Jornal Extra Classe, ano 19, número 187 | Especial doação de órgãos e tecidos | setembro de 2014
ARTIGOS
Modelo espanhol é referência no mundo
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m 2014 celebramos o 25º aniversário de criação da Organização Nacional de Transplantes (ONT) da Espanha. Antes de a ONT ser criada, a taxa de doação de órgãos no país não chegava a 15 por milhão de população. A partir da ONT, foram colocadas em prática uma série de medidas organizativas que se consolidaram no que se chamou de Modelo Espanhol de Doação e Transplantes. Não se trata de uma estratégia única, mas de um conjunto de ações. Isto permitiu alcançar cifras de doação entre 34 e 35 doadores por milhão de população, taxa mais alta do mundo. A criação e consolidação deste sistema organizativo foi facilitada por uma legislação adequada, que define morte encefálica e uma série de condicionantes técnicos, econômicos, políticos e também médicos. O principal ponto é a figura do coordenador de transplantes. A coordenação tem três níveis, inter-relacionados: nacional, do qual faz a parte a ONT como escritório central; regional, em cada uma das 17 comunidades autônomas da Espanha; e hospitalar. O Modelo Espanhol conta com uma auditoria contínua e um programa de qualidade da morte encefálica que permite entender que fatores hospitalares podem influir na perda de doadores e como estabelecer mecanismos para melhorar a captação. Prevê uma compensação econômica para cobrir os gastos do hospital e a dedicação do pessoal quando há uma doação de órgãos. É um tipo de subvenção para formação e fomento de todo o processo.
Ivo Nesralla
Nos 25 anos de trabalho da ONT foram desenvolvidas estratégias para conscientizar a população e aproximar-se de setores considerados “chaves” através do Plano Estratégico para Redução de Negativas para a Doação de Órgãos. A ONT, em colaboração com a Universidade Autônoma de Madri, realizou pesquisas com a população para identificar fatores psicossociais que influenciam na tomada de decisão das famílias, o grau de conhecimento, o poder de influência das notícias e a eficácia das campanhas de divulgação. Além disso, foram feitas campanhas específicas para promover a doação. ESTRATÉGIA – A campanha Doação sem Fronteiras, realizada entre 2008 e 2011 com as comunidades de imigrantes na Espanha, permitiu estreitar as relações com as organizações de imigrantes, levando em conta as variedades linguísticas, o fato de que não existe a cultura de doação nos países de onde procedem, a religião e a crença de que o processo interfere nos ritos funerários. Folhetos informativos em espanhol, chinês, francês, inglês, árabe e romeno foram distribuídos em centros de saúde, em associações do povo cigano, em organizações não governamentais como a Cruz Vermelha, e na Comissão Espanhola de Ajuda a Refugiados. Ainda como parte do plano estratégico, a ONT mantém um telefone 24 horas disponível para contato. Anualmente faz uma reunião com jornalistas para anunciar campanhas, prestar esclarecimentos e comentar alguma situação de crise ocorrida na área da comunicação.
Cirurgião cardiovascular pioneiro nos transplantes cardíacos. Professor da Ufrgs. Diretor-presidente do Instituto de Cardiologia do RS. Membro da Academia Brasileira de Medicina
O transplante cardíaco é hoje uma rotina não só no Instituto de Cardiologia, mas em todo o mundo. E especialmente no RS essa história teve mais um impacto: os transplantes cardíacos alavancaram outros tipos de transplantes no estado como de rins de doador cadáver, e, posteriormente, fígado, pâncreas e pulmão. E tudo graças a esse primeiro doador de coração e a todo o engajamento da sociedade que veio a seguir. Um primeiro coração mudou o rumo da história de muitas pessoas. Falar sobre transplante de coração sempre mexe comigo, não só porque significa salvar vidas, mas também porque leva a um grande acontecimento para cirurgia cardíaca gaúcha e brasileira: a retomada dos transplantes cardíacos no Brasil. Nos anos 1960, o homem estava protagonizando grandes avanços. Em 1968, o cineasta Stanley Kubrick lançou o filme de ficção científica 2001 – Uma
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Beatriz Mahillo Durán
Médica adjunta da Organização Nacional de Transplantes (ONT), Espanha, responsável, entre outras atividades, pelo Observatório e Registro Mundial de Doação e Transplantes
Também são realizados cursos anuais para profissionais do meio jurídico e forense, porque há doações que requerem autorização judicial, como nos casos de traumatismo crânio-encefálico por acidente de trânsito, em mortes violentas, ou mortes súbitas em que é preciso descartar causa violenta. O objetivo é aproximá-los das novidades legislativas e técnicas e informar que na maior parte das vezes não existe problema ou interferência para o processo judicial se o falecido for doador. E, principalmente, há uma atividade permanente de formação de todos os envolvidos no processo. Trabalhamos com sociedades científicas e fazemos cursos de formação com profissionais de urgência, emergência e de cuidados intensivos. O Curso de Comunicação em Situações Críticas, ou o Curso de Comunicação de Más Notícias, é dirigido especificamente a coordenadores de transplantes para a entrevista de solicitação de doação à família. Cada país deve fazer uma análise de sua situação real, estrutura organizativa, condições sociais e econômicas para ver que aspectos de um modelo pode importar ou aplicar na sua realidade para incrementar as taxas de doação e transplante. Há muitas diferenças de uma região a outra, mas pode-se dizer que ao longo dos últimos anos se observou um incremento da atividade de doações e transplantes no mundo. Não é possível atribuir o crescimento a uma só estratégia: é o conjunto de todos os pontos do modelo organizativo de doações e transplantes que permitiram esse aumento.
30 anos de transplantes cardíacos no RS
Odisseia no Espaço. O homem pisou na lua em 1969. Pisar na Lua e trocar corações eram acontecimentos que faziam o homem acreditar que tinha poderes sobre-humanos. O primeiro transplante cardíaco foi feito por Christiaan Barnard em 3 de dezembro de 1967, na África do Sul. No Brasil, foi realizado em 1968, quando o professor Euryclides de Jesus Zerbini fez a cirurgia pioneira na América Latina, em São Paulo. Então, em 2 de junho de 1984, realizamos, no Instituto de Cardiologia, o primeiro transplante cardíaco no RS e quarto no Brasil, representando a retomada dos transplantes cardíacos, já que esse tipo de cirurgia havia tido uma pausa desde aqueles três primeiros transplantes feitos na década de 1960 pelo dr. Zerbini, em função do problema da rejeição do órgão pelo organismo do receptor. O próprio dr. Zerbini, a respeito deste feito do IC-FUC, chegou a escrever
no seu livro intitulado Operário do Coração: “Em junho de 1984, um cirurgião brasileiro fora do eixo paulista – o dr. Ivo Nesralla, de Porto Alegre – realizou o primeiro transplante sul-americano dessa nova era, com emprego da ciclosporina, o quarto da história do país. O paciente não sobreviveu, mas estava aberta a nova temporada de transplantes”. Comemoramos no dia 2 de junho deste ano os 30 anos desse primeiro transplante que tantas vidas mudou e me percebo emocionado. Estamos agora no transplante cardíaco número 199 da instituição e sinceramente espero que na publicação deste jornal Extra Classe estejamos festejando o txc nº 200. Olho para trás e vejo que valeu a pena não só para esses pacientes como para todos os transplantes de outros órgãos no estado. É o efeito locomotiva do transplante: puxando avanços científicos.