Arquitetura multissensorial, aproximações

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ARQUITETURA

MULTISSENSORIAL

APROXIMAÇÕES



Arquitetura multissensorial, aproximações José Alexandre Azevedo Spezzotti Orientação de Marta Bogéa

Trabalho Final de Graduação FAUUSP 2018


Agradecimentos


Aos meus pais, primeiramente, por sempre

estarem presentes, por sempre me apoiarem e também

por todas as noites de filmes que me ajudaram a relaxar.

À minha orientadora, Marta, por todas as conversas

e encaminhamentos, sempre com muito cuidado e atenção.

Aos professores Vladimir e Artur, que gentilmente

Aos amigos da FAU, por todas as conversas que

aceitaram o convite de participar da minha banca.

tivemos, por todos momentos que compartilhamos e por

serem a melhor companhia que eu poderia ter nestes anos de faculdade.

A tantos outros amigos, pela amizade

incondicional. Muitos hoje distantes fisicamente, mas sempre perto nos momentos necessários.

Gosto de pensar que este trabalho carrega um

A todos vocês, obrigado.

pouco de cada um que já passou pela minha vida.


Resumo


Este trabalho se consolida com a união entre

insatisfações e fascínios que foram sendo formados ao longo de meu percurso pela graduação. Havia certa

produção arquitetônica que me incomodava e outra que

me encantava, ainda que eu não entendesse exatamente o porquê. Este percurso é, portanto, uma busca pessoal

e subjetiva em busca da arquitetura que dialoga comigo, da minha arquitetura, e a encontro dentro da discussão

e da prática da arquitetura multissensorial e fenomênica. Através dos estudos da fenomenologia, faço um grande esforço de reposicionamento em relação ao mundo –

como eu o percebia até então– através de projetos de

apartamentos, em primeira instância, e, posteriormente, no redesenho da área formada por Praça Rotary e Biblioteca Monteiro Lobato. Trato de discutir, portanto, a percepção

– enquanto multiplicidade de relações – na dimensão mais íntima e também nos espaços comuns.


Sumรกrio


Introdução

10

1. O Som e a Fúria 2. O ser e o mundo

16 32

3. A arquitetura que me toca

42

4. Enxergando além da visão

60

5. A biblioteca de referências

70

6. Borges e Ray Charles

98

7. A Praça e a Biblioteca

112

8. Questões de representação Aberturas Bibliografia

168 172

156


Introdução


10 . 11

O fenômeno gerador deste trabalho era algo

que eu não entendia exatamente o quê. Eu buscava

certa qualidade arquitetônica, uma nova discussão, mas não sabia como iniciá-la, nem o que estava exatamente

procurando. Agrada-me o pensamento, portanto, de que

este trabalho final foi uma oportunidade de ir construindo meu caminho, pouco a pouco – à medida que cada nova referência era conhecida, que cada novo texto era lido – em busca desta pergunta que não sabia como formular.

Restam, ainda assim, muitas incertezas, mas que mostram, no meu entendimento, a maturidade que o trabalho foi

ganhando, e o caráter ainda inicial deste processo – um novo início que se revela ao fim desta etapa final de graduação.

Comecei pela leitura de O Som e a Fúria

(2017), de William Faulkner, que me levou ao estudo da fenomenologia. O livro, que foi lido de maneira

descompromissada, sem ter sido pensado inicialmente como um objeto destes estudos, despertou-me um

interesse na forma como os personagens se relacionavam, na forma como as suas percepções eram representadas, e

como a subjetividade era um elemento-chave em toda sua estrutura.

Criada a ponte para a fenomenologia enquanto

estudo filosófico, pude compreender este pensamento, mas de maneira ainda muito geral e pouco aplicada.

Desta faísca, chego finalmente a Peter Zumthor e seu livro Atmosferas (2009), que é quando o trabalho ganhou de

fato uma intenção. As perguntas de Zumthor que abrem

Atmosferas eram muito parecidas com o que eu também me perguntava, ao simplesmente ser tocado por certos



12 . 13

elementos – que para mim eram, até o momento, alguns componentes do regionalismo crítico, embora seja outro

campo teórico – e questionar por que razão algumas obras o tocavam e outras não.

Estas atmosferas, estas coisas ao meu redor,

referem-se não apenas ao redor em si, mas à relação

do corpo com este espaço. Relação, esta, que me levou

aos escritos de Merleau-Ponty. O filósofo francês foi, sem

dúvida, a base conceitual mais forte do trabalho. Embora siga os pensamentos de Husserl e Heidegger – outros

nomes bastante importantes na fenomenologia – MerleauPonty desloca o foco da consciência pura para a relação entre ela e o corpo, e entre corpo e espaço, corpo e o mundo, o que acaba por estreitar as relações com a arquitetura fenomênica.

Baseando-se em Merleau-Ponty, destacam-se,

dentro do que eu buscava com o trabalho, os arquitetos Steven Holl e Juhani Pallasmaa. O primeiro, através de

seus desenhos em aquarela, que me despertaram um interesse contínuo pela discussão da representação,

aborda o movimento do corpo em relação ao espaço,

principalmente em seu livro Parallax (2000). O segundo, por sua vez, evidencia a questão do Oculocentrismo na

arquitetura ocidental e o quão pouco nos atentamos para uma arquitetura dos outros sentidos, uma arquitetura multissensorial.

Ou seja, durante este percurso fiz uma

aproximação por diferentes matrizes conceituais: um entrelaçamento entre as preocupações vernaculares e tectônicas do regionalismo crítico, a percepção do

espaço através do movimento do corpo da fenomenologia



14 . 15

merleau-pontiana e forma multissensorial de perceber o mundo através dos escritos de Pallasmaa.

Com estes conceitos em mente, foi significativa a

decisão de fazer algum exercício com caráter ensaístico, ao mesmo tempo em que estes estudos teóricos eram

compreendidos. Neste exercício pensei em apartamentos para Jorge Luis Borges e Ray Charles, em São Paulo.

Procurei imaginar como seria, para eles, morar em São

Paulo, levando em conta as deficiências visuais – parcial ou total – de cada um.

Como fechamento do trabalho, desloquei-me

à Praça Rotary e à Biblioteca Monteiro Lobato, na Vila

Buarque. Desta vez, o intuito era fazer um redesenho da praça, de forma a criar uma experiência multissensorial, mas que não ignorasse as pré-existências – sejam

formas construídas, relações interpessoais e as próprias

interações das pessoas para com o espaço – e imaginando a Biblioteca com um novo setor em Braille, transformada

em um ambiente mais inclusivo e mais atrativo a todas as pessoas, com deficiência visual ou não.


1. O Som e a Fúria


16 . 17

Publicado pela primeira vez em 1929 por William

Faulkner, O Som e a Fúria é um romance que adota a

técnica literária conhecida por stream of consciousness1,

um método narrativo que tem como base a representação

não-linear dos pensamentos dos personagens, seja em um monólogo interno, seja em conjunto com suas ações. O

estilo foi adotado também por Marcel Proust, James Joyce e Virginia Woolf. A história situa-se em Jefferson, Mississippi, e conta a saga de uma família aristocrata sulista, pós-

Guerra da Secessão, que se encontra em declínio. Ela é

estruturada em quatro capítulos, por diferentes pontos de vista.

Com narrador em primeira pessoa, Faulkner divide

a obra em quatro capítulos: os três primeiros do ponto

de vista de personagens do livro e o último com narrador onisciente. A meu ver, o foco principal do texto são os

pensamentos e angústias dos personagens, razão pela qual o romance funciona como um quebra-cabeça. No decorrer dos capítulos, ficamos tão envolvidos com as mentes dos

personagens que acabamos por não entender exatamente o que acontece do lado de fora, o que são lembranças, o

que são acontecimentos passados, presentes ou futuros. Muitas vezes, um personagem acaba se deparando com um fato que o faz recordar-se de outro evento, fazendo

com que sua mente mude de foco de uma ação para uma memória, por exemplo, sem que isso fique claro ao leitor.

1. “(...) podemos definir a ficção do fluxo da consciência como um tipo de ficção em que a ênfase principal é posta na exploração dos níveis de consciência que antecedem a fala com a finalidade de revelar, antes de mais nada, o estado psíquico dos personagens” (HUMPRHAY, 1976, p. 4)


Diagrama . Personagens


18 . 19

Os quatro irmãos da família Compson formam

o núcleo principal do livro. Três dos irmãos, Benjy,

Quentin e Jason, são, respectivamente, os três primeiros narradores. Benjy é uma criança num corpo de adulto: o idiota de Faulkner quando ele nos diz que O Som e

a Fúria é uma história contada por um idiota. É um

personagem completamente alheio à passagem de tempo, que se incomoda quando não há ordem à sua volta. Ele

percebe o mundo de maneira muito inocente e sensível,

principalmente através do olfato. Quentin é o mais velho dos irmãos, e também o mais brilhante. Embora tenha

ido para Harvard e tenha sido a grande aposta da família,

parou de viver o tempo presente e mergulhou no passado. Jason é um personagem estritamente sem qualidades.

É completamente obcecado por dinheiro, e nada mais.

Também concentrado muito no passado, com a diferença de que sempre encontra alguém para culpar por seus infortúnios.

O quarto e último capítulo do livro difere-se dos

demais por adotar a figura de um narrador onipresente. Embora também enquadre uma personagem – a criada da casa –, o capítulo não explora seus pensamentos, e

funciona mais para juntar as peças restantes do quebracabeça e esclarecer alguns pontos da história.

Caddy, a única mulher dentre os irmãos Compson,

não possui um capítulo próprio, ou seja, não nos é criada a oportunidade de entrar na mente da irmã para que

possamos perceber o mundo com seus olhos. Por termos acesso apenas a fragmentos de Caddy, ela torna-se a

personagem mais rica e interessante de todo o livro, e

pode ser considerada a personagem principal e o centro


Diagrama . Temas


20 . 21

ausente do romance.

O Som e a Fúria não retrata exatamente, no meu

ponto de vista, uma história sulista, ou a família, ou os

personagens, mas sim o modo como estes percebem algo diferente em Caddy, percebem de forma diferente, e,

ainda, encontram tudo aquilo que mais amam – ou aquilo que mais odeiam – na mesma. Ela é, de fato, o centro.

Tudo – as percepções, a simples história, os sentimentos, giram em torno dela. E, para nós, ela é ausente: quem seria, de fato, Caddy? Ou então, qual das Caddys é a

verdadeira? Seria a verdadeira Caddy a soma de todas as Caddys percebidas? Seria a verdadeira Caddy totalmente diferente, ou ainda: existe, realmente, uma Caddy verdadeira?

Entendo que Faulkner trabalha com as percepções

desta personagem usando o tempo enquanto tema. Cada um dos três irmãos tem uma forma diferente de perceber o tempo, e isto afeta a forma pela qual eles percebem a irmã. Para Benjy, por exemplo, não há fronteiras entre o passado e o presente: um dilui-se no outro. Há apenas

certos eventos marcantes – envolvendo Caddy, de quem

ele gosta profundamente –, entre os quais ele alterna. Ele flutua entre os tempos, procurando por Caddy.

Enquanto que Benjy cria essa confusão entre

os tempos que, mesmo de forma caótica e alheia, é

retratada de forma muito simples e leve, Quentin já cria

uma complexidade extrema. Ele tenta entender o tempo e fugir do tempo, mas não obtém sucesso. Quer fugir do tempo pois não quer esquecer seu sofrimento por

Caddy, não quer que seu remorso suma, não quer que

nenhuma angústia que ele sinta perca seu significado e,


Diagrama . Quem seria Caddy?


22 . 23

por consequência, que sua vida perca sentido. Deseja que seus sentimentos permaneçam como água estagnada. A passagem do tempo, então, para Quentin, é uma prisão. Quentin tenta escapar do tempo2 para cristalizar seus sentimentos por Caddy, para que os sentimentos por

Caddy não virem água fugaz. Jason, por fim, entende o tempo de forma um pouco diferente. Para ele, tempo é dinheiro, pura e simplesmente. Qualquer – pouca – memória do passado, é para culpar alguém: Caddy.

A água, a sombra e os cheiros são também temas

através dos quais os personagens podem perceber o

tempo e, consequentemente, Caddy. Benjy tem memórias muito fortes de Caddy por causa de seu cheiro. Quentin

faz uso da água como purificação. Ao fim de seu capítulo,

comete suicídio por afogamento, por não saber viver com

os sentimentos e os pecados de Caddy. A sombra também refere-se a Quentin, refere-se aos eventos passados que ecoam no presente, e também na insegurança de sua existência. Quentin sente-se uma sombra de um ser,

apenas. Jason, no entanto, não percebe Caddy e talvez

nem a si mesmo com nenhum desses três temas, mas,

talvez, esta ausência, esta negação de Caddy, pode ser considerada uma importante percepção por si só.

Como forma de imaginar estas relações de

personagens e temas, decidi por fazer um rápido exercício da representação de Caddy a partir do ponto de vista de

2. “Fui até a cômoda e peguei o relógio, ainda com o mostrador virado para baixo. Quebrei o vidro na quina do móvel e aparei os cacos na mão e coloquei-os no cinzeiro e arranquei os ponteiros e os pus no cinzeiro também. O tique-taque não parou.” (FAULKNER, 2017, p. 83)


Diagrama . Caddy percebida e representada


24 . 25

cada um de seus três irmãos, ou seja, decidi por tentar

tornar presente o centro ausente do livro3. Procurei fazer

uso da aquarela como meio de linguagem, justamente por possuir limites menos definidos e mais abertos. Junto de cada um desses desenhos, foi colocada uma citação do

mesmo capítulo do livro, de forma a estreitar os laços entre o meio escrito e o visual.

Por ser um exercício muito breve e preliminar, nele

surgem diversas perguntas. A primeira é sobre o que, de

fato, são os desenhos. De fato, trata-se de representações visuais de como um segundo personagem perceberia

Caddy no mundo. Mas não é um desenho de Caddy, e

tampouco deste segundo personagem. É um desenho de

algo que os une, alguma ponte perceptiva. Mas o que é, de fato, esta ligação?

Estas primeiras tentativas de expressão,

justamente por seu caráter inicial, acabam por revelar

alguns pontos significativos: talvez, mais importante que o resultado final do desenho – e mais importante que

seu entendimento por parte de terceiros –, seja o fato

de isto ser um esforço pessoal e subjetivo de entender

um conceito ainda pouco compreensível. Um esforço de

representar a minha percepção da percepção entre dois personagens, ou seja, um processo metaperceptivo.

3. “(...) representar é, de fato, tornar presente aquilo que está ausente” (JANEIRO, 2012, p. 31)



26 . 27

BENJY

“‘Ora, Benjy.’ disse ela. Olhou para mim outra vez e eu fui e ela me abraçou. ‘Você encontrou a Caddy de novo.’ disse ela. ‘Pensou que a Caddy tinha fugido, é.’ Caddy tinha cheio de ávore.” (FAULKNER, 2017, p. 45)



28 . 29

QUENTIN

“fora da luz cinzenta as sombras das coisas feito coisas mortas em água estagnada eu queria que você estivesse morta” (FAULKNER, 2017, p. 162)



30 . 31

JASON

“‘Lá em casa a gente nem conhece o seu nome’, eu digo. ‘Sabia disso? A gente nem conhece o seu nome. Seria melhor pra você se você estivesse lá embaixo junto com ele e o Quentin’, eu digo. ‘Sabia disso?’” (FAULKNER, 2017, p. 207)


2. O ser e o mundo


32 . 33

A leitura do posfácio de O Som e a Fúria, por

Jean-Paul Sartre, foi a ponte do livro com os conceitos

da filosofia fenomenológica. Ainda que em uma chave

mais temporal, neste texto o pensador francês discorre sobre a consciência, levando-me a pesquisar sobre o

estudo da mesma, a fenomenologia. O objetivo aqui não é, no entanto, fazer uma análise abrangente, densa e

altamente crítica da fenomenologia, mas sim construir um embasamento de suas teorias para um posterior

encaminhamento na arquitetura fenomênica, ou seja: olhar a fenomenologia através de uma lente arquitetônica, fazer

uma leitura arquitetônica. Portanto, os conceitos filosóficos aqui analisados serão aqueles que julgo mais pertinentes à construção de uma base teórica para alguns arquitetos que sobre ela se apoiam – entre os quais destaco Steven Holl e Juhani Pallasmaa – e também sobre a qual eu me

apoio a fim de entender este percurso da filosofia a esta arquitetura.

Mas o que seria, de fato, a fenomenologia?

Merleau-Ponty, filósofo francês, diz que “a fenomenologia é “o estudo das essências”1, e também podemos dizer

que ela se atenta aos fenômenos, para a forma como eles me aparecem, aparecem para minha consciência. Me

aparecem, sim, pois não vejo como falar de fenomenologia sem usar a primeira pessoa. É a investigação pura das

nossas experiências, o estudo da experiência vivida por mim – em primeira pessoa.

Esta corrente de pensamento – que talvez

1. (MERLEAU-PONTY, 2006, p. 1)


Diagrama . Sujeito e objeto

Diagrama . Fenomenologia a partir de Merleau-Ponty


34 . 35

possamos qualificá-la como mais subjetiva2– surge como uma reação às tendências do objetivismo científico. Ao

invés de tentarmos explicar os fenômenos, dissecá-los por meio da matemática, deveríamos procurar apenas sentilos, retratá-los, descrevê-los, e fazemos isto por meio de nossas experiências com o mundo. Ora, se fizermos um

esforço para desvendar uma experiência fenomênica por

meio do objetivismo da ciência – por meio de explicações meramente informativas, distantes do âmbito pessoal – então não estaríamos procurando retornar às coisas

mesmas, ou seja, não retornaríamos a um estado anterior ao conhecimento3.

Edmund Husserl – considerado o pai da

fenomenologia – é quem inicialmente defende tal retorno às coisas mesmas4, em um gesto que visava obter o

estado puro da consciência. Isto significava, porém, excluir, desta pureza, todo tipo de experiência externa a ela. Era

um adepto da fenomenologia transcendental: deveríamos dar um passo para trás, abandonar tudo o que sabemos e, então, olhar de cima para o objeto. Todos os nossos

2. Deve-se ter em mente que o papel da fenomenologia é questionar as dicotomias sujeito-objeto e subjetividade-objetividade. A fenomenologia não explora a subjetividade como conceito oposto à objetividade, pois ela não procura analisar regiões, ou partes, do mundo, mas sim o mundo dado. Logo, não se entende a subjetividade como uma parte: o que acontece é a subjetivação da objetividade do mundo dado. 3. “Retornar às coisas mesmas é retornar a este mundo anterior ao conhecimento” (MERLEAU-PONTY, 2006, p. 4) 4. “Essa primeira ordem que Husserl dava à fenomenologia inicialmente de ser uma ‘psicologia descritiva’ ou de retornar ‘às coisas mesmas’ é antes de tudo a desaprovação da ciência” (MERLEAU-PONTY, 2006, p. 3)


Diagrama . O que entendo de Husserl


36 . 37

julgamentos ficariam suspensos, e nos tornaríamos um

estranho em um lugar estranho, como se olhássemos para coisas de outro mundo, tentando entender sua essência.

Remover o nós mesmos e olhar o objeto como

se fosse a primeira vez é algo que a fenomenologia existencial de Martin Heidegger, seu pupilo, diz ser impossível. Mesmo mais à frente em sua produção

teórica, Husserl vai aos poucos percebendo, assim como Heidegger, que a consciência não está jamais isolada,

descolada do mundo. Dessa forma, os pré-julgamentos, os significados culturais e históricos, não somente existem como também operam em conjunto com a consciência.

Começa-se a dar mais importância à intersubjetividade. A consciência é sempre consciência de alguma coisa, e o mundo percebido é sempre um mundo percebido por

alguma consciência, de forma que não há como separar as duas partes5.

No posfácio de O Som e a Fúria, quando Sartre diz

“Tente apreender sua consciência e a observe, você verá

que ela é vazia, a única coisa que se encontrará nela é o futuro.”6, já percebemos como ele entende a pureza da

consciência da fenomenologia transcendental de Husserl

como vazia, dependendo de uma intencionalidade7, que ele

indica como momento futuro. Ou seja, toda consciência é consciência de algo.

5. “A coisa nunca pode ser separada de alguém que a perceba, nunca pode ser efetivamente em si” (MERLEAU-PONTY, 2006, p. 429) 6. (SARTRE; FAULKNER, 2017, p. 372) 7. “Toda consciência é consciência de algo”, é a frase de Husserl retomada


Diagrama . O que entendo de Heidegger

Diagrama . O que entendo de Merleau-Ponty


38 . 39

Interessante notar como a fenomenologia de

Martin Heidegger, particularmente a expressada em sua obra Construir, habitar, pensar (1954), adquire

preocupações existenciais e transcendentais por meio do lugar. Heidegger pensa no habitar como essência8, como

o ser habitando o espaço e o tempo. É o início de uma

fenomenologia com interesses arquitetônicos – embora

Heidegger use arquitetura apenas como metáfora – pela

qual alguns arquitetos, em especial o norueguês Christian Norberg-Shulz, iriam se influenciar.

Merleau-Ponty, por sua vez, segue a linha da

fenomenologia existencial de Heidegger, negando

parcialmente a fenomenologia transcendental dos

primeiros escritos de Husserl. Para o filósofo francês,

sujeito e objeto são duas faces perceptivas da mesma moeda, estão entrelaçados. Dá seguimento, portanto,

à noção de dasein (ser-no-mundo) de Heidegger: sem a

conexão – por meio da percepção – entre as duas partes,

não há efetivamente nada e, a fim de existir tal conexão, deve existir o corpo.

Fecho este primeiro estudo teórico voltando,

novamente, à obra de Faulkner. Como foi através do

livro que cheguei à fenomenologia, gostaria agora de

fazer o caminho inverso, a fim de fazer um paralelo para

concluir meu entendimento: se os personagens podem ser

por Merleau-Ponty para introduzir a noção de intencionalidade em Fenomenologia da Percepção (MERLEAU-PONTY, 2006, p. 15) 8. “Habitar é, porém, o traço essencial do ser de acordo com o qual os mortais são.” (HEIDEGGER, 1954, p. 10, grifo do autor)


Diagrama . Contato com o mundo por diferentes aproximaçþes


40 . 41

considerados como sujeito, então, os temas do livro seriam

os fenômenos. Caddy assume a função de objeto, ou ainda, de lugar – uma vez que os irmãos não apenas interagem com ela, mas a habitam, habitam um mundo regido por

ela, por suas características. Uma única Caddy – enquanto ser – mas várias Caddys – enquanto mundos perceptivos – enriquecem o livro com diferentes possibilidades, diferentes percepções.


3. A arquitetura que me toca


42 . 43

Entendendo o conceito de fenomenologia

e procurando agora aplicá-lo na arquitetura, lanço

primeiramente meu olhar para trás, para entender qual é arquitetura que mais me agrada. Faço um exercício

de reflexão e penso, até um momento anterior a este

trabalho, com qual arquitetura mais me identifico – de modo conceitual, e não necessariamente visual.

Faço um pequeno esforço: se algo me chamou em

O Som e a Fúria, se algo me chamou na fenomenologia, o que me chamaria, portanto, na arquitetura? Percebo, assim, que os mesmos elementos comunicavam-se

comigo: a subjetividade, a percepção, a experiência

pessoal, a vivência de cada um no mundo. Certamente, conheço espaços em que pude experienciar tais coisas, mas que são, ainda assim, muito particulares. Ainda

permanecia a pergunta: De que forma os espaços falavam comigo?

Bachelard dizia que “Nossa alma é uma morada.

E quando nos lembrarmos das ‘casas’, dos ‘aposentos’, aprenderemos a ‘morar’ em nós mesmos.”1. Ou seja,

Bachelard vê uma relação entre o que somos e os espaços que habitamos, e os espaços que habitamos e o que

somos. E o que sou? Que espaços habitei? Que espaços

me marcaram como pessoa? Certamente tenho algumas

memórias perceptivas, como ir à FAUUSP de manhã, pedir um café e sentar-me às mesas juntas à janela, para que

o sol penetrasse a minha pele, no frio, e eu ficasse mais

confortável. No ano em que fiz um intercâmbio para Bristol,

1. (BACHELARD, 2008, p. 355)


Cuadra San Cristóbal

Luis Barragán . México . 1968 fonte: architravel


44 . 45

no Reino Unido, lembro-me de voltar das aulas, chegar em casa e abrir a porta dos fundos da sala, para que

pudéssemos (eu e as pessoas com quem dividia a casa) ficar conversando com os pés na grama, dentre outras memórias.

E por que seria tão difícil definir as sensações

e emoções que nos surgem em um espaço? Este

questionamento e esta inquietação de tentar definir

elementos a partir dos quais é possível entender uma

experiência subjetiva ligam-me, finalmente, ao arquiteto

Peter Zumthor. Minha pergunta, quando me desloco para

a arquitetura, era muito similar à dele. Certos jeitos de se fazer arquitetura me chamavam mais a atenção do que

outros. Certos ambientes me faziam sentir melhor do que

outros? E por quê? Parafraseando o arquiteto: “Mas por que diabos me tocam essas obras? E como posso projetar tal coisa?”2

A arquitetura que havia chamado minha atenção

até então pode ser enquadrada no que Kenneth Frampton chama de regionalismo crítico. Seria aquela das obras de Barragán, Tadao Ando e Álvaro Siza. Percebo que nesta arquitetura há indícios importantes de preocupações

com o vernacular e uma qualidade arquitetônica mais

pessoal, que considera elementos como a luz, as texturas, materiais, as sensações, etc, e, também, obras que se

atentam mais ao lugar.3 Reconheço que o regionalismo

crítico está em outro campo teórico. Porém, não pretendo

2. (ZUMTHOR, 2009, p. 11) 3. “Se algum princípio central do regionalismo crítico pudesse ser isolado,


Capela de Luz

Tadao Ando . JapĂŁo . 1999 fonte: archdaily


46 . 47

aqui de forma alguma estabelecer alguma relação direta

entre este conceito e a fenomenologia: pretendo, apenas,

indicar que alguns arquitetos deste campo me chamavam a atenção devido a alguns elementos específicos.

Em especial Barragán, com suas cores, seus

planos, vistas que vão se revelando, talvez tenha sido o

primeiro arquiteto que me tenha aparecido num nível mais emocional. Após ter tanto contato com uma arquitetura mais fria, modernista, ver esta arquitetura certamente me despertou novos interesses. Tadao Ando, com seu

projeto da casa Azuma, na qual a pessoa tem de sair ao

ar livre para passar para outro bloco, estimulando assim um contato existencial e tectônico4 com a natureza, ou

na Igreja da Luz, que constrói uma forma a partir de um material imaterial, a luz, também é um bom exemplo.

Também posso citar o Museu Judaico, de Daniel Liebeskind – já fora de enquadramento teórico, ou seja, cito-o apenas por referência pessoal –, no qual tive a oportunidade de

visitar e tive uma experiência de tontura e incômodo ao andar pelos planos tortos e ser submetido a pequenas

aberturas de frio, elementos que o museu usava como provocação experimental.

ele certamente será o compromisso com o lugar e não com o espaço, ou, na terminologia de Heidegger, com a proximidade do Raum em vez da distância do Spatium.” (FRAMPTON; NESBITT 2013, p. 518) 4. “O que Ando tem em mente é o desenvolvimento de uma arquitetura ‘trans-óptica’, na qual a riqueza da obra esteja além da percepção inicial de sua ordem geométrica. O valor tátil dos componentes tectônicos é fundamental para essa revelação espacial mutante” (FRAMPTON; NESBITT, 2013, p. 517)


Capela de Campo Bruder Klaus

Peter Zumthor . Alemanha . 2007 fonte: afasia archzine


48 . 49

Voltando às minhas perguntas e anseios, eu

estava interessado em criar estas experiências, estas

imaterialidades, estas atmosferas, e é assim que deságuo em Zumthor. Em Atmosferas, livro bem curto, que deriva

de uma palestra, o arquiteto suíço procura elencar alguns pontos que contribuem para a qualidade atmosférica

destes espaços. Doze pontos (contando os três finais que servem como apêndice) que o ajudam a chegar nessa

qualidade arquitetônica, sobre a qual ele se perguntava. Zumthor descreve de maneira primorosa, e ao mesmo tempo simples, essas cenas que nos cativam. Segue o trecho:

“É Quinta-feira Santa de 2003. Sou eu. Estou ali sentado, uma

praça ao sol, uma arcada grande, longa, alta e bonita ao sol. A praça – frente de casas, igreja, monumentos – como panorama à minha frente. A parede do café nas minhas costas. A densidade certa de pessoas. Um mercado de flores. Sol. Onze horas. A parede do outro lado da praça na sombra, em tons agradavelmente azuis. Sons maravilhosos: conversas próximas, passos na praça, pedra, pássaro, um leve murmúrio da multidão, sem carros, sem barulho de motores, de vez em quando ruídos de obra ao longe. Os feriados a começar já tornaram os passos das pessoas mais lentos, imagino. Duas freiras – isto é realidade e não imaginação –, duas freiras cruzam a praça, gesticulando, de passos leves e toucas a agitarem-se levemente ao vento, cada uma traz um saco de plástico. A temperatura: agradavelmente fresco, com calor. Estou sentado na arcada, num sofá estofado em verde mate, a figura de bronze à minha frente no alto pedestal está de costas para mim e olha, como eu, para a igreja de duas torres. As duas torres da igreja têm cúpulas diferentes, que em baixo começam de forma igual e que ao subir se individualizam. Uma é mais alta e tem uma coroa dourada à volta do topo. Em breve, B. virá ter comigo, cruzando a praça na diagonal.”5

5. (ZUMTHOR, 2009, pp. 15-17)


Termas de Vals

Peter Zumthor . Suíça . 1996 fonte: archdaily


50 . 51

Aqui, Zumthor procura, em uma cena, identificar

o que lhe toca, de maneira a descrever os fenômenos, ao

invés de procurar uma explicação mais racional para eles. A conclusão é que o que o toca de imediato é um único

elemento – no sentido de ser tudo ao mesmo tempo, em

conjunto, indivisível – e a experiência em si. Não pretendo, no entanto, explicar todos os doze pontos que o arquiteto nos conta com o objetivo de formar esta experiência

imediata, porque seria me alongar demais. Mas de maneira geral, os pontos passam por qualidades como o corpo da

arquitetura no sentido da materialidade; consonância dos materiais; o som do espaço; temperatura, coisas à nossa

volta; luz, etc. São uma série de elementos que contribuem para essa qualidade atmosférica, e Zumthor os pensa sempre através da harmonia6.

O mais inspirador do texto não é apenas entender

tudo como verdades absolutas. Claro que há muito de

interessante em todos estes pontos, todos pertinentes

e cuja visão também compartilho. Mas ainda assim, são elementos pessoais, o que fez com que eu, ao longo

do trabalho, também fosse pensando nos meus “doze pontos”, ou seja lá quantos fossem.

Nossa relação com estas atmosferas são uma

relação de nosso corpo com o espaço, nosso corpo com o mundo, das nossas percepções e experiências. E, já

tendo uma pequena bagagem filosófica de fenomenologia,

6. “Mas o mais belo é quando as coisas se encontram, quando se harmonizam. Formam um todo. O lugar, a utilização e a forma” (ZUMTHOR, 2009, p. 69)


Museu Judaico

Daniel Libenskind . Berlim . 1999 fonte: archdaily


52 . 53

identifico, portanto, em Merleau-Ponty um continuamento natural de Zumthor, no sentido de aprimorar e estudar

mais estas relações que Zumthor de forma tão leve nos conta.

Interessante notar que Zumthor nos fala de uma

arquitetura que nos cativa de imediato7, o que cria um

diálogo com os conceitos de Merleau-Ponty, no sentido de que a percepção vem antes de qualquer outra coisa. Em

geral, Zumthor foi muito importante para me introduzir, de forma mais leve e descompromissada, aos pensamentos

mais densos da obra Fenomenologia da Percepção (2006).

Reencontrei Merleau-Ponty, portanto, mas agora

com novas inquietações, vindo de outro percurso. Embora já o tenha mencionado no capítulo sobre fenomenologia, entendo que as circunstâncias presentes são diferentes. Anteriormente, tinha chegado a ele como consequência dos estudos fenomenológicos iniciados por Husserl e Heidegger, sendo assim um caminho natural de um

desenvolvimento teórico da filosofia, embora sob ótica

francesa agora ao invés de alemã. Agora, chego a MerleauPonty por Zumthor, e estes diferentes caminhos que percorro merecem o devido destaque.

Anteriormente minha pergunta para a

fenomenologia, em geral, era de que forma percebíamos alguma coisa, e como nossa percepção era individual e única. Agora, minha pergunta, diretamente a Merleau-

7. “Há situações em que não podemos perder tempo a pensar se gostamos ou não de alguma coisa, se devemos ou não saltar e fugir. Existe algo em nós que comunica imediatamente conosco. Compreensão imediata, ligação emocional imediata, recusa imediata.” (ZUMTHOR, 2009, p. 13)


Kiasma Museum of Contemporary Art (aquarela)

Steven Holl . Finlândia . 1998 fonte: steven holl architects


54 . 55

Ponty é de que forma estamos no mundo, como há esse

contato entre ser e mundo, que o filósofo diz ser através do corpo.

Merleau-Ponty fala de um ser-no-mundo, talvez

uma de suas principais contribuições (vindo também

do dasein de Heidegger), e lembrando o que Zumthor

retrata em Atmosferas com a relação entre nosso corposer e o espaço-atmosferas. Como é ser-no-mundo, e

não ser e mundo, isto não pode ser separado, não há

um ser-somente e nem tampouco um mundo-somente.

Interessante notar que não conseguimos imaginar um

elemento, um lugar, por exemplo, sem a nossa presença.

Embora nunca tenha escrito de fato uma obra

sobre arquitetura, Merleau-Ponty influenciou uma série

de arquitetos, e o fez justamente por causa do corpo. A

relação do corpo com o espaço, para ele, é o alicerce da arquitetura:“[P]ara mim não haveria espaço se eu não tivesse corpo.”8. Ele entende ainda que “não se deve

dizer que nosso corpo está no espaço nem tampouco que ele está no tempo. Ele habita o espaço e o tempo”9, ou

seja, a espacialidade e a temporalidade jamais podem

ser consideradas como externas ao corpo e, portanto, ao sujeito.

Por meio disso, cheguei a Steven Holl, que

trabalha justamente com a experiência do movimento

do corpo no espaço. O arquiteto americano reinterpreta

os conceitos fenomenológicos de Merleau-Ponty: baseia-

8. (MERLEAU-PONTY, 2006, p. 149) 9. (MERLEAU-PONTY, 2006, p. 193, grifo do autor)


Diagrama . O conceito de movimento de Merleau-Ponty e Holl


56 . 57

se intensamente nos conceitos deste10 e transforma-os

em conceitos arquitetônicos. Dessa forma, é como se

fizesse uma tradução para a arquitetura. Em Parallax, os

fenômenos transformam-se em conceitos que vão nortear seus projetos.

Em seus escritos, Steven Holl procura sempre

introduzir um projeto seu para exemplificar o ponto

discutido em algum capítulo. Todos os seus projetos se

mostraram bastante únicos para mim, em especial alguns destaques como o Kiasma Museum, de Helsinque, Xky

Xcraper, também na Finlândia e Palazzo del Cinema, na

Itália. O museu de Helsinque é uma ótima oportunidade

para mostrar como a percepção do movimento11 é, para

Holl, o foco central da conexão com a obra arquitetônica. Esta atenção dada ao movimento, e consequentemente ao espaço dinâmico, vem da preocupação de Merleau-

Ponty em relação ao corpo como conexão com o mundo. A percepção do movimento para Holl é, portanto, um entrelaçamento de todos os sentidos, e de todas as

sensações. Para Holl, não há coisas, e sim, experiências e relações dinâmicas.

O arquiteto também tem uma linguagem

notável, com seus desenhos em aquarela, presenteando

10. “Imediatamente contatei-me à arquitetura nos escritos de MerleauPonty. Comecei a ler tudo o que podia encontrar de sua obra.” (HOLL, 2000, p. 302, tradução minha) 11. “A percepção do movimento tem em meu corpo e no entrelaçamento com o mundo o solo necessário para que ela se estabeleça. E nela, os limites do meu campo visual não são contornos ou linhas objetivas” (PALLAMIN, 1996, p. 44)


Diagrama . Perguntas direcionadas


58 . 59

seus escritos com mais poética ainda. Estes desenhos

chamaram minha atenção para uma representação que, tal como o espaço projetado, também possa acontecer

modo fenomenológico. Esta discussão e inquietação me acompanhou sempre ao longo do trabalho, mas será aprofundada mais à frente.

A metodologia de Holl considera a fenomenologia

como uma fonte – uma ajuda, um meio, um recurso

principal –, para seu processo de produção de arquitetura. Sua intenção máxima é incorporar a filosofia em sua

arquitetura. Neste sentido, aproximo-me dele, pois é o que estive procurando fazer até então. Ao longo de Parallax,

ele sempre fala de uma ideia e a exemplifica a partir de um projeto seu, o que ajuda a dar esse caráter prático. É claro

que Zumthor também tem essa aproximação no sentido de usar os conceitos fenomenológicos para fazer arquitetura. No entanto, a questão de Zumthor era muito mais geral,

muito mais inicial, e que me leva à densidade conceitual de Merleau-Ponty e posteriormente a Holl, que se apoia nessa densidade.

Se Zumthor, em Atmosferas, pensa na atmosfera-

geral, para depois subdividi-la em alguns elementos, sinto que o caminho de Holl é quase o contrário. Vai, ao longo

de seu livro, contando-nos um pouco sobre como lida com cada elemento – que não são elementos dele, mas de

Merleau-Ponty, processo que novamente difere de Zumthor –, para que ao final da leitura tenhamos uma visão geral de sua percepção. Além disso, Parallax tem um caráter

mais prático: nos são mostrados alguns projetos, algumas ideias, e como elas se originaram a partir de conceitos fenomenológicos.


4. Enxergando além da visão


60 . 61

Após este exercício de reflexão para identificar

uma arquitetura com preocupações fenomenológicas – e considero Zumthor e Holl como maiores referências –

ainda continuei na mesma direção até meu encontro com

Juhani Pallasmaa, arquiteto finlandês que discute o sentido da visão. Pallasmaa é também um dos arquitetos que é

influenciado por Merleau-Ponty, e está diretamente ligado

a Steven Holl, já que inclusive escreveram um livro juntos1.

Porém, Pallasmaa fala mais do Oculocentrismo, que

define como a hegemonia do sentido da visão na cultura

ocidental, e como isso se reflete na prática da arquitetura. Critica justamente essa hegemonia do sentido da visão, que vem desde a antiguidade, desde a filosofia grega,

quando Platão e Aristóteles consideravam a visão como

dádiva, passando pelo Renascimento, com a perspectiva e o olho como centro do mundo, até sua consolidação

no Iluminismo, época em que a luz foi considerada uma

metáfora para a verdade2, e vem até a pós-modernidade.

A recorrência de imagens puramente visuais,

desprovidas de qualquer outra qualidade, faz com

que gradativamente percamos contato com o mundo, transformando-nos em meros espectadores. Somos

constantemente bombardeados por estímulos visuais

e, como consequência, perdemos nossa conexão com

1. Juhani Pallasmaa, Steven Holl e Alberto Pérez-Gomez juntam-se para trabalhar na produção do livro Questions of Perception: Phenomenology of

Architecture, publicado originalmente em 1994. 2. “(...) o conhecimento se tornou análogo à visão clara e a luz é considerada uma metáfora para a verdade.” (PALLASMAA, 2011, p. 15)


Diagrama . Relação com o mundo a partir de Pallasmaa


62 . 63

o mundo3. De toda forma, retomando Steven Holl e sua

preocupação corporal com a arquitetura, Pallasmaa

identifica que há um distanciamento destas qualidades,

enquanto a produção arquitetônica contemporânea tem-se focado majoritariamente na visão. Os edifícios projetados, que valorizam somente a estética, vão cada vez mais, ao

mesmo tempo em que se agarram a nossos olhos através de suas formas, afastando nosso corpo do mundo. Para

Pallasmaa, se o olho é o que nos afasta, as mãos são o que nos aproxima4.

Identificar isto foi um momento angustiante para

mim, pois enquanto tentava, no capítulo anterior, pensar na arquitetura que me toca – que agora percebo ser a

arquitetura que explora questões muito além do sentido visual –, percebi que são poucos os exemplos que vêm à mente, ao menos quando pensamos de maneira não

específica. De fato, existe um maior predomínio de uma arquitetura das formas exuberantes, mas, ao mesmo

tempo, isso faz com que surja uma contra-arquitetura, que se opõe a essa sociedade da hipervisibilidade e procura

estreitar as relações com nossos corpos. Entendo portanto que os arquitetos com os quais agora me identifico

produzem esta arquitetura não somente como um anseio

3. “A arte da visão, sem dúvida, tem nos oferecido edificações imponentes e instigantes, mas ela não tem promovido a conexão humana com o mundo.” (PALLASMAA, 2011, p. 19) 4. “A maçaneta da porta é o aperto de mão do prédio. O tato nos conecta com o tempo e a tradição: por meio das impressões do toque, apertamos as mãos de incontáveis gerações.” (PALLASMAA, 2011, p. 53)


Blur Building

Diller + Scofidio . Suíça . 2002 fonte: archdaily


64 . 65

que vem de dentro , mas um anseio que é provocado,

talvez até despertado, por uma arquitetura que é vista como incompatível5.

Reflito, agora, e se faço este trabalho – se recorro

à fenomenologia –, é por não ter me identificado até então com algumas arquiteturas que me foram apresentadas. Não somente não me identifico com tais arquiteturas, como também com tais formas de fazer arquitetura.

Sendo assim penso: “– Que outras formas há de fazer

arquiteturas? Que outras formas, senão estas?” E assim,

juntando meu anseio existencial e um descontentamento com o mundo, é que vou construindo meu percurso.

O Blur Building, pavilhão temporário projetado por Diller + Scofidio6 para a Expo 2002, na Suíça, é um ótimo exemplo disso, pois força uma experiência diferente, e

talvez funcione como provocação. Captando e borrifando a água do lago Neuchâtel, sobre o qual a estrutura

do pavilhão se apoiava, criou assim uma nuvem que

funcionava como provocação, que nos faz refletir “e se não pudermos depender da visão?” Embora seja um edifício

de exposição, ele não tinha nada a expor. Ou melhor, nada

5. “É compreensível que, cada vez mais, diante do amplo predomínio das imagens em nossa ‘sociedade da hipervisibilidade’, correntes reativas surjam, procurando criar formas de resistência a esse domínio excessivo. Vêm daí muitas das especulações em prol de uma arte e de uma arquitetura hápticas, táteis, multissensoriais, sinestésicas, nas quais o conceito de ‘atmosfera’ passa a ser central.”(WISNIK, 2018, p. 283) 6. Até a data deste projeto, 2002, Charles Renfro ainda não havia se tornado sócio. Posteriormente, a partir de 2004, o escritório se chamaria Diller Scofidio + Renfro.


Diagrama . Os diferentes nĂ­veis da deficiĂŞncia visual


66 . 67

visível a expor. Torna-se um evento para expor-nos a nossa dependência visual.

Sendo assim, a partir do Blur Building, que Wisnik

identifica como um “Projeto arquitetônico que veio a

indicar, portanto, a necessidade de se fundar uma nova

crítica estética às expensas da visão”7, comecei a ver na arquitetura que simplesmente desfoca o sentido visual

uma oportunidade de aprender mais sobre uma arquitetura que enfoca outros sentidos.

Iniciei a procura por referências sobre o que seria

habitar um espaço para uma pessoa que não pode usar

sua visão, para entender melhor como projetar espaços

mais acessíveis. O primeiro passo é, obviamente, entender o que é a deficiência visual. Pesquisando no Certificado

Internacional de Doenças – CID 108 , pude perceber que há vários níveis dessa deficiência, indo desde o mais grave,

a cegueira, passando pela deficiência visual severa e até graus menores como deficiência visual moderada. Ou

seja, isto significa que, quando uso o termo, posso estar falando desde uma pessoa com perda total de visão até

uma pessoa que tem percepção luminosa e que consegue perceber vultos.

Chris Downey, arquiteto americano, fornece alguns

insights sobre o tema9, já que ele é uma pessoa cega

dentro da profissão da arquitetura. Por ter perdido sua

7. (WISNIK, 2018, p. 293) 8. <https://www.cid10.com.br>. Acesso em: 16 mai. 2018. 9. <https://thearchitectstake.com/interviews/chris-downey-architectureblind/>. Acesso em: 19 mai. 2018.


Diagrama . Pontos abordados por Chris Downey


68 . 69

visão justamente após sua consolidação como arquiteto, a deficiência, embora com complicações no começo, serviu para reposicioná-lo de forma a explorar as questões de inclusão.

O arquiteto fala sobre uma série de elementos

interessantes, mas entrando em contato com suas ideias, o que mais carreguei comigo foram seus três pontos

principais: Todas as pessoas deveriam movimentar-se

livremente pelo espaço, saber onde estão e encontrar a

entrada e a saída de um lugar. Em relação ao movimento, deve-se dar importância aos ritmos e padrões, aos

elementos que sirvam de guia. E sobre a orientação,

devemos sempre nos atentar ao contraste, ou seja: uma pessoa saberia que está no ambiente A, ao invés de B, porque as características de A são diferentes de B.

Neste momento tive mais conhecimento sobre

de que forma pessoas com alguma deficiência visual

sentiam o espaço, como habitavam o espaço. No entanto, isso tudo ainda era um pouco abstrato para mim. Senti a necessidade de procurar projetos e exemplos que

mostrassem, através do projeto de arquitetura, os pontos abordados por Chris Downey. Explico-me: entendo que o contraste é importante para o senso de localização de uma pessoa, mas de que forma posso obter este

contraste? Também entendo que ritmos e padrões, ou um

elemento que direcione, são importantes para a navegação de pessoas com deficiência visual pelo espaço. Mas quais seriam estes elementos? Parafraseando Zumthor, como poderia fazer tal coisa?


5. A biblioteca de referĂŞncias


70 . 71

Dada a necessidade, expressa no capítulo anterior,

de procurar referências projetuais que evidenciassem usos de contrastes, padrões e ritmos em projetos voltados para pessoas com deficiências visuais, o primeiro projeto que

encontrei, dentre os projetos com recorte contemporâneo

pesquisados, é Hazelwood School. Quase que juntamente a ele, cheguei também a descobrir o Centro de Invidentes y Débiles Visuales, mencionado como exemplo de

arquitetura fenomênica no livro A condição contemporânea da arquitetura, de Montaner. Sendo assim, decidi me voltar para estes dois projetos por acreditar que foram os que mais me ajudaram a progredir no trabalho.


Hazelwood School

GM + AD . Escรณcia . 2007 fonte: archdaily


72 . 73

Hazelwood School, projeto de Gordon Murray +

Alan Dunlop Architects, em 2007, foi pensada para abrigar crianças de 2 a 19 anos com múltiplas deficiências – ao

menos duas entre visual, auditiva, cognitiva e motora. A

escola, localizada em Glasgow, Escócia, concretiza-se de forma a dar inspiração, independência e segurança aos estudantes que nela convivem.

Como as crianças que estão na escola necessitam

sempre de assistência, os arquitetos procuraram tomar decisões de projeto que propiciassem mais liberdade e independência para elas. Talvez o elemento mais

marcante e mais importante deste projeto seja a parede tátil. Revestida por cortiça, um material de textura

e temperatura agradáveis, a parede percorre toda a

extensão da escola e auxilia na navegação e orientação

dos estudantes, além de nela estarem contidos signos, ao longo do corredor, para confirmar a localização do aluno.

Entendendo que o aprendizado e o crescimento

destas crianças está longe de acontecer somente nas salas de aula, os autores do projeto buscaram criar um ambiente

que estimule todos os sentidos e, portanto, as experiências sensoriais ganham forte destaque, seja nas áreas internas, com a luz que entra no corredor e o toque na parede, seja nas áreas externas, ao sentir na pele chuva, as

árvores e o vento, e ao ouvir o som dos pássaros. Áreas externas, estas, que foram criadas como resultado do

serpenteamento do edifício pelo terreno, originando estes espaços íntimos, tranquilos, e cercados por árvores.

O que mais se destaca para mim neste edifício,

particularmente, é a forma como ele abre mão de seu

caráter de instituição e dá espaço a uma atmosfera mais


Parede tรกtil como eixo principal e criadora de espaรงos resultantes

Corte mostrando a entrada de luz natural


74 . 75

lúdica, sensorial e integrada. Isto também passa pela

escolha dos materiais – que estabelecem um contato com a natureza – adotados por suas qualidades sensitivas. A harmonia entre ambientes de inspiração, que incitam o

imaginário, e estratégias que aprimoram a orientação e navegação – ambos conseguidos por meio de práticas multissensoriais – marca o sucesso do projeto.


Centro de Invidentes y DĂŠbiles Visuales

Mauricio Rocha . MĂŠxico . 2001 fonte: archdaily


76 . 77

Na Cidade do México, Mauricio Rocha finaliza, em

2001, um complexo de atividades culturais de 14.000 m² para pessoas com deficiências visuais. O projeto abriga diversos programas, como café, biblioteca, piscina,

auditório, galerias e salas de aula, por meio de três fileiras paralelas de edifícios, e outra perpendicular. Rodeando toda a área, há uma parede cega que funciona como

barreira acústica, além de também conter texturas para estimular o tato.

O complexo se divide em uma série de fileiras

de edifícios, cujos blocos contrastam entre si justamente para serem mais facilmente identificáveis, corroborando

o que foi dito por Chris Downey, no capítulo anterior. Este contraste acontece pela diferença de formas, alturas, materiais, proporções e aberturas para luz, e pelas

diferentes texturas – verticais e horizontais – na altura

da mão. Interessante como não são apenas os blocos –

enquanto objeto construído – que possuem esta qualidade, mas também os espaços livres com os quais eles se relacionam são únicos e reconhecíveis.

Entendo que a água é um dos elementos mais

importantes aqui, pois seu som auxilia na orientação pelo complexo – talvez uma grande referência ao projeto Salk, de Louis Khan. Cria, assim, o eixo principal do projeto, e podemos dizer que evidencia um grid perceptivo,

composto pela água – eixo principal –, jardim sensorial – com seis tipos de plantas e flores aromáticas – e o

contraste dos blocos. Desta forma, a pessoa consegue se

locomover através do som da água e saber onde está pelos cheiros e pelo tato.


Grid perceptivo visualizado na planta

Contraste dos blocos


78 . 79

Destaco a água, novamente, para explicar como é

importante ter um elemento principal nestes projetos. Aqui

é a água, e no estudo do caso anterior é a parede tátil. Mas

o objetivo, com todos estes recursos, não é apenas orientar e localizar a pessoa com deficiência visual, mas também estimular a percepção através dos sentidos. Segundo

Montaner, neste projeto “[e]stimulam-se os sentidos do

tato, do olfato e da audição, que a fenomenologia colocou

acima da visão.”1. Ou seja, o arquiteto não procura apenas certificar-se de que todos possam usar e percorrer o

complexo, mas também usá-lo como ferramenta para

fortalecer a conexão entre as pessoas e a Arquitetura,

entre as pessoas com este lugar, por meio da percepção.

5. (MONTANER, 2016, p. 64)



80 . 81

Enquanto analisava estas duas referências

principais, procurei organizar minhas ideias e o que

tinha reunido de informações em uma série de desenhos simples, cada um contendo uma percepção específica.

Reconheço importante frisar aqui que o ato perceptivo acontece de forma total, e não separada, como disse

Merleau-Ponty2, e que este esforço de fragmentação de

percepções pode parecer um pouco contraditório. Porém, explico-me dizendo que o fiz não como um esforço final, pensando-o como um fim, mas justamente o contrário –

como um esforço pessoal de entendimento do tema, o qual me aparecia tão novo e tão desafiador de compreender a fundo. Segui os mesmos passos de Zumthor em

Atmosferas, ao tentar chegar também a uma resposta à

sua questão. Um esforço que busca inicialmente separar para que futuramente possa novamente integrar, como gesto de apreensão do conhecimento.

Para começar a organizar os conteúdos dos

desenhos, baseei-me primeiro em Atmosferas e Parallax, uma vez que ambos têm esse caráter investigativo – ao trabalharem com uma divisão de capítulos que revela

pontos que melhor formam uma arquitetura desejada, imaginada, e melhor sentida por eles. Importante aqui notar que, embora Zumthor e Holl possam

ser enquadrados na mesma categoria de arquitetos

2. “Minha percepção é [portanto] não uma soma de pressupostos visuais, táteis e auditivos: eu percebo de maneira total com todo meu ser: eu abarco uma estrutura única da coisa, um modo único de ser, o qual fala com todos meus sentidos ao mesmo tempo” (MERLEAU-PONTY, 1964, p. 48 apud PALLASMAA, 2011, p. 20)



82 . 83

fenomenológicos3, suas arquiteturas diferem em pontos

importantes. A arquitetura de Zumthor gira em torno de uma atmosfera enquanto conjunto de sensações fenomenológicas, e a arquitetura de Holl destaca o

conceito fenomenológico para gerar uma ideia, que por fim irá gerar a arquitetura.

Neste capítulo não estou necessariamente

comparando os dois, e sim considerando estritamente

as metodologias utilizadas nestes duas obras específicas de cada um. Portanto, ao efetuar a leitura, posso dizer

que foi possível identificar temas comuns nos dois livros, além de outros mais particulares, e, a partir disso, refleti

sobre quais foram os temas mais significativos – ou seja,

o assunto que apareceu em ambos os livros ou o que mais me atraiu.

Não procurei fazer uma análise apenas sistemática

nesta parte, até porque todo o trabalho baseia-se na

percepção, e nele está contido minha própria percepção pessoal sobre os assuntos discutidos. Sendo assim, os

conteúdos dos livros foram, de certa forma, um ponto de partida para que eu chegasse a uma lista de estímulos – forma como resolvi chamar a seguinte lista:

1.luz

2.cor

3. Em seu livro A condição contemporânea da arquitetura, o arquiteto e autor Josep Maria Montaner enquadra Steven Holl e Peter Zumthor na mesma chave ao dizer que o problema fenomenológico “foi conceitualizado nas teorias de Juhani Pallasmaa e Alberto Pérez-Gomez e expresso nas obras de Steven Holl, Glenn Murcutt, Peter Zumthor, Elizabeth Diller e Ricardo Scofidio, Tod Williams e Billie Tsien, entre outros.” (MONTANER, 2011, p. 56)



84 . 85

3.forma

5.cinestesia

4.material

6.natureza 7.água

A maioria destes estímulos teve um capítulo

dedicado para si em Atmosferas e Parallax. Cor, além de

estar contido no livro de Holl, ganhou mais peso, na minha

visão, por também ter Barragán como uma forte referência projetual. Cinestesia, por sua vez, foi um dos itens mais

delicados, no qual demorei mais tempo para desenvolver por tomar um cuidado adicional ao procurar representar

algo que contemplasse o que eu gostaria de discutir. Por

cinestesia refiro-me principalmente à noção de movimento do corpo em relação ao mundo – conceito de Merleau-

Ponty – e do perceptor em relação à obra arquitetônica

– conceito que Holl trabalha ao traduzir a ideia do filósofo

para o campo da Arquitetura.

Natureza e água estão contidas em ambos os

livros, mas estão nessa lista por fatores que vêm também de fora. Natureza vem de uma vontade de aproximar o

sujeito a seu lado existencial, à sua humanidade. Poderia,

talvez, compartilhar algumas questões com a preocupação de lugar e do habitar, observadas por Heidegger e

Norberg-Schulz, por meio da filosofia e arquitetura,

respectivamente. Procurei pensar em elementos que

reforçassem essa relação natural ao, por exemplo, escolher um material que apresentasse marcas do tempo ou que

rememorasse um local e uma cultura. Embora reconheço que a fenomenologia de Norberg-Schulz seja diferente



86 . 87

da de Holl, por se basearem em filósofos diferentes, mencionei os dois neste capítulo por considerarem

elementos que nos conectam mais com o mundo, seja

através do movimento do corpo – que aqui coloquei como cinestesia – ou através do habitar um lugar – que aqui coloquei como natureza.

Em relação à água, eu havia pensando em

englobá-la em natureza, mas achei que merecia mais

importância do que ser apenas um subtema, já que vários dos arquitetos cuja arquitetura me toca utilizam-se muito da água em suas obras. Adicionalmente, ela pode ser

uma importante ferramenta para auxiliar pessoas com

deficiência visual, como foi mostrado no estudo de caso do

Centro de Invidentes y Débiles Visuales, de Mauricio Rocha. Por fim, eu não poderia me esquecer também da qualidade

mística da água, especialmente da forma como ela aparece em O Som e a Fúria.

Tendo esta relação de estímulos, o passo seguinte

foi cruzá-los com a lista de sentidos. Em cada intersecção da tabela, perguntei-me se a relação era coerente e, se

sim, como seria o desenho resultante. Esta é uma tabela na qual fui continuamente repensando, refazendo e

redesenhando, sempre que me surgia uma nova ideia de como representar novas relações e percepções.

Considerando que a maior utilidade dela foi me

auxiliar em futuras decisões de projeto voltadas para

o sentido, procurei dissecá-la o máximo que pude, por

mais que algumas intersecções acabassem ficando mais metafóricas ou até mesmo sinestésicas. É importante perceber também como a hegemonia da visão, que

Pallasmaa destaca em Os Olhos da Pele, aparece também



88 . 89

aqui, uma vez que todas as relações da coluna visão foram preenchidas sem dificuldade alguma, enquanto que, nas outras, foi necessário um esforço maior para imaginar a

relação. Também ressalto o motivo pelo qual me esforcei

para pensar nos estímulos através do sentido da visão: é

claro que pensei aqui em uma arquitetura vivenciada para pessoas com deficiência visual, porém, deve-se pensar na multiplicidade de pessoas que usariam os espaços, além

de que “O sentido da visão pode incorporar e até mesmo reforçar outras modalidades sensoriais”4.

4. (PALLASMAA, 2011, p. 25)


luz

cor

material/natureza

cinestesia/forma

forma

cinestesia

รกgua


90 . 91

Visão

No sentido visual, é muito mais fácil de estabelecermos relações, pois é o que estamos mais habituados. Importante ressaltar o paralaxe como discutido por Steven Holl, que se dá na mudança da posição do corpo, através do movimento pelo espaço, de forma que percebemos o espaço pela sucessão de imagens em nossa mente.


forma

forma

material

รกgua/cinestesia

cinestesia


92 . 93

Audição

O sentido da audição é muito pertinente para o que Chris Downey discute. Destaco o contraste dos ambientes pela reverberação, que ajuda a nos localizarmos, e o som como guia de um caminho (para que saibamos onde ir), seja pela água ou até mesmo pelas pessoas.


cor

forma

natureza

รกgua/cinestesia

material


94 . 95

Olfato

No olfato, uso alguns elementos sinestésicos por ser mais difícil de pensar nestas relações. Embora a água carregue os cheiros, e a forma também, penso no olfato muito para ajudar com contrastes do que como um elemento-guia de um percurso, justamente por ser um elemento solto e imprevisível.


cor

material

forma

cinestesia


96 . 97

Tato

Aqui, ressalta-se a importância que Pallasmaa dá ao tato. É o sentido que mais nos aproxima do mundo, e por isso é fundamental a escolha de materiais que nos conectem com a natureza. O tato também é um ótimo elemento-guia.


6. Borges e Ray Charles


98 . 99

Paralelamente à elaboração de um conjunto

pessoal de referências, tive a necessidade de colocar o

conhecimento e a pesquisa dos temas em prática. Este foi um momento em que eu estava, de certa forma, adiando, justamente por ainda julgar que eu não tivesse um tema definido e portanto não estava pronto para desenhar

no papel. No entanto, após uma conversa com minha

orientadora, concordamos que seria interessante eu fazer

um pequeno aquecimento, e começar a trabalhar em algo

que, por mais que não viesse a ser meu produto final deste trabalho, pudesse ajudar a amadurecer os conceitos por mim estudados.

Na procura de algo que apresentasse similaridades

com o que eu estava estudando, o objeto escolhido foi o

desenho de um apartamento para Jorge Luis Borges e um

apartamento para Ray Charles, uma vez que ambos tinham deficiência visual em algum nível, além de ser um projeto focado em personalidades específicas.

Ray Charles não nasceu cego, mas perdeu

completamente a visão aos 7 anos de idade. Sua área de atuação era a música, nos gêneros de Soul, Jazz e

R&B (entre outros), sendo o piano seu instrumento mais

conhecido. No aspecto social, o músico americano acabou

tendo várias relações: foi pai de 12 filhos, com 7 diferentes mulheres. Jorge Luis Borges, por sua vez, teve uma perda progressiva de visão ao final de sua vida, o que, segundo

os estudiosos, serviu de ajuda para a criação de símbolos

literários e sua literatura fantástica, uma espécie de visão no escuro. Os temas de seus livros são vários: labirintos,

sonhos, religião, bibliotecas e ficção. O escritor, nascido na Argentina, chegou a morar também na Suíça e Espanha.


Edifício Três Marias

Abelardo Riedy de Souza . Brasil . 1956 fonte: archdaily


100 . 101

Considerando que este seria um ensaio bipartite,

procurei contrastar as duas personalidades o máximo que pude, justamente para enriquecer o exercício e para que eu tivesse mais aspectos diferentes para trabalhar. Para evidenciar essas particularidades, pensei em desenhar as duas possibilidades de apartamento a partir de

uma mesma planta comum existente, que foi a de um

apartamento do Edifício Três Marias, de Abelardo Riedy de Souza, localizado no cruzamento entre a Avenida Paulista e a Rua Haddock Lobo, escolhido por sua localização simbólica e por sua dimensão.

Assim como em Hazelwood School a parede tátil

funcionava como eixo principal, e no Centro de Invidentes

y Débiles Visuales este elemento era a água, aqui também cada planta foi concebida tendo um elemento principal em mente. No caso de Borges, este elemento foi a luz:

uma vez que o escritor ainda apresentava sensibilidade

a diferentes intensidades luminosas, procurei pensar em como usar a luz para gerar ritmos e áreas contrastantes – criando ambientes com mais ou menos luz – fazendo com que ele circulasse mais facilmente pelo espaço e

se localizasse pelo contraste. Para Ray Charles, procurei

pensar nos sons – a partir da reverberação dos ambientes

e dos pisos e tapetes – e também nas texturas e materiais, como paredes mais frias, cortina, e paredes táteis de

madeira, que funcionam basicamente como um elemento musical de circulação, devido à composição dinâmica de seus ripados.

Para Borges, também foi importante pensar na sua

relação ambígua com Maria Kodama, que foi sua secretária e sua esposa. Por não saber exatamente como era esta


Localização do Edifício Três Marias


102 . 103

relação – de secretária, de esposa, de cuidadora – foi

necessário projetar espaços também ambíguos e sutis,

como uma pequena janela na parede que divide as camas, para que ambos pudessem dar as mãos ou conversar,

e fechamentos por cortinas. No caso de Ray Charles, a

relação estudada foi com seus convidados, e por isso seu

apartamento conta com mais lugares para sentar e mesas maiores, um quarto para hóspedes e uma configuração com balcão e piano que permitisse aos convidados ver

o músico tocar, ou, então, ele poderia tocar sozinho para si mesmo no mesmo ambiente, ao fechar as cortinas. As cortinas, neste exercício, revelaram-se para mim como um elemento muito adequado que é constituído de flexibilidade, delicadeza e qualidade tátil.

Após a finalização dos últimos desenhos, no

entanto, senti uma profunda insatisfação. Percebi, então, que a insatisfação vinha da precisão. Eu os tinha feito

usando CAD e a representação me parecia muito presa

e técnica, especialmente se comparada aos croquis que eu antes fizera. O desenho feito pelo computador era

muito correto, muito preciso. Para este tema relacionado à fenomenologia e sentidos, entendo que um desenho

de possibilidades, um desenho mais imaginativo – que é

algo que consigo fazer muito melhor por meio do desenho à mão do que por desenho em CAD – é o que faria mais sentido neste dado momento. Ora, se olho para um

desenho que fiz e não me reconheço nele, se perco este

contato entre mim – sujeito – e objeto, e se não consigo

mais imaginar as formas de habitar este desenho, então de que ele me serviria?



104 . 105

Croquis



106 . 107

Plantas . Borges e Ray Charles

0

5m N



108 . 109

Corte parede tรกtil (Ray Charles)

Vista parede tรกtil - extensรฃo (Ray Charles)


Planta escavada (Borges)


110 . 111

“Uma das [minhas] ideias favoritas é a seguinte: pensar o edifício primeiro como uma massa de sombras e a seguir, como num processo de escavação, colocar luzes e deixar a luminosidade infiltrar-se.” (ZUMTHOR, 2009, p. 61)


7. A Praรงa e a Biblioteca


112 . 113

O redesenho multissensorial



114 . 115

N

Praça Rotary . Implantação


Rua General Jardim

ร rea de Jogos

Quadra

Rua Dr. Vila Nova

Parquinho

Ponto de tรกxi

Palco

Parquinho

Rua Major Sertรณrio


116 . 117

Rua Dr. Cesário Mota Junior

Banca

Biblioteca

Estacionamento

Polícia

Ponto de ônibus

Praça Rotary . Planta situação

0

10 m

N


Data da visita: 27/08/2018

[foto do autor]

Data da visita: 23/09/2018

[foto do autor]


118 . 119

No segundo e principal exercício, decidi me

deslocar à área constituída pela Praça Rotary e Biblioteca Monteiro Lobato – no bairro Vila Buarque, no distrito da

Consolação, cercada de comércios, serviços e por uma boa infraestrutura de transporte. O motivo da decisão foi por

conta da vontade de trabalhar em um espaço público, além de fazer um anexo Braille para a Biblioteca, procurando

incluir pessoas com deficiência visual. Se procuro incluir,

não penso em anexo-braille e biblioteca-sem braille, como dois elementos separados. Procurei, então, deixar ambos tipos de livros nos dois ambientes, e o anexo torna-se assim uma oportunidade de criar esta inclusão,

funcionando como um anúncio à até então escondida – por meio dos outros sentidos – biblioteca.

Procurei aqui, nestes relatos e fotos de visitas,

fazer uma análise similar à de Zumthor, em seu relato no

capítulo 3, descrevendo não o que via, mas o que percebia. Descrevendo e fotografando as atmosferas. Sendo assim, decidi fazer as visitas antes de procurar por referências e até mesmo buscar mais informações sobre o lugar, por

achar que este primeiro contato puro, sem qualquer ideia anterior formada da área, era de extrema importância.

Fui à praça algumas vezes, mas permaneci mais

tempo na primeira. Eu havia ido apenas uma vez quando

criança e, portanto, não me recordava do lugar – o que foi positivo, pois pude percebê-lo sem nenhum préjulgamento.

Na primeira visita, às 12h da tarde, percebi que

havia muitos bancos disponíveis e também muitas pessoas passeando com seus cachorros. Em 15 minutos, devem ter passado aproximadamente 15 pessoas, sem contar as que


Data da visita: 27/08/2018

[foto do autor]

Data da visita: 27/08/2018

[foto do autor]


120 . 121

estavam usando a quadra esportiva. Muitas pessoas usavam a praça para cruzar a quadra.

No parquinho, não havia praticamente nenhuma

criança usando os brinquedos, mas havia alguns adultos

usando os equipamentos de ginástica, que ficam próximos aos brinquedos. Muitas pessoas, além disso, estavam

sentadas no parquinho justamente para ler, ao invés de

usar a Biblioteca Monteiro Lobato. Fiquei com a impressão

de que as pessoas liam no parquinho por ser um lugar mais tranquilo, mais para dentro da praça, mais privado, e mais

longe da quadra esportiva. Mas ao mesmo tempo, estavam na praça, enquanto que ao entrarem na Biblioteca talvez perdessem este contato com ela, com a natureza, com o lugar propriamente dito.

Em visitas posteriores, inclusive, perguntei a três

pessoas – no total – que estavam lendo no banco do

parquinho se elas já haviam ido à Biblioteca, ou se ao

menos sabiam que o edifício na Praça era uma biblioteca. Duas delas me responderam que conheciam o edifício, e

outra disse que não sabia nem do que se tratava. As três, no entanto, responderam-me que não sabiam muito bem dizer por que escolhiam ler naquele lugar, mas não

sentiam vontade de ir até o edifício da Biblioteca Monteiro Lobato. Obviamente este campo amostral de três pessoas é inconclusivo, dando muita margem a erros. Entretanto, não pretendia fazer uma análise estatística e chegar a

alguma conclusão do que pensava a maioria das pessoas, necessariamente. Apenas observei que havia um número

de pessoas que estava inserido nesta relação – de ler fora da Biblioteca – e isto, pra mim, já era objeto de interesse, não importava que fosse 1% ou 99% dos casos.


Data da visita: 08/10/2018

[foto do autor]


122 . 123

O desenho da marquise é uma dica visual

importante para que as pessoas cheguem à Biblioteca, mas fora essa tática visual, não havia como achar a

Biblioteca por outros sentidos. A área leste da praça fica,

portanto, quase invisível sensorialmente (como podemos perceber na planta sonora, mostrada mais à frente).

Não senti nenhum cheiro marcante, e os sons de

pássaros, embora agradáveis, também não davam

nenhuma ajuda à orientação. Havia algumas mudanças de

piso, de concreto e pedras, que já forneciam algumas dicas em relação a qual ambiente eu estava. Os bancos, muito quentes, de concreto, não eram tão confortáveis. Já os

bancos do parquinho eram mais agradáveis por estarem na sombra e por serem de outro tipo.

Nas outras visitas que fiz, já fui percebendo mais

coisas. Na primeira visita fiquei com a impressão de que o parquinho não era muito usado, mas nas outras vezes vi algumas crianças usando-o. Ainda assim, achava algo

estranho, os brinquedos eram muito distantes uns dos

outros, parecia que não formavam um conjunto. Pessoas continuavam lendo, e a quadra intensamente usada.

Também sempre havia moradores de rua. Em geral, o uso

era bastante diversificado, e as pessoas já pareciam usar e gostar da Praça à sua maneira, o que fez com que eu não procurasse mudar muito para não descaracterizá-la.

Busquei, antes de tudo, manter suas relações, seus usos espontâneos1.

1. “Deveríamos fazer projetos de tal modo que o resultado não se referisse abertamente a uma meta inequívoca, mas que ainda admitisse a interpretação, para assumir sua identificação pelo uso. O que fazemos deve


Data da visita: 08/10/2018

[foto do autor]


124 . 125

Após estas visitas, comecei a buscar informações

sobre o lugar, sobre sua história, de maneira breve, além de já ter em mente algumas questões importantes. Uma

delas foi pensar como se dá o cruzamento da quadra para

as pessoas que querem apenas ir de uma rua a outra, sem

ficar um tempo na praça. A segunda questão seria tornar a Biblioteca mais perceptível de alguma forma, pois nas

vezes em que fui ao lugar, pude notar que, embora seja um edifício com presença, parece estar muito posta de lado. A Biblioteca em si é ótima, e muitas crianças e

famílias parecem usá-la bastante, conforme pude perceber nas vezes em que fui no local. O ponto é que a relação

Praça-Biblioteca poderia ser ainda melhor, e mais inclusiva.

Limitei-me a uma pesquisa rápida sobre sua

história. A área da Praça Rotary foi adquirida pela

prefeitura somente em 1945. Anteriormente, era uma

propriedade do Senador Rodolfo Miranda, que possuía um

palacete. A prefeitura adquiriu a quadra com o objetivo de implantar uma biblioteca infanto-juvenil, que já existia

desde 1936 na Rua Major Sertório. Somente em 1950 a Biblioteca Monteiro Lobato foi inaugurada, junto com a construção do Teatro Leopoldo Fróes, no lugar da então demolida residência do Senador.

Este Teatro, no entanto, teve suas atividades

encerradas em 1973 e foi demolido com a promessa de

constituir uma oferta, deve ter a capacidade de provocar, sempre, reações específicas adequadas a situações específicas; assim, não deve ser apenas neutro e flexível – e, portanto, não específico –, mas deve possuir aquela eficácia mais ampla que chamamos de polivalência” (HERTZBERGER, 1999, p. 152)


Data da visita: 23/09/2018

[foto do autor]


126 . 127

que daria lugar a um novo complexo cultural, que nunca aconteceu. No seu lugar, está atualmente a quadra

esportiva da Praça. Aqui surgiu a seguinte questão: se eu

de alguma forma trabalharia com a memória do Teatro. Por conta da minha premissa de mexer o mínimo, decidi não tocar neste ponto. No entanto, ainda vejo que o fim da

marquise, este fim em nada, é um importante elemento

para lembrarmos do Teatro através do vazio. Na primeira

vez em que visitei a praça, vi a marquise acabando em um

ponto até então aleatório – dada minha percepção naquela ocasião – e logo me perguntei o motivo de a marquise se estender até ali. Fui pesquisar e finalmente descobri a

existência do teatro. Além disso, em seu lugar há hoje a

quadra e um pequeno palco para eventos, o que acabou substituindo a sua vivacidade.

Após estas primeiras visitas na praça, já comecei a

formular algumas ideias na minha cabeça sobre como

caminharia com o projeto, coisas a melhorar, a introduzir, etc. O propósito desta etapa seria fazer um redesenho da Praça Rotary através dos sentidos, ou seja, transformá-la

em uma experiência multissensorial, tanto para que todas as pessoas pudessem estimular todos os seus sentidos, como para que fosse inclusiva a pessoas que não

pudessem usá-la através do sentido da visão. O outro propósito, e o que me levou a esta praça em primeiro

lugar, foi a elaboração de um anexo para parte dos livros em Braille. Não pensei em usar apenas livros em Braille

especificamente nesse setor para que o uso não ficasse segregado.

Como o anexo estaria colocado no interior da praça

– devido à maior privacidade e menos ruído, além de



128 . 129

Praรงa Rotary . Planta sonora

0

10 m

N


Mapa da cidade de Sâo Paulo: 1868 - atual

fonte: trabalho final de graduação “córregos ocultos: redescobrindo a cidade” de maria joão cavalcanti ribeiro de figueiredo


130 . 131

próximo à Biblioteca –, comecei a pensar em estratégias

para que ele fosse encontrado através dos sentidos, como também ajudasse a encontrar a Biblioteca. Dessa forma,

pensei no projeto de fora pra dentro, ou seja, da rua para o interior da praça.

A primeira coisa que pensei foi no cruzamento da

praça – já que percebi que muitas pessoas usavam-na para transitar entre as ruas – o que pedia um elemento que

orientasse de um portão a outro. Decidi usar o fluxo d’água como elemento criador de um eixo principal, pensando em pessoas guiadas através do som. Embora eu já tivesse

interesse em usar o elemento da água desde a referência de Mauricio Rocha e Instituto Salk, de Louis Kahn, minha decisão foi corroborada pela descoberta – através do trabalho final de graduação de Maria João Cavalcanti

Ribeiro de Figueiredo – de que o córrego Anhanguera passa pela quadra da Praça, conforme pode ser visto no mapa ao lado.

Após a decisão do lugar do anexo e do som da

água como elemento orientador, perguntei-me de que

forma as pessoas poderiam, a partir do eixo e do anexo, chegar aos outros ambientes da Praça. A estratégia que

utilizei para tal foi, portanto, os cheiros. É verdade que o

cheiro não é um bom elemento-guia, pois não temos como prever uma linearidade, um caminho pré-definido no qual ele atuaria. O que podemos pensar, entretanto, é nos

contrastes, e foi dessa forma que o utilizei. De acordo com algum cheio específico que a pessoa estivesse sentindo (seja alecrim, lavanda, jasmin, etc), ela saberia se está

mais perto da quadra, mais perto da Biblioteca, mais perto de um acesso, etc.


Diagrama ilustrando o conceito geral do redesenho multissensorial: som da รกgua + anexo + contraste por cheiros


132 . 133

Após a configuração destas diretrizes principais,

voltei-me ao estudo do documentário The social life of

small urban spaces (1980) de William H. Whyte, sociólogo americano e especialista em analisar o comportamento

humano no espaço, com o objetivo de que esse estudo me levasse a pensar em como poderia projetar melhores

espaços na praça, ou seja, já com um olhar intencionado.

O método de Whyte consiste em analisar através

da observação de pessoas no espaço público, pois dessa maneira percebe elementos que funcionam, padrões de

comportamento, elementos que atraem e que afastam, e

com isso formula uma série de diretrizes para melhorar os espaços públicos para pessoas.

O que mais me interessou no documentário foi a

parte direcionada aos bancos. Whyte diz que pessoas

acabam sentando onde há espaços para sentar, ou seja, muitas vezes o arquiteto formula em sua cabeça uma

disposição de assentos que, quando transformada em

realidade, não será onde as pessoas se sentarão. Se elas, por qualquer razão, sentirem-se mais confortáveis

sentadas em uma pequena mureta ou num degrau – seja pelo local, seja por ser mais fácil de interagir com outra

pessoa – elas não irão sentar no banco que possa ter sido meticulosamente planejado.

Isto fez com que eu não impusesse novas regiões

para bancos. Observei em quais pontos as pessoas mais se sentavam (ou em quais ficavam de pé, mas procurando

lugar para sentar) e projetei os bancos ali. Já é uma diretriz que vai ao encontro do meu princípio de não mexer muito no lugar e de promover usos espontâneos.

Outro ponto importante em relação a estas áreas


Croqui . Banco que explore mĂşltiplas possibilidades


134 . 135

destinadas ao sentar é a variedade de ações, ou seja, de que forma elas podem sentar em um banco, o que pode

ser conseguido projetando bancos nos quais seja possível sentar de ambos os lados. Isto não é importante apenas para aumentar o espaço para sentar, mas também para aumentar o número de possibilidades e de relações das pessoas com o lugar, oferecer novas opções de uso e

interações. Outras considerações em relação a bancos foi colocá-los em bordas para permitir que as pessoas coloquem os pés na água.

Em relação a elementos naturais, Whyte

argumenta como as pessoas gostam de se sentar ao sol, se a temperatura estiver agradável, mas também é muito importante a opção para se sentar na sombra, criando

assim uma relação direta entre bancos e árvores. Nota-se – inclusive em algumas fotos mostradas neste capítulo – como a relação das folhas com a luz solar forma uma composição interessante no solo.

Ele também cita a importância da água, o que é

positivo já que é algo a que venho dado atenção desde O Som e a Fúria e desde as primeiras referências de

arquitetura que fui buscando. Ele diz que jamais devemos proibir o contato com a água, pelo contrário, devemos estimular este contato sempre que possível, para que

pessoas possam tocar, interagir e brincar a com a água –

seja ela em forma de cascata, fonte, canal, espelho d’água, lago, queda d’água, etc.

Por fim, Whyte fala da importância da relação com

a rua, que deve haver uma boa transição, daquela que não seja possível dizer onde começa a praça e termina a rua.

Onde começa uma e termina a outra, e usa como exemplo


Paley Park

Zion Breen Richardson Associates . Estados Unidos . 1967 fonte: project for public spaces


136 . 137

o Paley Park, em Nova York. Isto me fez começar a pensar em abrir alguns espaços na praça, principalmente em sua parte sudeste, voltada à Rua Major Sertório, que é uma

área adjacente ao edifício da Biblioteca e, a meu ver, tem um desenho já muito convidativo, tornando-se propício

para ser aberto. Além disso, só há um acesso à Biblioteca,

pela parte norte do prédio e, embora eu não esteja criando outro acesso, estou criando um caminho que já anuncia a Biblioteca e leva ao acesso mencionado, ou seja, estou

facilitando o acesso para quem vem da Rua Major Sertório.

Ainda em relação ao redesenho da praça, volto-me

agora ao setor do parquinho. Busquei referência em um projeto na Cidade do Cabo2, completado em Agosto de

2016. É um projeto de playground designado

especialmente a crianças com deficiência visual, e por

conta disso possui estratégias interessantes que julguei

que poderiam ser incorporadas aqui. A primeira estratégia é a de anunciar um elemento, ou seja, se há um banco,

deve-se de alguma forma anunciá-lo, seja por mudança de pavimento, alguma pausa, etc. Isto faz com que uma criança saiba quando um elemento vai estar em seu

caminho. Também é importante para demarcar fronteiras,

que foi o que fiz na proposta, com a água, grama e grade,

que cercam a área do parquinho. O eco dos bancos é outra estratégia para orientá-las, já que são bancos lineares,

pensados como blocos, grandes elementos. Com o eco que vem dos bancos, as crianças conseguem medir as

2. <https://www.capetownmagazine.com/cape-town-blind-friendly-park>. Acesso em: 8 set. 2018.


Blind-friendly Park

Transport for Cape Town (TCT) . Ă frica do Sul . 2016 fonte: cape town magazine


138 . 139

distâncias. São estratégias para segurança e para a orientação.

É interessante notar como a presença de

elementos multissensoriais estimula essa percepção. Por exemplo, texturas nos bancos e brinquedos, e sinos nos balanços, permitem que uma criança saiba que tem

alguém ocupando esses assentos, ou então, se a criança estiver usando-os, saberá quão alto e rápido está indo devido à intensidade do som. Á água é também um

elemento tátil importante, com o qual as crianças podem

brincar. Em relação à área dos brinquedos, convém colocar um piso emborrachado para aumentar a segurança –

inclusive pisos com texturas/qualidades diferentes em brinquedos com mais perigo, como balanços e

escorregadores – e usar brinquedos coloridos, o que ajuda as crianças com baixa visão a identificá-los.

Outra referência foi a Biblioteca México José

Vasconcelos3, projeto de Mauricio Rocha – mesmo arquiteto do projeto do Centro de Invidentes y Débiles Visuales,

estudado no capítulo 5 – e Gabriela Carrillo, que formam o Taller de Arquitectura, inaugurado em 2012, também

localizado na Cidade do México. Neste projeto, já com

meus olhos voltados ao anexo e componentes em volta

dele, dois elementos me chamaram atenção. O primeiro é o elemento de bancada com Braille, que auxilia tanto na

navegação do espaço como na identificação dos livros da biblioteca. O segundo é o jardim sensorial, que permite

3. <https://obrasweb.mx/interiorismo/2013/05/04/taller-de-arquitectura-unaintervencion-a-los-sentidos>. Acesso em: 10 set. 2018.


Biblioteca México José Vasconcelos

Taller de Arquitectura . México . 2012 fonte: sandra pereznieto


140 . 141

uma experiência olfativa através da utilização de flores e vegetais como jasmim, alecrim e lavanda. Idealmente as

plantas também teriam diferentes texturas, como folhas, espinhos, etc, para contribuir para a percepção tátil.

Com estas referências, planejei o anexo como

facilmente navegável (e por isso o fiz em forma elíptica), com esta peça de bancada sendo uma prolongação do

mesmo. Também pensei num elemento tátil como uma

extensão dele e outro nos bancos (que será mostrado nos

desenhos de corte, mais a frente) de forma a ter este eixo tátil que ajudaria a pessoa a chegar no anexo, e a pausa

seria justamente o acesso para as escadas. Ou seja, seria uma pausa que revela.


Rua General Jardim

ร rea de Jogos

Quadra

F

Parquinho

C

Rua Dr. Vila Nova

C

Palco D

Ponto de tรกxi

A

E

Parquinho

Rua Major Sertรณrio


142 . 143

Banca

Anexo

F

Rua Dr. Cesário Mota Junior

E

B

D

Biblioteca

Estacionamento

A

Polícia

B Ponto de ônibus

Praça Rotary . Planta proposta de redesenho

0

10 m

N



144 . 145

O redesenho multissensorial da área da Praça, Biblioteca e anexo consiste, portanto, em um conjunto de diretrizes, guiadas sempre pelos sentidos. Não houve uma grande especificação da proposta, devido a algumas limitações (não apenas de tempo como também uma limitação do tema e da discussão). No entanto, a proposta se solidifica no que se refere a manter o máximo possível das relações da conformação da Praça original ao mesmo tempo que amplia seu alcance para outros sentidos e relações.

Praça Rotary . Corte A-A

0

10 m


Conexรฃo biblioteca-praรงa-rua . Corte B-B

0

1m


146 . 147

Assim como no exemplo do Paley Park, em Nova York, também propus alguns alargamentos nas calçadas, fazendo com que a conexão entre as ruas e a Praça se tornasse mais natural. Todas as esquinas tiveram um alargamento, com base na esquina que contém a banca. Além disso, houve a remoção das cercas em parte da calçada da Rua Major Sertório (situação do corte ao lado) e houve um grande alargamento na calçada da Rua General Jardim.


DesnĂ­vel . Corte A-A (aproximado)

0

1m


148 . 149

Todos os bancos foram pensados para explorar o máximo de relações possível, seja com a água, seja com plantas e flores com textura interessante, seja com outras pessoas. Adicionalmente, pensei no banco do corte C-C (à direita) como um anúncio à parede tátil do anexo, criando, desta forma, um eixo a partir do tato.

Banco com elementos táteis . Corte C-C

Relação do banco com a água . Corte D-D

0

1m

0

1m


Banco de múltiplas relações . Corte A-A (aproximado)

0

1m


150 . 151

O banco situado na fronteira do parquinho com o desnível da Praça (de 1,7 m), com vista para a Biblioteca, recebeu atenção especial, justamente por seu lugar de interesse. Além de explorar texturas, pensei no banco com vários recortes para, ao invés de mostrar a Biblioteca por completo,

emoldurá-la, e, assim, torná-la mais perceptível. Mais uma vez, desenhei o banco de forma que várias pessoas pudessem se relacionar com ele de diferentes maneiras.

“A percepção não nos dá jamais tudo a ver de uma só vez, perfazendo-se, necessariamente, segundo visadas parciais que, dialeticamente, organizamse em totalidades.” (PALLAMIN, 2015, p. 47)

Banco de múltiplas relações . Elevação

0

1m



152 . 153

Anexo . Planta proposta

0

1m

N


Detalhe

Anexo . Corte F-F

0

1m


154 . 155

O desenho do anexo, por fim, configura-se de forma a explorar ao máximo o sentido do tato. A madeira, além de agradável ao toque, se conforma aqui em vários elementos: as paredes táteis que nascem das tangentes da elípse; o elemento de bancada que funciona para ajudar na navegação do anexo e localização dos livros; e o elemento com Braille que funciona como continuação do anexo e vai até dentro da Biblioteca, contendo informações da Praça e da Biblioteca, em Braille.

Anexo . Corte E-E

Detalhe

0

1m

0

10 cm


8. Questões de representação


156 . 157

Neste último capítulo, retorno a questões que

me envolveram durante todo o trabalho, questões de

representação. Principalmente durante a concepção dos apartamentos para Borges e Ray Charles, senti uma

insatisfação com o desenho técnico e parti em busca de alternativas, pensando sempre no desenho à mão, e no

papel, como um contato do corpo com o mundo1, tema tão

discutido aqui.

Sendo assim, fecho a discussão sobre estas

questões de representação enquanto também apresento

alguns desenhos do anexo com setor Braille da Biblioteca

Monteiro Lobato, ambiente escolhido para ser representado aqui pelo fato de eu entender que ele seria o elemento que me levou à discussão de múltiplas percepções em primeiro lugar. Também o escolho por entender que concentrar

os desenhos em um único ambiente - e em suas várias formas de ser percebido – deixa de ser uma limitação e oferece mais foco e riqueza à discussão, como observa Merleau-Ponty: “Meu ponto de vista é para mim muito

menos uma limitação de minha experiência do que uma maneira de me introduzir ao mundo inteiro.”2

Esta frase de Merleau-Ponty mostra como nossas

formas de perceber um objeto, nossos pontos de vista,

são a chave para a conexão do mundo. Entendo, portanto,

que posso também representar um objeto por meio destas

1. “Uma mão não é simplesmente parte do corpo, mas também a expressão e continuação de um pensamento que precisa ser capturado e comunicado” (FERNHOFER [BALZAC] apud MERLEAU-PONTY, 1964, p. 7, tradução minha) 2. (MERLEAU-PONTY, 2006, p. 442)


Desenho do ponto de vista de um adulto


158 . 159

múltiplas percepções e fazer com que sua apreensão se

deva a essa multiplicidade e pontos de vista, ao invés de uma vista geral aérea, que só um pássaro poderia ver.

Algo que me perguntei durante todo o percurso

foi “como posso estar falando de um trabalho não-visual, e apresentá-lo de forma tão visual?” Como poderia

me certificar de que os sons, os cheiros, as texturas –

enfim, todas as percepções que exploram os sentidos –

aconteceriam de tal maneira? Foi algo que me questionei, mas agora posso dizer que, de fato, não poderia garantir tais coisas. Posso, no entanto, imaginar.

À medida que a base conceitual foi amadurecendo

em mim, comecei a pensar que isso não somente não

era um problema, um impedimento, mas sim, uma nova

possibilidade. Percebi que não estava debatendo apenas sobre o corpo no espaço, e sim, também sobre minha

imaginação de como seria um corpo habitar o espaço.

Percebi que não estava apenas projetando apenas para Borges e Ray Charles ou para as pessoas que usariam a praça, o anexo e a biblioteca, mas também estava projetando para mim mesmo, trabalhando em mim mesmo3.

Isto não quer dizer que eu não tenha

cuidadosamente pensado em estratégias para garantir o uso do espaço para pessoas com deficiência visual

ou não – importante salientar –, e sim que não posso

3. “trabalhar com filosofia – assim como com arquitetura, de diversas maneiras – realmente é trabalhar principalmente em si próprio. Em sua própria interpretação. Em como você vê as coisas...” (WITTGENSTEIN, 2002, p. 24 apud PALLASMAA, 2011, p. 12)


Desenho do ponto de vista de uma crianรงa


160 . 161

representar aqui um som de forma tão realista quanto

poderia representar uma perspectiva, por exemplo, o que abre especulações no que se refere a como cada pessoa

se relacionaria com os espaços, dentre todas as diretrizes propostas nos exercícios.

Esta inquietação em relação a uma representação

mais imaginativa – em detrimento de outra que tenta

simular uma realidade – vai ao encontro do que é dito

pelo arquiteto Pallasmaa em relação à hegemonia visual. A produção arquitetônica tem se focado no aspecto

visual, e podemos perceber como os renderings servem

para corroborar tal teoria: cada vez mais temos imagens fotorrealistas, que ganham importância maior que o

próprio projeto, que a própria relação do ser humano com o projeto. São desenhos que não conseguimos habitar, e tampouco imaginar, o que acaba por enfraquecer a experiência da vida humana4.

Quando o desenho é muito realista, nossas ideias

não conseguem viajar longe, pelo contrário: ficam presas

na realidade, ou melhor, nesta única realidade dada. Nossa experiência humana depende de nosso pensamento e

de nossa imaginação e, portanto, um desenho impreciso acaba por vir a fortalecer nossa relação com o mundo.

Acabei indo em busca, portanto, de uma

representação fenomenológica, de uma representação

4. “Para que possamos pensar com clareza, a precisão da visão tem de ser reprimida, pois as ideias viajam longe quando nosso olhar fica distraído e não focado. A luz forte e homogênea paralisa a imaginação do mesmo modo que a homogeneização do espaço enfraquece a experiência da vida humana e arrasa o senso de lugar” (PALLASMAA, 2011, p. 44)


Desenho do ponto de vista de alguĂŠm que foca no elemento tĂĄtil para se locomover


162 . 163

que conseguisse mostrar o mundo percebido – através

de vários sentidos –, e não apenas a visão. Representar o mundo como ele me aparece é um dos maiores feitos do pintor Paul Cézanne, segundo Merleau-Ponty. O filósofo explica como Cézanne se distancia do trabalho dos

estúdios e se aproxima do trabalho que surge a partir

da natureza, pintando não exatamente uma paisagem

geométrica e científica – percebida a partir dele mesmo,

do sujeito – e nem a paisagem dada – o objeto. Cézanne, portanto, em suas investigações, descobre como

representar os fenômenos, através da perspectiva vivida5.

Também podemos perceber em Pedro Janeiro,

arquiteto português, estas mesmas preocupações, sendo que ele nos diz que “eu desenho o fenômeno, e não a

coisa”6. Ou seja, desenhamos aquilo que apreendemos do objeto, e nunca a coisa-em-si. Podemos dizer que seria absurdo desenhar a partir de outro ponto de vista, que

não o meu, e ainda mais absurdo desenhar de nenhum

ponto de vista. Nestes desenhos ao lado, é claro que penso em vários pontos de vista alheios a mim, mas o faço

pensando, também, a partir do meu próprio ponto de vista, ou seja: como imagino um adulto habitando este espaço?

Como imagino uma criança habitando este espaço? Como

5. “Ao ser fiel aos fenômenos em suas investigações de perspectiva, Cézanne descobriu o que os psicológicos dos dias de hoje vieram a formular: a perspectiva vivida, a qual nós de fato percebemos, não é uma perspectiva geométrica e nem fotográfica.” (MERLEAU-PONTY, 1964, p. 4, tradução minha) 6. (JANEIRO, 2010, p. 75).


Desenho do ponto de vista de uma pessoa com deficiĂŞncia visual moderada


164 . 165

imagino uma criança com deficiência visual moderada

habitando este espaço? E assim vai. O sujeito, aquele que desenha, desenha a realidade em si próprio. Eu desenho

a realidade em mim e, por conseguinte, desenho parte de

mim mesmo. O desenho tem intencionalidade, assim como a consciência, pois desenho é sempre desenho de algo.

Destaquei neste capítulo Merleau-Ponty, Pallasmaa

e Pedro Janeiro e como eles lidam com as questões de

representação. Embora tenha me baseado nestes autores, julgo importante reconhecer algumas limitações do meu

trabalho. O computador, que segundo Pallasmaa distancia o criador do objeto7, foi, ainda assim, usado por mim em

alguns desenhos, seja por limitação de tempo, de recursos de desenho à mão, ou por julgar que o computador pode sim produzir desenhos fenomenológicos, dependendo da forma que for usado. Se Merleau-Ponty fala sobre como Cézanne pinta a natureza da forma que ela aparece a

ele, eu aqui não posso fazer isso. Não existem – enquanto construção – os apartamentos de Borges e Ray Charles.

Também não existe a praça e o anexo como os representei. Sendo assim, represento os fenômenos – as coisas

como elas me aparecem – de uma ideia futura, e não

de uma realidade já construída. Assim, aproximo-me da metodologia de Steven Holl, que usa o desenho como

expressão do pensamento para o desenvolvimento de uma ideia.

7. “O computador cria uma distância entre o criador e o objeto, enquanto o desenho à mão e a elaboração de maquetes convencionais põem o projetista em contato tátil com o objeto ou o espaço.” (PALLASMAA, 2011, p. 12)


Desenho do ponto de vista de uma pessoa com deficiĂŞncia visual severa


166 . 167

Menciono Holl por último, neste capítulo, para

fechar o ciclo da discussão, uma vez que, como dito na

introdução, foi por conta dele que me interessei por este

tipo de representação, mas naquele momento ainda sem saber o porquê.

Se por um lado, nos meus estudos, não é possível

de fato construir o redesenho da Praça e seu anexo em

Braille, nem tampouco conversar com Borges e Ray Charles e perguntar-lhes o que acharam do novo apartamento e se se adaptaram a viver na Avenida Paulista, por outro lado, se não posso construir, posso desenhar e, dessa

forma, posso imaginar. Não somente isso, é claro, mas

também o desenho torna-se uma ferramenta com mais

força, justamente por ser imprecisa, subjetiva, imaginativa. Ganha força pois não é um desenho com o qual um

projeto se baseará para ser construído. Não é um guia

de construção de arquitetura. Não; o desenho é a própria arquitetura. O desenho torna-se o espaço habitável, o mundo habitável, o meu mundo habitável.


Aberturas


168 . 169

Longe de querer fazer aqui alguma conclusão

fechada, ou alguma consideração final, posso dizer

que este trabalho foi uma oportunidade de fazer um

grande reposicionamento em relação à Arquitetura e

a várias outras indagações que a cercam. Assim como a fenomenologia tratou de repensar a forma pela qual percebemos o mundo, acredito que eu, nesta etapa,

também tive este processo fenomenológico de procurar perceber de outra maneira não somente as questões arquitetônicas, mas também o processo projetual e

representativo da mesma – pensando sempre a partir do meu corpo e dos meus sentidos.

Pensar em uma arquitetura multissensorial foi

um grande desafio, uma vez que eu estava inclinado a concentrar-me apenas no sentido da visão. Posto isso, chego aqui com muito mais perguntas do que iniciei,

embora já tenha alguns direcionamentos importantes. Ao

longo de toda a investigação das mais diversas referências bibliográficas e projetuais, percebi como estimular os

outros sentidos e pensar a partir do corpo torna possível a inclusão daqueles que possuem algum tipo de deficiência, além de fortalecer nossa conexão com o mundo.

Pessoalmente, encontrei neste processo grande satisfação e um sentimento de pertencimento, como se as questões

sobre as quais eu estivesse refletindo trouxessem-me para mais perto de mim mesmo.

Abri o trabalho por meio da literatura, com o livro

O Som e a Fúria, e gostaria de fechá-lo também através da mesma. Sendo assim, pego emprestado o fragmento final do epílogo de O fazedor, de Borges. O escritor argentino

surgiu como interesse em um exercício de caráter prático



170 . 171

e ensaístico mas, à medida que o trabalho foi avançando,

seus escritos foram cada vez mais amadurecendo em mim.

“Um homem se propõe a tarefa de desenhar o mundo. Ao

longo dos anos, povoa um espaço com imagens de províncias, de reinos, de montanhas, de baías, de naus, de ilhas, de peixes, de moradas, de instrumentos, de astros, de cavalos e de pessoas. Pouco antes de morrer, descobre que esse paciente labirinto de linhas traça a imagem de seu rosto.”1

Tal como o artista pinta a si mesmo ao pintar o

mundo, entendo que também o arquiteto pensa, projeta e constrói a si mesmo ao pensar, projetar e construir o

mundo. Sei que ao longo deste percurso, certamente fiz

um projeto de mim mesmo ao projetar para Borges e Ray Charles e para a Praça Rotary e seu setor em Braille. E

em todos estes projetos, penso que os termino com novas aberturas: aberturas para continuar pensando em novas estratégias de arquitetura multissensorial; aberturas

para continuar pensando em como incluir pessoas com

deficiência visual; aberturas para continuar pensando em

como representar uma arquitetura fenomênica; e, por fim, aberturas para continuar em um caminho que me leve a

refletir sobre a forma como eu percebo e me relaciono com a Arquitetura e o mundo.

1. (BORGES, 2008, p. 168)


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