Apoio e reflexões A arte de contar histórias pedagógicas
A arte de contar histórias
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A arte de contar histórias
Que pena que muitos adultos não se lembrem mais do poder mágico das palavras: “Era uma vez...”. Ao abrirmos um livro e proferirmos esta frase, não imaginamos que iremos viajar para um mundo fantástico, onde tudo é possível e podemos conhecer tantas aventuras e histórias sem sair do lugar. Todos gostamos de ouvir histórias, seja na fila do banco, seja a da vizinha, a da novela, a de nossos avós, a de alguém que amamos ou de alguém que nunca vimos. Quando bem contadas, as histórias têm o poder de hipnotizar as pessoas e fazer com que sejam capazes de sentir todas as emoções presentes em sua narração. Lembro-me de uma professora me contando sobre quando decidiu narrar para sua turma de crianças de 4 anos de idade A Verdadeira História dos Três Porquinhos, publicada pela Companhia das Letrinhas. Em meio a sua contação, um de seus alunos, indignado com os relatos do lobo, levanta-se, coloca as mãos na cintura (quando criança pequena coloca as mãos na cintura, é sinal de algo muito sério!) e diz para a classe: “vocês não podem acreditar nesse lobo! Lobo não come açúcar! Ele quer nos enganar!”. Mas, antes que a professora pudesse falar algo, outra criança diz gentilmente à primeira: “calma! Precisamos ouvir os dois lados da história. A nossa professora nos ensinou isso”. E todos voltam a olhar atentos para a professora, que prossegue a narrativa. Aos que não conhecem o texto, nessa versão o Lobo conta, sob sua ótica, os fatos ocorridos com os Três Porquinhos. Para os adultos, em geral, o que aconteceu na aula foi apenas uma conversa sem muita importância entre duas crianças, que para piorar ainda interromperam a roda de história da professora. Mas, para o olhar atento de nós, educadores, foi uma pequena descrição do poder mágico das histórias. Duas crianças que,
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diante da narrativa, envolvem-se com o texto e são capazes de relacionar as versões que já ouviram e os conceitos que conhecem de mundo com as aprendizagens vividas. E têm a oportunidade de conviver com opiniões contrárias, percebendo possibilidades de análise. E a professora? Não se preocupa com a interrupção da roda, pois entende que não existiu parada. As falas das crianças e os sentimentos ali vividos e verbalizados pertencem àquele momento. Quanto mais estivermos em contato com as rodas de histórias, seja em casa, em ambientes de lazer ou, principalmente, nas escolas, mais aumentará nosso “vício” pelos livros. Sim, vício. Mas, para que nos viciemos em algo, precisamos sentir uma descarga de prazer. Para isso, é importante que as rodas de histórias nas escolas sejam organizadas de modo a criar momentos de prazer e boas discussões. Não pode ser apenas uma leitura sem compromisso, uma ação para cumprir o horário ou uma situação em que as crianças tenham que ficar sentadas, sem poder se expressar. 2
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1. Organizando as rodas de história na escola: Em muitos de meus cursos, professores me perguntam se as rodas de história, no início da aula, devem estar na rotina da Educação Infantil e dos anos iniciais do Ensino Fundamental. E, para responder a essa pergunta, sempre lhes conto sobre meu professor de Administração Escolar, no meu curso de Pedagogia no Mackenzie, que todas as vezes iniciava suas aulas lendo uma pequena história. Sem compromisso, sem provas ou trabalhos ligados a ela, apenas uma história, que tinha o poder de nos encantar para começarmos nossas discussões sobre a disciplina. É isso: as rodas de história devem estar presentes no início da aula, de todos os anos escolares. Não pode ser somente um trabalho do componente curricular de Língua Portuguesa, mas uma estratégia em que possamos desenvolver habilidades como: escuta atenta, análise de pontos de vista, contato com gêneros variados de narrativas, capacidade de compreensão e interpretação das histórias, oportunidade para debater e respeitar opiniões diversas, ter contato com pluralidade cultural, conhecer valores e temáticas presentes nos textos, partilhar.
Para esse momento, é importante que sejam utilizados espaços diferentes da escola, permitindo que os alunos ouçam histórias, por exemplo, debaixo de uma árvore, em uma área verde, na sala de aula mesmo, mas sentados em um tapete ou em roda. O importante aqui é que não estejam em fileiras e, se estiverem em uma roda, que não sejam obrigados a sentar em uma posição específica. Podemos ouvir a história como desejarmos, desde que não incomodemos nosso amigo ao lado, e que esse possa ser um momento de prazer. Com as turmas dos anos finais do Ensino Fundamental e Ensino Médio, os professores das primeiras aulas podem combinar quais pequenas histórias serão contadas por eles, de modo que os jovens também aproveitem essa ação para ter prazer em ouvir histórias e dialogar sobre elas. 2. Selecionando histórias a serem contadas: Nem todo livro que temos em nossas prateleiras será interessante para que possamos utilizá-lo na roda de história. Por isso, é importante que o professor se prepare para a roda, leia o texto antecipadamente e perceba se ele tem a “pegada” para ser contado. Vejam algumas dicas para escolher um bom texto para a Hora da História: • Busque histórias com conflitos instigantes. • Escolha textos em que os personagens sejam bem delineados. • Estrutura narrativa bem armada. • Linguagem bem construída. • A duração ideal da contação de histórias deve ter entre cinco e dez minutos. • Verifique se a narrativa apresenta possibilidades de interpretação nas entrelinhas.
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• Veja as possibilidades reais da passagem da modalidade escrita para a oral. • Atente se a narrativa é capaz de cativar o ouvinte e suscitar o desejo de novas histórias. • Perceba se a história escolhida é capaz de despertar prazer (provocar arrepios, levar a novas percepções, ampliar a imaginação). Vale lembrar que, quando assumimos o papel de contadores de histórias, nossa voz torna-se os “olhos do ouvinte” para ingressar no texto. Com a entonação correta, as paradas para pensar, colocando emoções nas palavras, faremos com que os ouvintes consigam sentir e desenhar a narrativa em sua mente. Por isso, ao contar uma história, devemos adotar algumas atitudes: • Demonstrar emoção. • Ter conhecimento do texto. • Preparar as adequações de acordo com o público. • Trabalhar a expressão corporal (em algumas técnicas). • Preparar a voz. • Trabalhar o olhar como instrumento importante da narração. • Ser espontâneo e natural ao contar a história. • Impor ritmo. • Criar clima. • Passar credibilidade na narração. • Colocar pausas e silêncios para estimular a participação de quem nos ouve. 3. Escolhendo as técnicas para contar histórias: Muitos professores me perguntam sobre usar técnicas diferentes para contar histórias, principalmente para as crianças de Educação Infantil e dos anos iniciais do Ensino Fundamental. Não
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há problema algum em inovar e trazer algumas estratégias diferentes para esse momento, mas é preciso tomar alguns cuidados para não estragar a história: •U so de fantoches: muito comum nas escolas, usar fantoches ou marionetes na hora de contar uma história é bem divertido. Porém, vale lembrar que há uma diferença entre encenarmos a história, isto é, fazermos o teatro de fantoches com vários personagens, e usarmos um boneco como sendo o contador de histórias. São ações diferentes apesar de estarmos narrando o texto. Na roda de história, vale usar um boneco como narrador. Mas atenção, treine antes de usar o fantoche ou a marionete, pois a manipulação incorreta fará com que as crianças se distraiam observando se o boneco não está falando ou se mexendo direito, não prestarão atenção na história e a roda fracassará. Ao usarmos o fantoche como contador, ele deve expressar as emoções e os movimentos da mesma forma que nós faríamos.
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• Uso do livro e das ilustrações: cena comum na escola, na roda de história o professor pega o livro, começa a ler a história e, a cada imagem, para e vai mostrando as ilustrações para os alunos. Nem todos conseguem ver, a narrativa é sempre interrompida, perde seu ritmo e o docente deixa de trabalhar uma habilidade importante com as crianças: a capacidade de ouvir a história e construir o texto em sua mente (a tal da imaginação). O correto nessas situações é o professor apresentar a história (título, autor, ilustrador, editora), dizer que vai ler e, ao final, os alunos poderão ver o livro, que estará na prateleira. Assim, terão a oportunidade de comparar as imagens dos personagens com as que imaginaram, avaliar se são da mesma forma que as criadas pelo ilustrador, se gostaram e, principalmente, sentirão incentivo para ir até o livro quantas vezes desejarem. • Músicas e movimentos: principalmente com os alunos da Educação Infantil (bebês e crianças bem pequenas, utilizando a classificação da BNCC), devemos sempre escolher histórias breves em que eles possam interagir na construção da narrativa, com sons, repetições, movimentos. Para essa turminha, a roda de histórias, como tudo que vive, é um grande brinquedo. • Abertura e fechamento da roda: contar e ouvir histórias é uma tradição. O ritual de sentar em roda, ouvir atentamente o outro e se deliciar com o que será contado deve ser respeitado. Por isso, não podemos deixar de segui-lo. Ao começar e ao terminar a história, use palavras que indiquem essa ação. Por exemplo, “Era uma vez...” e “Entrou por uma porta e saiu pela outra, e quem souber que conte outra”. Isto indica o começo e o fim dessa ação, do rito de ouvir a história, e faz a criança compreender que nesse momento da história tudo pode: animais falam, heróis lutam pelas princesas, A arte de contar histórias
sonhos serão alcançados, é o ponto mágico do texto. Para a turma dos anos finais do Ensino Fundamental e Ensino Médio, vale criar os códigos de abertura e fechamento da história, inclusive pesquisar como isso acontece em outras culturas. A arte de contar histórias está no prazer e nas trocas que esse momento terá em nossas vidas. Que nunca esqueçamos o poder de um Era uma vez... E esta história entrou por uma porta e saiu pela outra, e quem souber que conte outra...
“O lobo sempre será mau se você ouvir apenas a versão da Chapeuzinho Vermelho.”
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ProfaªMa Tatiana Pita Possui graduação em Pedagogia pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Especialização em Psicopedagogia, UNIP. Mestre em Educação pelo programa História, Política e Sociedade, PUC-SP. Doutoranda no programa de Tecnologia da Inteligência e Design Digital, pela PUC-SP. Professora da graduação do curso de Pedagogia e da pós-graduação das áreas de Educação. Coordenou o curso de Pedagogia da Faculdade Método de São Paulo. Tem experiência na área de Educação, com ênfase em Métodos e Técnicas de Ensino. Atua como contadora de histórias (eventos e formação). Assessora pedagógica e supervisora em Editoras, com experiência na formação de professores nas redes pública e privada, treinamento de equipe comercial e produção de materiais didáticos.
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