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amo os restos
como as boas moscas textos e autores da oficina de escrita criativa do centro cultural são paulo Anna Bella Bernardes, Douglas Gonçalves Santos, Eduardo Benesi, Eugênia Gabriela Souza e Silva, Guilherme Gonçales, Lucas Lavecchia, Maysa Ribeiro, Monyse Almeida, Pither Lopes, Rafael Cadina, Thais Dos Reis, Thadeu Nogueira, Thais Veiga, Vitor Henrique Alvarinho
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Amo os restos como as boas moscas é uma coletânea de textos produzidos para a oficina de escrita criativa do Centro Cultural São Paulo, entre abril e junho de 2015.
OFICINA ESCRITA CRIATIVA - 2015 Coordenação: Rodrigo Maceira Professores colaboradores: Fabíola Alves, Fernando Araújo e Gustavo Lacerda. Autores: Anna Bella Bernardes, Douglas Gonçalves Santos, Eduardo Benesi, Eugênia Gabriela Souza e Silva, Guilherme Gonçales, Lucas Lavecchia, Maysa Ribeiro, Monyse Almeida, Pither Lopes, Rafael Cadina, Thais Dos Reis, Thadeu Nogueira, Thais Veiga, Vitor Henrique Alvarinho.
Agradecimentos: Deise Getúlia de Melo e Centro Cultural São Paulo.
Foto da capa: Eugênia Gabriela Souza e Silva Foto da guarda (1): Vitor Henrique Alvarinho Foto da guarda (2): Thadeu Nogueira
São Paulo / Julho de 2015.
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Textos de restos de textos rodrigo maceira
Durante quase dois meses, na sala de debates do Centro Cultural São Paulo, estivemos juntos, às terças e quintas-feiras, para discutir e experimentar, a partir de diversas referências, maneiras de escrever, maneiras de pensar o texto e ler a vida. Partimos da ruptura explosiva das vanguardas modernistas, olhando especialmente para as colagens dadaístas e a “poética do acaso” de Tzara, para a escrita automática surrealista e seus ecos sobre o uso do discurso indireto livre, e para os jogos fonéticos dos poemas futuristas. Saltamos, depois, para “a tomada da palavra” de Maio de 68 e a instituição do muro e da cidade como suporte. Vimos textos na literatura, em anúncios e na arte contemporânea. Discutimos conceitos teóricos como “função poética”, “rede semântica” e “semiótica narrativa”; pensamos a paródia, a paráfrase e o pastiche, buscando sua aplicação de Manuel Bandeira à publicidade, de Haroldo de Campos aos memes virais. Assistimos a trechos de filmes, trailers, séries, comerciais e clipes. Com três, quatro, cinco ou nenhum ato. Com muitas ou poucas coisas em comum. Por trás dessa colcha de retalhos, além de outras coincidências, o exercício da criação, do prazer e da dor, diante das palavras. Para organizar a produção dos textos, propostos como trabalho final para a oficina, optamos por escolher um mesmo ponto de partida, que também poderia servir de chegada. Levantamos a possibilidade de buscar “as primeiras namoradas da vida”, como no poema de Bandeira, ou as coisas pulentas desse mundo turbulento, como acontece na busca entre amigos de um conto do argentino Fabián Casas. No fim, e daí o título desta publicação, ficamos com um verso do poema “Apanhador de desperdícios”, de Manoel de Barros. À maneira de cada um, colecionamos pedaços de tudo e de todos que tivemos a sorte de conhecer ao longo do passeio. Juntamos os restos desses encontros e, agora, publicamos os resultados de um movimento que não termina aqui. Bom apetite.
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Amo os restos como as boas moscas oficina escrita criativa - centro cultural s達o paulo
Da inteireza dos restos
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O Brasil em: Sonhando acordado
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Firmamento do que restou
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Toda a areia e todo o oceano
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Ensaio visual
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Passageiros
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Hoje eu só quero dançar
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monyse almeida
rafael cadina
douglas gonçalves santos
Eugênia Gabriela Souza e Silva
maysa ribeiro
thais veiga
pither lopes
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Dedicatória aos meus restos
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O momento exato da bomba
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Do rancor acumulado ao revide fulminante
guilherme gonçales
vitor henrique alvarinho
thais dos reis
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Canção do exílio (modo mínimo)
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Alguns spoilers e confissões que eu entrego a Deus
lucas lavecchia
eduardo benesi
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À mosca da sopa ao lado
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Sobre a calçada
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O sonho de Hakim
anna bella
lucas lavecchia
thadeu nogueira
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CONTO
Da inteireza dos restos monyse almeida
Foto: Eugênia Gabriela Souza e Silva
Vovó era mulher de fibra, não era malha fajuta. Ela dizia que lá pelos idos de 70, quando as coisas apertaram – feito ajuste exagerado de vestido –, ela não pensou duas vezes, foi logo desempacotando umas caixas e colocando a plaquinha no portão rubro: COSTUREIRA AQUI. Mas foi barra. Os anos eram de chumbo. Não sei o que o vôzinho demorou mais para aceitar: o regime ou a plaquinha. Não sei não. Acho que ele nunca aceitou nenhum dos dois até hoje, onde quer que ele esteja. Pela frestinha da porta eu espiava tudo. Nunca vi outra igual. Batia o olho e vovó já sabia o busto, a cintura e o quadril da Dona Dinorá, fez o vestido de noiva da filha da Dona Maria das Graças, a Dona Ivone, minha avó a transformou em uma verdadeira baiana, os carnavais nunca foram os mesmos pra ela. Vovó ainda fez o paletó do defunto que morava ali na esquina também. Eu não fui, mas disseram que lá no enterro não se falava em outra coisa, eram só elogios para o corte. Não era vaidosa com toda a rasgação de seda que começaram a se dirigir a ela. Até a esposa do prefeito bateu palma em frente ao portão para falar com a melhor costureira da cidade. Para desespero do meu avô. “O quê? Ela quer um vestido de festa? Vai usar em algum banquete dos milicos”. E saia resmugando e rabugento “A que ponto esse país chegou?”.
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Eu era louca para aprender a mexer naquela máquina, transcorrer a linha e fechar uma linda saia de veludo azul marinho. Mas na minha caixinha de coleções de sobras, eu só tinha duas tirinhas desse aí, não conseguia fechar nem um dedal, imagine uma saia até o pé. Nas minhas brincadeirices, era um amor só. Os veludos azuis amavam a chita da baiana que amava as sobras tortas do paletó do defunto. que amava as rendas do véu que amava o calção de praia que amava a seda inglesa da primeira dama. Que não amava ninguém. As rendas viraram carolas da paróquia, a seda inglesa foi para a rua da luz vermelha. As sobras tortas foram carcomidas, o calção de praia nunca viu a praia. A chita da baiana rasgou e os veludos azuis casaram com as jutas bege das sacas de arroz do mercadão. Que não tinham entrado na história. ......... Vovó falava que não, não e não. Menina bonita não senta pra costurar. Que eu tinha que continuar brincando, lendo umas lobatices. Na verdade ela tinha é medo, ela sabia que se eu sentasse em frente aquela máquina de costura, eu nunca mais ia querer sair dali. Teve um dia que eu insisti tanto, mais tanto, mas ela continuou firme. Não, não e não. Fui chorar lá em cima da jabuticabeira e não tinha gente neste mundo que me tiraria de lá. Eu pensei que poderia morar lá em cima, que comida não ia faltar, que eu poderia fazer xixi lá de cima e que os passarinhos iam ser a minha companhia. Vovó nem deu pano pra manga para essa minha fase jabuticabal, sabia que mais cedo ou mais tarde eu ia cair de podre. Eu devo ter ficado lá em cima uns 237 dias, mas meu vô disse que eu só fiquei 3 horas. Acho que ele não conhece o calendário, tadinho. Deve ter lido tantos livros proibidos que ele se esqueceu que não temos mais trididi, quartidi e brumários. Desci arrasada. Os passarinhos não queriam ser meus amigos, eles nem perceberam que eu estava lá na verdade. As jabuticabas lá de cima eram mais azedas e meu xixi acabou saindo quando eu fiquei com medo de um pássaro preto de bico pontudo. Quando desci da jabuticabeira, vovó tava com aquela cara de quem dormiu de calça jeans, sabe? “Você para de ficar inventando moda, menina! Não é pra ficar vivendo só de jabuticaba”.
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Ela não entendeu que eu queria viver de mais. De jabuticaba, de livros legais e de costura. Uma cachoeira começou a despencar do meu olho, fiz um bico do tamanho do pássaro preto e fui direto para a minha escuridão debaixo do meu travesseiro. Depois de 32 dias, 10 minutos para o meu vô, quando a queda d’água começou a se sertanizar, fui aos poucos deixando entrar uma frestinha de luz e depois outra e outra. De repente, levei um susto, o maior de todos da minha vidinha, parecia que todas as agulhas do mundo tinham entrado no meu coração. Minha coleção de sobras tinha desaparecido. DE-SA-PA-RE-CI-DO. Será que foram as rendas carolas que se rebelaram? Ou o calção de praia que juntou um comboio e desceu a serra para finalmente pegar uma praia? Não, não. Só pode ter sido as jutas beges firmes e fortes que organizaram e decidiram se rebelar contra uma amante de jabuticabas que não conseguia sustentar as suas ideias. Parecia que outra cachoeira estava prestes a despencar cara abaixo quando vejo de rabo de olho esquerdo algo diferente. Toda colorida, com um sorriso no rosto e uma saia de veludo azul marinho. Era uma boneca linda. Ela foi feita com as minhas sobras, com as minhas histórias, com os meus personagens e ficou a boneca mais retalhada e maravilhosa que eu já vi na vida. Alegre como uma baiana em dia de festa, bom vivant como uma primeira dama, relaxada como quem deita em paz para uma soneca eterna e realizada como quem tem a certeza de que está casando com a pessoa que mais ama nesta vida. Fui correndo dar um abraço bem apertado na minha vó e agradecer. Foi cachoeira pra todo o lado. Obrigada por juntar os meus pedacinhos, vó. Hoje sou inteira.
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CONTO
O momento exato da bomba vitor henrique alvarinho
Foto: Vitor Henrique Alvarinho
Capturou o momento exato do gol, apagando, porém, os detalhes: a gota de suor no ar, os batimentos, o grito; deixando só formas esculpidas no terrão, que subiu em nuvem laranja e voltou a assentar muito mais cinza-fuligem. Mas o artilheiro e a zaga estavam lá, o goleiro em seu salto mudo – o último. A bola por voar, acabou oval. Tudo tatuado em negativo: a igreja cegamente branca, os postes trêmulos, uma carroça com espelhos de plástico. Ali mal passava das três, quando as coisas iam aos poucos retomando seus ângulos roubados ao meio-dia. Olha. Penélop fala como quem leva a fala como atividade secundária, distante mira fixamente a tela, assistindo às imagens, daguerreótipos – distantes. Bebia água quente. Cidadezinha paroquial! A sombra das grandes aglomerações oblitera cenas. Mais se vê escombros de arranha-céus, esqueletos de estruturas, leviatãs de metal à deriva. Às vezes uma praça ou outra, do nada como que surge no caos movediço uma catedral-alameda, um menino-bicicleta, transeuntes-borrados, às vezes os parques são prodigiosos, às vezes as árvores esfumaçam a visão, às vezes não, mas no geral, é comer um peixe com muitas espinhas olhar as cidades. Nos descampados, vilas aldeias, subúrbios geométricos de casas assépticas espalhadas horizontalmente, os detalhes ficam nítidos como se fosse cada coisa dona da sua própria
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sombra. É olhar em chapa de raio x a vida em seus contornos finais. Santa Quitéria. Casais andando de mãos dadas em ruazinhas laterais, cachorros arrastando crianças pela coleira no êxtase da palavra passsseio, praça-dominó-carteado -bengala – rente aos escombros. Por algumas formas só corria a tela. Morreram desfocadas, em trânsito ou sem contexto, não chegariam a se tornar motivos. Em outras se demorava mais: silhuetas em contornos significativos. Às vezes, as pessoas dizem muitas coisas. Mas a forma das pessoas não, a forma só pode dizer uma coisa, um hábito, uma contradição, o resto é projeção. Sussurrava docemente: O carteiro, As jogadoras de Vôlei, Família Gorda, Gol, A Senhora dos Coqueiros, Pipa. Ao identificar sombra gravada no chão e verbalizar sua característica, sentia que lhe restituía um tanto da carga da alma. Da alma que imaginou. A bomba, ao subjugar cordilheiras, alterou também o regime dos ventos. Corriam caminho novo inúmeras correntes de areia. O Saara encontrou a Namíbia, invadiu a França. Os degraus venezianos tiveram o mesmo destino dos diques escandinavos, dos portos malaios e da Serra do Mar – o deslocamento de contingentes colossais d’água redesenhou o contorno dos continentes, dando aos restos dos banhistas e dos refugiados de Lampedusa a mesma sorte. Não sei dizer como de fato ocorreu. Não houve versões, poetas, espólios, mares de mães partidas, matérias especiais. Finalmente encontramos um acontecimento imparcial. Os jovens não coçarão seus queixos narizes desconfortáveis durante o silêncio dos prolongados 10 minutos in memoriam por séculos a vir enquanto cozinham ressentimentos alheios em banho-maria. Não se fez memória. Por isso escrevo, mesmo sem o menor jeito, tudo que sei. Eu imagino que possa ter havido mais de uma bomba, não se sabe. O fato é que à nossa língua coube absorvê-la como acontecimento uno, presença onipotente e ostensiva. Apesar de ser hoje o motivo determinante ao redor do qual orbitam todas as nossas ações, evitamos ao máximo abordar o assunto diretamente. Discutimos contingências, distribuição de alimentos, racionalização de energia. Mas há entre nós um pacto tácito de não encarar a bomba de frente, tanto em nossas conversas com os outros como em nossas repetitivas conversas com nós mesmos. Não indiferença, mas uma espécie de obsessão fugidia. Como não houve notícia, a notícia nos atingiu pela ausência. Primeiro, os sinais de televisão pararam. Mas isso acontecia todo ano durante as longas nevascas. Intrigou-me a internet. emudeceu. As notícias ficaram congeladas no dia anterior à bomba. Visitei-as inúmeras vezes: tenistas loiras em quadras de saibro, uma coluna sobre as implicações éticas relacionadas a um vídeo que viralizara ao mostrar um homem de meia-idade no Arizona fazendo malaba-
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rismo com chinchilas, tragédias humanitárias em recortes persas, receita de cheesecake, praga que se desenvolvera em meio a pesticidas se espalha, afinal o ovo faz bem ou mal, alterações legislativas na seguridade social, o garoto gago de Leeds surpreendera novamente os jurados. Nada significativo que antevisse a bomba. Havia uma sensação geral de receio quando passávamos a língua no céu da boca, mas isso era tão comum quanto as nevascas. As superestruturas sobreviveram impressionantemente bem. Os cabos de fibra ótica transpassando intactos os oceanos, servidores em galerias subterrâneas, os satélites em seus extensos metabolismos: toda colcha de retalhos binários a validar complexo delírio à espera de que um dia alguma espécie venha a se debruçar sobre essa infinita miríade de equivalências, desvelando os meandros de uma gigantesca trama. Montar um grande painel de semânticas, subjetividades, suspiros. Acordar as pessoas das câmaras antibomba de criogenia, imersas em seus próprios ego, para verem os deuses distópicos. Revelar milênios, milênios, milênios de horas gravadas, horas declaradas, horas inventadas, horas roubadas. Ecos, fragmentos, mentiras, vestígios. Mas escafandrista não havia. Havia Penélop, a quem eu estendia a comida enquanto ela mantinha seus olhos fixos. Porco e batata, sempre. Por ser o vizinho mais próximo, eu assumi a tarefa de levar a comida que nos era distribuída às quintas-feiras – contanto que tivéssemos alguma função. Enfrentei alguma resistência, mas a verdade é que não comeria por si e os menos ignorantes entre nós viam importância em seu isolamento. Atravessei a sala de madeira onde vivera sua mãe, sóbria mas elegante, as roupas todas jogadas no chão, talheres, copos, roupas. O aquecimento central estava ligado, porém muito menos do que o razoável. A impressão era de uma pessoa levemente louca, cobertor branco já bem sujo, as olheiras suficientemente roxas para que me perguntasse se era natural ou acidente, a maçã do rosto saliente ressaltava uma magreza quixotesca entrecortada por longos cabelos loiros e brancos irradiando resquícios de uma beleza aristocrática e distante que um dia ostentara. As pessoas a chamavam de veladora, estrangeira, mau agouro. Raiva pega feito superstição e pouco fez para melhorar sua imagem com os locais. Durante sua curta estadia, agiu com uma atitude que oscilava entre uma incomunicabilidade inocente e uma arrogância, que se manifestou inicialmente de forma leve, esfumaçada, sem o seu consentimento, e foi aos poucos engrossando, à medida que retroalimentava uma hostilidade exterior velada e aguda, até se tornar uma espessa armadura que lhe comprimia o peito mas protegia das hienas.
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Foi a pessoa mais atingida pela bomba. Na verdade, a única. Carregou-a nas costas no colo nos lóbulos e nos olhos porque se foi o peito. A única mãe a velar. Cresceu aqui, me lembro de um insistente sorriso coberto pelos pelos de raposa do seu capuz no dia em que sua mãe espancou a nossa porta desesperada por haver perdido a menina no início do outono, que no final estava deitada do lado de fora da casa sonhando contando flocos. Mas a ausência cria distância e hoje é estrangeira. Casara cedo. Seu marido, advogado canadense, tinha ficado em casa ouvindo Leonard Cohen e cuidando das duas crianças e do pequeno universo que construíram em torno de um ímã. Ela voltou, após uma ausência de vida para ver a mãe, que ligara tossindo sangue. Chegou a tempo de medir a pressão, esfregar o dorso dos dedos em seu rosto e assinar os papéis sem lê-los. Todos esperavam que ela desaparecesse para sempre – inclusive ela. Mas os sinais falharam, não havia voo, travessia nem contato com a casa. Começou a frequentar nossa igreja, nosso mercado, nosso centro comunitário, a interromper a nossa comunhão para anunciar a sua condição de ilhada. Tão insistente foi que chegamos a questionar se não éramos nós os mortos ou se poderíamos simplesmente calar essa mulher incômoda. Aos poucos venceu pelo cansaço, foi nos sitiando com a verdade, os indícios foram se avolumando, a realidade se depositando de floco em floco em nossas soleiras até que impediu a abertura das portas. Não éramos muitos e a nossa esmagadora maioria pouco interesse tinha por assuntos estrangeiros, mas quando Penélop conseguiu reunir cinco pessoas em seu quarto para mostrar, na tela de seu computador, as imagens que conseguira, a bomba atingiu aquela sala. As três mulheres, acostumadas a escapelar focas, levaram a mão à boca em um gritinho abafado. Era possível ver de longe as imagens dos continentes, sobretudo um grande cinza. Imagem que era ampliada pelo deslizar de seu dedo: Berlim, Pequim, Mumbai, Moscou, Nova Iorque. Um emaranhado disforme de sombras sugeria a devastação total. O zoom era tamanho que era possível mergulhar nos detalhes dos escombros e retornar a Terra oval. Após um silêncio tão profundo que silenciou o barulho do computador trabalhando, Patmos anunciou: “Você fica no seu quarto”. Não houve oposição à decretação de prisão. Penélop, que não tinha motivo para ir a canto algum, apenas continuou a fazer o que já faria. A bomba encheu a vida de Patmos de significado. Feito se submetesse à lei da oferta e demanda e sua existência de repente passasse a valer mais na ausência de tantas outras, foi promovido de perdido à profeta e agia como se todas as almas tivessem se juntado em uma invisível arquibancada para assistir ao desenrolar do jogo de queimada de que era protagonista. Patmos sempre achou
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que deveria sair deste lugar, mas os dias iam ficando nele como louça na pia, a mãe que não aguentaria o inverno sozinha, o telhado a consertar, o cachorro doente, os afazeres e acabava que nunca partia. A vontade de partir era o buraco em seu peito, que foi preenchido pela bomba. O mundo que se partira, ele que ficava – preenchido. Tornou-se assim uma espécie híbrida entre o profeta e o golpista de estado. Passou a dar ordens e fazer afirmações sobre a predestinação. A bomba lhe conferiu autoridade e aura. Se não era totalmente convincente, não era totalmente duvidoso. É até possível que se consagre em outros escritos, mas não no meu, pois o conheço de beber vodka e mirar o vazio – sondava seu silêncio e seu desespero, não seria possível que me escapasse assim, por uma visão de satélite que também tive em um quarto sujo. A verdade é que precisaríamos reescrever o Gênesis e o Livro das Revelações, inventar uma nova metafísica, uma narrativa que nos orientasse, mas nos falta fôlego. Não saberemos o que fazer quando as coisas quebrarem. E nessa ausência, eu respondia semanalmente com uma insatisfação resignada aos seus questionamentos sobre o que encontrou Penélop. A existência da mulher lhe tira um tanto da autoridade, logo evitava encontrá-la. Eu também não me descreveria muito melhor, as potencialidades se esvaindo por entre os dedos. A bomba não aplacou o meu cinismo. Profundamente indiferente a tudo, a única recordação verdadeira que possuo é de observar a poeira dançando nas frestas da janela na vez que fui ao Mediterrâneo. Todo o resto é um grande estorvo, recordações falseadas, percepções alheias, dias violentamente iguais, projeções de projeções. E ainda tinha um filho, que tentava amar lhe fazendo perguntas. Daqui a um tempo vou levá-lo a atirar, tenho certeza de que se sairá muito bem. O ponto é que estendia a comida gelada e estudava aquela mulher como um enigma, sem saber muito bem o que dizer. Resolvi executar a minha função de carcereiro sem grandes atuações e perguntei se havia encontrado algo. Ela me estendeu a mão e o papel me cortou. Centenas de Latidudes e Longitudes precisas. Mesquita, elefante, Tai-chi-chuan, pasto Romênia, vendedor de Saidpur. Cadernos de compulsivas indicações, sua letra alongada em três colunas: duas indicações numéricas e uma descrição. Todas marcas que fez a bomba no chão. Conjurações. Algum vivo, perguntei. Ela balançou negativamente a cabeça. Olhei profundamente em seus olhos de grilo e em um instante de vertigem vi a humanidade, deixei a batata e o porco na mesa e sumi.
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Q UA D R I N H O
Brasil em: Sonhando acordado
rafael cadina
Brasil é um personagem de classe média que, dormindo, sonha com bens de consumo, como trocar de carro, comprar uma casa, viajar para Nova Iorque. Em meio ao sonho, começa a ouvir sons vindo de fora. De início, sonha com um panelaço; irritado, levanta-se e dirige-se para a janela do seu quarto e, quando abre, uma revolução está acontecendo. Quadrinho baseado no quadro de Eugène Delacroix, A liberdade guiando o povo. Representando as manifestações ocorridas em junho de 2013, faz um paralelo com a Revolução de Julho, acontecida em 1830, na cidade de Paris.
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CONTO
Do rancor acumulado ao revide fulminante thais dos reis
Foto: Malu Nicholls
Nosso pai ainda fala de você, da forma em que você se comportava aqui em casa. Foi o último filho homem a nascer e o primeiro a ir embora. Deixou nossos corações destroçados. Foi uma despedida seca, amarga, pior do que a morte repentina. Eu estava na porta quando você saiu, pegou a mala, não disse adeus, nem deixou um bilhete. Enquanto você seguia seu caminho, eu observava pela fresta da porta e chorava. Naquele dia, nosso pai me deu uma surra. Descontou em mim a raiva que tinha de você. Ao longo dos anos, eu o olhava e não conseguia sentir amor por ele, tinha um certo desprezo guardado no peito. Ele sabia disso, que meu carinho não era sincero. Agora ele está muito velho, muito fraco... Tenho dó dele, nosso pai nunca amou de verdade. Não amou nem a mulher, nem os filhos. Hoje, ele comentou que você dançava muito bem, que você conquistava as mulheres com seus passos rápidos, com a sua pegada forte. Eu me lembro. Amava ver você dançar, amava quando dançava comigo. Você me carregava, meu cabelo balançava e batia em seu rosto. Adorava quando você me levava para o centro da roda, eu me sentia como uma princesa em dia do baile. Uma princesa que dançava forró. Sei que a morte da nossa mãe mexeu mais com você do que comigo. Você viu tudo, eu estava viajando e era muito
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pequena. Eu sempre quis te dizer isso, mas não tive a oportunidade: ninguém foge dessa dor, da dor de perder alguém amado. Eu a vivenciei duas vezes e a pior foi quando você partiu. Quando eu era mais jovem, fingia que não me importava, até brincava que você tinha me feito um favor porque eu finalmente teria um quarto só meu. Era mentira. Nunca comentei com ninguém, mas naquele dia eu também tinha preparado uma mala na esperança de que você voltasse pra me buscar. Acho que nosso pai está louco, não tem falado coisa com coisa. Às vezes se esquece de quem é, diz que foi um herói da guerra. De certa forma, é verdade: ele foi um herói. Ele nunca nos deu amor, nunca foi carinhoso, mas nunca nos faltou nada. Enquanto os vizinhos passavam fome, nós podíamos escolher o quê comer. Ah! Que saudade da minha infância. Eram tempos difíceis, ninguém tinha dinheiro para nada. Lembra quando você me deu uma boneca que fez com as espigas de milho que sobraram do jantar? Eu tinha pedido uma boneca de Natal. Nosso pai não tinha dinheiro, então você fez uma, improvisou qualquer coisa até conseguir me agradar. Quando eu vi a boneca de milho, que tinha fios no lugar do cabelo, eu fiquei encantada. “Era exatamente o que eu queria”. Um dia a mãe do Carlos comprou um tênis para ele. O tênis ficou pequeno demais, então ele lhe deu de presente de aniversário. Você não os tirou dos pés por meses, queria até dormir com eles. Os usou tanto que o par esquerdo chegou a furar. Eram ridículos: amarelos com detalhes em formas de raios, vermelhos e pretos... Naquela época, pareciam bonitos, tanto que você usava com qualquer tipo de roupa. Incrível como éramos ingênuos, achávamos que momentos assim durariam para sempre. A primeira vez em que você trouxe uma namorada para casa foi muito dolorosa pra mim. Eu tinha ciúmes dela, tinha medo de não ser mais a sua preferida. Hoje eu sei que se tratam de sentimentos completamente diferentes, mas naquela época me soava como traição. Você tinha vergonha de trazê-la em casa, pai dizia que só poderiam ficar juntos se fosse na sala. Ele me mandava sentar entre vocês durante as visitas, dizia que não era para deixar que se encostassem. Um dia você pegou na mão dela, eu fui correndo contar para o pai. Ele quase te matou, gritou durante a noite toda. Você ficou uma semana sem conversar comigo. Como eu sofri! Você e Carlos eram amigos de longa data, foram criados juntos, estudaram juntos, saíam juntos. Eram amigos, mas pareciam irmãos. Fizeram escolhas completamente diferentes e, mesmo assim, se identificavam. Carlos se casou muito cedo, teve gêmeos logo de primeira viagem, batalhou para construir a
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própria casa. Você sempre quis estudar, mas antes queria conhecer o mundo. Acho que, no fundo, todo jovem quer isso, conhecer o mundo. Você era um sonhador e foi isso que o arruinou. Enquanto os outros progrediam nos negócios, você achava que ganharia dinheiro escrevendo poesias. Quando instalaram a usina aqui na cidade, nosso pai logo ordenou que você se cadastrasse, nem que fosse para fazer o trabalho mais pesado. Papai repetia: “Eles acabaram de chegar, precisam de gente, vão contratar qualquer um que apareça... Até mesmo você.” Mas você não dava ouvidos, queria escrever, vivia por isso. Foi duro ver você chorar. Papai pegou seus rascunhos e os jogou no lixo, disse que, se você não arrumasse emprego, seria um homem morto. No outro dia, você já estava com a carteira assinada. Ainda que não tivesse dito, ele estava orgulhoso de você. Quando você chegava à noite e logo corria para o seu quarto, eu sabia perfeitamente o que ia fazer, eu escutava o barulho dos papéis. Você pegava um velho caderninho e começava a escrever. Talvez fizesse sucesso se tivesse sido poeta, talvez... Mas, depois daquela bronca, nunca quis publicá-los. Enquanto você se afundava naquela usina, fazendo o mesmo trabalho todos os dias e ficando cada vez mais deprimido, Carlos ganhava mais e mais dinheiro. Os vizinhos não se cansavam de comparar vocês dois, você era o perdedor. Um dia Carlos chegou com o carro do ano, novinho em folha, vermelho. Tão vermelho que os olhos doíam. Papai ficou revoltado. Ele se perguntava por que você tinha sido filho dele ao invés do Carlos, que era mais inteligente, “o jovem promissor”. Eu admirava a amizade de vocês, tinham uma cumplicidade invejável, até mesmo na época em que Carlos entrou para a política. Eu sei que vocês estavam um pouco afastados, talvez porque ele conquistava um mar de eleitores enquanto você continuava naquele mísero emprego. A sua partida me ensinou uma lição marcante, a de que as pessoas podem ser muito cruéis, que a vida não é tão bela quanto nos filmes. Eu passava pelas ruas, às vezes a caminho da escola ou do mercado, e me apontavam dizendo que eu era irmã de um assassino. Diziam que você era um covarde, invejoso. Eu sabia que elas não tinham razão. Nós sabíamos. Meu arrependimento foi nunca ter defendido você, nunca ter virado a mão na cara daquela vizinhança fofoqueira e medíocre. Ao invés disso, eu permanecia calada, abaixava a cabeça e seguia o meu caminho. Você é um dos homens mais corajosos que eu conheci, sempre se metia em brigas para me defender. Um dia eu cheguei da escola aos prantos porque estavam
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zombando dos meus óculos. Você não pestanejou, na manhã seguinte estava lá, parou no portão do colégio e gritou que daria um soco em quem me chamasse de quatro olhos. Nunca mais repetiram aquele apelido. Quando encontraram Carlos na sala, com um tiro na cabeça, a notícia se espalhou rapidamente. Todos queriam saber a identidade do assassino. Eu sei que você não o matou, ainda que a cidade inteira pense o contrário. Nosso pai mandou que você fosse embora, com medo de que a polícia o encontrasse; ele viu que você estava com a arma que o matou. Foi duro ver nosso pai chorar. Semanas depois que você partiu, eu encontrei um de seus diários, estava embolado na lixeira da cozinha. O cheiro daquele lixo me causava repulsa, os papéis molhados e misturados com comida estragada. Mas eu peguei e guardei com carinho, aquilo era o que tinha me restado de você. E eu me apaguei àquele diário e o amei como se fosse um tesouro. Não me esqueço das coisas que repetia, dizia que “diários não foram feitos para serem lidos por estranhos”, que eles eram “secretos porque as páginas revelavam a alma de quem os escrevia”. Hoje eu entendo o porquê. Eu li linha por linha do que você escreveu. Você estava lá no dia em que Carlos morreu, fez de tudo para acalmá-lo. Ele estava atolado em dívidas, gastava tudo o que recebia em prostitutas e em jogos de azar. Ele chorou para que você o ajudasse a achar uma solução para manter a boa reputação, disse que se preocupava com a família, principalmente com os filhos. Ele pediu que você buscasse um copo de água. Você se virou e não viu quando ele sacou a arma e disparou contra a própria cabeça. Nas páginas, você se chamava de burro, dizia que, se não tivesse se afastado de Carlos para pegar a água, talvez ele não teria se matado. Sabe, a gente não pode lutar contra o destino. Você tinha feito uma promessa e iria mantê-la, não deixaria que as coisas podres que o Carlos cometeu viessem à tona. Pegou a arma e saiu. Será que você fez isso por amizade? Por ética? Lealdade? Eu nunca encontrei a resposta e passarei o resto dos meus dias me questionando isso... Queria que soubesse que a mulher do Carlos se casou de novo, os filhos estão bem e, ainda que digam a quatro ventos que querem vê-lo preso e que vão se vingar, tenho certeza de que estariam gratos se soubessem da verdade. Peço desculpas por ter lido o seu diário, por não ter respeitado a sua privacidade... Por conhecer a sua alma. Amo-te agora mais do que nunca e espero reencontrá-lo em breve.
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I D E IA S
Firmamento do que restou douglas gonçalves santos
O húmus fertiliza a terra preta para verdear a vida. A formiga que come o fungo morre e nutre o solo para que novos fungos cresçam. Laura não sabe por que gosta de Adoniran Barbosa. Não entende o porquê de gostar de vestidos de renda nem consegue explicar seu flerte por artes plásticas. O que é o adubo senão uma compostagem de sobras?
Lucas Lavecchia
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P O E S IA
Canção do exílio (modo mínimo) lucas lavecchia
Um poema mínimo, traduzido pela concepção da conjuntura estética e da alma de Gonçalves Dias, com influências de José Paulo Paes (“Canção do Exílio Facilitada”) e das possibilidades de construção de Augusto de Campos. Sua compreensão tem sentido quando referenciado o poema matriz. Os advérbios traduzem seus significados pela forma. “Lá”, naquele lugar, naquele país, para aquele lugar, ao longe ou para longe, naquele tempo, naquela perspectiva, distante, separado. “Cá”, nesse lugar, nesse país, para esse lugar, bem perto ou aqui, próximo. A “Canção do Exílio” de Gonçalves Dias, escrita bem de longe, cá em Portugal, em julho de 1843, num continente europeu, afastado pelo oceano Atlântico. Única pelo romantismo nacionalista, em vigor pelo recente rompimento do Brasil-Colônia, expõe as preciosidades das terras lá do Brasil. É um poema parafraseado por outros escritores, como Oswald de Andrade, Carlos Drummond de Andrade, Murilo Mendes, Casimiro de Abreu, Mário Quintana, Tom Jobim, Chico Buarque, Eduardo Alves da Costa, Jô
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Soares, José Paulo Paes. Gonçalves Dias refere-se ao Brasil usando o advérbio de lugar “lá”, para matar a saudade de sua terra, onde encontra os seus prazeres, e usa o “cá” para explicitar a falta, o desprazer, o exílio em Portugal. Canção do Exílio (Gonçalves Dias) Minha terra tem palmeiras, Onde canta o Sabiá; As aves, que aqui gorjeiam, Não gorjeiam como lá. Nosso céu tem mais estrelas, Nossas várzeas têm mais flores, Nossos bosques têm mais vida, Nossa vida mais amores. Em cismar, sozinho, à noite, Mais prazer encontro eu lá; Minha terra tem palmeiras, Onde canta o Sabiá. Minha terra tem primores, Que tais não encontro eu cá; Em cismar — sozinho, à noite — Mais prazer encontro eu lá; Minha terra tem palmeiras, Onde canta o Sabiá. Não permita Deus que eu morra, Sem que eu volte para lá; Sem que desfrute os primores Que não encontro por cá; Sem qu’inda aviste as palmeiras, Onde canta o Sabiá.
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José Paulo Paes, poeta moderno, escreve a “Canção de Exílio Facilitada”. Trata-se de um poema ultrassintético, estruturado na estética de dizer o máximo com o mínimo de palavras, cujo sentido também depende da referenciação ao poema matriz de Gonçalves Dias. Os advérbios e interjeições dão expressão e significado ao poema: “lá? Ah!” (satisfação), “cá? Bah!” (descontentamento). Canção do Exílio Facilitada (José Paulo Paes) lá? ah! sabiá… papá… maná… sofá… sinhá… cá? bah!
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MICROCONTO
Toda a areia e todo o oceano eugênia gabriela souza e silva
Levou pra casa uma conchinha, mas era como se tivesse carregado a praia inteira no bolso. Tomava muito cuidado ao mostrá-la para os amigos nada curiosos. À noite, colocava-a em uma caixinha e a guardava no fundo da gaveta. Zelava pela conchinha como se fosse uma pérola e a amava como se ela fosse toda a areia e todo o oceano.
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CONTO
Alguns spoilers e confissões que eu entrego a Deus eduardo benesi
Padre, vim aqui me confessar por toda a sobra que me incomoda, por todos os fragmentos que me afligem, pelos restos que não amo. Vim pedir perdão por todos os spoilers que virei a entregar para a humanidade. Estou preso nesse grau zero, fatigado pelas minhas incompreensões mundanas e descontentes. Spoiler 1: vou passar em uma Universidade Pública porque me foi prometido um carro – isso eu não podia contar. Mas um dia vou descobrir que não foi mérito, foi resto de privilégio, foi berço quentinho. Será que Deus está me olhando? Tenho medo das moscas, dessas que a gente não vê, e há sujeira, gente que come restos da dignidade. Falam de uma tal Deep Web. Um calabouço de atrocidades virtuais, um submundo que pode a qualquer momento puxar nossos pés, ou roubar-nos um rim. Acho que existe o tal paraíso e o contrário: a tal rede soturna. Eu quero um paraíso, aceito até moscas inofensivas. Os restos? Entrego para Deus.
Foto: Eugênia Gabriela Souza e Silva
Spoiler 2: um dia, com o meu carro-troféu, vou fechar o vidro no farol para um rapaz mal encarado. Me ensinaram a me proteger fechando o vidro. É que assim a mosca não entra. Mas um dia vou descobrir que a cor dele é tudo, menos perigosa – isso eu não podia contar. Perigo é o que eu penso. Perigo é o que eu faço para que ele se torne alguém
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de quem eu tenho medo. Será que Deus está me olhando? Vejo uma mulher revoltada na fila do banco. Diz que outro dia ofereceu o resto do seu sanduíche para uma maltrapilha e ela não quis. Como pode tamanho absurdo? Lembro, então, de um amigo que certa vez me disse: “Quem já abandonou tudo, não luta por migalhas; talvez não seja o que ele quer comer”. Penso em repetir a frase para ela. Mas não me meto. Entrego para Deus. Spoiler 3: um dia, no filme Crash no limite, o personagem branco e loiro, até então o mais virtuoso de todos, acaba por cometer um assassinato – isso eu não podia contar. Ele defende o filme todo que as moscas não fazem nada, mas no fundo ele amava eram os restos, como as boas moscas. Será que Deus está olhando? “Soborô” = sobrou. Esse é o nome das “receitas de emergência” que eu faço quando não tem marmita na geladeira, nem mãe em casa. Tudo feito de restos, já que as boas moscas não estão à minha disposição. Fervo a água. Coloco o espaguete de pé, até que ele adormeça inteiro na água, espere doze minutos, coloco em um coador e reaproveito a panela sem água. Jogo azeite e ouço um barulho de fritura. Jogo novamente o macarrão na panela e misturo com alguns tomates-cereja, ralo o resto de parmesão da gaveta de frios, abro um ou dois ovos e dou uma incrementada com Sazón. Como e repito, sem oferecer as moscas. Se sobrar? Se sobrar, eu entrego para Deus. Spoiler 4: estou um pouco apertado para ir ao banheiro. Meu pai está lendo o Destak enquanto habita o trono matinal, mas ainda está na página de esportes; demora até que ele chegue à página de cultura e variedades. Vou então ao banheiro de empregada – essa parte eu não podia contar. O espaço é pequeno, mas ela é sortuda de ter um banheiro exclusivo. Quanta sorte, uma privada particular, um camarote escatológico. Nem as moscas têm. Me vem aquela frase tão boa quanto conformista: “é o que tem pra hoje”. Será que Deus está me olhando? Vou a Curitiba em busca de um velho Gepeto, um artesão mágico. Faço amizade e me convido para ir a sua casa. Não quero atrapalhar, então como algo para enganar o estômago antes de chegar. Toco a campainha, oi, com licença, entro. Ele acabou de almoçar. Tem uma quentinha que ele comprou pra mim. Minha fome é sempre um engano, mas não rejeito nem as moscas, nem os restos, embora odeie pizza amanhecida. Abro a quentinha e não vejo moscas. Vejo restos. Uma mistura caótica de frango, com macarrão, feijão e uns
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pedaços de bife, tudo de uma cor só, um pouco mexido, mas com afeto exagerado. Engano o estômago e o velho artesão. Digo que já comi. Assim como uma boa mosca. Penso no que ele vai fazer com aquela quentinha rejeitada. Mas entrego para Deus. Spoiler 5: andarei pela rua nesta tarde e o mendigo vai pedir uma moeda. Dentro da minha programação mental, eu sempre digo que “não tenho” – isso eu não podia contar. Um amigo meu conta que, quando lhe pedem moeda, ele responde que “Não”. Responder “não tenho” é mentira e ele não se sente bem mentindo. Fico um pouco confuso sobre isso. Prefiro mentir a ofender. Na verdade, a culpa me pega, de um jeito ou de outro. Mas sigo culpado em direção ao Burger King, para comprar o novo sorvete com cobertura de chocolate Sensação. Será que Deus está me olhando? Jogo no Google a definição para a palavra “assepsia”. Substantivo feminino 1. ausência de matéria séptica (infecciosa, patogênica). 2. conjunto de meios (esp. físicos) us. para impedir a entrada de germes patogênicos no organismo e prevenir infecções. Penso se essa alergia ao outro tem relação com a sujeira, com o medo da contaminação. Afinal, amo os restos e as boas moscas. Se forem boas, que mal tem? Se tiver, entrego para Deus. Padre, eu sei que Deus está bastante ocupado para os meus arrependimentos. Mas posso dar um jeito nisso. Quanto custa um Perdão? Tem um plano mensal, trimestral ou um plano ouro anual com direito a milhas? Aliás, preciso te fazer um convite. Hoje vai rolar uma reunião em uma pizzaria dos Jardins, sobre um novo negócio que está alavancando o mercado jovem. São os produtos Monavie. Não posso falar muito, por causa das moscas. Mas já lhe asseguro que não é pirâmide. Funciona como marketing multinível. Algum veterano te ajuda feito uma boa mosca e nós ficamos com os restos. Você recebe mensalmente produtos naturais à base de açaí cultivado sem agrotóxicos e com propriedades milagrosas. Eles entregam na sua casa, e, caso eu esteja perdoado, separo até uma amostra grátis e entrego para Deus. Padre?
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Ensaio visual maysa ribeiro
espia atravessa a transparĂŞncia fora dentro utopias descabeladas dentro fora um navio a zarpar fora isso minhas banalidades
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Fotos: Jonilson Montalv達o
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MICROCONTO
À mosca da sopa ao lado anna bella bernardes
O homem esperando as latinhas que bebíamos ainda continua lá Você continua aproximando seu rosto pra eu te roubar um beijo A vontade de permanecer juntos na primeira das nossas muitas noites também Ainda tô sob efeito daquela primeira borrifada de inseticida que a gente tomou
Foto: Banco de imagens
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P O E S IA
Passageiros thais veiga
Carros a passar Motos a buzinar Atropelar desvio gritar Uma mulher olha o celular Uma carroça de reciclagem vai devagar Um gari recolhe os restos De algo natural, de algo menos desumano Ensimesmados, os motoristas olham Eta vida besta, meu Deus. Tenho direitos bradam aflitos ao dirigir as máquinas me dê a passagem para o portal da calma que não seja cama que não precise de drama Pasárgada do bem querer onde a máquina já não importa e os abraços são a mais alta tecnologia
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Sobre a calçada lucas lavecchia
Sobre a calçada, uma piaçava. Não sei o que está na moda, sei o que está no lixo. Lixo é desejo outrora conquistado. É luxo acumulado. É resto do desejo consumado. E o luxo? Luxus, luxação, ostentação? É lixo!!1 São palavras que não se dão. O lucro? O lucro?!1 Já falei, é lixo!!1 Lixo que encontro depois que passa a multidão. Sou homem com ofício de urubu. Pé rapado, mãos de fibra de madeira. Filho de mulher trabalhadeira. Meu corpo é caco espalhado. Organizado em mesa de cabeceira. Vira e mexe encontro uma palavra dentro da lata de lixo. Consumo-as, para não jogá-las fora. Minhas palavras são mais limpas que meus restos. Escrevo juntando lixo da cidade. Sem borracha, apenas com vassoura, pá e um sabiá. É a virtude de escrever pelo avesso, quando está do lado de lá. Perdoe-me por não reciclar suas palavras. Ódio, rancor, violência e paixão. Gera poluição. Do presente não quero saber. Do tanto que vi, gostei de nenhum pouco. Só reciclo o futuro, o resto é em vão. Tal como os pombos, os vira-latas. Tal como os velhos, os burocratas. Tal como os restos, as moscas|
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Hoje eu só quero dançar pither lopes
Fui mal com o mundo. Me pediram uma mão, fingi ser surdo. Sempre olhei diretamente nos olhos ingênuos que encontrei e assim, me tornei um mestre na arte de mentir. Fui muitas vezes covarde, injusto e cretino. Bebi muitas lágrimas por onde passei. E brindei ao ver sinais de incompletude nos que têm ombros abertos. Com isso ganhei o título de desumano. É insuportável saber que todos os meus dias serão tortos. Tomei uma decisão. Comprei uma corda. Mas antes de me despedir peço perdão a todos que se aproximaram de minha voz doce e olhar sincero. Deixo uma dica, não confiem em quem sorri muito. No fundo, nunca quis roubar o brilho de vocês Mas algo muito maior dentro de mim, por natureza, quis desapontá-los. Fui um projeto mal programado. Agora farei um bem a todos e até mesmo a mim. Quero sentir um pingo de paz plena. E eu não poderia ter escolhido dia melhor. Hoje o Sol me dá o horizonte que nunca enxerguei. Caminho em direção ao pé de manga que me conhece desde minhas primeiras peraltagens. Cada passo que dou, me sinto mais leve e o vento me carrega agora. Me despeço chacoalhando meus pés, dançando. Vou feliz. Levo comigo esses últimos minutos para a eternidade.
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CONTO
O sonho de Hakim thadeu nogueira
Sua roupa laranja era a própria primavera, e eram também primaveris os modos de Abdul-Hakim: coroava sua cabeça um ornamento marrom perfeitamente ajustado à cabeça de cabelos rentes. Eram bem rentes, nem se poderia vê-los muito bem... A pele preta brilhava e seu asseio era muito respeitado. Estava perdido na selva de gentes e costumes diferentes, enigmáticos. Abdul acordava antes do amanhecer e, nos primeiros raios do sol, já estava na rua brilhando. Sua pele brilhava no sol. Era lindo de ver. Para seus vizinhos de parede, o seu ritual tinha algo de metódico, quase uma fuga do cheiro de comida do restaurante chinês vizinho. Era cheiro de shoyu e rolinhos primavera dentro do nariz, e impregnava tudo no predinho de tijolos à vista. Muito óleo quente e pouco espaço acentuava o mal-estar entre os moradores: não havia nada a fazer. Apenas fugir ou ficar. Ele se decidia a cada manhã. Apesar de ser feliz assim, algo estremeceu nas bases. Imaginou o que seria de seu lugar natal, das pedras mágicas, de seus pequenos. E o sentimento foi tão arrasador e quente por dentro, que Abdul teve que dar um jeito. Pra não pensar, comprou um calmante e se trancou. Dois dias de sono foram suficientes, dois dias a menos para pensar como fazer com o aluguel, aquele dia temido em que a má
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senhora bate na porta, sem humor, sem felicidade; faz aquele palco todo e, como todos os meses, a solução mágica que chega no último segundo. Lembrou que sonhara nesses dois dias que era um vendedor de fermento químico, e estranhou a situação, pensando “e não biológico?”, e lembrou que o telefone não parava de tocar dentro do sonho, oi, oi, oi, era a proprietária e aquela buzina insuportável do lado de fora; julgou sonho de efeito do calmante vencido que tomara pela boca. Há algo estranho nesse tipo de serviço químico. E a campainha tocou “bim bom”. Abdul congelou como estátua. Nada restou.
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textos e autores da oficina de escrita criativa do centro cultural s達o paulo julho de 2015