gente é criada pra ser mãe, mas, na minha caminhada, eu tinha tomado uma decisão que eu teria que ter um pai para o meu filho. E nisso, eu tinha posto uma idade limite, que seria até os 35 anos. Junto disso tem a construção da mulher e da maternidade. É toda uma construção que a gente tem e talvez esteja aí o preconceito, porque ser mulher é reproduzir. Então, se tu não tem uma parte desse corpo - os ovários - tu deixa de ser mulher? Tu perde tua função? Mas o que é ser mulher?

Até os 35 anos eu não tinha um pai pro meu filho. Eu não tinha encontrado ninguém que quisesse viver comigo isso. Gostaria de ter a decisão de ser mãe, apenas por escolher. Eu não queria que algo externo decidisse por mim.

Aos 37 anos eu encontrei o Francisco, que seria um bom candidato a pai do meu filho. Mas eu não podia obrigar o Francisco a ser pai. Nós casamos, passamos nossa lua de mel no Rio de Janeiro, e eu estava me sentindo muito mal, sangrando e com muita dor de cabeça. Quando voltamos, eu fui ao médico fazer os exames, eu tinha 39 anos. Ele pediu para que eu voltasse na Eu vivo nesse questionamento mesma semana, e foi então que ele me deu a notícia de que eu desde os 27 anos, quando eu tinha câncer. Eu ia ter que tirar senti meu primeiro nódulo no tudo - os ovários, útero e o tecido seio. Fui ao médico - o nódulo não era câncer, eu retirei e segui mamário. Eu era recém casada, e todos aqueles sonhos de família minha vida. Aos 35, eu fiz uma foram interrompidos no hospital. cirurgia para retirar um mioma, um tumor no útero. Meu médico Quando eu saí da cirurgia, uma mulher me disse “tu vai ter que comentou da probabilidade de liberar o teu marido né, porque ter que retirar o útero, pois o homem não aguenta ficar 40 dias tumor era muito grande. sem mulher”. Depois da cirurgia, eu ainda Eu estava cheia de dúvidas, não tinha certeza se haviam tirado. Minha cunhada veio me visitar, não sabia quem eu ia ser dali pra ela estava grávida de oito meses. frente. Eu e o Francisco estávaEla me perguntou como eu ia me mos juntos há um ano, eu também não sabia como ele ia reagir. sentir se não tivesse mais útero. Eu respondi que ia me sentir bem Eu estava fragilizada. Muitos - e comecei a chorar - menti. Não homens no lugar dele teriam me abandonado. perdi o útero naquele dia.

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Eu era a noiva Frankenstein. Nós passamos por isso juntos, e o Francisco ficou do meu lado. Aos poucos percebi que não tinha deixado de ser mulher e fui descobrindo outras coisas. Ter ele do meu lado me fortaleceu muito. Eu sou professora há 31 anos, eu penso como uma professora. Eu não sei pensar como mãe. Isso não foi desenvolvido. Eu tenho sobrinhos, enteados, alunos. Mas não filhos. O sentimento não é o mesmo. Eu não penso mais em como seria ter um filho, eu sei que isso eu não posso ter. Adotar não era uma vontade do Francisco - e nós tínhamos que tomar essa decisão juntos. Se eu sinto falta de ter um filho? Sim, mas eu nunca tive um, então como eu posso sentir falta de algo que eu nunca tive? Eu podia ter tido um filho sozinha, mas eu não estava preparada, tinha muito medo e insegurança. Não posso dizer que a vida decidiu por mim. Eu coloquei barreiras no meu caminho e tive que lidar com isso. O que é mulher? É uma construção que passa por dentro e por fora. É cultural, e não biológico. A gente se torna mulher. E eu fui me reinventando várias vezes para reencontrar minha sensibilidade, minha força e conseguir costurar minha vida.

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&eu;canto;para;o% &teu;preconceito% por Vicente Medeiros “Se o papa fosse mulher, Se o papa fosse mulher, Se o papa fosse mulheéér! O aborto seria legal! Peca peca peca peca goza peca sangra Peca Peca peca peca peca até o papa peca Ei papa, levante seu vestido Quem sabe aí embaixo não está o Amarildo...” Putinhas Aborteiras Esse são os 30 primeiros segundos do vídeo Grupo feminista Putinhas Aborteiras (Little Abortionist Whores) English subs. O prelúdio do ódio. Não das moças que usam a música para protestar, mas daqueles que a ouvem e vociferam o machismo e a ignorância. Elas não imaginavam a repercussão da música Feminista no programa RADAR, que extraordi-

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nariamente foi ao ar durante a madrugada com a justificativa do inadequado linguajar para as 18h. O intuito da apresentação era divulgar a “marcha das vadias” e o trabalho realizado pelo grupo de reafirmar a identidade feminina.

“...Pra se conhecer melhor, comece bem assim, toque no seu corpo e goze até o fim, descubra o poder, da masturbação, não precisa de ninguém, só você e a sua mão. Vem desconstruir o gênero, junto com as putinhas, vem conscientizar e libertar a bucetinha...” Putinhas Aborteiras

A música é uma forma de arte. Por ela expressamos sentimentos, desejos e frustrações. Uma forma de “abrir os olhos da humanidade” para as questões que afligem o mundo, como a guerra, a discriminação e a opressão. O punk britânico gritou contra as regalias da monarquia. A MPB, contra a ditadura. Os exemplos apresentam uma pluralidade de ritmos. Em Porto Alegre, coletivos formados por mulheres dedicam-se a usar a música para serem ouvidas. Esse é o trabalho realizado pelas Putinhas Aborteiras e Orquestra de Mulheres, que propõem o debate sobre questões feministas. De universitárias - de cursos como história e biologia - até proletárias, a pluralidade de identidades mostra diferentes construções sociais, o que enriquece o material humano do coletivo para debater sobre a liberdade de ser até as denúncias de crimes que as mulheres sofrem na sociedade majoritariamente paternalista.

“Feminista Rainha do tanque Tanque de guerra Antidominante Vem anarquizar Assuma seu corpão Gorda, magra, média...” Putinhas Aborteiras

Imagens: Internet/Reprodução

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As Putinhas seguem a linha do anarcofunk, modalidade de grande influência no Rio de Janeiro, e têm como características ser um ritmo popular, de fácil acesso e com presença de rima. O ritmo propõe um papo reto e direto, sem perfumaria. As Putinhas Aborteiras partem da premissa de que a mulher não precisa cantar bonito, ela tem que colocar tudo aquilo que pensa para fora. Ela precisa se manifestar e deixar o seu recado. Para elas, não interessa o público, se a banda está no palco é para cantar e ser ouvida. O foco do coletivo é principalmente o protesto. As letras são produzidas sem compromisso. Comentam que nem todas sabem rimar, mas a horizontalidade liberta para cada uma produzir no seu tempo. A rotina nem sempre possibilita que produzam juntas as letras, mas, a cada nova música, é feito um debate para aperfeiçoá-la. Para elas, a dita musicalidade pode não ser a mais elaborada, mas quem se importa? A arte não está reduzida a um padrão. Ela é multifacetada e, por isso, encantadora. De uma sociedade aprisionada em conceitos sexistas e machistas, a música soa como um grito.

“...Eu tava bem de boa fazendo a revolução Vandalizando banco e pichando o camburão O protesto aumentou e a mídia capturou Agora sou taxado de vândalo opressor...” Putinhas Aborteiras

Protesto este que não se limita à pauta feminista. As Putinhas Aborteiras têm uma música chamada Passa Livre, a primeira da banda e que trata das jornadas de junho, evento em que estavam presentes. Na época, elas se encontravam nas ruas de Porto Alegre, em eventos como o Largo Vivo ou reuniões do Bloco de Luta. Na Ocupação da Câmara, o grupo se chamava GT Feminista, e a parceria rendeu a organização de um grupo para falar daquilo que não viam ser pauta nos encontros: o feminismo. A rotina fortaleceu a amizade, da ausência de espaço para discussão, cantaram para serem lembradas. De forma orgânica criaram um novo grupo, nada de caso pensado, simplesmente aconteceu. Como o próprio nome do coletivo. De apelidos entre as integrantes em uma reunião, “putinha aborteira” foi o mais interessante e criativo. O grupo nasce de forma quase espontânea, fruto da participação em outros coletivos e da união de ideias que estavam dispersas.

“...Esses caras anarkocentricos Que te culpam por ficar pelada Não te pilha minha amiga Não fica heteronormativizada Gostam de meninas quietas Estilo bonequinha Não seja marionete Vem libertar a xoxótinha...” Putinhas Aborteiras

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Das apresentações, as Putinhas Aborteiras não haviam pensado na possibilidade de aparecer em uma emissora de tevê. Após algumas conversas, rolou o interesse de aproveitar o espaço disponibilizado na TVE. O Programa RADAR tinha a intenção de divulgar a marcha das vadias e entrevistar as Putinhas Aborteiras, logo depois cantariam suas músicas. No entanto, o programa, que é ao vivo, foi gravado para ser transmitido em outro horário. A justificativa era a proibição de falar a palavra “putinha” as 18h30 na TV aberta. Entre o programa aparecer censurado ou ir mais tarde, seria melhor adiar e evitar cortes. A TVE não é conhecida por uma grande audiência, e, quando o RADAR foi ao ar, às 2 da manhã, o público caiu mais da metade. No entanto, ao chegar na internet, começaram as manifestações. E de todas as tribos. A circulação do vídeo rendeu insultos na internet e na rua. Além de ameaças de morte. Nas semanas seguintes, as Putinhas eram reconhecidas na rua, o que era positivo e negativo. O coletivo comenta que o mais enriquecedor foi receber vídeos de bandas de meninas de colégio que apresentam versões das músicas e até o agradecimento de outros coletivos que creditavam nelas a coragem para fazer os seus. Exemplo é o Vadiô de Curitiba. O preocupante foi que as pessoas usaram do seu tempo para manifestações agressivas, com ameaças e xingamentos às integrantes. Não investiram o tempo olhando, lendo ou raciocinando sobre o que acabaram de assistir. A visibilidade trouxe o medo, mas também um pouco de segurança. Se algo acontecesse com alguma delas ficava claro que

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era perseguição. O diferente incomodou, mas gerou debate. E de toda essa confusão veio a fama. A ponto de um colunista da revista Veja comentar sobre o vídeo da música da TVE: “Falo um pouco sobre a, por assim dizer, “arte” das moças. Não tenho nem raiva nem asco. Tenho é pena! Sempre que a ignorância consegue ser assim tão evidente, tão escancarada, tão alvar, como não perguntar o que terá dado de errado no meio do caminho? De algum modo, elas são vítimas. Nem que seja da própria estupidez.” Reinaldo Azevedo O vídeo incomodou muita gente. Blogs machistas e colunistas de interesses duvidosos ficaram revoltadíssimos com “a falta de respeito das mulheres”. Argumentam que essas pessoas estão em um ciclo vicioso, pois não querem dialogar, estão dispostas apenas a falar mal e a agredir. São cegas e não dão ouvidos. E por esta razão as Putinhas Aborteiras têm a certeza de que estão no caminho certo. E confirmam em seu repertório musical que é necessário jogar tudo para o mundo ouvir. Para elas, o feminismo é mais uma luta contra uma opressão especifica dentro de tantas outras com que elas convivem. A música chamada “Desconstroi” exemplifica a contestação a essa visão patriarcalista e binarista da sociedade.

“...Desconstrói o binarismo Que te deixa enquadrado É a normatividade Que mantem o patriarcado Desconstrói o binarismo Que só gera opressão Se tiver a transfobia 2014/2

Não vai ter revolução DES – CONS - TRÓI Ou se é homem ou se é mulher No binarismo não há opção E quem escapa da norma Acaba sofrendo opressão Entenda que a diversidade Faz parte da experiência Não discrimine quem é diferente Não reproduza a violência...” Putinhas Aborteiras As questões de gênero não são só expressas por elas na música, mas em suas vidas em uma sociedade opressora. O grupo afirma que as músicas estão aÍ para desconstruir esse tipo de hábito. Falar de violência, estupro e lembrar que nascer homem não é bênção. A fama, no entanto, não terminou. Hoje, muitas pessoas podem não lembrar, mas o convite ao Morrostock, um festival de rock, trouxe a oportunidade das Putinhas Aborteiras tocar em um ambiente predominantemente de rock. Uma oportunidade de show que se não fosse o evento da TVE talvez não seria possível conseguir espaço para tocar.

“...Menina amanha de manhã Quando a gente acordar quero te dizer que a felicidade vai desabar sobre os homens vai desabar sobre os homens... “ Tom Zé Sextante

Da mesma forma que a banda Putinhas Aborteiras, a Orquestra de Mulheres não via seus interesses debatidos. Nos circuitos musicais, como o FESTIVALE, evento que ocorre no campus do Vale da UFRGS, em Porto alegre, existiam mulheres tocando, mas não estavam reunidas para tratar sobre Feminismo. Decidiram levantar a voz. A falta de divulgação de trabalhos que tratassem da opressão à mulher incomodava e deu forças para debater o tema. A partir disso, nasceu a ideia de uma banda exclusiva de mulheres. Da construção que se intensificou com os dias e encontros para tratar de música, vingou uma amizade. O grupo não era mais uma banda, mas sim uma família.

“...O que você aprendeu Desde a sua infância O que você aprendeu Com a sua militância O que você aprendeu Desde a sua infância O que você aprendeu Com a sua militância Eu tenho sede de saber...” Orquestra de Mulheres As influências do trabalho vão da música latina até álbuns brasileiros como Estudando o Pagode: na Opereta Segrega mulher e Amor, do Tom Zé. No começo havia seis integrantes e a vontade de serem ouvidas. Foi

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assim em 2012, ano de início dos primeiros covers e a ideia sempre de misturar não só ritmos, mas intervenções artísticas com malabares, teatro e leitura. Não deixaram de criticar o machismo com letras como “seu pinto não é o centro do mundo”, mas diferente do anarcofunk, o Orquestra investe em outros ritmos e musicalidades. A banda é uma oficina aberta com o destino voltado para a arte. As várias compositoras arriscam tocar outros instrumentos e experimentar novas melodias, trabalhando voz e estética. De instrumentos tradicionais como guitarra, violão e baixo até instrumentos de percussão. Toda essa dedicação não evita a falta de tempo para produzir em estúdio. Não entraram em processo de gravação, mas possuem dez músicas próprias. A ideia, por enquanto, é apresentar as músicas em shows. Os ensaios variam conforme a época, em temporada de shows o compromisso é semanal. Ensaio ou ensaio. Mesmo assim, não existe uma obrigatoriedade da presença para tocar. O grupo sempre encontra uma maneira de suprir eventuais desfalques, o que mostra um grupo fluido e de autogestão. A banda não possui cargos fixos e é aberta a quem está a fim de contribuir.

“...Ó garota, Eu contra ti já inventei os deuses, a lei, E pela carne do pecado te condenei Tô convencido que essa guerra suja Foi longe demais E te ofereço um acordo de paz. Assim será!...“ Tom Zé

A música é mais uma das estratégias que as integrantes do Orquestra de Mulheres e das Putinhas Aborteiras encontraram de militância. Acreditam que o feminismo é uma prática diária e estão sempre abertas ao debate. Com muita calma, explicam e elucidam qualquer questão e são pacientes para ensinar quem está disposto a evoluir, só não perdem tempo ouvindo a ignorância. Algumas são professoras e comentam que na individualidade não se constrói nada. Todo o conhecimento é fruto do trabalho coletivo. Como no poema “Tecendo a manhã” de João Cabral de Mello Neto.

“Um galo sozinho não tece uma manhã: ele precisará sempre de outros galos. De um que apanhe esse grito que ele e o lance a outro; de um outro galo que apanhe o grito de um galo antes e o lance a outro; e de outros galos que com muitos outros galos se cruzem os fios de sol de seus gritos de galo, para que a manhã, desde uma teia tênue, se vá tecendo, entre todos os galos.”

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É preciso ocupar os espaços e usar a voz para reivindicar. E essas mulheres seguem suas vidas fazendo esse trabalho, em meio a um mundo cheio de ódio. As Putinhas Aborteiras, a Orquestra de Mulheres e outras tantas que existem são subversivas nos seus dizeres para denunciar. Agressivas quando precisam responder à violência. A violência está naqueles que oprimem diariamente e que, a qualquer sinal de questionamento, partem para as violências física e verbal. Escrachos esses que também acontecem nos shows que terminam em discussões e brigas. Por isso, o medo se faz presente e é uma preocupação. Mas esse sentimento também transforma, ajuda a viver, a seguir em frente e a perceber o quão importante é tratar esse tema. Ser feliz é para quem tem coragem, e essas mulheres estão fazendo isso. Constrangendo os machões não de uma forma negativa, e sim ajudando-os a deixar o ódio de lado e a priorizar o amor.

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Ao despertar jĂĄ era outra por JĂŠssica Menzel e Jonas Lunardon

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Estava tão em êxtase que poucas lembranças restaram da viagem à Tailândia. Subiu às nove da manhã para o sexto andar e tomou café. Depois desse horário, nenhuma refeição pode ser feita. Já no quarto da clínica, sondas e aparelhos se integram ao corpo de Josi. Com os braços abertos, seus pulsos são amarrados. A enfermeira põe a máscara de oxigênio, e o anestesista pergunta “what’s your name?”. Não teve tempo de responder. 72

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A cirurgia durou em torno de sete horas. “Quando acordei, não sentia nada embaixo, só na cabeça”, lembra. Josi acabava de realizar seu maior sonho: a redesignação sexual (popularmente conhecida como troca de sexo). As dores na cabeça vinham da operação de feminilização facial, que decidiu fazer de última hora quando o médico lhe mostrou algumas diferenças em crânios masculinos e femininos.

sa: “Fiquei bem, mas ao mesmo tempo chocada”. A neovagina – termo utilizado nos livros de medicina - ainda está inchada e dói muito. Na vagina – o termo que Josi usa - os pontos são internos, não há nenhuma cicatriz.

Foi Dora, uma alemã de Berlin, que, em 1930, realizou de forma oficial a primeira operação para transformar o pênis em vagina. O médico responsável foi Magnus Herschfield, “Morfina, por favor. Acordava e a operação, bem sucedida de madrugada e, please, morfi– apesar de outras prévias mal na!”, relembra. Era difícil suportar documentadas e posteriores a dor inicial de transformar o pró- com registros de grandes comprio corpo. O pós-operatório são plicações. Mais de 80 anos de seis dias na cama do hospital, uma história escondida. Mais do imóvel, com as janelas fechadas que uma cirurgia, a questão da para que a luz do sol não marque transexualidade tem sua narratios pontos no rosto. As enfermei- va própria, dificilmente encontraras entram, trocam a sonda, dão da nos manuais da História da comida, banho, e assim as horas civilização. passam. Seis dias com um corpo Oito brasileiras estavam na transformado, sem saber o que a Tailândia para realizar a mesma imagem do espelho reflete. cirurgia. Uma delas, de 53 anos, No quarto dia já não aguenta, é Paula, arquiteta em São Paulo, está em um país desconhecido, riquíssima. Assumiu-se transexusem família e amigos. “Foi ali que al e resolveu fazer a operação. eu comecei a pensar sobre diversas “Por isso que eu digo: nunca é coisas. Muitas pessoas vão dizer tarde para ser feliz”, compartilha que o que eu estou fazendo é erra- Josi. Outra fazia parte de um cado. As pessoas precisam entender sal de transexuais. Sua compaque para viver tem que ter diversida- nheira, que já havia feito antes a de, não só de sexo, mas de cores, operação, viajou junto. As duas de gosto, de tudo”, reconstrói. realizariam aquilo que entendem ser necessário para completarÉ hora de descer. Os médicos se, e assim, ficarem juntas amofazem testes para ver se é posrosamente. Apesar da tirania sível retirar a sonda. E Josi está dos discursos moralizantes, Josi pronta para ir ao quinto andar afirma outro dos aprendizados e descansar em uma suíte. Os da jornada: “Esse mundo é um movimentos têm de ser calculalugar de diversidade”. dos nesse estágio da recuperação- as caminhadas precisam No Brasil, a rotina de traser lentas. Se andar demais, a balho no salão de beleza não uretra pode inchar, impossibilimuda, mas Josi dá sequência tando a saída da urina. aos procedimentos de recuperação. Limpezas diárias com Quando se percebe, já não é cotonetes molhados no soro mais a mesma. Tirar os curatifazem parte do processo de vos é tanto alívio quanto surpre2014/2

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cicatrização da vagina. Um mês e meio depois da operação, as percepções já são outras: “Eu acho que teria vergonha de mostrar se tivesse dado errado, se tivesse ficado feio. Mas é uma vagina 100%, já tenho sensação e vontades. Nunca tive sonhos eróticos antes. Depois da cirurgia comecei a ter. Eu sinto que eu estou transando, eu sinto que estou tendo orgasmo, tudo”. A cirurgia redesenha, estabelece outras possibilidades do corpo para que as vontades do que se deseja possam ser cumpridas. O processo vai para além das mesas de cirurgia, dilatadores de cerâmica fazem parte dos exercícios pós-cirúrgicos. Para Josi, o processo é fazer-se, fisicamente, mulher. Atos cuidadosos são necessários para que a vagina transformada possa ser bem utilizada. Tanto para o prazer sexual quanto para o funcionamento dos canais urinários. É necessário pôr os objetos dentro do órgão, ajeitá-los; uma atividade fisioterapêutica. “Eles te dão vários vibradores de cerâmica, e tem que ser desse material para entrar e ficar parado na mesma posição. Tu começa usando o zero, depois o um, o dois, o três, o quatro. Não aumenta o comprimento, mas aumenta a espessura, porque tu tem que ir trabalhando o músculo pra não fechar o canal. É a parte mais cruel. Mas também não é uma coisa para o resto da vida, é temporária. Até três meses”, conta. Os últimos ajustes são com o sexo. Ainda tabu de se falar sobre, é transando que Josi finalizará o processo. São recomendações médicas: “Depois, é para treinar transando. Mandar ver”.

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Fotos: Jéssica Menzel

Mesmo com as dores e dificuldades, a vontade de Josi foi completamente suprida. “Eles são perfeitos”, afirma. “Seria mais fácil se eu tivesse ido com alguém daqui, amigos, amigas. Teria passado mais rápido. Parece que os dias não passam, mas ao mesmo tempo em que não passam, servem para alguma coisa: reflexão”. Muito mais do que um órgão genital, para ela, parece que todo um futuro é redesenhado. “A coisa mais estranha é que, desde

que eu cheguei, parece que as pessoas me olham diferente. Parece que já sabem. E eu me sinto mais confiante, porque vão falar o quê? Qualquer coisa, eu fico pelada e mostro. A confiança que eu tô é 100%. Essa é a diferença”, conta. O processo ainda não terminou, mas falta pouco para Josi finalmente realizar seus desejos. Se antes se sabia mulher em um corpo que não sentia como seu, agora, a sensação é mais do que se sentir fisicamente, é ter

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e dar prazer como sempre quis, é ficar nua como sempre quis: “Eu sempre falava que era realizada em tudo, menos no plano sexual. Então não adiantava eu continuar do jeito que tava”. Antes de embarcar, não sentia medo algum. Lembrava que estava de frente com o que sonhou uma vida inteira. Pensava na maioria das pessoas, felizes do nascimento à morte, dentro da moral e dos bons costumes, e se perguntava: “Imagina tu começar realmente a ser feliz na metade da vida?”

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Trabalhadoras uni-vas! por Manoella van Meegen

Lenira Campos e Isis Garcia são companheiras de luta no movimento sindical de Porto Alegre. A primeira é bancária, membro do Sindicato dos Bancários e dirigente da Federação dos Trabalhadores e Trabalhadoras em Instituições Financeiras do RS (FETRAFI-RS), e a segunda, metalúrgica e dirigente do Sindicato dos Metalúrgicos. Apesar de terem trajetórias de vida distintas, as duas se unem pelos mesmos ideais: a conquista por mais espaço para as mulheres e por condições igualitárias no movimento trabalhista.

da História - elementos de uma cultura autoritária e excludente se salientam. Foi assim no interior da família patriarcal do período colonial, e permanece ainda assim em muitas famílias brasileiras. O que se reproduz nos espaços da sociedade de modo geral acaba afetando também os movimentos sindical e social.

Os dados sobre a participação feminina no movimento sindical comprovam que as mulheres ainda têm uma presença sindical inferior à sua inserção no mercado de trabalho. Os dados do Anuário dos Trabalhadores 2009 do Departamento Intersindical Uma inserção suprimida de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese) confirA partir da redemocratização mam essa divisão do trabalho e a no Brasil, houve grande aumendisparidade da participação políto na inserção de mulheres no tica entre homens e mulheres - a mercado de trabalho, mas as pesquisa expõe o percentual dos questões envolvendo assédio e trabalhadores sindicalizados por as demandas de igualdade de gênero nunca saíram de pauta. As setor da economia e sexo, sendo origens da desigualdade nas rela- os homens maioria na agricultura (60,7%), na indústria (73,9%), na ções de gênero estão nas raízes 2014/2

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construção (93,7%), no comércio e reparação (58,6%), no transporte, armazenagem e comunicação (85,5%) e na Administração Pública (60,6%); as mulheres são maioria apenas na educação, saúde e serviços sociais (77,6%) e nos serviços domésticos (86,7%). No emprego, os assédios sexual e moral no ambiente de trabalho se intensificam. E, de forma generalizada, são notáveis os obstáculos para conciliar o trabalho com as responsabilidades com a família e a casa, devido à permanência da divisão desigual entre os gêneros. As mulheres sofrem mais do que os homens com o estresse de uma carreira, pois as pressões do trabalho fora de casa se duplicam. O fato de estar dentro do ambiente de trabalho e ver que sua organização não favorecia os trabalhadores - em especial as trabalhadoras - levou Isis para a vida sindical, em 1997. Segundo ela, criou-se um clima de competição

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mundo contemporâneo pela igualdade de direitos nas relações de gênero -, essa presença ainda é frágil num universo dominado pelos homens. “Os homens ficam dizendo que as mulheres do movimento sindical são tudo putas, porque viajam para lá e para cá. Por isso, entre outros motivos, existe essa certa relutância das mulheres para entrar no movimento”, relata Isis. Segundo ela, a mudança desse cenário tem que partir do viés de uma formação feminista: “É isso que a gente tem que trabalhar, é fazer com que as próprias mulheres entendam que a situação que elas têm hoje não foi por escolha, foi por imposição. Nós também trabalhamos a partir do viés do compartilhamento com os companheiros homens. Nós A vivência nesse ambiente desisabemos que os dois fazem parte gual levou a sindicalista a assumir dessa sociedade, só que a nosrecentemente outra responsabilisa sobrecarga é sempre muito dade além da militância pela cagrande”, pondera, acrescentando tegoria dos bancários: o cargo de que a mulher, muitas vezes, não Secretária de Mulheres da Central se enxerga como feminista. “Ser Única dos Trabalhadores do Rio feminista é entender que o nosso Grande do Sul (CUT-RS). “A CUT espaço não é o devido, que o fefoi uma sequência. Tu vais conheminismo é o ato que a gente tem cendo outras pessoas e vê que o de se indignar com os espaços problema é o mesmo em todos os que nos foram impostos, como a lugares. Eu gosto do trabalho na maternidade e o direito reproduSecretaria Estadual das Mulheres tivo, por exemplo”. Segundo ela, porque lidamos com essas quesa divisão sexual é extremamente tões mais pontuais do nosso visível em todos os ambientes de papel nos ambientes de trabalho, trabalho, e o papel da Secretaria do espaço que nós já deveríamos de Mulheres é tentar reverter esse estar ocupando, e que não ocuquadro. “O meu objetivo enquanpamos por quê?”, questiona. “Na to Secretária de Mulheres é que Secretaria de Mulheres tu vê que as mulheres entendam que todas os problemas das trabalhadoras somos feministas, entendam que são os mesmos em qualquer o que está colocado não serve lugar, não interessa a categoria. pra todas nós, e as que não estão E que nós, unidas, de qualquer contentes têm o direito de tentar forma vamos fazer a diferença”, modificar”, explica. complementa Lenira. A cota de participação política Apesar do avanço da participano interior do movimento sindical ção das mulheres no movimento começou a ser discutida e adosindical brasileiro - resultado de tada pelas centrais sindicais nas um movimento mais amplo no últimas décadas. A cota mínima ao invés do companheirismo e compartilhamento que a corporação trabalhista deveria possuir. “A organização do trabalho é perversa. Nos bancos é ainda mais gritante porque nós somos considerados colaboradores. Esse é o viés do sistema neoliberal, que diz que nós temos que competir, como se a vida fosse um torneio”, diz. No que concerne às questões específicas das trabalhadoras, Isis ainda recorda de situações de assédio da época em que começou a trabalhar no banco, há 20 anos - a existência de um concurso de “miss”, que selecionava as mulheres “mais bonitas do banco”, e o dia em que o seu então chefe proferiu a frase “vou te contratar só por causa dos teus peitinhos, que são lindos”.

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de gênero na Central Única dos Trabalhadores (CUT) foi aprovada em 1993, em um congresso criado pela Secretaria Nacional sobre a Mulher Trabalhadora, na Força Sindical. No entanto, pesquisas demostram que a participação da mulher ainda é baixa. Assim como em outras esferas do espaço público, nas relações sindicais também ocorreram práticas discriminatórias. Apesar do aumento da participação feminina, os principais cargos de direção ainda são exercidos por homens e, mesmo integrando algumas diretorias, as mulheres nem sempre têm voz - quando ocupam esses cargos, o posto de trabalho tende a ser menos valorizado . Os índices de mulheres que ocupam os cargos de “poder, mando e decisão” dentro dos sindicatos ainda são muito pequenos. Nas diretorias das Centrais Sindicais, em 2009, era de 21,18%, segundo dados do Dieese. “Hoje a mulher tem que ter aproximadamente cinco vezes mais qualificação do que o homem para ocupar o mesmo cargo. A divisão sexual do trabalho é evidente nesses espaços”, afirma a bancária Isis. Além disso, existem as discriminações diretas e indiretas, como o estabelecimento de critérios para contratação que eliminam mulheres casadas e com filhos. O acesso e a permanência no emprego continuam vinculados a comprovação de não gravidez, limite de idade, experiência profissional e, em alguns casos, à religião, nacionalidade e etnia. Lenira trabalha no ramo da metalurgia há 20 anos. Por ser um ambiente estritamente masculino, são muitas as dificuldades que as trabalhadoras enfrentam diariamente - as situações de assédio são constantes. “Nós estamos sempre brigando para sobreviver no meio deles. Tem que mostrar

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que tu é profissional, competente. Às vezes, tu é melhor que eles e não é vista como tal, então tu tens que estar sempre acima, para conseguir se destacar ou no mínimo se manter nesse meio”, relata. Para a metalúrgica, a desigualdade salarial ainda é um dos obstáculos mais urgentes. “Quando os homens te ensinam a trabalhar na fábrica, eles não querem te pagar corretamente. Eles ganham bem melhor. O meu salário é menor mesmo fazendo a mesma função”, desabafa.

tu sente que eles não estão nem aí, que o teu assunto é secundário”, salienta. “As vezes nos dá a impressão de que nós estamos falando grego com os homens. Por que isso? Porque está estabelecido um sistema patriarcal, em que os homens permanecem no comando, eles que têm a fala, e as mulheres por opressão acabam deixando. Nós somos muito solidárias com os homens, mas temos que ter coragem para nos impor mais”, acrescenta Isis.

Para reivindicar essa e outras questões, Lenira entrou para o movimento sindical há cerca de 11 anos. “Eu descobri que esse era o lugar certo para fazer coisas pela maioria ou pelas mulheres, porque é bem difícil. As mulheres agora que estão começando a enxergar o seu valor e lutando por isso, mas ainda existem muitas dificuldades, assédio moral, nas empresas e em todos os lugares”, relata. Mesmo dentro do sindicato, ela conta que ainda existem dificuldades na inserção feminina. “O espaço das mulheres dentro dos sindicatos ainda é bem complicado porque os homens não te dão oportunidade. Nós sentimos que existe o machismo. Nós vemos nas reuniões dos sindicatos que, quando nós vamos falar algo, os homens ficam mexendo no celular ou algo do tipo. Nós vemos que isso é um desinteresse no assunto. Parece que os assunto das mulheres não é muito importante,

Casada há 30 anos, Lenira tem duas filhas mulheres - uma de 28 e outra de 13. Segundo a sindicalista, a “dupla jornada” de mãe, trabalhadora e militante sindical é uma das principais causas para as mulheres hesitarem entrar para o sindicalismo. “É bem difícil trazer as mulheres para dentro do sindicato porque a mulher tem trabalho, tem a casa, tem os filhos. Primeiro tem que conscientizar as mulheres de que isso é importante, fazer com que elas enxerguem. Se elas querem ser uma liderança no sindicato, têm que ser dentro da empresa também”, destaca. A dupla jornada de Lenira inicia cedo - todas as manhãs, acorda às 4h para distribuir materiais do sindicato na porta das empresas. “Tem gente que comenta ‘que mordomia ficar no sindicato’. Mas não tem mordomia nenhuma. A gente tem muito trabalho no sindicato e ainda assim eu trabalho na empresa também. Só a gente sabe da vida que leva”, su-

Foto: Divulgação CUT-RS

blinha. Segundo Lenira, a vida de múltiplas viagens e compromissos nunca agradou o marido. “Uma vez meu marido chegou para mim e disse: ‘eu não te reconheço mais, tu não é mais a mesma’. E realmente eu não sou mais a mesma. Meu marido não tem essa visão, ele não acha que eu mudei para melhor. Eu acho que os homens não aceitam numa boa essa vida. Mas eu não sinto saudade daquela mulher que eu era”, revela. Para Isis e Lenira, a democratização das relações sindicais no Brasil é, sim, possível - para isso, a mudança deve começar a partir da inclusão de discussões sobre o tema em todas as entidades sindicais e da incorporação das demandas de equidade de gênero. “Esse é o nosso pensamento. Devagar ir mudando o mundo de alguma forma, fazer com que as mulheres sejam vistas não como um ser inferior, mas como um ser humano como todo mundo. Achar que as mulheres são menos que os homens, que devem ganhar menos, isso tem que acabar. As mulheres sofrem violências de todos tipos, e eu acho que é por isso que a gente tem que lutar, por igualdade de gênero para que todos consigam conviver numa sociedade justa, sem desigualdades”, afirma Lenira. “O meu trabalho é lidar com as pessoas, com as mulheres, para nós entendermos e chegarmos num senso comum do que nós que nós queremos transformar na sociedade; e com pequenas transformações é que nós vamos ter um resultado melhor do que esse cenário que tem aí” conclui Isis. Isis (E) e Lenira (D) em reunião da Secretaria das Mulheres da CUT-RS. A Secretaria é encarregada de elaborar, coordenar e desenvolver políticas no interior da CUT para a promoção das mulheres trabalhadoras, na perspectiva das relações sociais de gênero, raça e classe, subsidiando as entidades filiadas.

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o lugar da mulher na politica por Luana Casagranda e Nádia Alibio

Fernanda Melchionna começou sua vida na política no Grêmio estudantil de sua escola em Alegrete. Ao entrar na UFRGS, no curso de Biblioteconomia, também entra na luta política na universidade. Hoje é vereadora pelo PSOL na Câmara Municipal de Porto Alegre. Uma das lutas defendidas por Fernanda é o empoderamento das mulheres na sociedade.

roupas que as mulheres deviam usar, porque os vereadores ficaram chocados porque eu usava babylook dos movimentos sociais - e eu vou usar pra sempre.

desiguais como iguais é uma forma de reproduzir preconceitos. E também não basta ser mulher, é preciso estar do lado certo.

- De que adianta ter uma mulher que ataca os professores, que é conservadora pra entender a autonomia da mulher com seu próprio corpo? O aborto é tratado como um tabu, mas ele existe sim e é a quarta maior causa de mortalidade das mulheres. Nenhuma mulher que - São duas coisas diferentes: faz o aborto defende o aborto porque embora as mulheres no sentido de que todo mundo sejam maioria nos movimentos faça, mas é uma conjunção de comunitários, a maioria das lidecircunstâncias que faz com que ranças de bairro, tu vai encontrar isso aconteça e tem que ser mulheres que muitas vezes por tratado como uma questão de - Então eu vejo que essa quescausa do próprio machismo da saúde pública e de direito da sociedade, de uma cultura de que tão da minoria é parlamentar, mulher com o próprio corpo. não social. Isso é importante pra as mulheres precisam estar no - Nós temos um avanço em espaço privado, e não no espaço pensar quais são os elementos termos a Dilma como presidenta que fazem a mulher ser minoria público, não são são as protagono sentido da consicência geral nistas. Não são as figuras públicas nos parlamentos. São as taredo povo. Mas, por outro lado, por uma série de conjunções que fas domésticas ainda serem é uma mulher que segue destidas como femininas? Talvez. A a gente sempre tenta romper. tinando muito mais verba para ausência das creches públicas - Na representação política garantir os direitos de banqueipara poder se envolver mais na parlamentar nós somos minoria. ros e menos de 1% para polítipolítica e ao mesmo tempo ter Então, o espaço é muito macas de combate à violência cona garantia de que os filhos vão chista, no sentido de que muitas tra a mulher, como a Lei Maria ser bem cuidados? Talvez. A vezes tu tem que te afirmar muito da Penha. Empoderar as mulhequestão dos caciquismos nos pra ser respeitada. Eu tenho uma partidos políticos da ordem, que res é uma luta permanente. experiência pessoal combinanão tem uma formação política - Os investimentos para as da de ser a mulher mais jovem de mulheres para além do curso políticas para as mulheres ainda combativa socialista, então tu de batom? Talvez. são pífios. Nós vivemos num imagina como foi meu primeiro país que a cada 15 segundos - Nós estamos discutindo ano de mandato. Foi uma luta garantir que houvesse o mínimo política entre as mulheres e não uma mulher é agredida. Isso só reproduzindo esteriótipos femini- vai ser combativo com uma pode respeito e que ouvissem as lítica efetiva, que tem a ver com lutas em que nós travávamos na nos. Nós temos uma política de que 50% das direções do partido delegacias para a mulher. Hoje câmara. Claro, tem a ver com a nós temos menos de 20 cidades tua própria postura também, por tem que ser mulheres, porque com delegacias especializadas achamos que as cotas são uma exemplo, chegaram a fazer um projeto de lei que queria dizer as política importante, porque tratar num estado de 495 cidades. - A resposta altiva que a gente deu, denunciando isso na tribuna fez com que eles tivessem que engavetar o projeto, porque nós não podemos aceitar a ideia de masculinizar a representação feminina, mas, mais do que isso, nós não podemos aceitar a ideia de que a política tem que ser feita por pessoas estranhas à classe trabalhadora, que o cara tem que se vestir como um engravatado pra poder fazer política.

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Yane durantes as competições de esgrima nos Jogos de Londres, 2012.

Foto: Acervo Pessoal Alexandre França

Entrevista com Yane Marques E a medalha inédita do pentatlo brasileiro

por Filipe Strazzer Santiago Cada vez mais a atleta brasileira vem se destacando no cenário esportivo mundial. Somente na última Olimpíada, a de Londres, em 2012, as mulheres brasileiras foram responsáveis por dois dos nossos três ouros, e tivemos destaques, por exemplo, no judô, com duas medalhas e o bi-olímpico das meninas do vôlei. Um esporte pouco conhecido pelos brasileiros, porém, nos trouxe uma medalha inédita: o bronze no Pentatlo Moderno, com a pernambucana Yane Marques. Para Yane, subir no pódio não é novidade. Além do bronze em Londres, ela é medalhista estadual, nacional, sul-americana, pan-americana, do campeão dos campeões, da Copa do Mundo e do Mundial. A medalha de Yane Márcia Campos da Fonseca Marques em Londres é histórica, no entanto, porque esta é a primeira medalha olímpica brasileira – e de todo o Hemisfério Sul – no Pentatlo Moderno na História, conside-

rando homens e mulheres. Do Recife, onde treina, Yane nos falou por e-mail um pouco sobre carreira, Pentatlo Moderno e expectativas para a Rio 2016.

Devido ao grande preparo e a aptidão para variadas modalidades, Aristóteles definiu os pentatletas como “os desportistas mais perfeitos, pois no seu corpo a força e a velocidade combinam-se numa bela harmonia.”

Filipe: Yane, como o Pentatlo Moderno surgiu para você? Como foi a adaptação para tantas modalidades de uma só vez?

O Pentatlo surgiu na Grécia Antiga, fazendo parte das Olimpíadas antigas a partir de 708 a.C, e tinha como modalidades o lançamento de disco e do dardo ou lança, o salto em distância, a corrida e o pancrácio, uma espécie de luta livre. Era considerado um dos esportes de maior destaque na época. (com informações da Federação Portuguesa de Pentatlo Moderno)

Yane: Em 2003, o cel. Alexandre França [treinador de Yane] fundou a federação de pentatlo aqui em Recife e convidou atletas a partir de um biatlo (natação e corrida). Eu estava entre esses atletas, e fomos convidados a passar por um período de adaptação e de conhecimento de fato. Comecei e não parei mais.

O atual Pentatlo Moderno foi introduzido nos Jogos Olímpicos de Estocolmo, na Suécia, em 1912, por vontade do Barão de Coubertin, o idealizador das Olimpíadas modernas. O esporte atualmente reúne a natação, o hipismo, a esgrima, a corrida e o tiro.

A adaptação foi desafiadora. Eu só sabia nadar e inseri quatro coisas novas na minha rotina. Essa variabilidade de esforços e de valências exigidas é a magia desse esporte. Torna interinamente menos rotineiro se comparado a uma natação, por exemplo. Então, eu acredito que a adaptação foi relativamente tranquila.

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Foto: Acervo Pessoal Alexandre França

O Pentatlo Moderno é disputado pelos homens desde as Olimpíadas desde 1912. As mulheres, porém, só tiveram sua estreia em Sydney, no ano 2000. Desde lá, foram quatro vencedoras diferentes: Stephanie Cook, da Grã-Bretanha; Zsuzsanna Vörös, da Hungria; Lena Schöneborn, da Alemanha; e Laura Asadauskait, da Lituânia. No quadro geral, somando-se homens e mulheres, a Suécia e a Hungria estão na frente com nove medalgas de ouros cada. Nas competições em Londres, Yane Marques ficou em sexto lugar na esgrima e na natação, o que a levou ao segundo lugar geral. Na terceira prova, o hipismo, a brasileira ficou em nono e empatou em primeiro lugar com a lituana Laura Asadauskait, primeira do ranking mundial na época. Na última prova, o combinado de corrida e tiro, Yane assegurou o bronze.

Yane e a medalha conquistada nas Olimpíadas de Londres. Foto na Cerimônia de Encerramento dos Jogos.

F: Como você divide sua rotina de treinamento entre as modalidades? Y: Eu treino normalmente três modalidades por dia, mais a musculação, o pilates, a fisioterapia e a psicóloga. São normalmente cinco ou seis horas de treino diariamente. F: Como é a estrutura para se praticar o Pentatlo Moderno no Brasil em comparação a outros países com mais tradição, como a Rússia, a Hungria e a Polônia? O que fazer para melhorar e atrair mais pessoas ao esporte? Y: Hoje dispomos de uma estrutura muito boa. Eu, particularmente, montei minha equipe de fisioterapeutas, psicólogo, nutricionista e personal trainer na tentativa de otimizar os treinos, e tive total apoio por parte do cel. França e do COB [Comitê Olímpico Brasileiro]. Em alguns países essa estrutura é melhor e em outros é pior. Estamos hoje numa situação boa.

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Para atrair mais atletas eu confesso que até imagino algumas ações que poderiam ser feitas, mas não compete a mim intervir nesse mérito. Vivo torcendo por projetos de iniciação e renovação no esporte. F: O que mudou na sua vida e na sua carreira depois da conquista do bronze em Londres? Y: Consegui a bolsa-pódio, mas não mudou muita coisa. Permaneço com o apoio do COB, Exército e governo federal. Mas depois da medalha, os olhos passaram a se voltar para nós de forma mais reconhecedora de um bom trabalho. F: O que representou a conquista de 2012 para o Pentatlo Moderno braileiro? Você viu alguma melhora na visibilidade, no interesse das pessoas e no patrocínio para o esporte? Y: Visibilidade sim e conhecimento também. No aspecto recurso financeiro, acredito que chegou um bom valor

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para a Confederação administrar como achar conveniente. Pessoalmente, nenhum patrocínio de empresa privada. F: Qual foi sua maior dificuldade na carreira? E como você superou? Y: Não consigo pontuar qual foi exatamente a maior dificuldade na minha carreira. Isso é muito amplo se pensarmos que pode ser algo no aspecto técnico, físico ou pessoal mesmo. As dificuldades vão surgindo e eu tentando sanar da melhor forma possível. F: As mulheres do Pentatlo Moderno só passaram a disputar as Olimpíadas a partir de Sydney, em 2000. Há alguma diferença na prática do esporte entre homens e mulheres? Há também alguma diferença nos patrocínios e visibilidade para os homens e para as mulheres no pentatlo mundial? Y: Viabilidade e patrocínio, hoje eu acredito que estamos em igualdade de condições. Se falarmos na parte técnica da prova, a diferença está na capacidade dos homens serem mais ágeis e mais fortes. Fisiologicamente explicável. Mas, em relação as regras, não há diferença. F: Há muitas mulheres praticando pentatlo no Brasil?

Rio, em 2016? Como você está se preparando?

No Pentatlo Moderno, o vencedor é aquele que obtém o melhor desempenho na somatória dos pontos, sendo considerado o “atleta mais completo”. Na esgrima, os pentatletas se enfrentam entre si numa série de duelos com a espada. Todos enfrentam todos. Cada combate dura um minuto ou o tempo necessário para que o adversário seja atingido. Na natação, os atletas nadam 200 metros livre contra o relógio, importando somente o tempo. Quanto mais rápido, mais pontos receberá. Já no hipismo, montando em um cavalo desconhecido, o cavaleiro deve percorrer um trajeto de 350 a 450 metros, com 12 obstáculos. O percurso menor deve ser concluído em um minuto e o maior em 1min17s. Na última prova o evento combinado de corrida e tiro a laser, os pentatletas devem percorrer um percurso de 3.200 metros. A largada segue a ordem da classificação após as três provas anteriores, e logo após a saída, os competidores dão a primeira parada para o tiro, tendo que atingir cinco vezes o alvo. Depois, a cada 800 metros percorridos, fará novamente os disparos, até completar quatro séries. Os atletas atiram na posição de pé, com apenas uma das mãos, sem qualquer auxílio ou apoio. (informações da Confederação Brasileira de Pentatlo Moderno)

Y: Eu estou numa linha de preparação com foco ainda no Pan de 2015. Caso eu consiga a vaga nesse evento, aí, sim, o planejamento será cem por cento focado nos Jogos Olímpicos. Antes de preparar para as Olimpíadas, preciso me classificar, não é verdade? O Brasil terá representação em ambos os gêneros por ser o país sede. Isso é excelente para o esporte nacional. Torço para que eu esteja na ocasião e que possamos muito bem representar o país. F: Você provavelmente já realizou muitos sonhos no esporte. Quais são e o que ainda falta realizar? Y: Estou quase plenamente realizada. Fui além do meu sonho. Mas nós atletas vivemos em constante renovação de objetivos. Agora eu quero chegar bem no Rio e fazer bonito em casa. Através do esporte também consegui dar uma condição melhor de vida pra minha mãe e minha família. Então, não tenho mais o que realizar. Já tenho medalhas em todas as provas. Só preciso agora agradecer a Deus e pronto!

Y: Sim. Ainda um pouco menos que os homens. Assim como no mundo inteiro, aos poucos as mulheres estão sendo mais adeptas ao esporte e naturalmente o número de mulheres atletas tende a ser muito próximo ao número de homens. F: Agora que estamos no meio do caminho, como você vê a preparação do pentatlo do Brasil para as Olimpíadas do 2014/2

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Ser prostituta Histórias de vida e de lutas

por Júlia Burg

Foto: Júlia Burg

Galeria Malcon, nº 1560, Rua dos Andradas. No 6º andar do antigo edifício localizado no coração do Centro de Porto Alegre, há um espaço com um histórico de luta por direitos e cidadania: é o Núcleo de Estudos da Prostituição (NEP), associação mantida por prostitutas há 25 anos.

Sônia, 49 anos, prostituta há 33 Era início da década de 1980 quando a história de Sônia começou a tomar os contornos do que viria a se tornar. Na época, a então adolescente tinha 16 anos e já havia sido solta no mundo. Com a rejeição de sua mãe, Sônia passou a infância “rolando” na casa de parentes, como ela mesma diz. Viveu em Santa Maria, em São Pedro do Sul, em Tramandaí; na casa da madrinha, de tios, em um colégio interno de freiras. Foram muitas as mudanças. Naquele ano de 1980, talvez 1981 – a data é imprecisa –, Sônia recém havia se mudado para uma pensão no centro de Sônia é uma das fundadoras Porto Alegre, onde morava com uma prima. Certa noite, meio do NEP. Entre uma xícara de café e outra, em meio a seu tra- que por acaso, foi parar em um balho de rotina na associação, é bailão na Avenida Farrapos com ela quem me conta sua história a prima e algumas amigas – a ideia inicial era ir a uma discotede vida e de prostituição. ca, mas o grupo mudou de ideia

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fui acostumando, né. Mas pra mim foi horrível”.

Sônia também virou mulher de Mimoso. Não com exclusividade: dividia o posto com outra menina, Renata, que há três anos já morava com Mimoso e trabalhava para ele. Constituiuse assim uma relação de família e negócio. Outras mulheres passavam por Mimoso, mas estas não eram fixas – chamavam-nas Sem saber a real atividade de de “boias”. Serviam somente Mimoso, que dizia trabalhar com para render dinheiro a Mimoso contabilidade, passaram-se cerpor um tempo. Mais tarde, viria ca de seis meses. Sônia conta a agregar-se à família uma nova que não se sentia apaixonada, companheira, que rivalizaria mas o charme e a segurança com as outras duas. financeira que aquele homem Sônia conta que a quantidaoferecia lhe conquistavam – ele a levava em bons restaurantes, de de programas que tinha de fazer por dia era grande. Para enchia-lhe de presentes e até mesmo pagava sua conta atra- que pudesse descansar no dosada na pensão. Seduzida pelo mingo, por exemplo, recebia de 30 a 35 clientes no sábado. O dinheiro e pela vida que nunca programa durava algo em torno tivera, Sônia aceitou ir morar de dez minutos e custava cerca com o namorado em sua casa de vinte reais. O sexo era com no bairro Ipanema. Mas havia roupa, para facilitar o trabalho uma condição: a jovem teria – só tinha de levantar a saia e que ajudá-lo em seu serviço. retirar a calcinha. Do que ganhaMimoso então levou Sônia até va, nada ficava em suas mãos; a Rua Voluntários da Pátria e, mostrando as prostitutas que ali todo o dinheiro era repassado batiam ponto, revelou seu traba- a Mimoso. Dinheiro que, no fim, lhe rendia um bom padrão de lho. Apresentava-se o cafetão. vida: tinha casa, roupas, carro. Nunca havia lhe passado pela Nada lhe faltava. cabeça se prostituir. Seu sonho era fazer faculdade – algo na área da computação, que, segundo ela, na época tinha outro nome. No entanto, não havia muitas opções. Seus vínculos familiares eram extremamente fracos; o estudo, ela parara na 7ª série. Sônia acabou cedendo e fez-se uma prostituta. “Ele era muito bonito, sempre se vestia muito bem... Como um cafetão, né? Bem arrumado, bem cheiroso. Ele tinha um (carro) Maverick do ano, uma moto CB 400. E eu pensei: ‘Tirei a sorte grande’. Que nada, minha filha, foi uma furada”, relembra.

O NEP O Núcleo de Estudos da Prostituição (NEP) é uma organização não governamental que atua junto a mulheres prostitutas desde 1989. O trabalho da ONG consiste em promover os direitos humanos, a autoestima e a prevenção de doenças sexualmente transmissíveis dentro deste grupo. Desde sua fundação, o NEP vem desenvolvendo inúmeros projetos em parceria, voltados principalmente à saúde da mulher prostituta. As atividades permanentes da ONG são: reuniões com prostitutas, onde se discute estigma, discriminação e violência contra a mulher prostituta; oficinas temáticas sobre saúde da mulher, prevenção de DST’s e direitos humanos e cidadania; intervenções face a face em territórios de prostituição públicos e privados; serviço de aconselhamento jurídico e psicológico; e plantão permanente de atendimento e repasse de preservativos. O NEP ainda desenvolve políticas públicas e parcerias com o SUS, promove programas de treinamento para formação de multiplicadores de informação e de capacitação para outras instituições e grupos e tem representação em conselhos e comissões de saúde e direitos humanos.

Foto: Acervo Pessoal/NEP

no meio do caminho. Ironia do destino. Lá conheceu o homem que mudaria sua vida: Mimoso.

“Eu não sabia fazer como as gurias faziam, que chamavam e agarravam os caras. Eles é que me levavam pro quarto”, conta, rindo. “Depois 2014/2

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Aspectos legais da prostituição no Brasil Em 2002, o Ministério do Trabalho reconheceu a prostituição como ocupação regular, incluindo-a na Classificação Brasileira de Ocupações (CBO). Isso significa que quem pratica a prostituição têm direitos como salário-maternidade, auxílio-doença e aposentadoria assegurados, todos mediante contribuição de 20% sobre a renda. Tramita na Câmara Federal desde 2012 a PL nº 4211/2012, do deputado Jean Wyllys, que visa regulamentar a prostituição. Entre as propostas do projeto de lei estão a exigência legal de pagamento pela prestação de serviços sexuais, a legalização das casas de prostituição e a aposentadoria especial de 25 anos para os profissionais do sexo. A PL ainda estabelece a idade mínima de 18 anos para a prestação de serviços sexuais e considera crime a exploração sexual. De acordo com o art. 2, são espécies de exploração sexual “a apropriação total ou maior que 50% do rendimento de prestação de serviço sexual por terceiro”, “o não pagamento pelo serviço sexual contratado” e “forçar alguém a praticar prostituição mediante grave ameaça ou violência”. Segundo o autor, o projeto de lei surgiu como uma resposta às reinvindicações do Movimento Nacional de Prostitutas, tendo como liderança a prostituta Gabriela Leite, que dá nome ao projeto. No entanto, há bastante polêmica em torno da proposta. Dentro do movimento feminista, grupos como o Movimento Mulheres em Luta são contra o projeto. O grupo entende a prostituição não como uma prestação de serviço ou venda de força de trabalho, mas como uma mercantilização do corpo da mulher. A MML acrescenta que a maioria exerce a atividade não por escolha, mas por imposições socioeconômicas, argumentando que são necessárias políticas públicas para que essas mulheres tenham a opção de sair ou mesmo de não entrar na prostituição. Jean Wyllys rebate as críticas alegando que a regulamentação é o caminho para retirar as prostitutas da marginalidade e para enfrentar a exploração sexual e o tráfico humano.

“Na verdade, nada nunca foi meu. Eu sempre soube que era um empréstimo. Era pra ser usufruído, não pra ser considerado meu”, ressalta.

ras, nos mandavam embora”.

Sônia conta que, em uma dessas idas para a delegacia, chegou a ficar três dias detida, apanhando de palmatória e levando choque – neste episódio, Mimoso desempenhava o um dos policiais era parente papel de protetor e agressor. de Mimoso e tinha a intenção Enquanto Sônia e as demais de extorquir mais dinheiro do prostitutas trabalhavam, ele cafetão. Entretanto, suas piores passava o dia pelos bares do lembranças são das ocasiões entorno – fosse na Voluntários em que esteve com a Brigada da Pátria, fosse nas ruas do Centro – , de olho em seu negó- Militar. Diferente da Polícia Civil, cio. Sônia conta que, ali, cliente a Brigada não possuía acordos nenhum batia em prostituta. Em financeiros com os cafetões. todos os anos de profissão, afir- Quando realizavam batidas nas ma nunca ter sido vítima de vio- quadras, os brigadianos levavam lência durante seus programas. as prostitutas diretamente para Já em casa, as coisas eram di- a Ilha das Flores. Lá, em um maferentes. Mimoso era violento e tagal, as mulheres apanhavam, agredia fisicamente as mulheres eram torturadas e estupradas. Sônia foi levada para a ilha dos quando não lhe obedeciam. horrores duas vezes. Ela lembra “A Renata apanhava mais, ela que, na segunda vez, chegou a era desaforada. Eu apanhava pensar que não sairia de lá viva. menos porque eu ficava na miFoi neste contexto de violênnha, não era boba nem nada”, relembra Sônia, deixando esca- cia policial, no final dos anos 1980, que o Núcleo de Estudos par uma risada novamente. da Prostituição começou a ser Mas os episódios de violênarticulado. Tudo começou com cia mais marcantes da vida de a iniciativa de outra mulher Sônia foram cometidos não por Durante um encontro realizado Mimoso, mas por mãos polino Rio de Janeiro com uma ciais. Ela conta que, nos anos instituição que trabalhava di80 e ainda na década de 90, reitos civis, saúde e cidadania foi presa várias vezes, tanto com prostitutas, fundada por pela Polícia Civil quanto pela Gabriela Leite, Tina teve a idei Brigada Militar. Tantas vezes que de realizar um trabalho parecido até perdeu as contas. Naquela em Porto Alegre. Seu primeiro época, a Polícia Civil era paga passo foi começar a distribuir pelos cafetões para que fosse camisinhas para prostitutas conivente com a existência dos na rua. No entanto, no dia em pontos de prostituição. Mesmo que uma grande quantidade assim as prostitutas eram prede delas foi presa e levada ao sas frequentemente. Presídio Central, Tina percebeu “Eles tinham que mostrar ser- que aquelas mulheres precisaviço. A gente ia pra delegacia, às vam de outro tipo de auxílio. vezes apanhava deles. Eles nos “A Lúcia (outra prostituta fundabotavam pra limpar banheiro, dora do NEP) avisou a Tina que varrer chão, tirar pó de mesa. Ou se ela quisesse ajudar, aquele era então a gente ficava sentada lá. o momento”, conta Sônia. Depois de umas três, quatro ho-

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A partir daí, elas começaram a se juntar e se articular na luta contra a violência policial. Procuraram Conselhos Estaduais e Municipais de direitos da mulher, Comissão de Direitos Humanos e realizaram denúncias. Se a violência policial em relação às prostitutas diminuiu drasticamente, as mulheres fundadoras do NEP têm orgulho de dizer que muito se deve a seu esforço.

Sônia sente falta de viver aquilo que chamam de amor. “Eu observo muito, né. Tem aqueles casais que falam com aquelas vozinhas... Acho tão legal. Mas acho que nunca vou conseguir fazer isso”, revela, divertindo-se.

A história de Sônia encontra eco nas histórias das demais fundadoras do NEP – em praticamente todas há em comum a figura do cafetão, a violência E a história de Sônia, que policial, a libertação da vida de rumo tomou? Nos fim da décasubmissão em determinado da de 1990 e início dos anos momento. É a trajetória típica 2000, Mimoso a incumbiu de de mulheres que na década de agenciar meninas. Ela criava 1980 eram meninas vindas do anúncios falsos para encontrar interior ou de famílias desestrumulheres e identificava aquelas turadas que viravam alvos fáceis que tinham o perfil desejado dos cafetões. Hoje os tempos pelo cafetão. Ter que realizar são outros. A partir do relato esta tarefa a incomodava tanto que escuta das prostitutas mais que tomou a difícil decisão de novas, Sônia afirma, convicta, fugir de Mimoso. Em 2001, próde que atualmente as mulheres xima dos 40 anos, Sônia largou iniciam na prostituição muito a vida que havia constituído mais conscientes. As histórias desde os 16. mais comuns são de mulheres jovens ou adultas que come“Foi por causa disso que eu çaram a se prostituir através fui embora. Ele errou ali. Ele de uma amiga ou conhecida, achou que tinha me preparado atraídas pelo retorno financeiro para aquilo, mas eu não tinha da atividade. A violência policial, esse poder. Eu me via (via sua antes uma ameaça real à integriprópria história) numa situação dade e à dignidade das prosticomo aquela”, conta. tutas, hoje também já não se faz Nos anos seguintes, Sônia mais tão presente. Sônia e suas terminou o Ensino Fundamental, companheiras ressaltam que fez curso de depilação e de ainda há muita luta a ser travada massoterapia, mas nunca pelo movimento de prostitutas, abandonou a prostituição. como na desconstrução do preAtualmente, ela trabalha de conceito que ainda as estigmaforma independente e mantém tiza. Mas há sinais de que muita alguns clientes antigos fixos. coisa já mudou e melhorou para Voltar para Mimoso nunca lhe as trabalhadoras da profissão passou pela cabeça, apesar de mais antiga do mundo. ele tê-la procurado várias vezes – até hoje eventualmente o faz. Hoje, sua família são seus amigos, pessoas que preenchem os espaços de vínculos deixados para trás. Mesmo assim,

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As avós também transam

por Nathalia Tessler

Quando olhamos uma menina, uma mulher de meia idade e uma idosa sendo sensuais, a impressão é diferente. Uma foto sexy da idosa pode arrancar risos, enquanto a da mulher madura não. Com os homens é diferente. Enquanto anúncios publicitários priorizam mulheres jovens e magras, geralmente seminuas, a imagem de sucesso masculino é representada pelo tom grisalho dos cabelos do homem de terno. Richard Gere é sexy. Sophia Loren está acabada. Por quê?

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A pesquisa de Cristiano da Costa Flôres, doutorando em gerontologia biomédica na PUCRS, foca na autopercepção de corpo e sexualidade em idosos, principalmente mulheres 1. Ele prova o que todas nós já imaginávamos: a sociedade ainda não é tolerante à mulher bem resolvida sexualmente. Segundo Cristiano, estudos do IBGE e da própria PUC mostram que a mulher morre menos e mais tarde do que o homem. Portanto, há um grande número de viúvas na sociedade contemporânea. “A sexualidade da viúva é diferente da mulher casada e da jovem, então ela sofre um preconceito maior ainda. Em dado momento da elaboração do luto ela pode optar por ir em busca de um companheiro, dependendo das suas convicções - religiosas e culturais -, do seu planejamento de finitude. E isso socialmente ainda é um tabu. Essa mulher que, já envelhecida, vai ficar mais vaidosa, vai ter uma interação social maior, um grupo de amigas... a gente tem uma tendência muito errada de ver essa idosa como uma nova adolescente. Não é, porque o adolescente está fazendo descobertas sexuais; a mulher madura está fazendo a experimentação da sexualidade que ela já conhece. Ela está atrás de um objetivo, de um conforto”. ..:.. 1 FLÔRES, Cristiano da Costa.

A autopercepção de corpo e sexualidade em idosos. Porto Alegre, 2013. 87 f. Dissertação (Mestrado) - Programa de PósGraduação em Gerontologia Biomédica – Instituto de Geriatria e Gerontologia, PUCRS.

Na Casa de Portugal, boate na avenida João Pessoa, vários grupos de amigas estão espalhados pelas mesas do salão. Ao fundo os homens observam em pé. A movimentação em uma noite típica começa aproximadamente à 1h da manhã. Na verdade, a lotação deste dia é fraca, já que tem show do Julio Iglesias em Porto Alegre. Elena e mais duas amigas sentam próximas à pista de dança e dividem uma Skol enquanto a banda RC, com seus oito integrantes, toca um sertanejo gaudério. As gurias conhecem todas as letras, e dançam sentadas enquanto ninguém as convida para dançar. Pergunto se elas não dançam sozinhas, e a resposta é unanime: nãaaao! Convidar um homem ou dançar com uma amiga também não é opção. Tem-se de esperar o cara, não adianta. As amigas 60+ saem para dar risada e se divertir. Com jaqueta de couro e spikes, a loira Elena conta que em lugares como esse não se arranja namorado. Ela até já se apaixonou e saiu com um homem que conheceu na noite por quatro anos, mas não deu certo. “Mas se durou quatro anos é porque deu certo, não?” Ele me sacaneou, responde ela. O garçom, que está passando na hora, acena com a cabeça em concordância. Ele já está ligado na dinâmica do local e provavelmente acompanhou a história. ..:.. A menopausa é, talvez, o evento mais marcante da sexualidade feminina. As mulheres passam a refletir sobre não ter a capacidade reprodutiva, e há uma confusão entre não poder reproduzir e não poder ter re-

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lações sexuais. Clarissa sente na pele, todos os dias, os efeitos da queda dos hormônios. Mesmo que a reposição artificial amenize os sintomas do climatério, a adaptação não é completa por causa da percepção social: a mulher, sem o ímpeto da paixão “é vista como inútil. É como se deixasse de ser mulher, passasse a ser outra coisa, uma senhorinha assexuada que serve só para ser avó”. O fato de não poder reproduzir não quer dizer que a prática sexual deva ser extinta. O orgasmo acontece da mesma forma, e o mito de relações isentas de prazer na terceira idade é, para Cristiano, fruto de um preconceito muito grande. O tabu vai do neto que não conversa sobre com a avó, e da avó que não conversa com o filho, da idosa que não conversa com o profissional de saúde. “A gente vive um preconceito global, ainda mais com a mulher. Porque o homem pode ir atrás de uma garota de programa, pode cantar, pode sexualizar, ele pode ter um movimento que socialmente é mais tranquilo. A mulher já é mais reservada culturalmente na sua sexualidade”. Clarissa concorda que o tratamento da mulher madura, em relação ao homem, é diferente. Homem com filhos, solteiro ou divorciado, é visto como responsável, enquanto a mulher é indesejável; homem maduro é sinônimo de segurança enquanto mulher transmite falta de frescor. E o problema maior é, justamente, que a sociedade erra em taxar a mulher madura de assexuada. Os desejos reprimidos acabam fazendo da mulher, mais uma vez, vítima.

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“Estamos falando de idosas que passaram a sua juventude em época de ditadura militar, ou que são anteriores a isso, em contexto de Segunda Guerra Mundial, então a cultura interfere muito”, avisa Cristiano. Há mulheres que descobriram o orgasmo bem depois da juventude já que, na época em que foram educadas, não era permitido demonstrar prazer, porque estavam ali para servir ao marido. Mas o abuso respaldado pela sociedade vem ruindo aos poucos. A mulher precisou votar, conquistar o mercado de trabalho. Ela precisou muitas vezes, perdendo seu marido, virar a figura central da família. Tudo isso interfere na sexualidade, que é biopsicosocio-cultural: faz parte da nossa biologia, pois envolve hormônios, neurônios, percepções de corpo; é social, porque depende da sociedade em que estamos inseridos; é cultural, depende se há cultura do casamento, da família tradicional; e é psicológica, variando de pessoa para pessoa. Na medida em que a sociedade vai mudando, e a mulher conquistando seu lugar no espaço social, a forma de sexualizar também muda, junto com a abertura para falar sobre o assunto. A mulher que amadureceu calada, imobilizada sexualmente e escrava de um marido que apareceu muito cedo, é traumatizada. Cristiano explica que, quanto mais rígido o modelo educacional que a mulher recebeu, mais padrões ela tem que romper ao longo da vida e, quem não consegue romper esses padrões, precisa de acompanhamento psicológico para estar de bem com a sua sexualidade. “Algumas

mulheres, por traumas dessas vivências, optam por não manter uma vida sexual ativa na viuvez, porque elas tem uma visão negativa da sexualidade dentro da sua construção. Isso não é biológico, é comportamental. Então a ideia de que o indivíduo envelhece, os hormônios vão caindo e isso faz com que ele culmine a um envelhecimento assexuado não é bem assim. Os hormônios sofrem alterações, mas é o casamento de muitos anos, desgastado, não renovado, que converge numa vida sexual não ativa”. ..:.. A amiga de Helena não desgruda do celular. Está falando com o peguete no Whats. Tem um cachorrinho yorkshire no fundo de tela, e uma coleção de pretendentes no Tinder. Me mostra todos eles com orgulho. Tem o “meu negão”, de uniforme da Marinha, e vários outros. A outra amiga, que trabalha na Procuradoria de Justiça, comenta que o lugar é seleto, mas mesmo assim os homens não convidam nem para um cinema e já querem leva-las direto para o apê. É por isso que elas saem juntas, e sempre com grana para bancar a própria bebida. Depender de homem e dever favor? Jamais!

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Sthephanie, de 19 anos, trabalha no clube e conta que as conversas das clientes são iguais às das amigas dela. “Esses dias elas estavam aqui discutindo se levavam o cara para casa ou não. Elas é que mandam!” ..:.. As mulheres mais novas, quando perguntadas sobre o perfil do parceiro desejado, trazem muito mais um currículo profissional do que aptidões de persona: tem uma faixa etária definida, querem que já tenha terminado a faculdade e que não more mais com os pais. A jovem busca um companheiro que de um start na sua vida, para construí-la em conjunto, apresentando um potencial de estabilidade. Já mulher madura não cita um currículo profissional.

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Foto: Reprodução/ Marrie Bot

O critério para a escolha dos parceiros de dança é variado. Algumas observam se o bofe dança bem e, só depois, aceitam o convite. Outras olham se eles estão arrumadinhos e todas notam se ele é bonito, obviamente. Elena conta sobre seu último par: no dia 20 de setembro, grudou num gaudério e rodopiou com ele a noite toda, mas nunca mais se viram nem trocaram telefones. A sintonia ficou só na pista de dança.

Ela quer alguém que termine o ciclo vital com ela, não importando a profissão e as projeções. Imediatista, quer ser acolhida e pensa no presente. A idade não interfere tanto: a diferença geralmente gira em torno de uma década, para mais ou para menos. O importante é acompanhar o pique, sem preconceitos com idade. Também é mito que a mulher idosa não vai corresponder às expectativas do homem mais jovem. Depende de quem é essa mulher, e de como ela conduz a relação. O texto das mulheres é esse: “eu não quero me incomodar, eu quero um parceiro que venha acrescentar”. Não há mais tempo a perder. ..:..

A moça do Tinder manda uma foto da balada para o namorado, e ele fica muito irritado. “Era para isso que tu queria um tempo?”. Solta a frase e desliga o celular. Ela dá risada. “Ele é mais novo, sabe? Fica pegando no meu pé... Aí, não tenho saco pra homem pegajoso”

terossexual ou não, socialmente exposta, mas isso parte do indivíduo. Existe um processo de redescoberta, principalmente para a mulher madura. Um indivíduo não precisa, necessariamente, ser homossexual ou heterosexual ao longo de toda a sua vida e quando se tem um número maior de mulheres do que de homens na terceira idade, é até esperado que surjam relações lésbicas das afinidades que vão surgindo na ausência de possíveis companheiros. Nos próximos anos, a nível de discussão, o grande tabu vai ser este, concluí Cristiano. “Por preconceito, às vezes a gente recebe no consultório um neto dizendo que a vó está caduca, que a vó está demenciando porque ela resolveu se emperequetar, porque está falando gíria, indo para o baile da terceira idade, e porque ontem ela estava com um namorado e agora ela já está com outro. Isso não é demência, isso é redescoberta do prazer”.

Esta fase não é nula de sexualidade nem de vaidade, mesmo para aquelas que escolheram não manter sua vida sexual ativa. As senhoras ainda olham com tesão, se excitam com uma cena mais caliente da novela. Elas respondem ao meio que as estimula. Vovó perdeu a vaidade, mas existem várias formas de se colocar socialmente um cabelo branco ou um corpo envelhecido. A mulher madura que decide ter vida sexual ativa pode ..:.. ser mais feliz nessa nuvem de Hoje se pensa que o indisentimentos até mesmo do que víduo pode entrar em contato as jovens. A velhice assexuada com ele mesmo, e tomar as de- é um mito total. E dá para viver cisões de como ele quer condu- feliz sexualmente até o último zir a sua vida sexual: ativa, hedia da nossa existência. Homens calvos, mulheres de mini saia. Um senhor de bigode me tira para dançar. Por que não? As gurias vibram e tiram fotos. Depois de meia música, minha panturrilha está latejando. De volta ao meu lugar, viro um copo de guaraná, esbaforida. Tem que vir de salto alto, explicam as gurias. Bah, que ingenuidade. Vim de tênis. A verdade é que o pique dessa galera é muito maior que o meu.

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Só é gorda quem quer? por Nathalia Tessler

“Só estou preocupado com a tua saúde. É a minha preferência pessoal, não gosto de gente gorda. Coitada, tem um rosto tão bonito... Você só finge que é feliz, não existe gorda feliz. Saco de toucinho, leitoa, criatura bizarra. Gorda. Sua gorda nojenta, desleixada, inútil.” Em novembro de 2014, quatro misses plus size foram alvo de piadas na recepção do hotel em que se hospedaram em Brasília. Ao invés de calar, as mulheres tiraram uma foto de lingerie na frente do Congresso Nacional, e foram alvo de ofensas na internet. Um policial militar publicou no Facebook xingamentos e agressões tamanhas que geraram uma onda de selfies contra ele. A miss Plus Size de Rio Preto e Região, Evelise Nascimento, declarou à imprensa na época que chegou a chorar quando leu a publicação do homem. “Fiquei muito impressionada pelo modo como ele escreve. Se percebe que ele não é uma pessoa ignorante, sem cultura. Fiquei chocada em ver até onde vai o preconceito de uma pessoa.” Em nenhum momento o caráter, os valores, as opiniões ou os motivos das mulheres foram questionados ou criticados. Porque as pessoas se sentem no direito de humilhar outro ser humano levando em consideração como único critério a gordura corporal?

Stheffane é uma universitária de 21 anos. Não come besteira, faz exercícios e não é magra. Para ela, se assumir usando a palavra gorda é uma luta, já que há um estigma de ofensa envolvido. Na adolescência, a depressão ocasionou distúrbios alimentares, que têm efeitos negativos em sua saúde até hoje. “Eu sempre acho que qualquer risada ou qualquer conversa é alguém falando da minha aparência”, diz. “Minha história de gordofobia é mais uma questão médica e psicológica do que de excesso de gordura, falta de exercício e falta de vergonha na cara, como muitos adoram dizer”. Porque quando pessoas com sobrepeso estão comendo em público recebem olhares de reprovação e ouvem comentários de gente que, mesmo sem conhecer o histórico médico dos outros, pensam ter o direito de intervir? Ser gorda não é um convite e intromissão na saúde alheia. Ditar como alguém deve viver é uma forma de preconceito, exatamente como os comentários sobre o comprimento das saias das outras.

cabeça, se eu nunca parasse de pensar que eu não era bonita por mim mesma”. A mãe, que também é médica, explicou como peso não tem a ver com a preguiça. Ele é decorrência de acúmulos de problemas de saúde, e não só da alimentação ou da falta de esforço. Segundo o blog Womansplaining, um dos muitos espaços de empoderamento feminino na rede, “descontruir a gordofobia significa tirar o corpo gordo da sua condição socialmente imposta de ‘mazela’ e assumi-lo como identidade”. O discurso médico dominante nunca é neutro, e na maioria dos casos históricos serve para a manutenção do status quo. Não devemos cair na inocência de que eles são guiados apenas pelo bem comum, apesar de estarem certos em alguns casos. ALGUNS, não todos.

Apesar dos preconceitos pessoais e sociais, principalmente com a família e com os profissionais da saúde, cada corpo é um corpo e odiá-lo é destrutivo. Não podemos abdicar da nossa identidade para estarmos dentro Para Stheffane, o apoio fami- de um padrão. O corpo, gordo liar foi fundamental para supe- ou magro, alto ou baixo, negro rar a anorexia. “Minha mãe me ou branco, faz parte de quem somos. Ele nos leva de um lugar fazia entender o quanto a minha saúde era a coisa mais im- ao outro, nos permite sensações portante, e que o sentimento de e é fonte de prazer. E nada do se achar bonita não viria com a que os outros dizem sobre nós magreza ou com qualquer obje- deveria mudar isso. tivo que eu colocasse na minha

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a n i n i m e f a t r u l a t a i l i e m a a h r u n i d t a t r i d a Mm tempos de e Di sandro s le A r o p

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“Todos tinham um nome de guerra. Eu escolhi Marta, porque quis homenagear uma empregada doméstica que minha mãe teve e que era negra. E como eu era magrinha e baixinha, ficou Martinha.”

Foto: Repro

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Hoje é cada vez mais perceptível o engajamento das mulheres nas lutas pelos seus direitos e por igualdade perante aos homens. Mas essa luta não vem de agora. Aqui no Rio Grande do Sul um nome que entrou para a História em razão de seu enfrentamento ao regime militar brasileiro, que completou 50 anos em 2014, é o de Ignez Maria Serpa. Mais conhecida como Martinha, seu nome de guerra durante a ditadura e usado até hoje, ela resolveu pegar em armas na busca pela liberdade individual e pelo fim da ditadura. Foi presa e torturada pelo regime. Lutou contra o autoritarismo da época e levantou bandeiras feministas mesmo em um período de extrema repressão e censura.

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A escolha pela luta armada Nascida em Porto Alegre, Martinha viveu grande parte de sua infância em Uruguaiana. Desde pequena, sempre foi engajada politicamente, e teve em seu tio um tutor nas discussões sobre política. Ela se destacou como liderança estudantil no Movimento Universidade Crítica da UFRGS. Em 1969, após o Ato Institucional nº 5 e o aumento da repressão pelo regime, Martinha decidiu ingressar na luta armada. Na ocasião, com 20 anos de idade, ela foi abordada por integrantes da Vanguarda Armada Revolucionária Palmares e convidada a participar do movimento. Cansada da forte repressão realizada pela ditadura militar, Martinha resolveu aceitar este convite.

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vidual por meio de discussões teóricas. E isso era uma das ideologias defendidas pela VAR Palmares.

não participava do comando de ações, ficando restritas apenas a tarefas burocráticas dentro das organizações militares. No Rio Grande do Sul, Martinha foi a Dentro do grupo, que se única mulher que participou de organizava por comandos, fato de ações armadas. Ela conUm episódio foi fundamental Martinha iniciou sua trajetória no ta que até houve uma combatencomando operário. Sua função para que ela tomasse essa imte chamada Sônia que participou era convencer as lideranças portante decisão. Durante uma junto a ela de treinamentos mioperárias a pegar em armas e a das últimas passeatas de prolitares. Mas, após cerca de um testo contra a ditadura em 1969, se juntar ao movimento no commês, foi para São Paulo, onde bate contra a ditadura. Nesse Martinha e mais três pessoas continuou a lutar contra a ditaduprimeiro momento, própria foram cercadas na frente da ra, e foi presa pelo regime. Martinha não pegava em armas prefeitura de Porto Alegre. Em para lutar. No entanto, devido - Ela teve uma passagem fuga, correram para um prédio à sua baixa estatura e à boa muito rápida pelo comando, próximo, com a polícia de chomas não chegou a participar das que os perseguindo, e subiram resistência conquistada com a prática do paraquedismo, ela ações, só de um treinamento. as escadas, entrando em uma logo entrou para as ações milisala. Através de uma escada Apesar da participação de tares. O comando nacional da de pintor, eles se dirigiram, enMartinha e de outras mulheres denorganização enviou uma orientatão, para o teto de um prédio tro de grupos armados, elas tinham ção para que fosse formado um menor, onde se esconderam. de brigar muito para se destacar comando de operações, que Abaixados e assustados, eles dentro dessas organizações. Havia tinha como objetivo preparar ouviram os disparos efetuados muita resistência em colocar alguém seus integrantes para pegar em pela polícia contra eles, muido sexo feminino no comando do armas e iniciar a luta. Martinha, tos deles passando a poucos movimento, pois os homens não então, foi convidada a participar centímetros de suas cabeças. as viam como pessoas com pulso desse grupo e mais uma vez No final das contas, Martinha para comandar. Além disso, eles conseguiu fugir, mas modificou aceitou a proposta. não queriam ser mandados por a sua maneira de contestar a Necessitando de treinamenmulheres, segundo Martinha. Ela ditadura militar. to, o novo comando da VAR ressalta que isso não era apenas Palmares recebeu orientações um comportamento das organiza- Eu acho que o radicalismo ções militares, mas sim um espelho da gente pegar em armas contra militares de um outro grupo armado que lutava contra a dita- da sociedade na época. a ditadura tem a ver com a pródura, o M3G, de Edmur Péricles pria radicalização da ditadura. Martinha conta que sempre Camargo. Um desses treinagostou de se maquiar, mesmo mentos foi uma expropriação quando participava de ações VAR Palmares no Banco do Brasil em Viamão. pela VAR Palmares. Certa vez, Martinha foi a única mulher a Uma vez feita a escolha em razão desse comportamento, participar dessa ação, e isso de entrar para a luta armada, foi chamada em uma reunião do serviu como fator surpresa, já Martinha teve de realizar uma grupo de “pequena burguesa” que a sociedade da época não nova escolha. Desta vez sobre por integrantes de seu moviem que grupo ingressar. Em um esperava ver mulheres particimento. Mas Martinha nunca se pando da luta armada. primeiro momento, ela estava importou com isso. dividida entre a VAR Palmares - Isso é a falta de entendimento e a VPR, a Vanguarda Popular da manifestação do feminino. As mulheres na luta armada Revolucionária. A decisão teve Apesar de todas as dificulcomo base as suas próprias A luta feminina nesse temdades enfrentadas na época, convicções. Ela acreditava que, po não era raridade. Além de Martinha afirma que nunca sofreu além de realizar a luta armada, Martinha, outras mulheres tivenenhum tipo de preconceito de era necessária uma atuação na ram seu papel no combate ao seus companheiros de esquerda. formação da consciência indiregime militar. Mas a maioria - Com a repressão eu acabei optando em ir para a luta armada, porque eu vi, na minha concepção na época, que a forma pacífica como a gente estava trabalhando não estava dando resultado.”

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Diferenciação pelo regime Já o tratamento dado a ela pelos repressores foi totalmente diferente. Martinha foi presa em 1970, quando estava pronta para deixar a cidade. O fato aconteceu ao visitar a casa em que morava para falar com sua mãe. O Departamento de Ordem Política e Social, DOPS, bateu à sua porta e a levou para a prisão. Ela ficou presa por pouco mais de um ano. Na prisão, Martinha foi estuprada e torturada.

As torturas deixaram sequelas. - Eu acho que nós fomos o Martinha tem bruxismo e, por um estopim. Temos que lutar muito bom tempo, enfrentou dificuldaainda, mas que houve um avandes de se relacionar sexualmente. ço extraordinário houve, é só olhar para trás.

Lutas atuais

Mas ainda falta muito para que as mulheres conquistem os seus direitos e a igualdade perante aos homens. Martinha acredita que é necessária uma mobilização maior das mulheres nessa luta. Ela cita o caso da política, em que a participação - Defendo e participo até hoje. das mulheres, embora esteja Eu não parei de militar. Eu sou aumentando, ainda é pequena Para Martinha o regime difeuma eterna militante e vou morem relação à dos homens. renciava homens e mulheres na rer militando. Pregando as ban- Sempre há um risco de um hora da tortura. Entre as torturas deiras feministas. retrocesso, porque as forças cometidas contra ela, estava a O combate de Martinha e de conservadoras da sociedade tortura psicológica. Sempre que outras mulheres em meio ao pesão muito fortes, são seculares. ia tomar banho, por exemplo, um ríodo da ditadura militar impacsoldado a acompanhava e ficava Martinha é um dos exemplos da olhando para ela. De acordo com tou a sociedade daquele tempo. força da mulher em nossa sociedaMartinha, o mesmo não acontecia Era uma época de mudanças de, e é inspirada nela e em tantas de costumes dentro da sociedaem relação aos homens. outras que marcaram seu nome na de, uma geração de rupturas. E - Eles faziam questão de te dei- muitas dessas rupturas aconte- História que a luta continua. xar sem roupa para te humilhar. ceram a partir da luta armada. A luta de Martinha contra a ditadura acabou quando o regime foi derrubado. Já a sua luta pelos direitos das mulheres continua. Hoje, Martinha trabalha na Secretaria Municipal de Saúde de Porto Alegre e é militante do PT.

Martinha chegou a escrever um artigo, chamado Na Guerra com Batom, em que conta um pouco de suas histórias de combate ao regime militar.

Foto:

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Nao basta ser mulher A participação das mulheres na política brasileira por Gustavo Chagas

Dona Dilma, Dona Marina. Era assim que as duas mulheres até então líderes das pesquisas eram chamadas pelos oponentes nos debates televisionados. Não se via nada parecido com os homens. Não se ouvia “Seu Aécio” “Seu Eduardo” e nem um insano convite a “Seu Levy” soltar palavras pelo seu aparelho excretor.

federal nestas eleições. Maria do Rosário, do Partido dos A dominação vocativa não Trabalhadores, garantiu a vaga se resume ao discurso inconscom 127 mil votos. Rosário, ciente (não por isso menos reeleita, perde a companhia grave) dos candidatos. No de Manuela D’Ávila, que, do resultado das urnas, poucas Congresso, volta a Porto Alegre, mulheres foram eleitas. Se na onde será deputada estadudisputa pelo principal cargo al. Duzentos e vinte e dois mil do Executivo, Dilma Rousseff gaúchos e gaúchas votaram passou ao segundo turno com na jovem expressão do Partido boa parte dos votos, a disputa Comunista do Brasil. Para por cadeiras nas assembleias, D’Ávila, a reforma política abrirá Senado e Câmara ainda é dios caminhos da política para fícil para as mulheres. O Brasil as mulheres: “O que acontece elegeu 51 deputadas em 2014. no Brasil também acontece no O número é maior comparado Rio Grande do Sul, porque nós a 2010, quando 45 foram eleitemos uma baixíssima participatas, mas ínfimo tendo-se em ção de mulheres no parlamento mente que existem 513 vagas local, nacional. no total. No Senado, onze mu- Na nossa avaliação, da banlheres dividem o espaço com setenta homens. Desigualdade cada do PCdoB, mesmo sendo clara, já que 50,6 % da popula- a bancada que tem 40% de mulheres e reelegeu 40% de mulheção brasileira é feminina. res, só a reforma política pode O Rio Grande do Sul eleresolver isso. geu apenas uma deputada

A participação como reforma

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A comunista afirma que, no cenário atual, as candidatas não garantem financiamento para suas campanhas e acabam perdendo o enfrentamento ao que chamou de “máquinas eleitorais”. Na visão da Secretaria de Política para as Mulheres do Governo Federal (SPM), a reforma é um dos caminhos para garantir a participação feminina nos poderes. A secretária de Articulação Institucional e Ações Temáticas da SPM, Vera Soares, afirma que este é um problema da cultura partidária brasileira. Ela cita o financiamento de campanha e a formação das listas como barreiras à indicação de mulheres cargos. - Em geral, a legislação que apresenta os melhores resultados é a que propõe a criação de listas, como é na Argentina, por exemplo, e na qual tem uma obrigatoriedade de uma composição que intercale dois homens e uma mulher.

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Fotos: Reprodução/Internet

“Eu não vi ele botar o dedo na cara de nenhum candidato homem.” Luciana Genro

O país comandado por Cristina Fernandez Kirchner é o vigésimo colocado no mundo no ranking que mede a composição do parlamento entre homens e mulheres organizado pela União Interparlamentar, com sede na Suíça. Países pobres da África e da América Latina estão bem posicionados na última atualização da pesquisa, realizada em setembro de 2014. Ruanda lidera; Cuba é terceiro colocado; Senegal, Nicarágua, Equador, Moçambique, Timor-Leste, México e Angola aparecem no top 20. O Brasil é o 131º colocado. Entre os países de expressão política e econômica, só estamos na frente do Japão. Até países com culturas restritivas às mulheres estão na nossa frente.

fazer política. A cultura da sociedade exclui as mulheres de várias atividades que estão fora da sua dupla jornada de trabalho. Se a mulher tem que cuidar da casa e trabalhar, qual o tempo que sobra para ela exercer seu direito de cidadã? Certamente é mais complexo, mais difícil que o homem. A deputada federal em fim de mandato critica a ausência de mulheres em comissões parlamentares:

é que são vozes minoritárias ainda. Sistemas mais amplos, como as questões econômicas e de energia, também são assunto de mulher. Acho que não ter automática identificação com as pautas que alguns acham ser pauta de mulher, como é o tema da educação não sexista, da violência, não torna menos importante o protagonismo de outras mulheres. E onde se faz a política?

- É evidente que um dos caminhos é a política institucional, porque aqui nós trabalhamos o andamento, o rumo da política que afeta tanto as mulheres do Brasil. Mas é a luta social é Realmente, as comissões perque faz as parlamentares mais manentes da Câmara são docomprometidas com as nossas minadas por homens. Das vinte causas. Então não é um ou ouManuela considera que o pro- e duas existentes, apenas uma tro, acho que todos os caminhos é presidida por uma deputada. blema não se limita ao campo de luta, institucional ou no moviA parlamentar Alice Portugal, da política e da legislação. A mento social, são válidos. ausência da mulher no campo é do PCdoB da Bahia, lidera a Comissão de Cultura no biênio uma questão cultural: 2014-2015. “Em muitos casos, eu prefiro - O sistema eleitoral brasileiro Para Manuela D’Ávila não votar num homem” traduz mal a participação da mulher na política, haja vista que nós existe “assunto de mulher”. Elas Nos debates entre os candipodem ser protagonistas lutando temos mais candidatas. Agora é datos à Presidência, uma figura por uma pauta feminista ou não: evidente que a dupla jornada de se destacou entre as demais por trabalho, que a rotina machista - As mulheres que estão no sua linha combativa. Não foi o da nossa sociedade, os hábitos e Congresso trazem essas paucombate vazio e atabalhoado padrões culturais também tornam tas, na minha opinião, com de Neves, Everaldo e Fidelix. mais difícil pra mulher militar e muita qualidade. O problema Nem o bom mocismo infantil de - Num Congresso em que uma mulher nunca presidiu a comissão de orçamento é mais difícil aprovar investimentos, por exemplo, para uma política de gênero.

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Eduardo Jorge. Passou longe dos “no que se refere” e “nova política” de Rousseff e Silva respectivamente. O sobrenome Genro, herdado do pai, talvez tenha contribuído. Mas o que se viu nos programas de televisão foi a mais legítima Luciana, que carregou ao longo de sua vida política a revolta com o establishment, que solidificou funções submissas à mulher: - A cultura no Brasil e no mundo isso [a participação da mulher na sociedade] não foi totalmente superado. Nós temos uma visão de que o papel da mulher é doméstico, de cuidado com o filho, do cuidado com a casa e de subordinação ao marido. Há uma dificuldade grande, estrutural e cultural para que a mulher tenha um protagonismo maior, já que a atividade política exige uma atividade que se sobrepõe às atividades profissionais e domésticas. É uma terceira jornada para a mulher que já tem sua dupla jornada.

No debate eleitoral, a candidata do Partido Socialismo e Liberdade considera que seus adversários (os grandes) sonegaram propostas às mulheres, como a discussão do aborto e da abertura de creches. Mais do que brigar pelas mulheres do País, Luciana teve de enfrentar o dedo em riste de Aécio Neves:

Mas, para a ex-deputada federal, qual o caminho para inserir a mulher no contexto político? Luciana Genro afirma que a estrutura partidária impede que as candidatas garantam recursos para a campanha. E mesmo mulheres disputando cargos não são garantia da defesa da mulher na política de acordo com a socialista:

- Eu não sou partidária da ideia de que a gente deve votar em uma mulher só por ela ser mulher. Em muitos casos, eu prefiro votar num homem do que numa mulher. Depende do programa, da proposta, do perfil da candidatura. O Luciana também presenciou critério de sexo não é fundamental agressões de alguns “jornalistas”: a ser utilizado na hora de escolher - Por parte da imprensa, teve uma candidatura. – resume. - Não alguns episódios. Em uma en- basta ser mulher, é preciso estar trevista com um jornalista que do lado certo. eu não me lembro o nome, A opinião é compartilhada pela perguntaram para ele qual das secretária estadual de Políticas candidatas mulheres ele escopara as Mulheres, Ariane Leitão: lheria para sair. Ele até esco- Ser mulher e estar no lheu a mim para sair. Tipo da pergunta que jamais seria feita Parlamento ou nos executivos para para uma mulher, com qual can- reproduzir um conceito de política velha e masculinizada e preconceididato homem ela iria sair. - Eu não vi ele botar o dedo na cara de nenhum candidato homem. Talvez tenha sido um gesto de machismo da parte dele, mas, rapidamente, depois de eu falar, ele recuou.

Fotos: Gustavo Chagas

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tuosa não nos interessa. Nós precisamos de um novo sistema político de representação. Neste novo sistema político, as classes trabalhadoras, os jovens, as mulheres, os negros e as negras precisam estar representados da mesma maneira que nós somos tão grandes na sociedade brasileira. Luciana vai além. Acredita que a política econômica impede a entrada das mulheres na política e na economia. Critica o ajuste fiscal, o corte de gastos públicos e o direcionamento de investimentos para controlar a dívida. Sem este dinheiro não se promove igualdade e, para ela, os políticos estabelecidos no poder não farão grandes mudanças: - Com essa maioria que nós temos no Congresso Nacional e no governo que teremos, dificilmente nós teremos avanços se não tivermos uma organização e uma pressão mais forte da sociedade e principalmente das mulheres; [a pressão] nasce das ruas, nasce dos movimentos sociais, nasce da organização das mulheres. Independente de quantas mulheres

a gente tenha como deputada, se nós tivermos mulheres do lado de fora do Congresso pressionando das mais diversas maneiras, nós temos mais chance de avançar.

Ações Enquanto a mulher continua à margem, o atual governo federal afirma procurar incluir a população feminina nos processos de participação política. A Secretaria de Políticas para as Mulheres promove o Fórum Nacional de Instâncias de Mulheres de Partidos Políticos. De acordo com a SPM, as reuniões acontecem de três a quatro vezes no ano. Nelas, os partidos com representação ao Congresso trocam informações e fomentam o estudo.

Futuro As pautas femininas avançam no cotidiano das discussões sociais. Mas o retrocesso eleitoral vivido na disputa pelo Legislativo em 2014 acaba dando um banho de água fria em quem sonha com avanços que se concretizem em leis. Talvez esse banho motive ainda mais quem luta por mais liberdade da mulher, para com ela mesmo e para com sua sociedade.

Manuela D’Ávila entrará na Assembleia Legislativa com outras seis deputadas, ao lado de 48 homens.

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Expediente Redação Alessandro Di Lorenzo alessandro_di_lorenzo@hotmail.com Camila Viero camilacmviero@gmail.com Filipe Strazzer Santiago filipestrazzer@hotmail.com Gustavo Chagas gmonteirochagas@gmail.com Henrique Dellazeri dellazeri.henrique@gmail.com

Comisssão Editorial

Ingrid Oliveira ingrid.oliveiradarosa@gmail.com

Camila Viero

Jéssica Menzel je.menzel@gmail.com

Luana Casagranda

João Francisco de Campos Lima joaocamposlima@hotmail.com

Nathalia Tessler

Jonas Lunardon jonas.lunardon@gmail.com Júlia Burg juliadsburg@hotmail.com Juliano Zarembski julianozarembski@outlook.com Luana Casagranda luanacasagranda@gmail.com Manoela van Meegen manoellameegen@gmail.com Martina Nichel martina.nichel@gmail.com Nádia Alibio alibio.nadia@gmail.com Nathalia Tessler nathalia.tessler@hotmail.com Thaís Seganfredo thaisbuenoseganfredo@gmail.com Vicente Medeiros luisvicente_10@hotmail.com

Juliano Zarembski Nádia Alibio

Revisão Juliano Zarembski

Projeto Gráfico e Diagramação Nádia Alibio

Orientação Wladymir Ungaretti A revista Sextante é uma produção dos alunos de jornalismo para a disciplina de Impresso IV, ministrada pelo professor Wladymir Ungaretti na Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Esta edição foi produzida no segundo semestre de 2014. Impressão: Gráfica da UFRGS Tiragem: 700 exemplares


E o direito dos caras de olhar? Te chupo todinha! Que cuzão gostoso! Vontade de comer uma gostosinha hoje... Como eu queria ver tua bunda. Acho que as minas exageram. Tem umas que deviam agradecer só por alguém olhar pra elas. Vocês não deviam lutando contra os padrões de beleza? Mulher quando sai na rua 100

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e não ouve elogio volta pra casa triste. Vadia! Queria dar uma mamada nessas tetas. Buceta linda! Óbvio que queria chamar atenção. Ela tá pedindo pra ser estuprada! E na real, tem mais é que ser pra aprender. Se não quisesse ouvir não tava de saia. Tem mulher que não sabe ouvir elogio. 2014/2

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