Um certo mal-estar

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VICTOR MASCARENHAS



Copyright do texto © 2015 Victor Mascarenhas

Edição Enéas Guerra Valéria Pergentino Design e editoração Valéria Pergentino Elaine Quirelli Capa Enéas Guerra Revisão do texto Maria José Navarro Texto revisado segundo o novo acordo ortográfico da língua portuguesa que entrou em vigor em 2009.

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Mascarenhas, Victor Um certo mal estar / Victor Mascarenhas. -Lauro de Freitas, BA : Solisluna Editora, 2015. 1. Contos brasileiros I. Título. ISBN 978-85-89059-73-2 15-07786 CDD-869.3 Índices para catálogo sistemático: 1. Contos : Literatura brasileira 869.3

Todos os direitos desta edição reservados à Solisluna Design Editora Ltda. 55 71 3379.6691 | 3369.2028 editora@solislunadesign.com.br www.solislunadesign.com.br www.solislunaeditora.com.br


Para JosĂŠ Olympio, meu pai e grande contador de histĂłrias.


“Para um ser sensível, a piedade não raramente se converte em dor. E quando se percebe que tal piedade não leva a um auxílio eficaz, o bom senso obriga a alma a livrar-se dela. ” Herman Melville. “Bartleby, o escriturário”


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Certa manhã, ao despertar de sonhos intranquilos, Geraldo não estava metamorfoseado num inseto monstruoso. Continuava o mesmo da noite anterior:

um sujeito comum, desses que a gente vê por aí e nem presta atenção. Como não estava metamorfoseado num inseto monstruoso, aquele deveria ser mais um dia comum na sua vida, mas não era verdade. Aquele seria o seu último dia. A primeira mijada do dia, que seria a sua última primeira mijada, não trouxe grandes emoções, assim como seu último primeiro banho não provocou nenhuma epifania ou estimulou aquela que seria a sua última masturbação, já que esse era um prazer que ele guardava para o banho da noite. Banho que não iria acontecer. Sua última primeira refeição foi praticamente a mesma dos dias anteriores: um café com leite e um pão dormido com margarina. No seu último café da manhã, faltou o queijo, que ele esperava comprar na volta do trabalho no fim da tarde. Esse queijo vai estar no sanduíche de outra pessoa no dia seguinte, porque Geraldo vai estar morto antes da hora de passar na padaria. 9


Como não acordou metamorfoseado num inseto monstruoso, seu trajeto para o trabalho não chamou a atenção de ninguém e não atraiu um só olhar. Se Geraldo fosse um inseto, uma grande barata ou um besourinho qualquer, por exemplo, sua presença chamaria a atenção, pelo menos, dos que têm medo de baratas, mas, como seus sonhos intranquilos não conseguiram produzir sequer uma ereção matinal, como teriam o poder de transformá-lo em algo notável para quem quer que seja? Geraldo, definitivamente, não era um inseto monstruoso. Tudo corria normalmente durante o dia, como de costume, exceto por um pequeno acontecimento na hora do almoço: Geraldo viu uma ex-namorada no ponto de ônibus em frente ao restaurante a quilo onde almoçava sempre. Ela não o viu e, se o visse, talvez nem o reconhecesse. Geraldo não era mais magro, não tinha mais cabelos longos e agora usava óculos. Ela também perdera o viço da juventude, tinha o rosto cansado, os peitos meio caídos, o cabelo mal pintado de louro e muitos quilos a mais. Neste breve encontro, seus olhos não se cruzaram, não houve mais do que alguns segundos de observação através da janela gordurosa do restaurante, mas, apesar da distância, do tempo e do excesso de peso, não restava dúvida de que aquela gorda era sua ex-namorada. Ela não tinha sido o amor da sua vida, sua primeira namorada ou uma grande paixão. Mas um dia eles foram jovens e acharam que tinham um grande futuro. Ela seria uma grande atriz, capaz de interpretações memoráveis e que brilharia nos palcos pelo mundo afora. Ele seria um arquiteto de grandes realizações, que mudaria a paisagem urbana da cidade e juntos seriam capazes de mudar o mundo. Eles fariam tudo diferente dos que vieram antes e 10


seriam a luz para os que viessem depois. Eram burgueses sem religião, o futuro da nação e, com os jovens da sua geração, seriam capazes de fazer o que as gerações anteriores não fizeram. Naquele momento, Geraldo percebeu que nem ele, nem sua ex-namorada ou qualquer um dos seus amigos de juventude, mesmo os mais brilhantes, bonitos ou talentosos, escaparam da vida real e da sua mediocridade opressiva. Geraldo viu os melhores da sua geração destruídos pela loucura, morrendo de fome, histéricos e arrastando-se pelas ruas como um exército de contadores, advogados, funcionários públicos, bancários, donas de casa e outras ocupações opacas e bem diferentes do futuro luminoso que todos haviam sonhado. Seus pensamentos foram interrompidos por um leve cutucão nas suas costas. Era um senhor mais interessado no arroz à grega do bandejão do que em devaneios sobre as ilusões perdidas da juventude de quem quer que seja. Geraldo seguiu adiante e serviu-se de arroz à grega, bife acebolado, um pouco de feijão e um suspeitíssimo empadão de bacalhau. Pegou um refresco de maracujá, um pedaço de pudim e foi para sua mesa comer o seu último almoço e procurar pela sua ex-namorada. Ela já tinha desaparecido. Seu ônibus certamente havia passado e a gorda tinha sumido, levando o desconforto de fazê-lo pensar em tudo que poderia ter sido e não era. Não lembrava bem o que deu errado com ela para que o namoro terminasse. Também não sabia ao certo o que tinha dado errado com ele, que não conseguiu entrar na faculdade de arquitetura e se contentou com a de ciências contábeis. Não se lembrava de quando desistiu de perder tempo com a literatura e passou a ler livros técnicos e nem quando desistiu dos técnicos e passou para os de autoajuda. 11


Lembrava que casou, jurou amor eterno e, embora tenha tentado ser diferente dos seus pais, acabou repetindo todos os erros do casamento dos velhos, que ainda viviam juntos, unidos apenas por uma dependência mórbida. Lembrou-se que, um dia, descobriu que sua mulher tinha outro. Veio a separação, eles desmontaram o apartamento e cada um foi para o seu canto, sem filhos, mas com o sofrimento e o trauma de ver a casa vazia no dia em que ela foi embora levando suas coisas. A casa vazia era um dos seus recorrentes sonhos intranquilos, mas que não conseguiam fazer com que ele se transformasse num inseto monstruoso ou tivesse uma ereção matinal. Lembrou-se que não viajou pelo mundo, nunca comprou a casa dos seus sonhos, o carro dos seus sonhos e nem mesmo tinha uma televisão LCD. A essa altura, sequer tinha sonhos. Aquele incômodo fluxo de consciência provocado pela visão da ex-namorada de sua juventude tinha um gosto amargo e bem diferente do gosto aguado do seu último suco de maracujá. No entanto, ainda era melhor beber aquilo do que um refrigerante e sofrer com azia a tarde inteira. Naquele comida a quilo, comendo um pudim com colher de plástico e tentando lembrar o nome daquela ex-namorada que virou uma senhora gorda e com o cabelo mal pintado, Geraldo percebeu que tinha perdido o jogo e não dava mais pra negar isso. Na fila pra pagar a conta, não conseguia parar de pensar na ex-namorada linda que tinha se transformado em uma gorda com cabelo oleoso e oxigenado. Contou o dinheiro pra pagar o almoço, completou com algumas moedas que estavam no bolso e sentiu sono. Se andasse rápido, poderia chegar ao escritório e tirar um cochilo até as duas, quando terminava a hora do almoço e seus colegas voltavam 12


ao trabalho. Pagou a conta, guardou o troco e apressou o passo para garantir mais um tempinho para seu cochilo. No escritório vazio, exceto pela recepcionista e pela moça da copa, seguiu até a sala que dividia com outros três funcionários, juntou duas cadeiras, equilibrou-se naquela precária cama e se deitou em posição fetal. Em segundos, dormiu. Logo os sonhos intranquilos começaram. A namorada gorda reapareceu, ao lado da sua professora de matemática da 7ª série que repetia insistentemente “você não vai dar pra nada”. A gorda se juntou ao coro, junto com sua versão jovem, completamente nua, que dizia “você não vai dar pra nada” enquanto era enrabada por seu pai, que também dizia “você não vai dar pra nada”. Um grupo de crianças ria sem parar, enquanto ele, completamente nu, tentava esconder uma ereção da sua mãe. Ela segurava um terço enquanto balbuciava algo que Geraldo não entendia. Desesperado, ele gritava: “Desculpa mãe, desculpa! Não faço mais isso. ” Aproximou-se dela e ouviu a ladainha que ela repetia baixinho, com a voz da Cuca do Sítio do Picapau Amarelo: “Você não vai dar pra nada. ” Geraldo, usando a beca da formatura, dizia: “Eu sou formado em ciências contábeis. Em ciências contábeis! Eu sou contador!”, mas nem seus berros silenciavam os risos e o coro, em uníssono, que repetia e repetia: “Você não vai dar pra nada. ” Nesse momento, as cadeiras de rodinhas se afastaram e Geraldo desabou, despertando dos seus sonhos intranquilos. Ele desperta e percebe que agora era um inseto monstruoso, mas não gigantesco. Era uma baratinha rastaquera, dessas pequenas e sem asas. Antes que entendesse o que estava acontecendo, Damasceno, o colega que dividia a mesa com ele, entra na sala e, com um pisão violento, o esmaga 13


impiedosamente. Em seguida, dá um chute na sua carcaça, que desliza para debaixo de um arquivo de metal. Geraldo agonizou por horas, mas não sentiu dor. Permaneceu num estado de reflexões vazias e pacíficas, como qualquer barata kafkiana em seus últimos momentos, até que sua cabeça inclinou-se totalmente para baixo e das suas ventas brotou, fraco, o último suspiro. Ninguém deu por falta de Geraldo naquela tarde e nem no dia seguinte. Alguns dias depois, seu chefe colocou um anúncio de abandono de emprego nos classificados do jornal. Era só uma formalidade legal para justificar sua demissão por justa causa.

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– CPF? – 326.166.249-00 – 1900? – 900 – RG? – 23520261 27 – Título de eleitor? – 333214710141-71 – PIS? – 1.444.564.987-5 – Obrigado pelas informações, pode aguardar. – Não vai precisar do nome? – Não é necessário. O próximo.

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