CÉU ANDRÔMEDADEISADORAMORAES
Eduarda Rocha
Ler Céu de Andrômeda é como mergulhar em um diário íntimo e acompanhar de perto as experiências, divagações e pensamentos de Isadora, desde sua adolescência até a vida adulta. Se “a poesia é canto para o espírito/ daquele que não sabe dançar”, Isadora canta e expõe seus anseios, suas inquietações, seus devaneios, e dança com as palavras. Há alguma melancolia em muitos destes versos, uma tristeza que marca o percurso de uma jovem tentando se encontrar e que vê na imaginação, na possibilidade de escrever poesia, uma oportunidade de ordenar os pensamentos e, assim, escapar da desorganização: “Perdi-me. Não me encontro mais. Estou presa ao mundo. Não completamente, pois ainda tenho a capacidade de imaginar.” Se há algum peso, também há muita leveza, um registro do olhar de alguém que soube ver a vida com delicadeza, em seus detalhes mais sutis – que talvez passariam despercebidos aos olhos dos mais desatentos ou menos sensíveis. A captura do momento, a apreensão do presente, é uma busca constante destes versos. Afinal, ela afirma: “De que me vale a poesia/ sem o sabor do instante”. Isadora nos deixou muito cedo, viveu poucos, porém intensos anos. Estes versos carregam a marca de quem, como ela diz, se aquece entre duas páginas quando a chuva inunda o peito. A escrita é uma companhia, um registro de suas memórias, mesmo as mais inquietantes. Para nós, que tivemos a sorte de conviver com ela, com toda sua profundidade, este livro é como ouvir sua voz. Para quem não a conheceu em vida, é uma oportunidade de passear por alguns lugares de seu universo mais íntimo e se conectar a ele. Bom mergulho!
CÉU
ANDRÔMEDADEISADORAMORAES
CÉU ANDRÔMEDADEISADORAMORAES
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) de acordo com ISBD M827c2021-2774 CDD 869.1 CDU 821.134.3(81)-1 Moraes, Isadora Céu de Andrômeda / Isadora Moraes ; ilustrado por Isadora Moraes.Lauro de Freitas : Solisluna Editora, 2022. 96 p. : il. ; 14cm x 21cm. ISBN: 978-65-86539-38-7 1. Literatura brasileira. 2. Poemas. 3. Poesia na Juventude. 4. Arte como expressão. I. Título. Elaborado por Vagner Rodolfo da Silva - CRB-8/9410 Índice para catálogo sistemático: 1. Literatura brasileira : Poesia 869.1 2. Literatura brasileira : Poesia 821.134.3(81)-1 55 71 3379.6691 www.solisluna.com.br editora@solisluna.com.br
CÉU DE ANDRÔMEDA copyright © 2022 Isadora Moraes GisellyEDIÇÃO SolislunaLimaEditoraPROJETOGRÁFICOE DESIGN Valéria Pergentino Elaine DuduIsadoraAnaREVISÃOQuirelliDELINGUAGEMLuzILUSTRAÇÕESMoraesFOTOGRAFIADACAPAAssunção
pergunte[...]
a si mesmo na hora mais silenciosa de sua madrugada: preciso escrever? Desenterre de si mesmo uma resposta profunda. E, se ela for afirmativa, se o senhor for capaz de enfrentar essa pergunta grave com um forte e simples “Preciso”, então construa sua vida de acordo com tal necessidade. Rainer Maria Rilke Cartas a um jovem poeta
1409SUMÁRIO PREFÁCIOINQUIETUDES E PROVOCAÇÕES 15 TEMPESTADE 17 TRANSPASSADO 18 242322 GRAVITACIÓN CÁRCERE CÉUDEABRIL CÉUDEABRIL II 25 MANIFESTO AGNÓSTICO NO VÁCUO 27 VALESKA 29 ILÍADA 30 RIOCORRENTE 32 TAOÍSMO 35 MÃE GUERREIRA BANDEIRA DE SANGUE 37 AMOR & DESCOBERTAS 38 MUITO 39 A COISA DO NOSSO ROMANCE 40 BURBURINHO 42 ANATOMIA 43 COMPANHIA DOCE 44 DÚVIDA 45 GRADE 46 MODUS OPERANDI 47 CAFÉ AMARGO 48 CÍCLICA
49 AGORA QUE VEIO DA PRIMAVERA 50 CACOFANIS ET CIRCUS 52 MINHA CABEÇA SE RECLINA SOB O CÉU 54 ... 55 SACANAGEM PÓS-MODERNA 57 ARTE, VIDA & MORTE 58 SOBRE MINHA IRRELEVÂNCIA 60 A PARTIDA 62 SILENCIADA 64 CATARSE 65 CATARSE I 66 CATARSE II 67 CATARSE III 68 O SEGREDO DAS COISAS 71 ÚLTIMO POEMA 72 ENCANTO 77 CAUSA MORTIS I: O AZUL 78 MOLDURA SALPICADA 79 80 VULTOS OSEGUNDO SEXO 84 ... 85 EPÍLOGO 86 QUEIMADA 90 CUIDE DA SOMBRA 91 UM PÁSSARO QUE GRITA
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s poemas e textos em prosa que compõem este livro foram coletados a partir de um projeto de publicação que Isadora deixou e também de outras fontes, como arquivos do seu computador, arquivos que ela havia me enviado, redes sociais, cadernos e diários. Ela teve alguns blogs dos quais tentei recuperar textos, mas o acesso, em algum momento, foi fechado. No entanto, muitos poemas que aqui estão ela mesma migrou dos blogs para o livro que deixou esboçado. Nos lugares em que pesquisei, encontrei diferentes versões de um mesmo poema, de modo que optei por publicar a versão mais atualizada. Em alguns casos, não foi possível saber qual a versão mais atual, o que me levou a fazer escolhas baseadas em critérios subjetivos. Ela chegou a organizar duas versões do livro, uma em ordem cronológica e outra com poemas mais recentes fora dessa ordem e sem referência ao ano da escrita. Para bem da verdade, a última versão encontrei depois de já ter quase concluído esta edição, numa pesquisa em um dos meus e-mails antigos e vi que ali já travávamos um diálogo como os que acontecem entre autores e editores.
A produção de Isadora é extensa para alguém de sua idade. Isso resulta da profunda necessidade que ela tinha de escrever diariamente. Aliás, sempre lhe dizia que ela era a primeira poeta verdadeira que eu conhecia e com quem convivi, pois, segundo o que o Rilke diz em Cartas a um
OPREFÁCIO
10 jovem poeta, somente alguém que não consegue viver sem escrever pode saber que é poeta. Esse era seu caso. Eu não consigo lembrar de um único dia em que não vi Isadora sentar e escrever, fosse no seu quarto, fosse em viagens, fosse em algum momento de espera, com caderno, celular ou computador. Lembro de duas ou três vezes em que ela estava sem celular, algo que parece estranho, mas que, durante certo tempo, ela fazia com frequência: sair e simplesmente decidir deixar o celular em casa. Nessas ocasiões, pedia meu aparelho para escrever algo, pois estava com uma ideia e não queria esquecê-la. Diante de uma produção tão profusa e íntima, uma mãe talvez não seja a pessoa adequada para fazer tal seleção. Ainda mais sendo uma seleção póstuma. Afora toda as implicações emocionais de lidar com material tão sensível, minha formação no campo da literatura me torna uma editora mais crítica do que o esperado para o livro póstumo de uma filha poeta. Assim, advirto que tem o dedo dessa mãe neste livro. Mas também peço que confiem em meu profundo amor e respeito por minha filha. Em um dos textos que ela deixou e do qual transcrevo um fragmento a seguir, ela conta que, ao tentar ajustar seus desenhos e escritos para que fiquem belos, eles deixam de ser seus. Portanto, mesmo a edição dela própria, já significa uma perda qualquer. Nesse mesmo texto, que é uma das versões do poema Catarse I, que está neste livro, ela afirma que a vida verdadeira está no ato de criar, não de viver. Tenho que lhe dizer que mudei. Que compreendi finalmente o que é estar dentro da vida. Vida que não
11 é minha (pois pessoal, intima mesmo, pra mim, é a criação). Viver é impessoal. Existir é o outro, é o todo, o qualquer. Mudei. Tentei fazer dos meus toscos desenhos obras de arte, e agora eles são impessoais. São mais belos, são mais limpos, mas não são meus. São do outro. Eles seguem agora sozinhos, sem mim. Eu digo os desenhos, mas quero dizer a escrita, a arte, a fantasia. Não me fantasio mais verde, azul, roxa, e sim o meu corpo como ele existe no meio do mundo.
Faço uma relação entre isso que Isadora diz e um trecho final do livro Devoção da Patti Smith*:
Por que eu escrevo? Meu dedo, com uma caneta de ponta seca, retraça a pergunta no ar em branco. Um enigma conhecido, proposto desde a juventude, quando eu me afastava das brincadeiras, dos companheiros e do vale do amor, cingida de palavras, um passo fora do grupo.
Por que escrevemos? Irrompe um coro, Porque não podemos somente viver. Isadora e Patt Smith concordam que escrever (criar) é mais do que viver. E se é mais do que isso, minha filha está mais que viva neste livro.
Mas eis que surge uma pergunta: ao editar sua escrita também edito sua vida? De certo modo. Como mãe, meu senso de proteção e de cuidado me obriga tratar a escrita de Isa com rigor amoroso, mais até que o modo como trataria qualquer poeta que respeito
* SMITH, Patti. Devoção. Tradução: Caetano W. Galindo. São Paulo: Companhia das letras, 2019.
12 e admiro, o que significa buscar mostrar a beleza e a verdade de seus poemas, mas não sem qualquer olhar, sem qualquer zelo. Para preservar uma ética que sempre houve entre nós, em cada poema que fiz alguma intervenção para além de eventuais correções gramaticais, haverá uma nota no final do livro, informando ao leitor a mudança feita. Além dessas notas, há notas de pé de página da própria autora, feitas durante a primeira tentativa de edição. Antecipo e asseguro que minhas intervenções jamais foram feitas por meio de acréscimos, mas sempre por supressão, recorte e diagramação para tentar evidenciar a beleza de uma escrita em meio a um poema inacabado, confuso ou que a expunha demais. E foram poucas. A grande maioria dos poemas está exatamente como ela deixou no livro que já planejávamos publicar, cuja primeira versão se chamou Vida e Óbito do Primeiro Amor. Não, não pude sustentar esse título. O título que escolhi para o livro é o mesmo do seu blog mais duradouro e que reuniu a maioria absoluta dos poemas que aqui Esperoestão.que compreendam meu método, e também saibam que não foi um processo fácil. Levei mais tempo do que gostaria, pois, cada vez que entrava a ler seus poemas, caía em um abismo, tardava em voltar. Mas fui. Foi uma vertigem necessária e também bonita e também honrosa e talvez redentora. Muitas vezes lastimo não ter lido alguns (a maioria) de seus poemas com a atenção que lhes dedico agora. Pensava isso durante o processo e a queda se alongava por dias. Mas, quando voltava para a leitura, munida do olhar de mãe-editora, encontrava
13 também os meios para subir à superfície, sempre transformada, paradoxalmente, orgulhosa e humilde diante do espólio poético da filha, esse verdadeiro absurdo que a vida me impôs. Tive de aceitar que essa é minha realidade inescapável e dolorosa, mas também aceitei com o coração aquecido a tarefa de fazer suas palavras voarem por aí com toda a densidade humana que elas carregam. Isa era corpo, paixão, arte, o que remete ao profano, mas moldava com tudo isso o divino que sempre regeu seu caminho. Eu tenho a impressão de que é impossível não ver esses paradoxos e seus grandes contrastes como uma beleza em sua escrita e que reflete sua vida. Trata-se da escrita intensa, muitas vezes hiperbólica. Na fase mais juvenil, um gosto por arabescos verbais, exclamações e palavras garimpadas, coerentes com os movimentos de uma dançarina burlesca. Outras vezes, temas e rimas quase ingênuos, que lembram a palhaça Golondrina, seu alterego clown, infantil e leve. Um mundo interior complexo, vasto e profundo se mostra nessas páginas, numa escrita que se desenrola por quase uma década e que revela desde uma menina em suas descobertas aos 14 anos até as reflexões de uma mulher de 23. Uma atriz e dançarina, cujo palco também era a página; uma mulher “cingida de palavras”, uma poeta. Costumo dizer que a escrita de Isa foi feita com a alma em punho. E que este livro é uma maneira de voltar a enlaçar minhas mãos com a dela.
Giselly Lima
INQUIETUDES&PROVOCAÇÕES 14
Nuncaepromessasperdasminhasverdades;fazemos
15 TEMPESTADE (2012) Se eu guardasse os erros numa caixa E bebesse o suco de minhas lágrimas E Todosvelasseos navios de seus possíveis trajetos Eu mudaria a rota, o daescapaquegotaumaumato,alvo,minha alma? Todos os dias deito-me com meus erros
amor
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Às vezes canto minhas verdades, flerto com minhas promessas, corro atrás de minhas perdas e abraço meus erros.
Mas nunca fazemos amor... Mesmo quando em delírio concedo-me perdão; a meu espírito, minhas chagas, meu Deus, meu tesão... o oceano em meu peito ruge: desacerto, sertão.
17
TRANSPASSADO (2012) As andorinhas jamais vão à lua. Me pergunto se a conhecem pois têm obrigação de trazer o sol as manhãs sangrentas que se desmancham sobre a terra e o mar e são comuns como meu pai que trabalha como tantos outros cuja diversão já óbvia cansada foi impossível acinzentá-lo Em todo o dia a manca lembrança de outros melhor aproveitados de futuros mal calculados. Me pergunto às vezes se meu pai já viu as andorinhas.
GRAVITACIÓN (2016)
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Querido paisano hoje está Boal ao gosto de fim de julho na nossa terra é fim dos casulos A saudade me permite ser vô português e vó guarani sorrindo na antiga foto suor, areia, mangue seco Oxum abrasou Iansã coxas livres tornozelos amor, arte, ciência e qualquer tipo de morte
Quando queima por dentro é gastrite ou arrependimento Se doem meus pés conto histórias algo que puxe pro centro A voz dos meus falecidos me invade as velhas fissuras Logo eu que não tenho cura. E poderiam dizer que é só uma branca falando do século XXI de classe média Não nego Já estive melhor ou nem tão
19 preocupada com meus grandes deslizes pessoais mas buscandoDefendisempresempre sangrandoideaistalvezumacerta pureza emissora de mim mesma editora dos meus erros catástrofes e milagres. E quem contabiliza? não há matemática tão egoísta Se fala no fim do racismo
Perguntofraco.forteesquerdadireitaprivadoPúblicoOcorrupçãohipocrisiaqueéisso?deuma só necessidade sobre bolar dualismos com tanta e tanta gente no mundo
Essamaior.maiormaiorteia viscosa alcançou o mundo em um terabyte por segundo.
20 (quanto mais, menor fica o tal núcleo)
Foram ensinados que não existiam (Agora em diante: só pais e filhos)
Assolados pela mudança bruta sem materna pátria só matéria bruta Os mais velhos e os que aprendiam
Chegou a dualidade ficando cada vez maior
O que você escolheria? 40 dos nossos ou dois da sua prole?
Quem carrega seus valores no Sonheiescuro?com
índios Eles perderam tudo