TavaresDiasHenriqueLuisMoçasozinhanasalaCrônicasPrêmioCarlosdeLaet1962AcademiaBrasileiradeLetras
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TavaresDiasHenriqueLuissozinhaMoçaAcademiaCrônicasPrêmioCarlosdeLaet1962BrasileiradeLetrasnasala
Moça sozinha na sala copyright © 2022 Luís Henrique Dias Tavares copyright edição © 2022 Solisluna Editora EnéasEDIÇÃO
reservados à Solisluna Design Editora Ltda. 55 71 3379.6691 www.solisluna.com.br editora@solisluna.com.br Tavares, Luis Henrique Dias Moça sozinha na sala: crônicas / Luis Henrique Dias Tavares.Lauro de Freitas, BA : Solisluna, 2022. 176 p. ; 15cm x 21cm. ISBN 978-65-86539-69-1 1. Literatura brasileira. 2. Crônicas. 3. Literatura contemporânea. I. Título. T231mDados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) de acordo com ISBD Elaborado por Odilio Hilario Moreira Junior - CRB-8/9949 Índices para catálogo sistemático: 1. Literatura brasileira: Crônicas 869.89928 2. Literatura brasileira: Crônicas 821.134.3(81)-94 2022-1855 CDD 869.89928 CDU 821.134.3(81)-94
TodosAnaEnéasElaineValériaValériaGuerraPergentinoPROJETOGRÁFICOEDESIGNPergentinoQuirelliCAPAGuerraREVISÃODETEXTOLuzosdireitosdestaedição
JorgePara e James. Zitelmann,Para Batista, Ari e Iúca, Vita e Misael, João e Milton. E para Cláudia, que é minha filha.
2010GONDIM,ADENORFoto
Seu talento de ficcionista e de cronista, no livro e no jornal, é feito sobretudo de generosidade, de funda ternura pelo ser humano. Inteligência clara e viva, marcada de certa malícia baiana, ressoa e vibra ao contacto com os dramas humildes, solidária com o sofrimento e com o quotidiano. No peito desse Luís Henrique, de franzina compleição, pulsa um coração grande como o Jorgemundo.”Amado
Sumário Prefácio 13 Um homem no mar 17 Composição em inglês 19 Despedida 21 Um cachorro 23 O senhor capitão 25 Estrada para o inferno 27 Crepúsculo 29 Moça sozinha na sala 31 Recordação de Roma 33 Crônica que não sei escrever 35 Marido para Estela 37 Cadeira na porta 39 Tempero de arraia 41 A comerciária vai para casa 43 Outubro dos tamarindos 45 Para conhecer Paris 47 Brasileiro, maior, casado 49 O assassino pio 51 No mar, pescando 53 É maio: namoremos 55 Viagem no DC-3 57 Pai e filho 59 Os sinos 61 Uma rua chamada da Ajuda 63
No trem, viajando 65 Vida, vida, viver 67 O casal na janela 69 Um candidato a ditador 71 Exaltação da moça Maria 73 Sobre a madrugada 75 A guerra doméstica 77 Sonhar, acordar 79 Crônica de Madri 81 Alguns homens conversando 83 O profeta e os pombos 85 Choro dos sinos de Natal 87 Fala de moça 89 Uma entrevista 91 Episódio da cidade 93 Um homem do carnaval 95 Portugal é indispensável 97 O caso do ladrão 99 Ouro Preto 103 Um homem vem do passado 105 “Cuchette” 107 Amauri 109 O audaz artista da praça 111 Uma despedida 113 O peru na noite de Natal 115 História de pescaria 117
Casinho da carestia 119 Lamentozinho 121 O homem sentado 123 “Buono tempo” 125 Barbeiro carioca 127 O coração de Carmela 129 Candeeiro Coleman 131 Boêmios antigos 133 Aluga-se um portão 135 Cão que uiva 137 Conversa sobre cachorro 139 Madrugada 141 Como brasileiro viaja na EFN 143 A professora, o médico e o padre 145 Viajantes de avião 147 Feijoada baiana 149 Receita para arquiteto 151 Recife noturno 153 Não ciumeis, senhoras 155 A família almoça 157 O velho Aprígio 159 Viagem em tempo quente 161 Luta na madrugada 163 Revelação da moça 165 Notas de viagem 167 Volta à infância 173
13 Prefácio Com que honra e alegria me integro a esta edição come morativa dos 60 anos de premiação de Moça Sozinha na Sala pela Academia Brasileira de Letras, agradecido pela distinção dos responsáveis pelo projeto de me escolherem para apresentar este delicioso e contemporâneo livro de crônicas. De pronto, me dei conta de que não só o livro, mas o autor, reclamam – muito mais que um modesto prefácio –, uma fortuna crítica à sua altura, um ensaio consistente sobre a difícil arte de conci liar uma produtiva vida acadêmica com a rotina da escrita para um jornal diário. Quem é do métier sabe da imensa dificuldade de tratar, numa linguagem a mais universal possível, em espaço predeterminado, temas do cotidiano com profundidade e estilo, tendo em vista não só atrair como formar leitores para o veículo de comunicação. Só os que dominam perfeitamente o idioma e são dotados dessa especial sensibilidade de observar os fatos e o comportamento humano com originalidade renovada ousam enfrentar tamanho desafio, pelo que exige de talento e criatividade. Mas isso não é tudo: é preciso a técnica do desenvolvimento do tema, o toque particularíssimo da imaginação e, sobretudo, a gra ça da escrita sedutora e necessariamente atraente. Não é pouco! Esse gênero literário levou a Academia Brasileira de Letras a criar um prêmio especial para a categoria. Prêmio que Luís Henrique Dias Tavares arrebatou com justo merecimento em 1962, Por Gustavo Falcón
dando14 curso a uma longa vida intelectual que se dividiu em dupla frente de trabalho nas áreas científica e literária. O seu clássico História da Bahia, publicado pela primeira vez em 1959, já tinha indicado a presença de um historiador de porte entre nós. Em 1960, seu livro de contos A Noite dos Homens o tornou conhecido localmente como homem de letras. Mas é com Moça Sozinha na Sala, publicado pela Editora Martins em 1961, que ele ganha pro jeção nacional. Encantado pela qualidade das crônicas de Luís Henrique saídas na coluna “Cidade, Homens e Bichos”, nas ter ças, quintas e sábados, no então Jornal da Bahia, Jorge Amado fez uma antologia delas e encaminhou a seleta para sua editora. Deu no que deu! O livro acabou premiado pela ABL. Jornalista, escritor, intelectual, gestor cultural, pesquisador, historiador, mas, sobretudo, professor, Luis Henrique Dias Tava res é um nome destacado da cultura baiana ao longo do século passado e nas duas primeiras décadas do atual. Homem público respeitado por suas qualidades pessoais – gentileza, elegância, acolhimento e estímulo a seus admiradores –, elas lhe confe riram distinção no meio universitário e entre a legião de fãs de seus textos, os quais, para nossa felicidade, não se circunscreve ram ao universo acadêmico.
Seus escritos foram além: buscaram o recurso da atividade literária para alcançar um público ainda mais amplo. Essa incomum capacidade de combinar o entendimento profundo da vida pelo caminho das ciências humanas com a liberdade permitida pela criação ficcional permitiu-lhe compensar a racionalidade da ciência com a liberdade artística do universo literário, operando nos dois âmbitos, o da História e o da Literatura, com a mesma qualidade de arguto observador do comportamento humano.
É o que vamos ver durante a agradável leitura deste livro, o que requer do leitor uma cadeira de vime, uma boa poltrona, ou, quem sabe, uma rede, para sorver prazerosamente o sabor de crônicas comoventes, que primam ora pelo lirismo, ora pelo teor etnográfico, pelo senso crítico diante das injustiças cotidia
Em boa hora a Solisluna Design Editora reedita este atualís simo Moça Sozinha na Sala, que propiciará a você, leitor, agradá veis momentos de entretenimento e contato direto com o que de melhor foi produzido pela cultura baiana na década de sessenta do século passado, década de ouro de nossa cultura, com refle xos notáveis no jornalismo, na poesia, no romance, no cinema e na música popular.
15 nas, pela defesa da liberdade, pela informação, ou mesmo pela perplexidade humana diante de fatos comuns da vida cotidiana.
Mestre do ensino, mas também mestre da escrita, homem de ciência, mas também homem de letras, intelectual atuante que marcou vivamente a renovação dos estudos de História na Bahia, Luís Henrique encontrou, no campo ficcional e na linguagem das crônicas, adequados meios de expressão para manifestar sua inquietação criativa e sua visão humanista do mundo. Mundo que muito mudou desde a primeira edição deste livro, há sessenta anos atrás, embora angústias, perturbações existenciais, desigualdades e perplexidades humanas permaneçam as mesmas. Talvez isso explique sua atualidade. A graça, que atraiu o olhar privilegiado de um leitor especial como Jorge Amado, aqui está preservada – como boa obra de arte – em todo seu encanto original, desafiando o pas sar do tempo, desprendendo-se da curta temporalidade da vida da imprensa diária para a longa existência de uma peça literária.
Nazaré das Farinhas, Salvador, Recife e outras cidades bra sileiras, além de Roma, Lisboa e Paris, são alguns cenários por onde circulam suas surpreendentes crônicas, que transformam fatos prosaicos em irrecusável convite para reflexão. O que es panta no texto do autor – principalmente nos dias atuais, em que as palavras e as ideias parecem ter perdido seu sentido original e verdadeiro, que é o de comunicar acontecimentos e sentimentos reais – é a precisão, o rigor, a refinada capacidade do cronista em selecionar temas, tratá-los de forma muito apropriada e envol ver o leitor no desafio de apreciar o sempre inusitado e surpreen dente desenrolar da vida.
Um homem no mar
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O homem engole para a garganta seca um pouco de água salgada e sente que se devia erguer e cantar um cântico ainda não imaginado – um cântico sobre o homem na terra, sobre seu viver, seus grandes sonhos, seus desejos, seu amor. Mergulha o homem no mar. Da varanda, de olhos presos no escuro, procuro sua cabeça e seus ombros. Oh, homem que sou
Da varanda vejo o homem que se adianta para o mar. Este homem é que nem eu. Eis que se balança nas pontas dos pés e se atira para o escuro, pois é noite e a neutra luz da lua crescente estende um lençol frio na praia deserta. É com a maior dificuldade que percebo este ponto no mar, este homem que sou eu, nadando solitário no mar de altas ondas, de rugido ras vagas.Sobee desce, nada e luta, bracejando água e vida. É agora um ser inocente e sem a menor defesa, parado na linha de ar rebentação, ali, na zona do mar fundo, onde todos dizem que mariscam os peixes grandes. Pensa talvez um instante que sua pobre vida pode extinguir-se numa rápida resolução. Tem um pouco a ideia de que assim desapareceriam todas as canseiras e mesquinharias, e chateações e mediocridades, e faltas e faltas dos grandes sonhos da juventude. Bastaria cessar o movimento das pernas e dos braços, deixar o corpo cair e navegar, talvez como um barco, talvez como um estranho peixe.
eu!18
Vou chorar porque ele se foi, ele, meu irmão, ele, minha par te segunda e invisível. Mas, não, ele não se foi. E eu o descubro um pouco afastado de onde se encontrava, nadando braçadas enormes. Tenho a intuição de que ri, vivo e humano, com a vida nos braços e nas pernas, homem, homem, não peixe, não alga, e talvez planta de raízes fincadas na terra. Por isso não se equi libra bem no mar, no líquido mar de ondas altas, de ondas que urram, rugem e se espedaçam.
Eis o homem de volta à praia. É um homem que nem eu, um homem que foi lá fora, lá onde se morre, e que voltou agora e vem cantando, com os pés na areia e os cabelos molhados na testa. Vejo que é feliz, que é um homem, e que está com os pés na terra e o sal nos olhos e na boca.
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Tudo se concentrava neste e – ou and, que o meu pobre me nino tinha de ser transviado em inglês. Por sinal, meu problema começava realmente no and, desde quando eu não precisava contar em inglês a parte inicial. Como se entendia facilmente, naquilo que a professora dissera – The poor boy was crossing the street where a car came... – estava a exposição concreta do drama do rapaz, a sua distração por causa da fome. Que a marmita era de feijão e farinha e que o demônio trotava ao seu lado, bem, isto se tratava de imaginação. Portanto, não precisava escrever.
Aprofessora Denise, não uma senhora inglesa, mas uma jovem mocinha baiana, com um sorriso malicioso nos encomendou dez linhas em inglês. Foi até bondosa ao propor o início da primeira frase: The poor boy was crossing the street where a car came and... Sentei-me, na tarde de domingo, não só disposto a salvar aquele pobre rapaz, que ia pela rua no instante em que vinha um carro, como também a realizar a façanha em inglês. Imagi nei logo que o menino levava a marmita de feijão e farinha para o pai, um operário em construção civil. Caminhava distraído por causa da fome. Ao seu lado, invisível, mas persistente, dis cursava um pequenino demônio, durante todo o discurso insi nuando que devia abrir a marmita e comer o feijão e a farinha.
Era então que vinha o carro e...
Composição em inglês
novamente a frase e descobri que todo o mal se localizava naquele and. Na vida, como numa história narrada em inglês, as grandes conclusões devem ter o apoio das grandes decisões. Resultado: tirei o and e convoquei along. Ficou um beleza: The poor boy was crossing the street where a car came along. Assim, o carro passava.
Para concluir, com absoluta honestidade, após examinar vinte compêndios de inglês, encontrei a frase ideal: The boy con tinued talking with Ann. Pois é. Nem comia o almoço do pai, o que, na verdade, seria uma sujeira, e nem morria sob as rodas do carro. Como um pobre rapaz, deixava o carro passar e conti nuava conversando com Ana, personagem que aparecia no fim e de surpresa, só e só para mostrar que as mulheres são indis pensáveis.
20
Fui tentado a terminar no and. Sobretudo porque insinuava tudo, não concluindo nada. Mas achei que não seria um proce dimento honesto. Em inglês, toda história precisa ter end, mes mo quando tenha and. Além disto, senti um pouco de remorso pela delinquência que o pobrezinho ia cometer, almoçando o feijão do Recuei.pai.Li
Deste modo, resolvida a primeira parte, escrevi no caderno: The poor by was crossing the street where a car came and... Aí eu me estrepei. Que fazer depois do and? Certamente que eu podia dizer que o menino comera o feijão e a farinha e dei xara o carro passar. Podia, sim, mas só podia em inglês. Fiz uma revisão completa das minhas palavras inglesas, nenhuma das quais servia para narrar a aventura do pobre menino.