Lugares da memória

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Maura de Andrade • Teodoro Vieira

São Vicente – Santo André – Paranapiacaba – São Paulo 2016 Teodoro Vieira Novo


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Sumário Prefácio Com a palavra, a artista, a poeta, o sociólogo e o historiador Memorias Do porto ao planalto – A memoria dos lugares Uma caminhada em São Paulo Um breve histórico de São Vicente, a primeira Vila do Brasil Lugares da memoria São Vicente Aventura pela Baía da Ilha de São Vicente O litoral em duas rodas O Engenho dos Erasmos e a escola Usina Henry Borden Chegando ao planalto do Piratininga, atual São Paulo Poética Visual – Gravuras Sobre os autores Sobre os desenhos Referências

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Prefácio

Lugares da Memoria é um projeto premiado pelo Programa de Ação Cultural da Secretaria da Cultura do Estado de São Paulo – ProAC, onde o casal Teodoro Vieira e Maura de Andrade percorreu sobre uma motocicleta caminhos reais e imaginários, registrando e criando memorias pelos lugares que passaram. Inspirados na expedição dos colonizadores portugueses no Brasil, os integrantes do projeto refizeram o caminho realizado por Martim Afonso na Capitania de São Vicente e João Ramalho na Vila de Santo André da Borda do Campo até a Vila de São Paulo de Piratininga, que atualmente correspondem a Cidade de São Vicente, passando por Paranapiacaba, Santo André e São Bernardo do Campo até chegar à cidade de São Paulo. Foi um projeto de vivência e imersão artística que gerou histórias regadas a cumplicidade, afetividade, em busca de significados e a quem se pertence. Conviveram e trocaram experiências, registrando os relatos da comunidade, o fruto de sua memoria coletiva produzida sobre o lugar em que vivem. Explorando mais de uma linguagem artística, o projeto apresenta múltiplos olhares sobre a interação entre pessoas, suas memorias e as transformações ocorridas no espaço através do qual criaram identidade, fazendo com que o passado e o presente se fundam diante desta multiplicidade. O casal acredita que é possível construir relacionamentos fortes e duradouros entre os indivíduos quando a memoria se torna o elemento fundamental na formação da identidade cultural de um povo, registrando suas experiências significativas, valorizando e preservando seus pilares.

Maura de Andrade e Teodoro Vieira


Com a palavra, a artista, a poeta, o sociรณlogo, e o historiador

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Memorias Maura de Andrade

Escrever sobre memorias é um grande desafio, pois todos nós temos memorias de uma diversidade de fatos que ocorreram em tempos e lugares diferentes durante a nossa vida e, quando começamos a recordar, o tempo não é linear e as emoções comandam o percurso das lembranças. Minha infância foi marcada por belíssimas árvores frutíferas que meus avós maternos cultivavam em seu quintal na cidade de Guarulhos. Eram amoras, goiabas, limões, jabuticabas e um corredor coberto de uvas que se alternavam em diferentes épocas do ano para serem saboreadas. Com o tempo, percebi que aquelas gigantescas árvores não eram tão grandes, e sim eu que era pequena, mas meu encanto pelos troncos, folhagens e frutos daquelas árvores permaneceu pelo resto da minha vida. Quando começamos percorrer a grande muralha da Serra do Mar, ao lado daquela mata imponente, a memoria de se sentir pequena perante aquele desafio, entre temperaturas amenas e congelantes, acompanhadas de sol, chuva ou nevoeiro, me remetia à infância, presenciando a força da natureza. Em minhas lembranças, cresço mais um pouco e me vejo em uma noite escura de lua nova, dentro de um trem parado em Paranapiacaba, esperando a troca das locomotivas pela Locobreque, que iria, a partir daquele momento, nos conduzir para a descida da Serra do Mar. Foi um período em que minha família morava na cidade de Santos e estávamos retornando da visita aos meus avós, daquela mesma casa cheia de árvores em Guarulhos. Eu e meus irmãos virávamos os encostos giratórios dos bancos de dois lugares, inteiriços e almofadados, para nos sentarmos um de frente para o outro e podermos jogar cartas de baralho, comendo os biscoitos que minha avó havia preparado para a viagem. Era nesse momento da parada que o jogo era suspenso e uma mistura de expectativa, ansiedade e medo tomava conta de mim, esperando pelo forte barulho de ferragens, acompanhado do impacto entre os vagões, provocado pelo engate da locomotiva na parte traseira do trem, fazendo também chacoalhar minhas emoções. A descida começava lenta, ao som de uma frenagem metálica, vindo de trás, dentro de uma escuridão absoluta. Na tentativa de visualizar alguma coisa, eu encostava o nariz e a testa no vidro da janela, mas nada aparecia; então direcionava meus olhos para o céu e era nesse momento que a noite ficava mágica e brilhante, pelas estrelas que preenchiam todo o céu, as emoções se acalmavam e uma certeza de segurança e que tudo acabaria bem tomava conta de mim. Entre tantos lugares e memorias, essas da minha infância foram as que marcaram meu percurso no projeto e são as que me auxiliaram e inspiraram as imagens produzidas. Nelas acrescentei outras que se tornarão memorias do futuro e, quem sabe, até a história poderá se tornar outra. Penso o quanto somos capazes de transformar, com as memorias que são contadas por nós de diferentes maneiras, os fatos reais que aconteceram. O quanto os lugares podem se tornar fictícios e o quanto fazemos da memoria uma força de mutação de pessoas e lugares ao nosso redor.


O projeto, que propôs percorrer um caminho físico e real entre cidades paulistas, fez com que eu caminhasse por lugares que despertaram a imaginação, conhecesse obras criadas por pessoas e artistas do passado, projetos decorativos e monumentais, ricos em detalhes, além de ter a oportunidade de manusear mapas e documentos muito antigos, feitos manualmente com lápis ou bico de pena e nanquim, auxiliados com réguas e esquadros. O capricho e cuidado dedicado àquele material revela uma forma mais lenta de se trabalhar, em um lugar que necessitava de espaço e materiais específicos daquela época. Mesas, cadeiras e iluminação com certeza eram diferentes. Objetos e vestuário também estiveram presentes nessas nossas descobertas, contendo muitas informações sobre o seu tempo. Em outro momento, ao observar fotos antigas em preto e branco, a paisagem e as pessoas pareciam sair de sonhos. O tempo e o lugar em que aquele material foi conservado se incorporam na construção daquela história. Como viviam, quais as alegrias e os problemas vivenciados e quais as intenções daquele registro fotográfico? As respostas nos levam a novos lugares e a novas pessoas. Registramos para documentar um momento, para garantir a nossa memoria, as nossas histórias, seja para a futura geração da nossa família ou para a população de uma cidade, de um país. Em qualquer um dos registros, a neutralidade ou imparcialidade não existem, pois quando o fotógrafo seleciona um determinado ângulo e uma determinada luz, ele está acrescentando seu olhar e suas emoções em relação àquele tema e é assim que as memorias são construídas, repassadas e recriadas. Temos cada vez mais a necessidade de nos apoiarmos em arquivos, e a tecnologia nos ajuda a ter milhares de imagens digitalizadas, de documentos salvos em potentes computadores, e existe a tal nuvem, que dispensa qualquer dispositivo físico de armazenamento. Não necessitamos ativar nossas lembranças espontaneamente, porque em nossas mãos sempre teremos um recurso tecnológico que irá fazer esse trabalho. Podemos nos lembrar de coisas que nunca vivenciamos pessoalmente, mas das quais tomamos conhecimento através de outras pessoas, porque tivemos acesso à informação por meio de jornais, livros, revistas, rádio, televisão, computadores ou por qualquer outra mídia de comunicação. Essas lembranças farão parte de outras memorias que possuímos e continuarão sendo transmitidas e sendo arquivadas a mais memorias. Segundo o historiador francês Pierre Nora, uma das questões significativas da cultura contemporânea situa-se no entrecruzamento entre o respeito ao passado − seja ele real ou imaginário − e o sentimento de pertencimento a um dado grupo; entre a consciência coletiva e a preocupação com a individualidade; entre a memoria e a individualidade. Tanto as memorias coletivas quanto as individuais tornam-se histórias quando se apoiam em vestígios materiais para serem lembradas e recontadas. É muito difícil encontrarmos hoje em dia, principalmente em centros urbanos, uma memoria que está apoiada em uma tradição passada por gerações, que é vivenciada e conservada de forma espontânea, coletiva. Neste projeto, além da pesquisa baseada na história, fomos em busca da memoria direta, a narrada por alguém que a estava vivendo. Encontramos com pessoas e escutamos suas memorias individuais, presenciando as emoções que se alteravam e um certo brilho no olhar que sempre surgia. Em um mesmo lugar, com pessoas pertencentes a uma mesma geração, é incrível ver o quanto os relatos são diversificados. Somos únicos, e é isso que torna um lugar rico de informações, e a sua construção é a soma dessa diversidade de olhares e ações desse mesmo lugar. Entre todos com quem convivemos durante o projeto, tenho um especial carinho à aldeia Tekoa Paranapuã, que está localizada dentro do Parque Estadual Xixová-Japuí na cidade de São Vicente, onde vivem os indígenas Guaranis M’bya. Faz doze anos que os primeiros índios foram convidados e trazidos até a cidade para participarem de uma festa tradicional, a encenação da fundação da Vila de São Vicente, sendo na época acomodados no Parque Estadual. Ao passar do tempo outros indígenas chegaram e as famílias se proliferaram. A cultura e as tradições se mantem, passadas de pais para filhos, valorizando a vida e a igualdade entre


as pessoas e a integração do homem com a natureza. A língua guarani é falada por todos e as crianças pequenas só falam o guarani, são alegres e estão por todos os lados correndo, brincando. O lugar que foi ocupado em sua origem por Tupiniquins, continua sendo hoje a moradia de outros índios, dos nossos Guaranis M’bya, onde vivem com grandes dificuldades e privações, recebendo ajuda de cidadãos comuns e ONGs.. Espero que vençam as batalhas com o governo e a justiça e continuem vivendo por muitos anos ali, trazendo um equilíbrio ao lugar e contribuindo para não esquecermos de que a nossa história ainda possui raízes e tradições fortes, que devem ser preservadas com carinho. A Serra do Mar foi o destaque desse percurso. Foram várias subidas e descidas sobre a motocicleta, que nos proporcionaram diversas visões da paisagem. Apesar da Via Anchieta e da Rodovia dos Imigrantes serem caminhos percorridos por nós já alguns anos, pois Teodoro é santista, e por isso sempre tínhamos algum evento familiar que nos fazia descer a Serra, dessa vez nossas viagens adquiriram um novo olhar e novas emoções. Ela tornou-se extremamente grandiosa, exuberante perante os nossos olhos. E ter a chance de se aproximar de pessoas que ali trabalham foi enriquecedor. Funcionários do Parque Caminhos do Mar nos receberam muito bem, foram superatenciosos e nos permitiram usar o caminho da estrada velha de Santos com a moto. É um lugar onde o silêncio penetra em nossas almas, sendo perturbado apenas pelo som dos animais que ali habitam, nos conectando com a natureza; as marcas de garras felinas encontradas em troncos de árvores denunciavam que a vida selvagem estava ao nosso redor. Percorremos esse caminho duas vezes, uma caminhando e a outra pilotando. As experiências distintas foram importantes para vivenciar o caminho dos antigos pedestres que por ali passaram. Colonizadores, índios e escravos um dia também passaram por esse trecho da Calçada do Lorena em que estávamos naquele momento. É um caminho íngreme, com muitas curvas, pavimentado com gigantescas pedras colocadas lado a lado de forma aleatória, ladeado por muitas árvores, cujas copas, altas e frondosas, se fecham, de forma que a pouca luz de sol acaba sendo filtrada pelas folhas e galhos. Tivemos sorte de estar em um dia claro e de que fazia algum tempo que não chovia, e assim o caminho não estava escorregadio pelo limo e pudemos caminhar com mais segurança. Levávamos apenas uma mochila com alimento e bebida para aquele dia, uma carga que não se poderia comparar com a que os nossos antepassados levavam por aquele caminho. Segundo o instrutor do Parque que nos acompanhou, na época da escravidão chegou a ser transportado um piano até o Planalto. Além desse pequeno trecho histórico, percorremos por mais tempo a primeira estrada pavimentada com concreto, construída muitos anos depois da Calçada do Lorena. Foi um grande avanço, que proporcionou uma facilidade maior para o transporte dos produtos comercializados através do porto da Baixada Santista e diminuiu consideravelmente as perdas de mercadorias que aconteciam na antiga estrada precária e tortuosa. A estrada pavimentada também facilitou o acesso da população aos dois extremos, fazendo com que o turismo crescesse. Carros subindo e descendo a Serra tornaram a estrada de Santos um destino famoso, que virou inspiração musical nos anos 60. Tanto de moto como a pé, acabamos enfrentando dificuldades e testando os limites dos nossos corpos pelo caminho, o que nos fez imaginar o quanto foi difícil para os primeiros viajantes desbravar essa muralha, essa barreira física para a conquista do território. Subindo a Serra, deixamos para trás a paisagem belíssima da cidade litorânea de Santos rumo ao Planalto, passando por Paranapiacaba e por Santo André, antes de chegarmos a São Paulo. Por mais de uma vez visitamos a cidade de Santo André, uma cidade que conheço pelos seus espaços culturais, e a região de Paranapicaba, que se torna muitas vezes onírica, com sua neblina e baixa temperatura. A sensação de fazer parte de um sonho fez a imaginação ganhar espaço em meus traçados no caderno de viagem; foram momentos que desejei estar plenamente ali, por um longo tempo. O tempo pode se tornar amigo ou inimigo dentro de nós, e administrá-lo bem é sempre um desafio. Através dele nos colocamos em um determinado ponto de partida ou chegada e construímos os fatos que serão registrados em nossas memorias. Foi


no interior do Museu do Pátio do Colégio que senti o quanto um lugar pode nos transportar para um outro tempo. Apesar de se localizar no centro da cidade de São Paulo, com uma população gigantesca e barulhenta passando diariamente na sua frente, o seu interior captura e mantém um certo silencio. É possível sentar e relaxar observando um jardim bem cuidado, com pássaros pousando em um chafariz. A história daquele local é apresentada por objetos e uma gigantesca maquete no piso térreo. Subindo e depois descendo algumas escadas localizadas em posições opostas dessa sala central, outros artefatos históricos estão expostos ao público, mas foi na igreja ao lado do museu que encontramos o artefato mais impressionante, um fêmur do Padre Anchieta, em exposição dentro da capela. Hoje o pátio à frente está ocupado por muitos turistas durante o dia e à noite por moradores de rua. Nos fins de semana, a aceleração dos pedestres que passam pela região é substituída por mais turistas e o grande pátio torna-se a pista de um grupo de skatistas. Próximo ao Pátio encontram-se a Casa n. 1, o Solar da Marquesa, e o Beco do Pinto, lugares que preservam uma memoria e que possuem espaços expositivos, cedidos a mostras contemporâneas, para que a cidade continue construindo e apresentando outras histórias. Durante todo o projeto utilizamos a motocicleta para nos locomovermos. Em nossas vidas, a moto sempre foi a primeira opção de transporte, vai muito além da economia em combustível ou pedágios. Ela nos proporciona uma integração maior com o local que estamos passando, através do cheiro e da sensação térmica, além da visão ampla, sem obstáculos à nossa volta. Sua agilidade entre carros e caminhões nos proporciona mais tempo para podermos parar, em lugares pequenos e estreitos aos quais só ela consegue chegar, e assim apreciarmos alguma paisagem que encontramos pelo caminho. Criei uma habilidade para usar a câmera fotográfica enquanto viajo na garupa da moto, seja com o celular ou com a câmera digital. Foi por essa habilidade e a pela parceria de Teodoro, que muitas vezes reduzia a velocidade, que consegui registrar o nosso percurso em movimento. São registros peculiares da posição de um motociclista com o olhar de uma garupa. Optei em trabalhar com duas linguagens visuais, a fotografia e a gravura, integrando em alguns trabalhos ambas as linguagens, com a intenção de apresentar o passado e a transformação dele no presente. Na maioria delas busquei a delicadeza das linhas e a suavidade de manchas para expressar memorias que possam transitar pelo tempo. Coloco a minha transformação, o meu olhar e emoções, neste trabalho. Aqui criei memorias gráficas que poderão fazer parte das memorias de outras pessoas. A experiência foi enriquecedora, acrescentando, tanto de forma pessoal quanto profissional, um olhar mais atento a tudo que envolve a relação entre passado, presente e futuro. Alguns desdobramentos e muitos outros trabalhos poderão surgir sobre uma motocicleta, em novos caminhos, com outras memorias, mas a certeza disso pertence ao futuro, a um outro tempo.



Do porto ao planalto - A memoria dos lugares Dalila Teles Veras1

O preparo para a aventura. O pai, desbravador de horizontes, ordenou: − vamos. Ele, a mulher e os três filhos. Eu, a mais velha dos três. O ano era 1957, quase no seu final. Uma carta de chamada enviada por um primo que já morava no Brasil. A venda da casa e de quase todos os pertences. Numa arca de madeira, uma máquina de costura, alguma louça, roupas de vestir, cama e banho, o essencial para o recomeço na terra nova. O embarque na terceira classe, destinada aos emigrantes, do paquete Santa Maria, partiu da baía do Funchal, na Ilha da Madeira, para a travessia atlântica. No mesmo mar das caravelas, o navio sem velas também carrega gentes e sonhos. Onze dias depois, a chegada ao porto de Santos. O impacto diante da grandiosidade da Serra do Mar e a fabulosa engenharia da Via Anchieta, recém-construída, orgulhava e remetia aos conterrâneos navegadores que há cinco séculos subiram a serra em condições de maior coragem. No zigue-zaguear da subida, rumo ao planalto, o deslumbre misturado à expectativa. Das verdejantes sensações de então, da memoria desses caminhos, muito depois, a menina não mais menina, construiria poemas, como este2: do porto ao planalto, o choque Se vens a uma terra estranha / curva-te Orides Fontela íngremes e largos os longos caminhos vindos do mar (os mesmos já outros) rumo ao planalto - a terra nova (estranheza) destino incerto e final 1 Escritora, editora, ativista cultural. Publicou mais de vinte livros, nos gêneros poesia, crônica, ensaio e diário literário, ao longo de trinta e cinco anos. Reside em Santo André desde 1972, cidade onde nasceram suas três filhas e seus quatro netos. Fundou e dirige, desde 1992, a Alpharrabio Livraria e Centro Cultural, reconhecido polo irradiador de cultura. 2 VERAS, Dalila Teles. Solidões da memoria. São Paulo: Alpharrabio Edições; Dobra Editorial, 2015.


galgada a serra (o mar fora da vista) a metrópole (o mar apenas lembrança) velocidade e vertigem (o concreto como horizonte) desaprender (premência menina) para aprender a (o preço da aceitação) curvar-se (cidadania inaugural) Galgada a serra, trajeto de antepassados refeito, eis a cidade de São Paulo, o destino programado. Da fervilhante metrópole, as lembranças da então adolescente: o Viaduto do Chá, a imponência; a Praça do Correio, aonde chegavam e saíam os ônibus que me traziam e levavam à morada na Zona Norte da cidade; o trem da Cantareira; o bonde que levava toda a família, nos domingos, à casa de parentes residentes no bairro da Penha. O Centro do início dos anos 60: a Rua Quintino Bocaiúva, o curso de datilografia no Instituto Brasileiro de Mecanografia; a Avenida São João com Ipiranga, a Escola Roosevelt do curso de inglês; a então muito elegante Rua Barão de Itapetininga, o curso de secretariado, bem em frente à Confeitaria Vienense, onde um velho e curvado pianista, certamente do tempo de Mário de Andrade, animava o chá das tardes dos dias de semana; a Livraria Brasiliense nessa mesma rua, a delícia das delícias; dali ao Mappin, um pulinho e o deslumbre diante do consumo entrante; primeiro emprego no Viaduto Dona Maria Paula; a taça de “banana split” na lanchonete da primeira das Lojas Americanas, na Rua São Bento. O sanduíche de calabresa com suco na lanchonete Califórnia (era esse o nome?). São Paulo dos anos sessenta era uma metrópole com recantos ainda interioranos e é nos escaninhos desse hoje chamado Centro velho que residem minhas mais gratas memorias de São Paulo. Lugares guardados como pontos de identidade e identificação. Hoje, ao percorrer esses caminhos, ausculto as narrativas que a própria cidade oferece, narrativas não escritas, mas inscritas no imaginário, o meu e o coletivo, com todos os seus sentidos. 1972 – o casamento, a mudança para o meio do caminho, o lugar de passagem, a chamada Região do Grande ABC. a selva de outrora selviliza-se, robotiza-se. As sete cidades que são uma só, fronteiras abolidas, trilhos que ligam, rios e ribeirões, que separam e (re)unem. O ABC no curso maltratado do rio, destinos amalgamados. O lugar de onde se avista o mar. Samambaias enlouquecidas bromélias encharcadas


manacás arcoirismando lírios a rebentar brancuras quaresmeiras pontuais atlântica mata do oceano já distante : cenário. Santo André, o lugar da morada, com seu Paço Municipal − Centro Cívico – modernista, novinho em folha (projeto de Rino Levi e paisagismo de Roberto Burle Marx, tombado em 2010 pelo Condephaat) e seu Teatro Municipal com espetáculos grandiosos em estreia nacional. Hospital e Maternidade Brasil, recém-inaugurado, nascimento das três filhas e de tantos andreenses. O lugar eleito. O lugar para nascer, viver e, quem sabe, morrer. São Bernardo, o lugar do trabalho; a indústria, o automóvel, metalúrgicos, as greves, as lutas pelos direitos sociais, o surgimento de novas lideranças, operários e suas vozes, conquistas. A fundação de um partido político. O mundo de olho neste lugar já um pequeno mundo, dois milhões e meio de habitantes. Máquinas, máquinas. Trabalho, trabalho. O lugar também da palavra, do registro, do livro, das lutas literárias e culturais. O lugar da diversidade e miscigenação. Emigrantes, migrantes, gentes de todos os lugares. Culturas híbridas, amalgamadas etnias. A arte dessa aldeia é também universal. Reinventa-se, e no perigoso reinventar, descuida-se. No permanente renascer, por vezes, mata-se. Diante da morte dos lugares, o registro da memoria dos lugares. Este.


e descobrir uma rota alternativa às Índias, evitando a dependência comercial árabe, o navegador português Bartolomeu Dias recebeu o comando de uma expedição marítima do rei D. João II e navegou pela já conhecida costa africana, até o seu extremo sul. Sua viagem até Calicute durou quase um ano e os negócios geraram lucros exorbitantes à Coroa, apesar de não ter sido bem recebido pelos indianos. Ao deixar Lisboa em 9 de março de 1500, a missão de Pedro Álvares Cabral, com mil e quinhentos homens a bordo, estava muito clara: instalar uma feitoria em Calicute. Porém, depois de quarenta e quatro dias de viagem, e por um motivo nunca compreendido plenamente, no fim de tarde de 22 de abril de 1500, a frota de Cabral avistou um morro alto e redondo ao sul da Bahia, batizado de Monte Pascoal. Em todas as épocas, há a supremacia de determinadas regiões do globo, decorrente de sua capacidade tecnológica – e o Oriente demonstrou mais uma vez sua importância histórica. D. Henrique, filho de D. João I, incentivou o desenvolvimento em Portugal da técnica náutica, e a Escola de Sagres teve papel fundamental nessa evolução: bússola, caravelas mais modernas de baixo calado e expedições comerciais e militares com pólvora importada da China para as armas de fogoThales Guaracy ainda destaca: “O avanço da tecnologia de navegação foi essencial para o esforço de contornar a África pelo mar, dado o bloqueio dos mouros, que ainda ocupavam Constantinopla (hoje Istambul).”4 Apesar do poderio bélico da frota de Cabral, ao chegar à região baiana e se deparar com o povo tupiniquim, o ambiente se mostrou propício e amigável, dispensando qualquer possibilidade de confronto. Não era apenas por parte dos portugueses colonizadores, mas curiosamente os indígenas também estavam dispostos a trocar artefatos e compartilhar novas experiências. Certamente, a história teria sido diferente se os homens de Cabral tivessem se deparado com os ferozes potiguares – “comedores de camarão”, em tupi. Nos dez dias que passaram na esplêndida enseada tropical da atual baía de Cabrália, a vinte quilômetros ao norte de Porto Seguro, a frota de Cabral explorou as redondezas e coletou vários papagaios e alguns macacos. Antes de seguir viagem a caminho do Cabo da Boa Esperança, e daí para a Índia, uma das caravelas da frota, a de Gaspar de Lemos, voltou para Lisboa, levando junto um índio e também a Carta de Pero Vaz de Caminha anunciando o “achamento” do Brasil a El Rei D. Manuel. Ao ser apresentado à corte portuguesa, esse “indivíduo da geração humana” causou enorme espanto a todos – talvez ainda maior do que o causado pelos portugueses aos nativos ameríndios. Apesar do incrível acontecimento para a época, o “achamento” das terras além-mar demorou a ser esclarecido, se haviam realmente chegado à região das Índias, se não era o Japão remoto, ou se se tratava de um mundo novo mesmo. Uma coisa era certa, não havia ouro, e novos investimentos para dar continuidade à exploração marítima demoraram a ressurgir, deixando o território no ostracismo por três décadas. Motivado pela possibilidade de encontrar ouro, em 1530, D. João III enviou ao Brasil uma nova frota portuguesa para explorar o Rio da Prata, comandada por Martim Afonso de Sousa. Partiu em 3 de dezembro de 1530, com um galeão, duas naus, duas caravelas e quatrocentos homens a bordo. Esse foi o ponto de partida para a fundação da primeira Vila do Brasil, a cellula mater São Vicente.

4 GUARACY, Thales. A conquista do Brasil 1500-1600: como um caçador de homens, um padre gago e um exército exterminador transformaram a terra inóspita dos primeiros viajantes no maior país da América Latina. São Paulo: Planeta, 2015



clássico restaurante Gaudio. Mas, destinados a rodar de moto e sempre registrar cada momento da história do projeto, passamos pela Rua Tibiriçá, viramos à direita na Rua Padre Anchieta, e novamente à direita na Rua João Ramalho, até o fim. O resultado é a deslumbrante vista da Baía de São Vicente, que também deve ter estarrecido os navegadores do início dos tempos da fundação dessa Vila, a partir do mar. As memorias da infância e da juventude do caiçara da equipe nos guiaram até outro marco histórico importante: a Biquinha de Anchieta. Contornando a praia no sentido oposto ao da Ilha Porchat, seguimos em direção à Biquinha, sua água e seus doces. A expectativa era encontrar as típicas barracas na Praça 22 de Janeiro, da época em que deixar de comer uma cocada lá era como ir a Roma e não ver o papa. Porém, vamos confirmando ao longo do tempo o quanto é importante vivenciarmos e valorizarmos cada experiência que passamos. Cada oportunidade é única e é raro nos depararmos com as mesmas situações. Das memorias da década de setenta, da Biquinha repleta de barracas, aqueles deliciosos doces passaram a ser comercializados em quiosques já na primeira década de 2000, mas um incêndio os destruiu em março de 2013, e por três anos esse importante ponto turístico da cidade ainda não havia sido recuperado. Antes mesmo da chegada de Martim Afonso, por volta de 1515, há relatos da primeira Fonte de São Vicente ou Fonte do Povoado, mas no lugar de doces, armas e escravos indígenas eram comercializados próximo do Porto das Naus. Ou seja, nem sempre a simpatia dos comerciantes locais foi reconhecida: em um único acordo, o degredado Cosme Fernandes chegou a negociar seiscentos escravos índios com o navegador português a serviço da Espanha Diogo Garcia de Monguer. A regra da cordialidade e dos bons costumes varia muito conforme a época e os produtos em jogo. Para sorte da equipe do projeto, compartilhar memorias com os vendedores de doces da Biquinha de 2016 ainda é um grande prazer, afetado somente pelo deteriorado entorno da fonte, envolta em tapumes. Apesar disso, a bela escultura feita pelo artista plástico Francisco Telles Barreto, do Padre José de Anchieta escrevendo o poema à Virgem, na praia de Iperoig, quando refém dos tamoios, continua intacta, protegida pelos tapumes, bem como o mosaico de azulejo datado de 1947. Segundo os pouquíssimos e antigos comerciantes vicentinos, com tradição familiar de mais de querenta anos que restaram na praça, nesse ano de 2016, o movimento de visitantes foi praticamente eliminado, por conta de diversos fatores, como a falta de segurança, a aparência de abandono e a sujeira. A sensação é de humilhação e desrespeito, bem diferente do que viu a quatrocentos e cinquenta anos atrás o Padre José de Anchieta: um ambiente paradisíaco criado em torno da “Bica da Fonte da Vila” pela natureza, que era seu ambiente preferido para meditar, dar aulas de catecismo e das primeiras letras portuguesas, e ainda montar suas peças teatrais. Afinal, não demorou para que os jesuítas percebessem no teatro o mais eficaz instrumento de “civilização” dos índios, que já tinham uma tendência natural para a música e a dança.


Poema à Virgem, do Padre José de Anchieta11 DE COMPASSIONE ET PLANCTU VIRGINIS IN MORTE FILII Mens mea, quid tanto torpes absorpta sopore? Quid stertis somno desidiosa gravi? Nec te cura movet lacrimabilis ulIa parentis, Funera quæ nati flet truculenta sui?

A COMPAIXÃO E O PRANTO DA VIRGEM NA MORTE DO FILHO Minha alma, por que tu te abandonas ao profundo sono? Por que no pesado sono, tão fundo ressonas? Não te move à aflição dessa Mãe toda em pranto, Que a morte tão cruel do Filho chora tanto?

Viscera cui duro tabescunt ægra dolore, Vulnera dum præsens, quæ tulit ilIe, videt. En, quocunque oculos converteris, omnia lesu Occurrent oculis sanguine plena tuis.

E cujas entranhas sofre e se consome de dor, Ao ver, ali presente, as chagas que Ele padece? Em qualquer parte que olha, vê Jesus, Apresentando aos teus olhos cheios de sangue.

Respice ut, æterni prostrato ante ora Parentis, Sanguineus toto corpore sudor abit. Respice ut immanis captum quasi turba latronem Proterit, et laqueis colla manusque ligat.

Olha como está prostrado diante da Face do Pai, Todo o suor de sangue do seu corpo se esvai. Olha a multidão se comporta como Ele se ladrão fosse, Pisam-NO e amarram as mãos presas ao pescoço.

Respice ut ante Annam sævus divina satelles Duriter armata percutit ora manu. Cernis ut in Caiphae conspectu mille superbi Probra humilis, colaphos sputaque foeda tulit. Nec faciem avertit, cum percuteretur; et hosti Vellendam barbam cæsariemque dedit. Adspice quam diro crudelis verbere tortor Dilaniet Domini mitia membra tui. Adspice quam duri lacerent sacra tempora vepres, Diffluat et purus pulchra per ora cruor. Nonne vides, totos lacerum crudeliter artus, Grandia vix umeris pondera ferre suis?

Olha, diante de Anás, como um cruel soldado O esbofeteia forte, com punho bem cerrado. Vê como diante Caifás, em humildes meneios, Aguenta mil opróbrios, socos e escarros feios. Não afasta o rosto ao que bate, e do perverso Que arranca Tua barba com golpes violento. Olha com que chicote o carrasco sombrio Dilacera do Senhor a meiga carne a frio. Olha como lhe rasgou a sagrada cabeça os espinhos, E o sangue corre pela Face pura e bela. Pois não vês que seu corpo, grosseiramente ferido Mal susterá ao ombro o desumano peso?

Cernis ut innocuas peracuta cuspide ligno Dextera tortoris figit iniqua manus. Cernis ut innocuas peracuta cuspide plantas Tortoris figit dextera sæva cruce.evulsum

Vê como os carrascos pregaram no lenho As inocentes mãos atravessadas por cravos. Olha como na Cruz o algoz cruel prega Os inocentes pés o cravo atravessa.

11 Disponível em: <https://cdeassis.wordpress.com/tag/poema-a-virgem/>. Acesso em: 25 jul. 2016.


Adspicis ut dura laceratus in arbore pendet, Et tua divino sanguine furta luit. Adspice: quam dirum transfosso in pectore vulnus, Unde immixta fluit sanguine lympha, patet!

Eis o Senhor, grosseiramente dilacerado pendurado no tronco, Pagando com Teu Divino Sangue o antigo crime! Vê: quão grande e funesta ferida transpassa o peito, aberto Donde corre mistura de sangue e água.

Omnia si nescis, mater sibi vindicat ægra Vulnera, quae natum sustinuisse vides. Namque quot innocuo tulit ille in corpore poenas, Pectore tot mater fert miseranda pio.

Se o não sabes, a Mãe dolorosa reclama Para si, as chagas que vê suportar o Filho que ama. Pois quanto sofreu aquele corpo inocente em reparação, Tanto suporta o Coração compassivo da Mãe, em expiação.

Surge, age, et infensæ per moenia iniqua Sionis Sollicito matrem pectore quaere Dei. Signa tibi passim notissima liquit uterque, Clara tibi certis est via facta notis.

Ergue-te, pois e, embora irritado com os injustos judeus Procura o Coração da Mãe de Deus. Um e outro deixaram sinais bem marcados Do caminho claro e certo feito para todos nós.

Ille viam multo raptatus sanguine tinxit, Illa piis lacrimis moesta rigavit humum. Quaere piam matrem, forsan solabere flentem. Indulget lacrimis sicubi mæsta piis.

Ele aos rastros tingiu com seu sangue tais sendas, Ela o solo regou com lágrimas tremendas. A boa Mãe procura, talvez chorando se consolar, Se as vezes triste e piedosa as lágrimas se entregar.

Si tanto admittit solatia nulla dolori, Quod vitam vitæ mors tulit atra suæ, At saltem effundes lacrimas, tua crimina plangens, Crimina, quæ diræ causa fuere necis.

Mas se tanta dor não admite consolação É porque a cruel morte levou a vida de sua vida, Ao menos chorarás lastimando a injúria, Injúria, que causou a morte violenta.

Sed quo te, Mater, turbo tulit iste doloris? Quæ te plangentem funera terra tenet? Num capit ille tuos gemitus lamentaque collis, Putris ubi humanis ossibus albet humus?

Mas onde te levou Mãe, o tormento dessa dor? Que região te guardou a prantear tal morte? Acaso as montanhas ouvirão Teus lamentos? Onde está a terra podre dos ossos humanos?

Numquid odoriferæ cruciaris in arboris umbra, Unde tuus lesus, unde pependit amor?

Acaso está nas trevas a árvore da Cruz, Onde o Teu Jesus foi pregado por Amor?

Hic lacrimosa sedes, et primæ noxia matris Gaudia, crudeli fixa dolore, Luis Illa fuit vetita corrupta sub arbore, fructum Dum legit audaci, stulta loquaxque, manu.

Esta tristeza é a primeira punição da Mãe, No lugar da alegria, segura uma dor cruel, Enquanto a turba gozava de insensata ousadia, Impedindo Aquele que foi destruído na Cruz.

Iste tui ventris pretiosus ab arbore fructus Dat vitam matri tempus in omne piæ, Quæque malo primi succo periere veneni Suscitat et tradit pignora cara tibi.

Mãe, mas este precioso fruto de Teu ventre Deu vida eterna a todos os fieis que O amam, E prefere a magia do nascer à força da morte, Ressurgindo, deixou a ti como penhor e herança.


Sed periit tua vita, tui peramabile cordis Delicium, vires occubuere tuæ. Raptus ab infesto crudeliter occidit hoste, Qui tibi de mammis dulce pependit onus.

Mas finda Tua vida, Teu Coração perseverou no amor, Foi para o Teu repouso com um amor muito forte! O inimigo Te arrastou a esta cruz amarga, Que pesou incomodo em Teu doce seio.

Occubuit diris plagis confossus lesus, Ille decor mentis, gloria luxque, tuæ; Quotque illum plagæ, tot te affixere dolores: Una etenim vobis vita duobus erat.

Morreu Jesus traspassado com terríveis chagas Ele, formoso espírito, glória e luz do mundo; Quanta chaga sofreu e tantas Lhe causaram dores; Efetivamente, uma vida em vós era duas!

Scilicet hunc medio cum serves corde, nec unquam Liquerit hospitium pectoris ille tui, Ut sic discerptus letum crudele subiret, Scindendum rigido cor fuit ense tibi.

Todavia conserva o Amor em Teu Coração, e jamais Evidentemente deixou de o hospedar no Coração, Feito em pedaços pela morte cruel que suportou Pois à lança rasgou o Teu Coração enrijecido.

Cor tibi dira pium misere rupere flagella, Spina cruentavit cor tibi dira pium. In te cum clavis coniuravere cruentis Omnia, quæ in ligno natus acerba tulit.

O Teu Espírito piedoso e comovido quebrou na flagelação, A coroa de espinhos ensanguentou o Teu Coração fiel. Contra Ti conspirou os terríveis cravos sangrentos, Tudo que é amargo e cruel o Teu Filho suportou na Cruz.

Sed cur vivis adhuc, vita moriente Deoque? Cur non es simili tu quoque rapta nece, Quando non illo est animam exhalante revulsum Cor tibi, si vinctos mens tenet una duos?

Morto Deus, então porque vives Tu a Tua vida? Porque não foste arrastada em morte parecida? E como é que, ao morrer, não levou o Teu espírito, Se o Teu Coração sempre uniu os dois espíritos?

Non posset, fateor, tantos tua vita dolores Ferre, nec id nimius sustinuisset amor, Ni te divino firmaret robore natus, Linqueret ut cordi plura ferenda tuo.

Admito, não pode tantas dores em Tua vida Suportar, aguentando se não com um amor imenso; Se não Te alentar a força do nascimento Divino Deixará o Teu Coração sofrendo muito mais.

Vivis adhuc, Mater, plures passura labores; Ultima te in sævo iam petet unda mari. Sed tege maternum vultum, pia lumina conde, Ecce furens auras verberat hasta leves: Et sacra defuncti discindit pectora nati Insuper in medio lancea corde tremens.

Vives ainda, Mãe, sofrendo muitos trabalhos, Já te assalta no mar onda maior e cruel. Mas cobre Tua Face Mãe, ocultando o piedoso olhar: Eis que a lança em fúria ataca pelo espaço leve, Rasga o sagrado peito ao teu Filho já morto, Tremendo a lança indiferente no Teu Coração.

Scilicet hæc etiam tantorum summa dolorum Defuerat plagis adicienda tuis. Hoc te supplicium, vulnus crudele manebat, Hæc tibi servata est poena gravisque dolor.

Sem dúvida tão grande sofrimento foi à síntese, Faltava acrescentá-lo a Tuas chagas! Esta ferida cruel permaneceu com o suplício! Tão penoso sofrimento este castigo guardava!


In cruce cum dulci figi tibi prole volebas Virgineasque manus virgineosque pedes. Ille sibi accepit rigidos cum stipite clavos, Servata est cordi lancea dira tuo.

Com O querido Filho pregado a Cruz Tu querias Que também pregassem Teus pés e mãos virginais. Ele tomou para Si a dura Cruz e os cravos, E deu-Te a lança para guardar no Coração.

Iam potes, o Mater, compos requiescere voti, Hic tibi totus abit cordis in ima dolor. Quod gelida excepit corpus iam morte solutum, Sola pio crudum pectore vulnus habes.

Agora podes, ó Mãe, descansar, que possui o desejado, A dor mudou para o fundo do Teu Coração. Este golpe deixou o Teu corpo frio e desligado, Só Tu compassiva guarda a cruel chaga no peito.

O sacrum vulnus, quod non tam ferrea cuspis, Quam nimius nostri fecit amoris amor! O flumen, medio paradisi e fonte refusum, Cuius ab uberibus terra tumescit aquis!

Ó chaga sagrada feita pelo ferro da lança, Que imensamente nos faz amar o Amor! Ó rio, fonte que transborda do Paraíso, Que intumesce com água fartamente a terra!

O via regalis, gemmataque ianua cæli, Præsidi turris, confugiique locus! O rosa, divinae spirans virtutis odorem! Gemma, poli solium qua sibi paupar emit!

Ó caminho real com pedras preciosas, porta do Céu, Torre de abrigo, lugar de refúgio da alma pura! Ó rosa que exala o perfume da virtude Divina! Jóia lapidada que no Céu o pobre um trono tem!

Nidus, ubi puræ sua ponunt ova columbæ, Castus ubi tenere pignora turtur alit! O plaga, immensi splendoris honore rubescens, Quæ pia divino pectora amore feris!

Doce ninho onde as puras pombas põem ovinhos, E as castas rolas têm garantia de suster os filhotinhos! Ó chaga, que és um adorno vermelho e esplendor, Feres os piedosos peitos com divinal amor!

O vulnus, dulci præcordia vulnere findens, Qua patet ad Christi cor via lata pium! Testis inauditi, quo nos sibi iunxit, amoris! Portus, ab æquoribus quo fugit icta ratis!

Ó doce chaga, que repara os corações feridos, Abrindo larga estrada para o Coração de Cristo. Prova do novo amor que nos conduz a união! Porto do mar que protege o barco de afundar!

Ad te confugiunt, hostis quibus instat iniquus; Tu præsens morbis es medicina malis. ln te, tristitia pressus, solamina carpit, Et grave de mæsto pectore ponit onus.

Em Ti todos se refugiam dos inimigos que ameaçam: Tu, Senhor, és medicina presente a todo mal! Quem se acabrunha em tristeza, em consolo se alegra: A dor da tristeza coloca um fardo no coração!

Per te reiecto, spe non fallente, timore, Ingreditur cæli tecta beata reus. O pacis sedes! o vivæ vena perennis, Aeternam in vitam subsilientis, aquæ!

Por Ti Mãe, o pecador está firme na esperança, Caminhar para o Céu, lar da bem-aventurança! Ó Morada de Paz! Canal de água sempre vivo, Jorrando água para a vida eterna!


Hoc est, o Mater, soli tibi vulnus apertum, Tu sola hoc pateris, tu dare sola potes. Da mihi, ut ingrediar per apertum cuspide pectus, Ut possim in Domini vivere corde mei.

Esta ferida do peito, ó Mãe, é só Tua, Somente Tu sofres com ela, só Tu a podes dar. Dá-me acalentar neste peito aberto pela lança, Para que possa viver no Coração do meu Senhor!

Hac pia divini penetrabo ad viscera amoris, Hic mihi erit requies, hic mihi certa domus. Hic mea sanguineo redimam delicta liquore, Hic animi sordes munda lavabit aqua.

Entrando no âmago amoroso da piedade Divina, Este será meu repouso, a minha casa preferida. No sangue jorrado redimi meus delitos, E purifiquei com água a sujeira espiritual!

His mihi sub tectis erit, his in sedibus omnes Vivere dulce dies, hic mihi dulce mori!

Embaixo deste teto que é morada de todos, Viver e morrer com prazer, este é o meu grande desejo.



Aventura pela Baía da Ilha de São Vicente

As memorias parecem desconectadas, mas no fundo se relacionam de modo impressionante. Em 1984, passando pelo “estágio probatório” para passar a escoteiro sênior, o caiçara da equipe enfrentou um dos maiores desafios que surgiram em sua vida: pedalar em grupo pela orla da praia, entre o núcleo escoteiro do Mar D. Pedro II, na Ponta da Praia, em Santos, e a praia das Vacas, em São Vicente. O objetivo era fazer uma caminhada pelo morro do Japuí, atravessando aquele trecho de Mata Atlântica para montar um bivaque (acampamento selvagem) nos rochedos, em frente ao mar. Apesar de nível de dificuldade parecer alto, era maior do que se pensava, pois a mochila com o equipamento mínimo de sobrevivência na selva teria de ser carregada ao longo de todo o trajeto, em uma manhã quente de verão. Transpor o percurso de cerca de vinte quilômetros pelas orlas da praia das Baías de Santos e de São Vicente, atravessando a Ponte Pênsil até a Praia de Paranapuã não foi a parte mais dura da aventura. Logo que as bicicletas cruzaram a cancela da entrada da Praia das Vacas, foram recebidas por uma matilha de cães donos do pedaço. É uma situação assustadora, pois “se ficar, o bicho pega, e se correr, o bicho come”. Como já estavam exaustos de pedalar, não foi muito difícil decidir o que fazer. Pararam, e esperaram em cima das magrelas por socorro. Naquele tempo, a praia era área militar e também servia de exercício de tiro de guerra pelos fuzileiros navais da Marinha do Brasil. Não demorou para aparecer o “caseiro” e chamar cada cão pelo nome, permitindo se identificarem e seguir caminho. A vista da Ilha Porchat do outro lado da barra, que os seiscentos metros de praia proporcionam, é exuberante, além de estratégica, possibilitando aos portugueses colonizadores monitorar todas as embarcações que trafegavam mar adentro. Outro fato marcante da aventura na Praia das Vacas foi o breve contato com os jovens transgressores da FEBEM, atual Fundação Casa, com base naquela região. Era quase meio-dia quando a patrulha entrou na mata e cruzou as trilhas fechadas e acidentadas do morro do Japuí, até encontrar novamente o mar. O clima dentro da mata é quente e úmido, com fauna e flora exuberantes. Durante a caminhada pode-se observar firmes teias de aranha detalhadamente arquitetadas, como sacolas dependuradas nos galhos, e sua produtora sempre à espreita de algum besouro desavisado. As samambaias frondosas davam cobertura às diversas espécies de cobras habitantes nativas do lugar, sem contar a diversidade de pássaros. Passar a noite ao ar livre em contato direto com a natureza é uma experiência que aproxima o indivíduo das raízes. Nesse caso, trata-se da região da primeira Vila do Brasil, que era repleta de índios tupiniquins e onde se construiu o primeiro trapiche alfandegário, o Porto das Naus. Há mais de dez anos, a praia no Parque Estadual Xixová-Japuí ainda serve de morada ao povo guarani Mbyas e é reinvidicada por eles que, em 2004, haviam sido convidados pelo governo municipal para participar da encenação da fundação da Vila de São Vicente. O tempo foi passando e esses figurantes especiais adaptaram as instalações da casa de reabilitação de jovens para servir de escola aos curumins, e se estabeleceram por lá cerca de cem índios. Apesar da Aldeia Paranapuã ter seus vizi-


nhos civilizados a somente dez quilômetros de distância, o primeiro contato revela o choque cultural pelo idioma Guarani amplamente falado por todos da tribo, pela pintura marcante na pele de seus índios e também pela simplicidade e amabilidade como recepcionam o visitante, seja ele branco, negro ou amarelo. Tudo isso ficou muito claro através da postura amigável do cacique Alcides que tem uma excelente articulação do português. Famílias como a do Heleno abrem suas portas e compartilham sua zarabatana e arco e flecha para passar breves momentos juntos diante de dois alvos posicionados não muito distantes. A mais nova integrante dessa família, Paramirim Pote, de apenas três aninhos, só se comunica em Guarani com a mãe e avó, mas quando o assunto é brincar o idioma é universal. A experiência mais incrível foi junto ao pajé e sua companheira que demonstraram muita sinergia com a natureza do lugar em que vivem, além do respeito e sentimento de pequenez e humildade. Imersos naquela vida modesta, ao compararmos o que consideramos nossos modernos problemas, percebemos que não são nada perante tamanha simplicidade. Desde a primeira aventura em duas rodas na primeira Vila fundada pelos portugueses na América, mais de três décadas passaram, construindo outras memorias em viagens. Quase cinco séculos depois dos primeiros colonizadores e jesuítas portugueses chegarem e perceberem os limites do interior pelas cristas das escarpas da Serra do Mar, a equipe do projeto Lugares da Memoria também teve como ponto de partida o litoral, compartilhando, de certa forma, o mesmo desejo de transpor a grande barreira da Serra do Mar. Toda história é feita de ligações conectando pessoas e lugares, que vão construindo as memorias.





O litoral em duas rodas


Além da forte presença da bicicleta e da motocicleta como meios de locomoção, São Vicente é uma das primeiras cidades a adotar a faixa de retenção e recuo exclusiva para motocicletas nos semáforos da cidade – a exemplo de grandes capitais pelo mundo, como Madrid e Barcelona, e mais recentemente, São Paulo. Em São Vicente também é comum ver as motos rodarem pela faixa exclusiva, preservando as normas gerais de circulação e conduta do artigo 29 do Código Brasileiro de Trânsito, que discorre sobre o trânsito de veículos nas vias terrestres abertas à circulação, onde “os veículos de maior porte serão sempre responsáveis pela segurança dos menores, os motorizados pelos não motorizados e, juntos, pela incolumidade dos pedestres”. A cultura das duas rodas está presente em todos os lugares do litoral, seja na ida ao trabalho ou à escola, seja na ida à praia, o caiçara é visto pedalando ou conduzindo uma moto. Entre São Vicente e Santos, além das faixas exclusivas para motos, as ciclovias cobrem cerca de cinquenta quilômetros, facilitando a locomoção entre as cidades vizinhas e eliminando a dependência do transporte público. Faça chuva ou faça sol, o movimento é intenso. Claro que nem sempre foi assim. Há trinta anos, o cais do porto de Santos já era calçado de paralelepípedo, mas em volta dele as ruas de terra predominavam na Ponta da Praia. Naquele mesmo 1984 da aventura na Praia de Paranapuã, a Avenida Portuária foi asfaltada, proporcionando perfeitas condições para se pedalar. Com mãe enfermeira em casa, bicicleta era proibida pelo alto risco de acidente. Ela sempre teve razão: estatisticamente, é o esporte com maior número de acidentes fatais. Mas, por algum motivo, a Caloi 10 do grande amigo Catatau foi parar no quintal de casa por uns dias, o que foi o suficiente para estrear aquele asfalto novo e lisinho. Dois mil metros de ida e volta até o “ferry boat” em meros cinco minutos abreviavam bastante o tempo de caminhada. Entre as memorias da grande barreira da Serra do Mar, uma das mais marcantes foi a primeira viagem de moto pela Rodovia Anchieta na Agrale SXT16.5, a “Pretinha”. Apesar de não estar chovendo, a jaqueta de couro ficava repleta de gotículas e a viseira do capacete embaçava pela forte neblina, o que garantia muita emoção a cada curva. Em outras palavras: medo. A calça jeans ficava com a canela e joelhos molhados, e as mãos, geladas. Mas a adrenalina de transpor os setenta quilômetros de paisagens incríveis e de se sentir parte da natureza que ainda se encontra preservada da Mata Atlântica era e ainda é indescritível. Parece mesmo que isso se torna um vício e, depois dessa, vieram muitas outras viagens de moto junto com a eterna companheira de aventuras Maura de Andrade, artista visual e diretora do projeto Lugares da Memoria. Quando as distâncias são maiores, quando envolve subida de morros ou ainda se a locomoção requer mais agilidade, a motocicleta entra em cena. Em 2013, a frota chegava a quarenta e cinco mil motocicletas, havendo cerca de uma moto para cada oito habitantes. Apesar de ser algo que já faz parte do cotidiano do ciclista e motociclista caiçara, é um privilégio percorrer em duas rodas a orla das praias das Baías de São Vicente e de Santos. Como para “descer todo santo ajuda”, a Descida das Escadas de Santos é uma prova incrível de downhill urbano que acontece há catorze anos e é considerada a principal competição da América Latina. Desde 2002 acontecendo nas escadas do Monte Serrat, a prova muda de cenário em 2016, para um percurso de quinhentos e catorze degraus, no Morro do Pacheco.13

13 MIRANDA, Márcio de. Morro do Pacheco é a nova pista da Descida das Escadas de Santos. O Globo, de 8 de fevereiro de 2016. Disponível em: <http://blogs.oglobo.globo.com/ de-bike/post/morro-do-pacheco-e-nova-pista-da-descida-das-escadas-de-santos.html>. Acesso em: 23 jul. 2016.



O Engenho dos Erasmos e a escola Usina Henry Borden


Em se tratando dos morros, o mais antigo engenho do Brasil, considerado hoje monumento nacional, o São Jorge dos Erasmos, se encontra entre os morros do Embaré, Marapé e Cachoeira: “A expedição de Martim Afonso de Souza e a fundação da Vila de São Vicente, em 1532, marcam o início da manufatura açucareira de larga escala no Brasil. A construção deste e de outros engenhos de açúcar na região testemunham esse pro pósito. Em sociedade com comerciantes portugueses e flamengos, Martim Afonso, então Governador da Capitania de São Vicente, mandou construir um engenho, inicialmente conhecido como Engenho do Governador ou Engenho do Trato. Em 1540, foi vendido a Erasmo Schetz, que distribuía seus produtos por toda a Europa e tinha ligações de caráter comercial com italianos, holandeses, franceses, portugueses e alemães. O período de apogeu do Engenho foi sob a direção da família Schetz. Católicos e ligados aos jesuítas, os Schetz ergueram neste engenho uma capela dedicada a São Jorge. O Engenho passou, então, a ser conhecido como ‘dos Erasmos’ ou ‘São Jorge dos Erasmos’. Vários fatores contribuíram para a decadência do Engenho, vendido em 1620: a concorrência do açúcar do Nordeste e os sucessivos ataques piratas, foram determinantes. Em menor escala, continuou produzindo açúcar para exportação, além de rapadura e aguardente para consumo interno. O Engenho provavelmente funcionou até o século XVIII.”14 A partir do Instituto Histórico e Geográfico de São Vicente, o contato com o Engenho dos Erasmos despertou muito interesse pelo seu incrível estado de preservação e localização. O monumento nacional está encravado bem no centro da Ilha de São Vi14 PRÓ-REITORIA DE CULTURA E EXTENSÃO UNIVERSITÁRIA DA USP (PRCEU). Ruínas Engenho São Jorge dos Erasmos. O que foi este lugar? Disponível em: <http://www. engenho.prceu.usp.br/o-que-foi-este-lugar/>. Acesso em: 23 jul. 2016.


cente e surpreende pelas ruínas de uma imponente construção datada de 1533. Rodeado pela Mata Atlântica, revelou raras espécies de aves através do curso de difusão “Observação de aves como prática conservacionista”, oferecido pelo Engenho, como órgão da Pró-Reitoria de Cultura e Extensão Universitária da USP. Os encontros proporcionaram uma grande oportunidade de conhecimento das aves a partir de seu habitat natural, além do contato com os demais participantes, pessoas muito interessantes e agradáveis de vários cantos da Baixada Santista. A troca de experiência foi simplesmente enriquecedora, com várias histórias compartilhadas, como a da professora Raquel Gutierrez e sua vivência na Unidade Municipal de Ensino (UME) Usina Henry Borden, em Cubatão. A visita à Escola Usina Henry Borden teve um papel fundamental para o projeto, não somente por desenvolver a atividade cultural com seus alunos, difundindo a ligação entre o passado e o presente, através da oficina de monotipia, mas também pelo contato com uma nova geração, consciente e bastante envolvida com as atuais questões sociais e do meio-ambiente: “No dia 22 de Junho de 2016 fomos recebidos pela Unidade Municipal de Ensino (UME) Usina Henry Borden, localizada dentro do complexo da Usina Hidroelétrica Henry Borden, no sopé da Serra do Mar da cidade de Cubatão, para apresentarmos o projeto e dar uma oficina de monotipia. A oficina de monotipia ou monoimpressão é uma técnica de impressão simples e flexível, que proporciona resultados muito interessantes, particularmente no que diz respeito à textura da superfície impressa. Esta técnica distingue-se pela produção de uma única impressão tirada por uma folha lisa de uma placa de metal, vidro ou acetato. Iniciou-se falando sobre a colonização portuguesa no Brasil e seus principais personagens. Com o tema ‘Lugares da Memoria’ conversamos sobre a memoria e o lugar em que vivem e as transformações ocorridas no espaço através do qual criaram identidade. As crianças lembraram de suas aventuras em caminhadas por trilhas próximas ao local, dos animais que encontram pela escola, nomes de outras escolas da cidade como José de Anchieta, João Ramalho e muitas histórias vividas com seus familiares e amigos. Inspirados neste diálogo entre um passado histórico e o individual, foi proposto que cada um criasse uma imagem. Tivemos como resultado um encontro entre as histórias relembradas, narradas com muita energia e impressões alegres de monotipia.”15 A partir do sopé da Serra do Mar, chegando a Cubatão, avista-se a imponente obra do oleoduto, que pode ser observada em diversos pontos das rodovias Imigrantes e Anchieta. Sua construção exigiu cuidados especiais, assim descritos: “Cuidados especiais − Embora seja o Oleoduto Santos São Paulo de pequena extensão, em confronto com outros existentes na América e na Ásia, sua construção exigiu cuidados especiais, tendo sido resolvidos problemas os mais diversos. O traçado é caracterizado, inicialmente, por terreno pantanoso, entre Santos e Cubatão. Deste ponto, o seu perfil se elevacerca de 750 m acima do nível do mar em uma distância horizontal de pouco mais de quilômetro e meio. Após vencer a Serra do Mar, sucedem-se colinas, lagos e canais, até penetrar na zona densamente povoada dos municípios de São Bernardo do Campo, Santo André, São Caetano, atingindo, após, os subúrbios de São Paulo - lpiranga e Moóca. De todos os trechos, aquele que mereceu maiores atenções e cuidados foi a Serra do Mar, onde o terreno é sujeito a cons tantes desmoronamentos. Neste trecho foram necessárias obras de vulto, como grandes maciços de concreto para a ancora gem dos tubos e um extenso serviço de drenagem contra águas pluviais e erosão. A construção de 23 grandes maciços, alguns com mais de 600 m³ de concreto e outros menores em número de 300, bem 15 OFICINA de monotipia. Unidade Municipal de Ensino (Ume). Usina Henry Borden. Disponível em: <http://www.lugaresdamemoria.blog.br/#!oficina-de-monotipia/vjhom>. Acesso em: 25 jul. 2016


como as demais obras de preparo da faixa, neste trecho, importaram em despesas de cerca de 80 milhões de cruzeiros, uma fortuna para a época e que drenou significativamente as receitas da estrada, o que bem caracteriza o vulto dos trabalhos e as dificuldades da sua execução. No trecho da Baixada, entre Santos e Cubatão, a região apresenta o aspecto típico de um delta com rios tortuosos, braços de mar e espraiamentos. Na maior parte deste local, a tubulação foi lançada sobre aterros adrede preparados. Moveram-se 1.200.000 m³ de terra, 6.000 m³ de concreto foram aplicados e 15 mil toneladas de tubos de aço foram soldados, numa extensão aproximada de 200 quilômetros. Foram adquiridos cerca de 2.000.000 m² de terrenos e construídos 12 quilômetros de linhas de transmissão elétrica de alta tensão e 50 quilômetros de linhas telefônicas. Foram utilizados durante a construção tratores, escavadeiras, guindastes, jipes caminhões, automóveis e máquinas especializadas num total de 10.000 HP, sendo que − durante o período agudo de construção − mais de 1.000 homens, entre pessoal de cargo técnico e administrativo, prestaram sua colaboração.”16 Em um dos deslocamentos do planalto ao litoral para participar de uma das aulas práticas do curso de difusão “Observação de aves como prática conservacionista”, bem cedo pela manhã, subitamente, a moto foi sendo acompanhada por um bando de garças brancas que mais pareciam estar nos escoltando. Esse era um presságio nos preparando a explorar o Planalto de Piratininga a partir da Serra do Mar. Hoje, cruzar a Grande Barreira em uma motocicleta transmite uma enorme sensação de integração com a natureza – talvez bem próxima daquela vivenciada pelos índios, colonizadores e jesuítas do início dos nossos tempos.

16 O OLEODUTO da serra da E.F.S.J. Reportagem de 1964 sobre o oleoduto, publicação não identificada. Disponível em: <http://www.novomilenio.inf.br/cubatao/ch028b.htm>. Acesso em: 25 jul. 2016.


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PoĂŠtica Visual Gravuras

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“Trilhas” | Fotogravura | 15cm x 21,5cm | 2016


“Carta” | Fotogravura | 15cm x 19,5cm | 2016


“Esfera Armilar” | Fotogravura | 15cm x 20cm | 2016


“Marquesa” | Água-forte e Água-tinta | 15cm x 20cm | 2016


“Entre a neblina e a História” | Água-forte, Água-tinta e brunidor | 19,5cm x 29,5cm | 2016


“Sombra e Luz” Água-forte, Água-tinta, brunidor e ponta seca 20,5cm x 19,5cm 2016


“Inspiração” Água-forte, Água-tinta, brunidor, chinecolé 21cm x 15cm 2016


“Memoria de uma cidade” | Água-forte, Água-tinta, brunidor, ponta seca | 14,5cm x 19,5cm | 2016


“Pátio”| Água-forte, Água-tinta, brunidor | 12,5cm x 20,5cm | 2016


“Engenho” | Água-forte, Água-tinta, ponta seca, buril | 14,5cm x 21cm | 2016.


“Noite escura” | Água-forte, Água-tinta, brunidor | 15cm x 24,5cm | 2016


“Amanhecer do litoral” | Água-forte, Água-tinta, brunidor |14,5cm x 24,5cm | 2016


“Caminhos do Mar” | Água-forte, Água-tinta, brunidor, ponta seca | 17cm x 19,5cm | 2016


“Sapata” | Água-forte, Água-tinta | 17,5cm x 19,5cm | 2016


“Lar” | Água-forte, Água-tinta, brunidor | 14,5cm x 19,5cm | 2016


“Registros do tempo” – xilogravura sobre transferência de imagem direta – 20cm x 30cm – 2016


“Memorias da Infancia” | xilogravura sobre transferência de imagem direta | 27cm x 38cm | 2016


“Fé” | Xilogravura sobre transferência de imagem direta |27cm x 38cm | 2016


Sobre os autores

Maura de Andrade, mestre em poéticas visuais atua com diversas técnicas na reprodução da imagem impressa: gravura em metal, xilogravura, fotogravura, litografia, monotipia e fotografia. Sua produção e pesquisa artística destaca um interesse maior na representação da paisagem. Os registros nos seus cadernos de viagem contendo suas observações, tornam-se um material de pesquisa que é posteriormente trabalhado dentro de um ateliê, seja em casa ou durante o percurso da viagem. Casada com o analista de sistemas Teodoro Vieira, dividem a paixão pelo motociclismo. Sempre quando possível, ele reúne os dois grandes interesses em suas viagens a trabalho: a história geral e o motociclismo, visitando lugares e conhecendo culturas. Seu interesse pela numismática também impulsiona a busca por detalhes históricos em uma dedicada pesquisa, agregando livros, objetos e imagens.

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Sobre os desenhos

Sumário - Aquarela – “Litoral” – 30cm x 39,5cm - 2016 Prefácio – Desenho – “Vista do Mar entre galhos e folhas” – 25cm x 19,5 cm – 2016 Com a palavra, a artista, a poeta, o sociólogo e o historiador - Desenho – “Pedras do Engenho” – 25cm x 19,5 cm – 2016 Reflexões e Relatos – Desenho – “Galhos” - 15cm x 21cm - 2015 Poéticas Visuais – Desenho – “Orquideas” – 25cm x 19,5 cm – 2016


Referências

BUENO, Eduardo. Capitães do Brasil: a saga dos primeiros colonizadores. Rio de Janeiro: Objetiva, 1999. (Coleção Terra Brasilis, v. 3). BUENO, Eduardo. Náufragos, traficantes e degredados: as primeiras expedições ao Brasil: 1500-1531. Consultor técnico: Ronaldo Vainfas. Rio de Janeiro: Objetiva, 1998. (Coleção Terra Brasilis, v. 2). DÓRIA, Pedro. 1565: enquanto o Brasil nascia: a aventura de portugueses, franceses, índios e negros na fundação do país. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2012. FRANÇA, Jean Marcel Carvalho. A construção do Brasil na literatura de viagem dos séculos XVI, XVII e XVIII: antologia de textos, 15911808. Rio de Janeiro: Jose Olympio; São Paulo: Editora UNESP, 2012. GUARACY, Thales. A conquista do Brasil 1500-1600: como um caçador de homens, um padre gago e um exército exterminador transformaram a terra inóspita dos primeiros viajantes no maior país da América Latina. São Paulo: Planeta, 2015. KEATING, Vallandro; MARANHÃO, Ricardo. Caminhos da conquista: a formação do espaço brasileiro. São Paulo: Terceiro Nome, 2008. SANTOS, Álvaro Rodrigues dos. A grande barreira da Serra do Mar: da trilha dos tupiniquins à Rodovia dos Imigrantes. São Paulo: O Nome da Rosa, 2004. SÃO VICENTE (SP). Prefeitura Municipal. Roteiro histórico e geográfico de São Vicente. São Vicente, SP: Secretaria da Educação, 1996. VERAS, Dalila Teles. Solidões da memoria. São Paulo: Alpharrabio Edições; Dobra Editorial, 2015.


Idealização e Coordenação Teodoro Vieira e Maura de Andrade Texto Teodoro Vieira Gravuras e Desenhos Maura de Andrade Fotografias Maura de Andrade Foto sobre os autores – Lucas Novo Revisão de texto Francisca Evrard Este livro foi composto em Garamond Pro Caecilla Helvetica Nue Pro Impresso na Gráfica Cinelândia

Agradecimentos Aos escritores convidados Dalila Teles Veras, Roberto Grün, Marcos Atanásio Braga. Ao Instituto Histórico e Geográfico de São Vicente, a Casa Martim Afonso, ao Museu Santo André Dr. Octaviano Armando Gaiarsa, a Casa do Olhar Luiz Sacilotto, ao Museu da Cidade de São Paulo, ao Instituto Florestal de São Paulo, ao Parque Caminhos do Mar, a Aldeia indígena Tekoa Paranapuã, a Unidade Municipal de Educação Usina Henry Borden de Cubatão e seus alunos Wesley, Alana, Damaris, Helen, ao Grupo Escoteiro do Ar de São Vicente, à Grafica Cinelândia. À Mauricio Mascarenhas, Wilson Melaré, Telma Ferreira, Constança Lucas, Maria Regina Pinto Pereira, Cristina Bottallo, Cinthia Miranada Higa, Silene Velasco, ao Luiz Carlos Offi Cina. Em especial à Gabriel e Lucas.

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