5 minute read

Rosa Maria Santos

Next Article
Tito Laraya

Tito Laraya

PARTICIPAÇÃO ESPECIAL COM A ESCRITORA ROSA MARIA SANTOS

Esse maldito vírus

Advertisement

Todo o planeta passa por um momento difícil, diria, um terrível pesadelo. Paira no ar uma ameaça que atinge todos os habitantes da terra. Um vírus estranho – ou não tanto - veio assombrar o nosso quotidiano. Ninguém está imune, ataca todos nós sem piedade, sem escolher extrato social: rico, pobre, sem abrigo, idoso, jovem, criança, todos estão sujeitos a tamanho flagelo.

Não tinha o costumo de espreitar pela janela, nem tempo e nem vontade, essa era a verdade. Hoje, dou comigo a espreitar a toda a hora, tentando olhar os vizinhos dos prédios circundantes, à janela como eu, olhando ao redor o deserto em que se transformara a nossa cidade. Abrem os estores, olham para um lado e para o outro e, circunspetos, voltam para dentro.

Confinados em casa, proibidos de sair à rua. Tempo para refletir sobre a nossa parca existência. Tudo o mais, o que antes era importante, parou no tempo.

Forma estranha de encarar a vida, mas é a realidade, já lá vão dois meses.

No alvor do ano de 2020, nunca me passara pela cabeça (será que passou pela cabeça de alguém?) que nos meses seguintes teríamos que passar por tamanha provação. Cada um, levava os seus dias como podia, com mais ou menos preocupações. Era um bom dia aqui, outro acolá, um sorriso, um olhar, e o tempo corria despreocupado, sem tremores no coração.

De repente, a cortesia de faça o favor de passar, deixou de existir, simplesmente, não nos cruzamos. Hoje, parecemos estranhos, mesmo para os mais chegados. Se nos aproximamos esporadicamente, afastamo-nos. Cumprimentos com toque, nem pensar, é proibido. Desconfiamos de tudo e de todos. Os abraços deixaram de fazer parte do nosso quotidiano. O beijo de amizade, um anátema, perigo eminente, para quem o dá e para quem o recebe. E as mãos? Agora, como doidinhos, passando-as por água com sabão ou gel, como se estivessem sempre infetadas. Até de nós desconfiamos. Mundo estranho este!

Tudo ao redor não passa dum valente tombo, do qual não sabemos como nos levantar. Damos um espirro, tossimos casualmente e logo os olhos ao redor se viram para nós, como na presença de um inimigo, um vírus contagioso. Quem sabe, se calhar, têm razão!

Uma ida ao supermercado, em busca de bens essenciais, é agora uma arriscada aventura. Tudo tem que ser planeado com rigor. O uso de máscara, como se no meio de um assalto, é agora obrigatório. Entrecruzam-se entreolhares, vigiando, medindo as distâncias, como num antro de guerra química. A boca e os olhos, protegidos agora por essa burca estranha. As mãos, protegidas por luvas de latex, como se tomadas pela lepra. Momentos de stress, as idas a uma superfície comercial. Um cansaço estranho percorre o nosso corpo… e apetece regressar bem depressa para casa.

Esse maldito vírus

Com tantas idas à janela, criamos novos hábitos. Mais humanos. Embora assustados, apetece cumprimentar, ironizar, às vezes, como se numa tentativa de proteção de nós mesmos, o modo que encontramos para enfrentar os nossos medos. É disso que se trata, medo. Medo das notícias, medo uns dos outros, medo do amanhã. Misericórdia, ó Deus.

Hoje dei comigo a pensar em como vai ser o dia de amanhã. Como vai ser o relacionamento com aqueles que nos são queridos, os nossos vizinhos, os nossos amigos? Questionamo-nos a cada instante e não encontramos respostas plausíveis, tudo é uma incógnita que tememos conhecer. Alguns dias atrás, vi na TV algo que não mais me saiu do pensamento. Um funeral. Um corpo inerte, um padre, um filho. Creio que vai demorar muito tempo até que o esqueça.

Quando regressei a Braga, a minha cidade, em junho de 2017, adquiri um apartamento mesmo no centro da urbe. Ainda hoje, mal conheço os vizinhos cá do prédio. Nestes três anos, esporadicamente, cruzei-me com uma senhora que prendeu a minha atenção, pelo seu porte, pela forma como agia connosco. Nem sabia onde ela vivia. Mas, certa manhã, vi-a no mercado. Descobri mais tarde que vivia num prédio mesmo defronte do meu. Reconheci-a. Deve ter os seus oitenta anos, penso eu. É elegante, altiva, loura, olhos azuis.

Há dias, num dos momentos em que fui à janela espairecer, fiquei estupefata.

Ei-la inerte no chão, sobre as pedras cinzentas da calçada. A pouca distância da porta de entrada da sua casa. Era meio dia. O sol batia forte no seu pálido rosto. Ao seu lado, um homem, impotente, junto a ela, tentando confortá-la.

Uns vizinhos do seu prédio, saíram com máscaras, com gel alcoólico na mão. Notei que aguardavam O INEM, o Serviço de Emergência Médica, instalado ali bem perto. Tinham passado dez minutos. Com esta crise da pandemia, as coisas não funcionam tão rápido como o desejado. Havia que ser paciente. Depois de feito o suporte de vida aconchegaram-na, colocaram-lhe uma máscara e seguiram para o hospital. Quem sabe se era mais uma vítima desse vírus maldito! Na verdade, hoje todos somos todos suspeitos e há que tomar as necessárias precauções.

Não sei o que se passou com ela. Como gostava de saber. Quem sabe se em breve a vejo de nosso a calcorrear, ali, frente à minha janela.

Dá que pensar até onde este maldito vírus nos levará, como vai ser nosso futuro. Que obstáculos iremos enfrentar daqui para a frente.

Foi-se a nossa liberdade. Hoje, penso que não soubemos aproveitá-la na sua plenitude. Conspurcamos o planeta, criamos novas tecnologias e hoje, eis-nos aqui dependentes delas, qual castigo do Divino.

Antes, tínhamos tudo e não sabíamos. Tornamo-nos egoístas, quantas vezes, irresponsáveis. E agora? O que vai ser o dia de amanhã?

Hoje sonho, sonho acordar um dia sair à rua, respirar o fresco duma manhã de sol, olhar o mar, abraçar toda a gente, e gritar ao mundo:

O Pequeno Príncipe visita São Paulo

This article is from: