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Ricardo Pontes Nunes

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Flavio Joppert

Flavio Joppert

PARTICIPAÇÃO ESPECIAL COM

ESCRITOR RICARDO PONTES NUNES

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Ricardo Pontes Nunes nasceu numa família de sete irmãos em Timon, interior do Maranhão, onde na infância, segundo conta, vivia grande parte do tempo dentro de um mundo povoado por seres e lugares que lhe pareciam assombrosos e irreais, o mesmo mundo fantástico que mais tarde, na adolescência, se lhe depararia novamente em seus primeiros contatos com a literatura. Morando atualmente em Manaus, depois de ter vivido no Rio de Janeiro e em São Paulo, busca recriar aquela antiga atmosfera em contos e ensaios. Afirma não crer na desalentada máxima teosófica de que, em essência, na ficção sejamos incapazes de criar coisas novas, como se nos limitasse um círculo de mitologemas que apenas se rearticularia e repetiria. “Pensar assim é acreditar que a vida já está dada”, declara. Demonstrar isso, segundo o autor, é uma das metas do seu livro de estreia na ficção: Entre Fados e Tumbas - e outros relatos mundanos.

APRESENTAÇÃO

Quinze contos complementam-se e cruzam-se em algum ponto, ora de forma mais nítida, ora nem tanto, seja por meio do cenário onde convergem ou do pano de fundo histórico, mas sobretudo no que revelam sobre a marca da condição humana na busca dos personagens por livrarem-se do que se lhes parecem estigmas, através de gestos de resiliência, superação e coragem. Nesse itinerário o autor conduz os leitores por narrativas vivas, relatos, lugares, tempos, histórias e personagens. Em sua escrita minuciosa e imagética, o autor traz quem o lê para dentro da história, de forma fluida, desenhando os cenários e as personagens e alimentando o estado de surpresa do que sempre está por vir. Entre Fados e Tumbas: e Outros Relatos Mundanos é uma obra para ler como a quem entra em uma estrada, à deriva, sem saber para onde vai, mas apreciando o caminho.

Sinopse

Constança Aguiar: relata a trajetória de uma mulher que odeia o filho que teve com o homem que ela tentou assassinar após anos de uma violenta convivência;

O Jaguar: várias gerações de uma família do interior passam a conviver com o trauma de ter tido um dos últimos descendentes devorado ainda bebê por uma fera ao ser deixado numa varanda dentro de um cesto enquanto sua mãe pendurava roupas no varal;

O Último Navio Fantasma: baseado em fatos, narra a assombrosa história de um simples pescador ao deparar-se com um estranho navio chinês abandonado numa praia. O pungente relato que ouve dos poucos sobreviventes presos no porão da enorme embarcação envolvem sua luta para devolver o navio à navegação em uma aura mística mas também venturosa;

A Seita de Irineu Lopes: ambientado em princípios do século passado, descreve o envolvimento de um líder religioso com um movimento revolucionário até seu trágico e solitário desfecho;

Viagem: um estudioso colono acaba largando tudo em sua vida e seu trabalho de astrônomo e engenheiro na fundação de uma sesmaria após ser seduzido pelo fascínio que lhe desperta uma tribo de nativos;

A Ferrovia: três gerações de mulheres de uma mesma família têm o fio condutor de suas vidas marcado por trágicas relações pecaminosas e deprimentes até que uma delas renega seu sobrenome como forma de romper aquele ciclo; Um Uróboro: um enamorado casal passa gradualmente a perceber que seu amor reflete o símbolo circular de uma serpente que devora a própria calda;

O Cognoscível Paradeiro de Faw-

cett: a lendária história do explorador britânico desaparecido na floresta amazônica em 1925 é recontada a partir de uma visão que distorce a mística que envolve o caso para chegar a uma resposta para o enigma;

Bichos: a visão de um condenado à morte sobre a degradação do gênero humano a partir das impressões que lhe causam os insetos e vermes que enxerga estarem infestando sua sela;

Aos Deuses Manes: falecido no séc. II d. C., um ex soldado pretoriano resume sua vida a partir do epitáfio que lhe escreve a esposa;

O Sonho de Viriato: ao contemplar o mar pela primeira vez, Viriato procura intuir sua ancestralidade até começar a encontrar evidências de quem foram, onde e o que sucedera a seus antepassados imediatos;

Os Deuses Facínoras: recria o caso de um homem escravizado como zumbi e sua caminhada desde a violação de sua suposta sepultura até o dia em que consegue recuperar sozinho sua razão e sua liberdade;

Entre Fados e Tumbas: um homem e sua esposa veem o rumo de suas vidas ser engolfado pelos desdobramentos políticos que se anunciam uma ignota batalha durante o processo de Proclamação da República no Brasil.

A Intrusa: uma mulher sedutora entra para uma família através de um casamento, quando então uma cartomante vizinha prevê a trama de sua perfídia, mas ninguém consegue impedi-la de ir se apossando de tudo, inclusive que consume seu último e fatal objetivo.

TRECHOS

“Na infausta noite em que levaram o corpo de Bastides para casa depois que o legista atestou a falência dos seus sinais vitais, um sujeito com gestos e indumentária de feiticeiro penetrou na casa pesarosa. Esgueirou-se entre o luto e entrevistou-se com a aturdida mãe do velado. No centro da sala, discretamente sacou um longo e escuro prego do escapulário que trazia preso à cintura. Gemeu circunspecto uma inaudível prédica na língua kimbundu e cravou fundo o metal na planta do calcanhar esquerdo do cadáver [...]

Os Deuses Facínoras, in Entre

Fados e Tumbas

“Podia ser que tivessem limpado e arrumado o quarto nas vésperas, mas seu aspecto de poço, de calabouço, estava gravado na atmosfera que o preenchia. Antes que pudesse se virar para fugir da imagem confusa do estranho desconhecido, ouviu a voz maternal da mulher atrás de si. Essa senhora conduziu seus passos embaraçados para dentro do recinto e ela deve ter-se curvado, porque pôde sentir o calor do seu hálito bem rente a sua nuca quando sussurrou com sua voz de anciã quem era o desconhecido: -Esse homem aí, criança, é seu avô! [...]

A Ferrovia, in Entre Fados e Tumbas

“Jaime entendeu que todas elas ali concorriam para que a mãe sustentasse a resolução do que já lhes devia ter contado, e aproveitou a evidência de ter se dirigido ao centro da cozinha onde lhe estendiam a tigela de sopa para extrapolar seu desespero de viciado. Pegou a deixa da conversa interrompida e disse, em tom de pejo, olhando direto no rosto de Constança Aguiar antes que ela o evitasse: - Você sempre cagou pra mim porque eu, sendo filho de um preto que nunca soube quem foi, não saí branquinho que nem aqueles convencidos dos seus outros filhos. [...]

Constança Aguiar, in Entre Fados

e Tumbas

“Também não sei se foi meu avô quem plantou no quintal da frente uma figueira enorme onde uma espécie pequena de vespa negra estabeleceu uma colmeia na copa. Talvez ela já estivesse lá quando ele adquiriu o terreno, porque parecia muito antiga, com o ameaçador influxo barroco de suas monstruosas raízes aéreas e seus cipós derramando-se até o chão semelhantes à uma intricada rede de tentáculos preênseis e estranguladores apenas adormecidos, o que me causava uma estranha sensação de repulsa e asfixia. Moramos ali, naquela casinha dos fundos, por um tempo, cerca de dois ou três anos, creio, até a chegada da intrusa [...]

A Intrusa, in Entre Fados e Tumbas

“Três letárgicos anos cumpriram as instruções daquele seu último telegrama. Certa reverência ou um conveniente esquecimento contiveram ou acumularam os ímpetos da curiosidade e da diligência dos seus correspondentes. Decorrido o tempo, esse inveterado iconoclasta, a lacônica premonição de sua mensagem ter-se-ia degenerado em mera presunção, em abuso de confiança, em despedida suicida, em atestado de insanidade ou, o que seria pior, em ingratidão. Aí soou o alarme de que seu incógnito destino lindava com o corriqueiro ou com a fatalidade, mas também com o insólito. Para desbaratar o turbilhão de hipóteses, sobretudo as mais fantasiosas, uma aparatosa campanha estrangeira com comboios de mulas, entrepostos e barcaças fluviais bateu seu itinerário perdido até aos lodosos pântanos onde se afantasmaram os resquícios dos seus últimos rastros [...] Fawcett, in Entre Fados e Tumbas

“O Mar da China, os estreitos do Oceano Índico e, depois das áfricas, as imensidões do Atlântico perfariam seu pretensioso itinerário. Só lhes importava agora o presente, esse tempo de certezas, onde sua corajosa perícia de navegantes inveterados e os porões repletos do pescado que haveriam de fisgar consagrariam sua fama e fortuna [...]

O Último Navio Fantasma, in Entre Fados e

Tumbas

“E nesse dia viu o que seus olhos cinzentos e penetrantes não puderam escrutar: em plena luz do sol a pino, o mago dos feitiços benfazejos, Pedro Damiano, atear fogo na mais pura e translúcida água de se beber. Na verdade, tratava-se de aguardente concentrada de cana-de-açúcar dentro de uma imensa tigela feita de casca de coité. Diante do estrondo repentino causado pela ignição do álcool, os desprecavidos espectadores atropelaram-se para fugir. Nesse momento não faltou aquele desinfeliz personagem a quem sempre lhe falham os cambaios ou é pisoteado na hora da correria do cada um por si Deus por todos. Mas o rosto caído que se virou para olhar para trás cortou num átimo a banguela gargalhada de Pedro Damiano. Era um menino Lemur, cujas lágrimas lhe borravam no rosto a poeira que aos poucos baixava para deixar ver sua expressão de mais lídimo terror ao pedir entre gemidos para que nunca lançasse sobre seu povo os malefícios de sua ciência terrível [...]

Viagem, in Entre Fados e

Tumbas

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