uma alegor ia ro man esca
u m a a l e g o r i a ro m an es ca
Seguindo as trilhas de um livro copyright © 2018 Jonar Brasileiro EDIÇÃO
Enéas Guerra Valéria Pergentino PROJETO GRÁFICO E DESIGN
Valéria Pergentino Elaine Quirelli CAPA
Enéas Guerra REVISÃO DE TEXTO
Maria José Navarro
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) de acordo com ISBD
B823s
Brasileiro, Jonar Seguindo as trilhas de um livro / Jonar Brasileiro. - Lauro de Freitas - BA : Solisluna, 2018. 372 p. : il. ; 15cm x 21cm. ISBN: 978-85-5330-002-0 1. Literatura brasileira. 2. Romance. I. Título.
2018-318
CDD 869.89923 CDU 821.134.3(81)-31
Elaborado por Vagner Rodolfo da Silva - CRB-8/9410 Índices para catálogo sistemático: 1. Literatura brasileira : Romance 869.89923 2. Literatura brasileira : Romance 821.134.3(81)-31
Todos os direitos desta edição reservados à Solisluna Design Editora Ltda. 55 71 3024.1047 | 3369.2028 www.solisluna.com.br editora@solislunadesign.com.br
u ma al egoria rom an esc a
To be or not to be, that’s the question! William Shakespeare
[…] porque palavras são palavras nada mais que sarvalap. Josué Ventura
Quando o amor tira a roupa, febril e inseguro, é a paixão que se despe dos pudores da alma submetendo a razão, as emoções e os sentidos à grandeza do corpo, seu deus e vassalo. Maria da Paixão
Sumário
8
prefácio para uma alegoria romanesca, seus ridículos e inverossimilhanças
11
primeira parte Nascimento, vida e morte de Carlos Golfão
12 25
CAPÍTULO PRIMEIRO CAPÍTULO SEGUNDO
39
segunda parte A partida, a chegada e a angústia de uma mesma procura
40 48 55
CAPÍTULO TERCEIRO CAPÍTULO QUARTO CAPÍTULO QUINTO
67
terceira parte A Lenda
68
CAPÍTULO SEXTO
91
quarta parte Dois capítulos e uma só possibilidade
92 106
CAPÍTULO SÉTIMO CAPÍTULO OITAVO
115
quinta parte A ilha, a paixão, a loucura e a razão
116 129
CAPÍTULO NONO CAPÍTULO DÉCIMO
141
sexta parte Sob os holofotes da realidade
142 174
CAPÍTULO DÉCIMO PRIMEIRO CAPÍTULO DÉCIMO SEGUNDO
185
sétima parte Nos bastidores de um poema
186 209
CAPÍTULO DÉCIMO TERCEIRO CAPÍTULO DÉCIMO QUARTO
233
parte final “E agora, José?”
234
CAPÍTULO DÉCIMO QUINTO
prefácio
para uma alegoria romanesca, seus ridículos e inverossimilhanças
E
ste livro foi concluído em julho de 2001. A urgência com que pretendia publicá-lo, enquanto trabalhava nas suas últimas páginas, foi substituída, de forma tão brusca quanto inevitável, por pendengas bem mais exigentes – e todas elas vindas do mundo sem capa. Durante esses dezessete anos, ele ficou guardado, meio descuidadamente, nas sucessivas gavetas que me acompanharam vida adentro, enquanto eu, fora dele, ouvia histórias contadas pelos outros e inventava projetos outros para ganhar o meu sustento. Sem traumas. Sem dores. Sem mágoas. Ganhava meu sustento fazendo coisas que aprendi a gostar nas minhas andanças pelo mundaréu do país. Nessas idas e vindas, colecionei momentos verdadeiramente inesquecíveis. Eu chegava tão próximo dos meus próximos-distantes, me tornava tão cúmplice de alguns dos seus deslumbramentos, que somente muito raramente parava um pouco para me provocar e perguntar por mim. Mas quando isso acontecia, as respostas saíam tão fluidas, tão naturalmente fluidas, que as perguntas logo se recolhiam, meio escabreadas, de volta ao colo dos diabinhos que as inspiravam. Tempo vem, tempo vai, e o tempo resolveu mostrar o quanto havia me poupado, até então, de tudo aquilo que é capaz de cometer. Com uma vergastada certeira me fez perder a trilha em que me procurava, lépido de esperanças, e me jogou de quatro, meio cego, pelos caminhos que só poderão me levar ao destino. Além de ter demonstrado, com precisão fisiológica, que eu teria que ceder 8
meu posto de trabalho a alguém mais jovem, como para coroar tal aposentadoria induzida, me presenteou, gregamente, com a suspeita de que vou ser abandonado pela mulher que me possibilitou aquietar, no zoológico dos tantos de mim, o bicho da solidão. Mas como miséria pouca verga mas não quebra, um acontecimento surpreendente, fora de esquadro, literário demais para merecer credibilidade cá no mundo sem capa, reacendeu o farol das minhas utopias, adiando o capítulo em que a senilidade, feito pardais esfomeados, vai devorar as migalhas de autoestima que ainda tenho comigo. Outro dia, ao sair de um dos botecos que passei a frequentar com regularidade terapêutica, decidi, assim meio por acaso, entrar num sebo que existe aqui no bairro – e que tem sido ignorado por mim desde que nos tornamos vizinhos. Pois não é que logo na primeira estante em que bati os olhos reconheci o dorso de um livro meu que tentei silenciar há mais de duas décadas?! Para aumentar o meu pasmo, junto a ele, coladinho, capa com capa, um exemplar do livro “Poemas”, escrito por Maria da Paixão – a qual os leitores mais condescendentes e persistentes terão a oportunidade de conhecer nas trilhas desta alegoria romanesca. Fazer o quê? Vocês acham que eu iria tratar como mera coincidência o que precisava que fosse um fenômeno? Vocês acham que eu seria capaz de recusar essa “possibilidade milagreira” só para ser coerente com um ateísmo mal resolvido? Nem me dei ao trabalho de folhear os dois volumes. Ali, na hora, decidi o que iria fazer: voltar ao mundo das capas para escrever e assinar outros livros. E o primeiro passo, logicamente, seria publicar o que já estava escrito. O próximo seria escrever uma história para preencher os dezessete anos decorridos entre o dia em que este livro foi concluído e a data do seu lançamento, correspondente ao período em que me assumi como um assassino de textos. Chegando em casa, dirigi-me à gaveta onde estes originais estavam guardados com a intenção de mergulhar de cabeça na 9
trama para, depois de uma leitura crítica, minuciosa, perspicaz, tentar dar uma melhorada no texto. Ao começar a leitura, contudo, senti o quão difícil seria a minha tarefa, pois, logo nas primeiras páginas, os fantasmas do livro começaram a embaralhar minha razão nos naipes das suas emoções, comprometendo, dessa forma, o distanciamento com o qual pretendia atuar. E comecei a pensar em publicar o livro do jeito como ele estava. E por que não? Perguntei-me: Que arremedo de vaidade poderia me impedir de me expor como fui, se hoje, o que ainda tenho de mim não consegue enxergar nem o próprio umbigo? Nisso, a memória, como para arrematar a puerilidade dessa querela com o estilete de uma questão definitiva, trouxe-me de volta um dos poemas escritos por Maria da Paixão: Não aprendi o que fazer com o meu amor / mas foi com ele que apreendi toda minha vida. / Bati concreto, criei marcas, cicatrizes, / andei colando figurinhas de esperança... / me entediei, me desdobrei, fiz nascer versos / e até nas mortes que vivi – ou antecipei – / sua presença foi tal e qual sombra e martírio. // Não aprendi o que fazer com o meu amor. // Passando ao largo de emoções, ou embaraçada, / cinicamente predisposta, ou irresolvida, / comprando móveis, especulando, sendo humilhada, / me defendendo timidamente – ou agredindo, / sua presença é tal e qual sombra e delírio. // Não aprendi o que fazer com o meu amor. // Não aprendi o que fazer com o meu amor, / por isso insisto neste tema redundante / como se a frase resolvesse a dor sentida./ Foi com ele que apreendi toda minha vida. / Mas não aprendi o que fazer com o meu amor. O que me resta, ao encerrar este prefácio, é dividir com os eventuais leitores deste livro minha percepção de que o amor, assim como a loucura, nem sempre se resolve dentro de si mesmo; daí serem ambos, o amor e a loucura, com suas variantes e idiossincrasias, tão potencialmente contagiosos. Carlos Golfão 10
primeira parte
Nascimento, vida e morte de Carlos GolfĂŁo
11
CAPÍTULO PRIMEIRO
De como um autor abdica do seu nome e dos motivos que o levaram a publicar seu primeiro livro. De como ele ganha um emprego público, fica órfão e vai morar sozinho. Dois anos depois, de como o sucesso bate à sua porta e de que maneira o diabo começa a se imiscuir tanto na sua história quanto nas páginas deste livro.
M
eu nome foi Carlos Golfão. Pelo menos foi dessa maneira que me assinei por muito tempo, que me fiz conhecer pelos outros. Para ser mais preciso, por quatorze anos, intencionalmente, fui Carlos Golfão para o mundo. Cerca de quatro anos atrás, em vista de tantos desgostos que tal nome passou a me causar − e em respeito à justeza das circunstâncias que me levaram a procurar ser um outro homem para desvinculá-lo definitivamente de mim −, certos dias, quando o tédio se tornava mais insinuante, minha única distração consistia em ficar enumerando tudo que ele poderia ter batizado: uma loja popular de roupa masculina, o protagonista de uma novela mexicana, um doublé de palhaço e equilibrista de um circo mambembe, o vilão transformado em galã pelo registro factual e faccioso dos veículos de comunicação de massa, uma massa de macarrão, um perfume mata-rato que se vende nas estações suburbanas de trem, o cavalo vencedor do antepenúltimo páreo de uma quarta-feira chuvosa e sem público, um gigolô decadente da zona portuária de uma cálida cidade tropical, um cantor de dupla caipira que jamais gravará um disco, um técnico de time de futebol da segunda divisão do Amapá, um bispo da Igreja 12
do Evangelho Quadrangular, o oitavo vereador mais votado no município de Almas Penadas, um candidato a candidato a qualquer cargo, um qualquer louco que se autoproclamou candidato etc., etc., etc. Parvoíces à parte, o que me deixava verdadeiramente alucinado era pensar que Carlos Golfão foi apenas o nome com que batizei o mesmo escritor de romances que condenei ao silêncio quatorze anos depois; um escritor, por sinal, que se continua a “falar” para o mundo, por intermédio dos livros que fiz publicar no passado, é independente da minha vontade. A esse respeito (talvez fosse mais correto dizer, a meu respeito), devo esclarecer, tanto para os leitores que desconhecem minha obra quanto para aqueles que só a conhecem parcialmente, ou por ouvir falar, que enquanto me assinei como Carlos Golfão, fiz publicar sete livros; seis deles, diga-se de passagem, batendo às portas fechadas por mim de mais uma nova edição, posto que os exemplares das anteriores, decerto que quantificados com invejável parcimônia por meu editor, num período de tempo surpreendentemente curto, ou estavam esgotados ou em vias de se esgotar. Sou (ou fui), como escritor, o que alguns críticos costumavam chamar, quando generosamente se referiam aos seis primeiros livros da minha obra, de um autor de “fácil aceitação popular” − o que, na opinião de outros, nada generosamente, posto que mais verdadeira, traduzia-se na expressão ainda menos lisonjeira de “um escritor classe C”. Trocando em miúdos: meus romances correspondiam às “expectativas” e “exigências” de um expressivo segmento do não tão expressivo público consumidor de livros, o que fez com que meu nome fosse destacado duas vezes, em rede nacional de televisão, num desses programas em que são testadas a cultura geral e a sensibilidade invulgar das nossas beldades de plantão, como um exemplo típico de autor “super legal”. (As responsáveis por tal honraria foram duas candidatas a Namoradinha do Brasil, nascidas na mesma cidade em que eu nasci, que devem ter desenvolvido o magnífico 13
poder de ler com os olhos da alma, com as asas da imaginação ou, simplesmente, com os sovacos, através das capas dos livros.) Dentro dos limites em que, displicentemente, me deixava agasalhar, apesar de ser um bem-sucedido “vendedor de livros” − fato inquestionável em vista da quantidade de edições de seis dos meus sete títulos publicados, conforme acabei de salientar −, nunca precisei e nem mesmo pretendi viver de literatura. Aliás, meu ritmo de produção, em que pese as estatísticas sugerirem o contrário, nunca foi verdadeiramente intenso: nunca me empenhei de corpo e alma para que minha carreira literária me possibilitasse atender ao curioso complexo de aranha − aquele que faz com que homens queiram viver do que tecem, como se já não bastasse o fato de viverem enredados pelas teias tecidas pelos outros. Assim, excetuando-se o último dos meus livros, ia-os escrevendo despreocupadamente, por puro deleite, espichando-os sempre um pouco mais além da conta, para prolongar o prazer de continuar a escrevê-los. Pois, fato curioso − que eu constatei logo ao terminar o primeiro dos seis romances que foram reeditados −, todo e qualquer tipo de prazer se extinguia quando eles, enfim, ficavam prontos. Confesso até que nunca consegui relê-los depois de publicados. Custava-me muito, inclusive, cuidar da sua revisão antes que fossem para o prelo; o que acabava por fazer sem o concurso de profissionais qualificados e com um descaso que não seria exagero chamar de irresponsável. Várias das suas incorreções, como, por exemplo, a incidência de umas tantas incoerências comportamentais que, vez por outra, acometiam os personagens das tramas, podem ser debitadas a esse simples fato. O que era publicado, o que chegava às mãos dos leitores, quando muito, poderia ser considerado como um rascunhão mais bem apanhado. Sempre que ouvia críticas a esse respeito reconhecidamente dava razão a quem as proferia. Nunca rebati nenhuma delas com malcriação, nem mesmo as menos perspicazes e honestas. 14
Não... em momento algum da minha “vida literária” me comportei como um autor injustiçado ou incompreendido por aqueles que não gostavam dos meus livros. Eu mesmo, sinceramente, não gostava deles, apenas de escrevê-los. Para mim, repito, eram livros para se escrever; não ler. Por que, então, publicava-os? Antes de responder a essa pergunta, cujo tom de enganosa objetividade poderia me induzir a uma resposta seca e direta − recurso por demais simplista para tornar verossímil o curioso processo que me fez chegar até ela −, permitam-me retornar no tempo, visitar-me quando ainda menino, ver-me a partir dos doze anos de idade, mais ou menos. Era eu um garoto muito tímido. Mas a timidez em mim, ao invés de me fazer inseguro perante os outros, carente da sua silenciosa aprovação para me sentir um igual, agia de forma totalmente diversa, distanciando-me deles a ponto de me tornar quase independente. Era como se uma linha real, apesar de invisível, separasse os nossos mundos. De um lado, do meu lado, ficavam todas as coisas importantes demais para existirem de fato; do outro, as coisas que de fato nem precisavam existir, pelo menos no que me dizia respeito. Em assim sendo, apesar de bem dotado fisicamente − o que me qualificava para a prática dos esportes coletivos mais viris −, preferia o recolhimento dos jogos individuais, os quebra-cabeças, as paciências, os dados... e, mais que todos, os jogos de faz de conta da imaginação. Neles, exercitava o maior dos meus talentos: inventor de cidades e criador de gentes. Perdia-me dentro de mim mesmo nas tramas que elaborava em silêncio. Não raras vezes, desligava-me do local em que estava e passava a percorrer os emaranhados traçados do pensamento. Viajava, viajava tanto, sendo tanta gente diferente, que acabava por me esquecer de mim, do que estava fazendo junto aos outros “naquele determinado momento”, do papel “verdadeiro” que então representava. Talvez por conta disso − somado ao fato de sistematicamente me recusar a par15
ticipar dos virulentos embates futebolísticos, dentre outros menos votados − fosse considerado por alguns colegas de rua e de escola como “meio afeminado”. Dizer que isso não me incomodava seria mentira. Claro que me incomodava! Mas não tanto quanto seria de se esperar. No íntimo, eu via naqueles garotos da minha idade uns bestalhões, idiotas demais para entenderem a grande aventura que era explorar o desconhecido dos mundos que a gente mesmo podia criar. Além disso, já por volta dos quatorze anos, eu “aprendi” a ler; quer dizer, eu comecei a escrever − que é a melhor maneira que existe para se aprender verdadeiramente a ler. Foi nesse período da minha vida que as palavras passaram a sugerir os meus melhores jogos. Como vocês já devem ter percebido, ainda não fiz nenhuma referência sobre minha família. Não que ela não exercesse influência em minha vida. Exercia sim. Mas a minha vida estava tão repleta de outras vidas... E ela era apenas uma, uma pequena e bem resolvida família burguesa: pai castrador, mãe submissa, irmão muito mais velho, avô paterno e avó materna embarcados na senilidade, tios e primos nada mais que isso... Muito aborrecida quando se reunia nas famigeradas festinhas de aniversário. Um saco! Em meio à pândega que ela encenava nesses momentos, me fazia passar por um menino quieto, respeitador, ajuizado. Era essa a melhor maneira de não me fazer notar, de não ser envolvido pela sandice que regia a desafinada orquestra da sua efusividade. Confraternizações à parte, de positivo mesmo no meu relacionamento com ela − salvo por umas pequenas e inevitáveis altercações com meu pai e meu irmão − era o “delicado” distanciamento com o qual nos tratávamos. De minha mãe, por exemplo, inegavelmente a pessoa responsável pela mais densa das minhas relações emocionais, guardo apenas delicadas recordações. Foi ela uma mulher muito delicada. Parecia que era obrigada a ser delicada. Sempre delicada. Que tinha a delicadeza como missão, 16
profissão. Como se tal delicadeza a protegesse do mundo. Do dono do seu mundo: meu pai. Delicadamente deve ter me amamentado. Mui delicadamente me ensinou as primeiras letras. E até mesmo quando ralhava comigo, ou me beliscava por um dos meus malfeitos, ainda assim não deixava de ser delicada, empregando as mais tênues palavras, as partes mais macias dos seus dedos. Era mesmo um fenômeno de delicadeza! Doente já, viúva, alquebrada, pálida sombra para o que nem mesmo chegara a ser enquanto jovem e saudável, seus ais doloridos eram soprados em surdina. A mesma surdina que sempre amorteceu sua vontade, seus desejos, seus aborrecimentos. Acho até que ela demorou tanto a morrer apenas para não incomodar a Morte, de quem já era muito mais íntima do que de nós. Dois anos antes do desfecho da sua longa enfermidade, tão logo o diagnóstico da sua doença nos fez saber que se tratava de um mal irreversível, com a nobre intenção de me ajudar a tomar conta da “velha”, voltou a morar em nossa casa o meu único irmão. Era doze anos mais velho do que eu − uma versão canhestra do nosso pai Que Deus o Tenha e o Guarde para Sempre. Com ele, vieram sua mulher e os dois filhos, um menino e uma menina, oito e sete anos de idade, representantes terrestres dos aprendizes de capeta. Foi mesmo um inferno! Foi um estágio dentro do inferno! (Em que pese as escapadelas que repetidamente dava para dentro de mim, lendo e escrevendo.) Minha cunhada, apesar de também ser inteiramente submissa ao marido − e talvez como vingança por conta dessa condição, que ela aceitava mais por comodismo do que por medo dele −, era possuidora de uma delicadeza de rinoceronte, descarregando sobre o mundo o azedume que lhe roía a alma. Se eu não fosse filho de quem era, se não houvesse sido tão bem treinado em manter o delicado distanciamento com o qual me relacionava com todos os demais membros da família, teria sido impossível tratá-la da forma como eu considerava ser 17
conveniente tratar um agregado próximo. Desdobrava-me em gentilezas sempre que ela me presenteava com uma nova alfinetada. Interpretava o papel de confidente, quando ela me usava para vomitar suas queixas contra o tratamento pouco atencioso que meu irmão lhe dispensava. Fazia-me surdo para não ouvir seus resmungos, quando se dispunha a atender alguma necessidade da minha mãe; o que, na verdade, quase nunca acontecia, pois, para isso, eu contratara os serviços de uma enfermeira em tempo integral. No secreto da minha maldade, num rasgo de inspiração, certo dia a apelidei “Hemorróidas Falante”. E, a partir desse dia, passei a me sentir vingado toda vez que ela abria a boca para falar alguma coisa. Ah... o secreto da minha maldade! Creio que dentro dele desejei cem vezes a morte de minha mãe, não apenas para encurtar sua longa trilha de sofrimentos − o que qualquer filho normal intimamente desejaria −, mas, sim para me ver livre de companhias tão indesejadas! E até sem se dar conta, no seu último e inconsciente ato, minha mãe encenou o mesmo papel delicado, pois, quando minha tolerância estava por um tênue fio, quando o gatilho da minha belicosidade atingia o ponto de tensão de bala, ela impediu que a indelicadeza viesse marcar o futuro das minhas relações familiares. Como quem desperta do sonho mais querido, finalmente se permitiu incomodar a Morte e, delicadamente, despediu-se da vida, libertando-nos da sua dor e libertando-me do “amor” dos meus parentes mais chegados. Fiquei órfão por inteiro e passei a morar só aos vinte e três anos de idade, num aconchegante apartamento que comprei com a parte que me coube do dinheiro amealhado com a venda da velha casa da família, herança que se transferia de pai para filho desde mil oitocentos e oitenta e alguma coisa, ano em que a casa foi construída por um tataravô que começou a ganhar seus cobres no ramo dos secos e molhados, antes de consolidar sua pequena fortuna com a atividade menos ortodoxa do contra18
bando; não sei direito se como “importador” de tecidos raros ou “exportador” de pedras preciosas. Ou as duas coisas ao mesmo tempo. Esse meu parente, mais um dentre os comedores de bacalhau que aqui continuavam a aportar − tangidos pelos ventos que secavam os trapos de um desesperançado velho mundo −, houve-se muito bem degustando outros manjares, amulatando seu apetite lusitano com os quitutes preparados por africanos e seus descendentes, e misturando seu sangue, em transfusões eróticas, com o sangue que originalmente corria apenas nas veias das senzalas. Mas avancemos no tempo e retornemos ao período que antecedeu minha emancipação. (Esse ir e vir dentro do tempo sempre me fascinou.) Um ano e pouco antes da morte da minha mãe, saibam vocês, logo após ter concluído o curso de letras, recebi, a crédito do meu pai morto − nessa época morto há quase três anos −, um presente muito melhor do que todos que ele me dera em vida: um emprego público. Calma aí! Não vão vocês pensar que eu andei metido em sessões mediúnicas, terreiros de candomblé, encruzilhadas de despacho... Nada disso! Foi um amigo dele que, ao visitar minha mãe enferma, soube casualmente que eu havia acabado de me formar e estava procurando emprego. Procurando sem muito empenho, é verdade, sem aquela necessidade febril de ganhar dinheiro, pois, não há como se negar, a pensão e umas tantas aplicações financeiras que meu pai nos deixou eram suficientes para os nossos gastos, incluindo-se aí o acréscimo de despesas proveniente da “nobre intenção” do meu irmão, quando decidiu vir morar conosco. O dito-cujo, apesar de tocar o seu próprio negócio, duas lojas de calçados, fazia-o um tanto desafinadamente, só sendo possível justificar ao som dessa desafinação o fato de “viver sempre endividado”, segundo suas próprias palavras, ou seja, de acordo com a cantilena que ele utilizava como refrão. Mas deixemos meu irmão de lado. O fato é que, aproveitando a deixa do inesperado, 19
aceitei a oferta de emprego sem maiores delongas. Foi assim que, aos vinte e dois anos de idade, transformei-me em mais um barnabé. Um barnabé com pretensões a romancista. Minha vida de funcionário público, nos primeiros dois anos de ativa, pode ser resumida pela expressão “passar a chuva”, o que é equivalente a dizer: não fazer nada. Tentar, até que eu tentava. Lembro-me bem de ter elaborado dois projetos: um, a criação de um núcleo para desenvolver atividades socioculturais; o outro, um programa de atendimento personalizado ao usuário. Todos os dois foram muito bem recebidos pelo chefe imediato, pelo chefe imediato do chefe imediato e pelo chefe imediato do chefe imediato do chefe imediato. E ficou nisso: os escalões superiores tinham outras prioridades. Enquanto a chuva não passava, ia indo como Deus mandava, lendo romances despretensiosos e escrevendo, sem nenhum compromisso com o tempo, o primeiro dos meus livros. Ele seguia a fórmula mágica que então já notabilizava os grandes autores de best-seller: muito sexo, muita porrada e muitas intrigas. Nada de extenuantes e desnecessários perfis psicológicos. O curioso era que eu, autor de uma trama dessa ordem, muito pouco sabia de sexo, de porrada morria de medo, e de intrigas era um neófito. Mas... e daí? Era sexo, porrada e intrigas. Os personagens que ia “criando” batiam enquanto trepavam e intrigavam enquanto apanhavam. E eu me divertia, me divertia ao desvario, especialmente pelo fato de que esses personagens eram inspirados nas pessoas que estavam próximas, que participavam do meu dia a dia. Era delas que eu extraía o substrato de vida necessário para traçar o perfil das minhas caricaturas literárias, congratulando-me por poder inventar, a meu bel-prazer, as características bizarras com que as desenhava dentro do livro. E que delícia quando transformei a secretária do presidente da empresa, uma respeitável e recatada viúva, na ninfomaníaca mais afamada do cais do porto! Ou quando fiz 20