Parafuso

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Texto de Raphael Fonseca sobre a mostra "Parafuso", setembro de 1012.

Poder-se-ia dizer que esta edi ção do GetTogether gira em torno do “corpo”, essa famigerada palavra utilizada de modo desenfreado na abordagem cr ítica sobre a arte contempor ânea. Vistos os trabalhos de Andr é Terayama, Jorge Soledar e Renato Pera, todavia, o uso deste substantivo n ão me parece pecaminoso, mas, me incita a enxerg á-lo de modo amplo, para al ém de uma habitual circunscri ção unilateral deste à performance, à fotografia e ao vídeo. Falar sobre “corpo” é , a meu ver, comentar o conceito de figura humana, t ão caro à tradição clássica. Ao se falar dess e tópico, como se esquecer do grande mestre da narrativa visual atrav és da nudez, Michelangelo? Em seu grande afresco do “Juízo final” (1537-41), lá está a imagem de S ão Bartolomeu, homem que foi esfolado vivo e al çado a mártir. Há quem diga que esta imagem derretida se trata de um autorretrato do artista. Na aus ência desta certeza, podemos fazer uma rela ção entre esta constru ção visual e a fachada do Atelier 2E1. A autoimagem de Renato Pera tamb ém se faz presente, mas não há apelo para a face. O resultado de uma artesania é escancarado através da fotografia: eis exposta uma monumental tatuagem circular. Com a pele ainda avermelhada, dolorida, seis recortes de papel comp õe um todo através do lambe-lambe. Ao se olhar de muito perto uma parte de nosso corpo, assim como um microsc ópio, parece que a única saída é seguir a gerar fragmentos. A superfície aqui é apresentada tal qual a proposi ção de Michelangelo: frágil, mole, sobre papel, basta chover, molhar e escorrer, assim como aquele resqu ício santo. No mesmo século XVI, em 1543, o anatomista Andrea Vesalius publica o seu “Da estrutura do corpo humano ”. Como o próprio título indica, se trata uma obra que mescla texto e imagem em torno da apreens ão da arquitetura humanóide e de suas interse ções. Como é possível ficar em pé? Ossos e músculos são dissecados e interessa ao autor mostrar o desenho de nossas entranhas. É com esta mesma refer ência ao desenhar que se d á nome a “Drawing itself”, de Jorge Soledar. Rostos e bra ços são tomados por polígonos e criam desenhos no espaço através de espelhamentos. Se Vesalius estuda uma estrutura f ísica, este artista contempor âneo pesquisa um poss ível esquema corporal. Para al ém do interesse pelo car áter documental da reprodutibilidade técnica, os organismos aqui est ão tensionado s a fim de se criar novas geometrias. Aquilo que det ém vida pode ser instrumentalizado e transformado em ponto, linha e f órmula. O adestramento se faz poss ível e, neste sentido, esta pesquisa art ística parece mais pr óxima da ideia do que do simulacro. Mais do que a representa ção do físico se constituir como obra de arte, nos trabalho de André Terayama, tal qual uma casa em processo de reforma, elementos se agrupam e criam estruturas que remetem a constitui ções orgânicas. Cadeiras, objetos de assentamento por excelência, se cruzam e se


transformam em asterisco. Uma pedra al çada a protagonista é elevada às suas irmãs menores. O som da fita adesiva a ser cortada rasga o espa ço e nos pede para acompanhar a montagem de um prec ário andaime que rever ência Brancusi. A banalidade do que nos rodeia é ressignificada em instrumentos de trabalho atrav és da presen ça filmada do artista ou da sacraliza ção que a fotografia é capaz de atribuir a uma imagem. Os cantos e o ch ão aqui podem estar na altura dos olhos. Os três artistas que aqui dialogam parecem estar em um local entre Michelangelo e Vesalius, ou seja, entre o mart írio da carne e a experimentação anatômica. Se a dor é passível de interpreta ção em algumas dessas imagens, em outras os vasos sangu íneos são retas para lelas. Se, tal qual um parafuso, pudemos inseri -los dentro deste espa ço, também é possível que os desprendamos dos lugares c ômodos que o “corpo” proporciona na arte contemporânea. Mais do que prender, estes pequenos objetos talvez sejam importantes justamente pelo poder de desconectar. A hist ória da arte, portanto, tal qual uma broca, pode contribuir para fazer com que cada uma destas poéticas seja desmontada e remontada atrav és de uma rede de referências onde “corpo” é apenas um ponto de partida.


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