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Est gaudium mihi, et solatium in literis nihilque tam lætum, quod his lætius; nihi tam triste, quod non per eas sit minis triste.

Plínio.

Homines nihil agendo, male agere discunt.

Ilustríssimo e Excelentíssimo Senhor.

Jamais algum Escritor ousou publicar o seu nome sem os sagrados auspícios de algum ilustre Mecenas; este uso, quase necessidade, se redobra todas as vezes que os talentos daquele são mais escassos e apoucados, que por isso mesmo então deve este ser mais respeitado e maior; o nome singular, outrossim de Protetor dos Brasileiros, que tanto se há derramado em honra de V. Excelência e glória do novo mundo, por todo este Continente, e que lhe tem granjeado um distinto e honroso lugar na estima e no respeito de todos eles, é, meu Senhor, um ponderoso fundamento à consagração desta minha obra ao Nome de V. Excelência, a quem me curvo respeitoso.

É ela o complexo de ações militares do Corpo Académico, quando pegou as armas para cujo desenvolvimento sempre cooperei como simples soldado, rivalizando entre si o meu patriotismo e o mais desvelado desinteresse, suspirando ansiosamente que o meu Príncipe, Pátria e Religião se utilizassem dos meus insones cuidados.

V. Excelência, sobre cujos ombros descansa uma porção gloriosa da marcha suada e harmónica de uma Corte, que ainda no berço já é brilhante, deve acolher e agasalhar fagueiro, como Protetor das letras e seu cultivador, o meu escrito. Tenha ao menos ele este único, mas ilimitado, merecimento aos olhos do Público. Destarte farei notório à futuridade que a mais alta glória de V. Excelência consiste em estender e dar a mão benfeitora ao génio ainda desvalido e implume, para que tente para o futuro novos e mais arrebatados voos. Eu fui, Senhor Excelentíssimo, o primeiro de toda a Capitania do Piauí que não desmaiou na árdua carreira das letras; e a despeito da longa ausência de 20 anos de minha cara família, e a despeito enfim de incómodos, cuja ideia sepulcral ainda parece querer atemorizar-me, eu consegui o fim, a que meus Pais diligentes me destinaram. Eu fui, Senhor (repito), o primeiro que honrei aquela extensa Capitania, a quem não devo senão a existência, e que, de hoje em diante, escudado da Proteção de V. Excelência, me auguro o seu maior ornamento. A minha Pátria vai erguer a V. Excelência um monumento imortal, que, eternizando o nome de V. Excelência, eternize também a sua gratidão. A minha Pátria é agradecida. Nada hei que recear. Herdeiro V. Excelência das primazias que o Céu tão liberalmente há largueado de muitos séculos aos Ilustres Progenitores de V. Excelência, também lhes herda aquelas nobres qualidades, seu maior tesouro, que outrora fizeram o encanto de Portugal na Toga e no Sago, e que hoje, desenvolvidas por um modo tão novo e bizarro, honram a escolha que um Príncipe sem igual fez da pessoa e talentos de V. Excelência, e constituem a Nação Portuguesa, por este mesmo facto, uma das mais venturosas Nações do mundo, e ilustram este Continente, tão de perto amparado por V. Excelência. Deus guarde a saúde e vida de V. Excelência pelo tempo que comigo desejam os meus Compatriotas: o nome de V. Excelência tem de ser tão eterno como esta quarta parte do Universo. É este o lisonjeiro porvir, que ao longe aguarda a Pessoa de V. Excelência, de quem sou, com alto respeito,

Muito Reverente Criado,

Ovídio Saraiva de Carvalho e Silva.

Seris venit usus ab annis. ovídio, MetaMorfoses, livro 6.

Enquanto consternada primeira parte do Globo, Europa lutuosa e desolada corria a passos largos a despenhar-se no abismo da sua total ruína, e parecia um vastíssimo Teatro, em que representavam a guerra, a devastação e a morte, acompanhada dos horrores, que têm feito sumir dos olhos do Universo atemorizado os maiores Impérios do mundo, e de que apenas nos resta um quase extinto nome; Portugal, sempre estável, longe da confusão e das trevas, à sombra da Justiça e humanidade de seu amável Príncipe, não soluçava. O seu Comércio, pelo contrário, então mais se avigorava; a agricultura, abundosa Mãe das riquezas, criava raízes mais grossas; a indústria inexausta se agigantava; as ciências, enfim, e as Artes emulavam com as Ciências e Artes da defunta Grécia e Roma. Mas foi forçoso, ó mágoa!, foi forçoso ceder-se à prepotência de um Déspota, que, usurpando o Império da França, anela ser o só no Universo; foi forçoso enfim deixar aquele Continente, e vir o nosso Augusto Regente felicitar este novo Mundo. Este heroico proceder abriu um estendido Campo ao desenvolvimento das altas ideias e a profundeza do Génio de S. A. R.. Ele vai a encher de letras de ouro as páginas da História Portuguesa; e depois de enfeitiçar-nos com o imenso brilho de ações verdadeiramente Reais, o seu Augusto Nome irá assombrar a mais arredada posteridade. Os cuidados vigilantíssimos, que emprega na criação, progresso, de uma nova Corte, e bem assim na sua magnificência, são igualmente aplicados ao venturoso êxito da luta Peninsular. Aqui desvelar-se na promoção de uma felicidade pública e individual, duradoura e nobre; ali, nos meios da extinção de uma guerra tão fastidiosa, como sanguinária! Que extensão de ideias! Que vigílias! Nestes lances suados, nestas crises temerosas é que se vê em toda a sua plenitude a alma de um Monarca. Tudo o mais é recinto estreito, e campo limitado. É por esta razão, que o Senhor dos Combates tão visivelmente tem auxiliado as nossas armas, expulsando com ignomínia três Exércitos, que o Imperador dos Franceses há arrojado sobre Portugal. A nossa antiga Universidade exemplou com ações, e com milagres de patriotismo, ao inerme resto da Nação Portuguesa. A batalha do Vimeiro, a do Porto; a sua estendida e forçada marcha às fronteiras do Reino são outros tantos argumentos da minha asserção.

Espetador dos factos mais principais, e esporeado de certificar à minha Nação, pelos ardentes desejos de lhe poder ser prestável, dos progressos na carreia militar, que fez o Corpo a que já pertencí, esbocei em poucas páginas as suas marchas e feitos desde 31 de março até 12 de maio de 1809. A estes meus desejos acresceu um preceito, cuja observância era inelutável, e que aliás tão de perto me honrava. Eu passo com mais largueza a esta narração precisa ao meu Contexto.

Quando, em junho de 1809, organizei de ordem superior e imprimi a Obrinha intitulada Narração das marchas e dos feitos do Corpo Militar Académico, desde 31 de março, em que saiu de Coimbra, até 12 de maio, sua entrada no Porto, nem ao menos fantasiei que para o diante escreveria as suas marchas para as fronteiras do Reino, remate de todas as suas operações militares, e menos ainda o quanto este Corpo iluminado laborou, em abono da causa mais sagrada, na primeira restauração dos nossos Reinos; porém, um segundo preceito, a que de nenhuma feição me era dado o esquivar-me, e que, aliás, pela seleção tanto me há decorado, me pôs sobre os ombros este imoderado gravame. Postos de parte os livros, todo aquele Corpo respirava guerra; sem fazer pé atrás aos mais assanhados perigos, voa à Figueira, manieta os réprobos Satélites do Cometa sorvedor dos Impérios, Napoleão, e os conduz em triunfo aos pés sagrados da Religião e do Trono. À voz de seu Cabeça 1, toda Coimbra revestiu alentos, suas muralhas se tornam de ferro, e seus Cidadãos enfim, com as entranhas em brasa, aguardavam o momento ditoso de se medirem com o inimigo. A voz daquele Patriota, já hoje falecido, marcou a oportuna ocasião do desembarque ao poderoso

Exército, que a Grã-Bretanha mandou a Portugal, para coadjuvá-lo na expulsão daqueles monstros, sobre as areias de Lavos. Que assombroso e insólito espetáculo! As grandes providências, inventos, cautelas criaturas de seu génio não popular, de que fomos espetadores nas procelosas noites de 24 de junho, e seguintes, tem mais admiradores que imitadores. A minha pena nem ao menos tem o primeiro colorido para as esboçar; todavia, meus ardentes anelos se encontrem com a minha sobeja insuficiência. O Corpo Académico, religioso observante de suas Ordenanças, tem merecido os cultos de sua Nação, e de seu Augusto Príncípe Magnânimo. O patriotismo foi o seu alvo, e o amor à Religião e ao Trono o único impulsivo de suas ações. Ele se tem imortalizado.

Quanto ao mérito particular do meu opúsculo, pertence ao Leitor circunspecto o decidir; à sua sentença, quando imparcial, contente me acurvo; confessando, entretanto, que, se no estilo houver pouca polidez, é ela devida à minha imperícia em parte, e em parte ao pouco tempo, que hei tido de o limar, pois que há quase dois anos que não conheço domicílio certo, correndo destarte incómodos indizíveis, com que se não combina a aplicação e o estudo. Mas hoje, que um novo astro me quer arrancar das trevas, e me faz reviver! eu me esqueço do quanto sofri em Portugal, e ratifico com a mais plena espontaneidade o sacrifício por que passou quanto de meu possuía em Coimbra, no poder dos Franceses. Ver ao meu lado uma Consorte, que constitui a todos os respeitos as minhas delícias, com os tristes panos apenas que lhe cobriam as carnes, caminhar a pé, com um filho nas entranhas, a extensão de trinta e seis léguas (jornada de Coimbra a Lisboa); o ver-me exausto nesta tragédia de horror da mais pequena esperança de alívio; ver enfim e receber para sempre o último adeus de uma Sogra respeitável pelos seus anos, pelo seu sexo, e pela sua dignidade, que, estancada de forças, sufocada do cansaço, e ante os meus olhos, exala o último e saudoso suspiro! Eu gemo!... Porém, se é preciso este holocausto para a ventura de minha Pátria, eu me congratulo. O Cidadão, que se sacrifica pelo seu Rei, pela sua Pátria, e pela sua Religião é o Cidadão mais honrado. Porém, continuando, se às obras de uma semelhante condição a fidelidade outorga ao menos algum merecimento, feliz eu! O meu

Patriotismo Académico é integérrimo e fidelíssimo. Testemunha de olho de quase tudo o que narro, pertencente a este Corpo, e auxiliado por alguns apontamentos curiosos de um e outro amigo, e particularmente guiado por autênticos manuscritos, que me franqueara o Coronel do mesmo Corpo, Fernando Saraiva Fragoso de Vasconcelos, já também defunto, por quem fui também estreita e entranhavelmente encarregado desta impertinente empresa, creio que devo merecer crédito.

Sei, aliás, muito bem que relato algumas coisas já por outro narradas; todavia, contempladas por mim como fios necessários à teia de meu assunto, e de que em maior porção, como notei, fui testemunha presencial; outras narro, porém, inteiramente novas e bem dignas de atenção (e são estas as que formam o fundo desta obra) e, guizando harmonicamente esta mistura, desempenho o nobre pensamento de um sabedor do século passado. Os génios, dizia ele, que não dizem senão coisas novas, se algum há desta estofa, não devem fazer uso da pena. Os meus desejos, acrescentava ele, se limitam em que a minha obra seja inteligível e útil. Afincada a minha ideia nestes dois nortes brilhantes, de tudo o mais se deslembra. Eu divido o meu Opúsculo em doze Semanas, não porque o quanto que em cada uma relato fosse perpetrado naquele estreito recinto de dias, mas sim porque deste teor ele se torna, senão mais arranjado e claro, de alguma feição ao menos refocila o espírito cansado do Leitor. Oxalá que este meu trabalho seja ao menos do agrado da Academia! É este o prémio, que ambiciono, sobejo, certo, ao homem honrado, e despido da sordidez mesquinha do interesse, que só avulta aos olhos dos mais minguados e abatidos sentimentos. Sobre estes honrados degraus se assenta o trono de toda a minha glória. Concluirei enfim este meu preâmbulo com os dois versos de Owen decorados por todo o mundo.

Qui legis ista, tuam reprehendo, si mea laudas Omnia, stultitiam; si nihil, invidiam.

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