"Esculturas"
Texto de Raphael Fonseca sobre a mostra "Como me tornei insens ível" na Galeria Ibeu, julho de 2013. Publicado na Ed. 5 da Revista Performatus.
Tive a oportunidade de estar na abertura da exposi ção insensível
Como me tornei
, de Jorge Soledar, na Galeria IBEU, em 15 de maio.
Compartilhando o todo com Paula Huven e tornando o espa ço uma casa para duas exposições individuais, de imediato chamava a aten ção uma comprida estrutura de gesso colocada s obre o chão. Intitulada por
Atravessamento,
formalmente, esta imagem cortava o espa ço expositivo do modo j á anunciado em seu nome, ou seja, atravessado. Estabelecia -se, então, uma diagonal que apontava para uma das paredes do cubo branco, logo ao lado de
um dos cantos
da sala.
Sua extensão longa e seu aspecto de poliedro me fez lembrar a produ ção de objetos tridimensionais na chamada
. Formas geom étricas
arte minimalista
ampliadas e trazidas para o espa ço, nessa produ ção artística que tem grande destaque na década de 1960 nos Estados Unidos, havia um car áter literal da imagem. Não à toa, Michael Fried e seu famoso texto
Arte e objetidade
;
esses objetos são, antes e depois de qualquer visada, objetos, formas, materiais industriais com car áter monumental e embebidos pela assepsia das instituições que abrigavam e iniciavam uma tradi ção expográfica em torno daquilo que agora chamamos por
arte contemporânea
.
O trabalho de Jorge Soledar, por ém, trazia dois problemas nessa minha comparação visual. Sendo u m cubo de gesso algo cuja deteriora ção e efemeridade é garantida, se poderia pensar um v ínculo conceitual com o minimalismo? Saía uma pretens ão industrial de cena e entrava um pequeno monumento ao fazer com as m ãos e à figura do artista como pessoa que coloca, literalmente, a
mão na massa
. Endossando essa minha reflex ão,
em segundo lugar, havia ali um dado que era mais atravessado do que o espaço por essa linha de gesso, a saber, um corpo humano masculino. Deitado no chão, suas panturrilhas estavam presas ao volume desse objeto. N ão estamos falando aqui de uma escultura dentro da escultura, ou seja, de um homem de gesso atado a esta outra forma, mas de algu ém de carne e osso que durante toda a abertura tentou repousar sobre o chão e escancarou aos olhos do público sua inquietude quanto à desconfortável posição em que se encontrava.
Desse contraste entre o artesanal e o elemento vivo, outras duas conex ões vieram à minha mente. Como é apresentado esse corpo humano? N ão se trata de um homem nu, o que poderia remeter à tradição do estudo de modelos vivos, mas de alguém que porta em seu corpo uma aparente casualidade do vestu ário contemporâneo; jeans, uma camisa verde e um t ênis all-star. Poderíamos, então, adaptar os termos criador
e
criatura
artista
e
modelo
para, quem sabe,
. O propositor desse trabalho domina a figura do
outro através de seu dispositivo de gesso. Esse corpo n ão está estirado para que se recodifique em nada para al ém de sua inércia e, talvez por isso, mais do que um modelo para alguma coisa, ele se aproxime mais de um objeto para um domador. A met áfora aqui é menos a do ateli ê e mais a do circo com seus le ões.
Esse apelo à fisicalidade trouxe uma palavra que n ão saía das minhas reflexões enquanto estava na exposi ção: escultura. Como outra leitura, n ão consegui evitar a recorda ção que esse bloco aprisionador poderia evocar ao mais célebre dos escultores da hist ória da arte, Michelangelo. A maior parte de seus escravos, posiciona dos na vertical, se contorcem em uma batalha contra a materialidade do m ármore e se exibem ao espectador apenas de modo indicial. Michelangelo esculpia como se estivesse a observar um corpo humano imerso em uma banheira, ou seja, tornava vis íveis as partes mais protuberantes e depois ia aprofundando a mat éria até fazer saltá-lo de dentro do bloco de m ármore. O tempo estendido de sua t écnica escultórica
era parte de sua proposta art ística onde ele optava pela lentid ão certeira no lugar da pressa. Nas palavra s de Giorgio Vasari,
Muitos erros que observamos nas est átuas decorrem dessa ansiedade dos artistas em ver surgir do bloco, de uma s ó vez, a figura tridimensional, de tal modo que, muitas vezes, um erro cometido s ó poderá ser remediado através da junção de peças diferentes... Tais remendos nos fazem pensar no trabalho dos sapateiros, e n ão no de mestres competentes...
O tempo tamb ém é um dado importante na pesquisa art ística de Jorge Soledar. A verticalidade da tradi ção clássica é recusada e empurrada par a o chão. Ali deitado ficou esse homem de jeans por mais de tr ês horas sendo observado por um diverso grupo de pessoas que ao seu redor se colocou numa espécie de teatro. Ao final do vernissage, coube ao criador/domador libertá-lo de seu bloco de gesso. Se até o momento o processo escult órico aqui se deu pela adi ção, pela junção de água e pó, agora Soledar teve de se colocar nessa práxis michelangelesca da subtra ção, do corte, do perfurar a matéria para libertar seu escravo. Era preciso se tornar insens ível e mesmo violento para deixar a mat éria humana sens ível mais uma vez livre.
Uma vez que esse ato que se tornou perform ático foi encerrado, uma nova configuração da forma era apresentada. Agora poder íamos contemplar os espaços vazios um dia ocupados po r duas pernas. Morre a escultura viva e se celebra a ruína da liberdade. Onde estar á esse homem agora? Vagando por a í como as imagens morto -vivas e engessadas de George Segal? N ão há resposta precisa a isso, mas pod íamos ver a comprova ção de que um dia tal corpo esteve naquela galeria.
Nesse sentido, o trabalho de Jorge Soledar pode se aproximar da vontade humana de se representar o
estive ali
, o indício da permanência
temporária ‒ seja na fotografia, seja nos dejetos de uma performance ou, trazendo para a escultura novamente, nas m áscaras mortuárias. Na ausência
de um rosto que, em verdade, nunca foi frontalizado para o p úblico, cabe lidar com esses dois rasgos frutos da viol ência. Essa problematiza ção do rosto humano aparece n ão apenas aqui, mas nos ou tros trabalhos presentes na exposição e realizados a partir da fotografia. Em os
contrarostos
Nucas
, por exemplo,
de seis pessoas s ão fotografados, ladeados e
poeticamente sustentados por toras de madeira.
Não me detive muito sobre esses outros trabalhos presentes na mesma exposição, pois tenho convic ção de que a vontade escult órica explícita de Atravessamento
me chamou mais a aten ção. Através de uma imagem que deixa
ao espectador uma rea ção incapaz de ser ass éptica, Soledar compartilha conosco um pouco de sua suposta
insensibilidade
. Digo
suposta
porque ela é capaz de ecoar a tantos t ópicos da história da imagem e, mais do que isso, à história da cultura, sobre controle, aprisionamento e dor, que já me pego curioso pelos futuros momentos em que seus cinz éis e suas lentes irão imobilizar outras vidas.