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UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTO CENTRO DE ARTES DEPARTAMENTO DE ARQUITETURA E URBANISMO

.pele | experiências urbanas no Centro de Vitória SAMIRA DE SOUSA PROÊZA

VITÓRIA.2011



SAMIRA DE SOUSA PROÊZA

Trabalho de conclusão de curso apresentado ao Departamento de Arquitetura e Urbanismo do Centro de Artes da Universidade Federal do Espírito Santo, como requisito para obtenção do ơtulo de Arquiteta e Urbanista. Orientadora: Prof.a Clara Luiza Miranda Co-orientadora: Gabriela (Gaia) Leandro Pereira Convidado: Prof. Nelson Lucero

VITÓRIA.2011



FOLHA DE APROVAÇÃO Nome: SAMIRA DE SOUSA PROÊZA TRABALHO DE CONCLUSÃO DE CURSO APROVADO EM : ___ /___ / ______ .

ATA DE AVALIAÇÃO DA BANCA

AVALIAÇÃO DA BANCA EXAMINADORA NOTA

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ASSINATURA

NOTA

DATA

ASSINATURA

NOTA

DATA

ASSINATURA

APROVADO COM NOTA FINAL:____________


“(...) A mulher que chora baixinho Entre o ruído da mulƟdão em vivas. . . O vendedor de ruas, que tem um pregão esquisito, Cheio de individualidade para quem repara. . . O arcanjo isolado, escultura numa catedral, Syringe fugindo aos braços estendidos de Pã, Tudo isto tende para o mesmo centro, Busca encontrar-se e fundir-se Na minha alma. (...)” (Álvaro de Campos)




AGRADECIMENTOS No início desse PG eu queria fazer caber todo o amor que eu sinto por arquitetura e cidade nesse volume. E do mesmo jeito, antes de começar a escrever, eu queria que todos esses anos de CEMUNI III, viagens, festas e amigos coubessem nessas palavras. Agora eu sei que não cabe, transborda. Mas o que o que me acalma é saber que tudo isso faz parte do que eu sou, cabe em mim. Assim, antes de qualquer coisa, eu agradeço aos meus pais por todo o carinho, respeito e confiança que pode exisƟr, e pelo trabalho enorme que Ɵveram para que eu pudesse fazer o que eu gosto. Dedico tudo e todo o meu amor a eles e aos meus irmãos. Agradeço muito à Clara, orientadora, amiga, irmã. Ao Nelson Lucero, que além de aceitar o convite da forma mais carinhosa possível, me trouxe um pouco mais de calma, nesse fim. À Gaia pela ajuda, disposição e paciência e por ter representado para mim, junto com Junim, Lutero, Karlão e Rei, referência de gente que viveu a arquitetura de forma entregue. Ao Célula-EMAU, por grande parte da vivência e carinho por comunidade e cidade que eu tenho hoje. Ao SeNEMAU 2010 e a todos que fizeram parte da construção disso comigo. Ao Barbosa, um grande mestre, a Renata, e aos demais professores. À minha sala 2005/1 frenéƟca, principalmente a Fadinha, à Lu, ao Alê, ao

Michel, ao Henrik que além de tudo, se tornou um irmão. E ao Bruno, companheiro até o fim. Ao Fábio, Seu Zé, Dona Elza, as meninas secretaria e da biblioteca e ao Seu Pacífico, por fazerem parte do meu coƟdiano no CEMUNI de uma forma tão família. Às meninas lindas por várias histórias: Biba, Lilian, Hanno e à Camila, Paula e Tetê por por serem tão companheiras nesse finzinho. Ao Thairo, por toda a parte de campo desse trabalho, e por ter se entregue ao Centro, junto comigo. Ao Gabriel e ao Léo, pelas discussões e pela paixão pelas coisas. Ao Conrado, ao Pedro, ao LP, à Mayara, à Leơcia, à Virgínia, cada um por várias especificidades, mas a todos pelo carinho. Ao Renan companheiro de grande parte do caminho. Ao Hígor pelos mimimis. Aos amigos habitantes do Centro, Zé Carlos, Roney, Gaúcho, Jean, Marinalva, Dona Neuza, Seu Barroco, Caetano e Pri que me emprestou a casa para eu ficar mais perƟnho do PG. E a todos os outros que me ajudaram nesse percurso. Ao Humberto Capai por ter disponibilizado as suas fotos para exposição, e a todos que parƟciparam/ construíram a intervenção, inclusive aos catraieiros, se ela foi poesia, é porque foi de todo mundo. Aos demais habitantes do CEMUNI III e ao CEMUNI III, por ter se tornado a minha casa. Com todo amor e carinho. Obrigada!


SUMÁRIO Introdução Metodologia Pele CoƟdiano

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Parte 1 [1.1] A experiência urbana As experiências e a velocidade Formas de experienciar Experiência como críƟca O Centro de Vitória Breve Histórico Se essa rua fosse minha As ruas do Centro Rua Sete O samba A perfomance Os protextos As escadarias As texturas

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Parte 2 [Corpo] 33 38 40 44 50 58 64 68 70 72 76 78 80 88

Sobre subjeƟvidade Redes Sociais e encontro Sobre o corpo O corpo e o Centro Dona Marinalva Barroco Viana Zé Carlos Dona Neuza

95 98 104 111 112 115 117 120


Parte 3 [ ] Entre! Do lugar ao espaço Espaço liso | Estriado As frestas urbanas A intervenção catraia Localização Vistas Projeto | experiência Projeto | diagrama O dia O depois Sobre o aquaviário

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Sobre cidade O arquiteto e Urbanista

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Considerações finais Índice de imagens Referências bibliográficas

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INTRODUÇÃO Este projeto de graduação começa numa tarde, sentada num banquinho da Praça Oito no Centro de Vitória, pensando qual seria o meu tema. É bem complicado escolher um ‘zoom’ num assunto, entre os tantos que o curso proporciona, causa certa frustração não poder falar de tudo que foi vivido até ali. Mas nesse momento eu percebi o quanto que eu Ɵnha de quesƟonamentos sobre o que de fato se consƟtui como cidade, e como eu e outras pessoas, com outras caracterísƟcas, nos relacionamos com ela. Era uma vontade de saber até onde é espaço, até onde é corpo, e se existe o “até onde”. Queria pensar o “entre”, as frestas, as costuras e, além disso, quais forças que eu enquanto cidadã, ou enquanto arquiteta e urbanista teria para interferir/afetar o espaço. ExisƟa também uma necessidade de experienciar mais o urbano, de entendê-lo mais, conversar com pessoas que o vivenciam, de refleƟr sobre ele, mas nele, de dentro dele. Isso porque foram poucas às vezes no percurso da universidade que isso aconteceu, além do meu envolvimento com o EMAU (Escritório Modelo de Arquitetura e Urbanismo). A maior parte das reflexões e intervenções sobre cidade nas disciplinas ocorria por meio de mapas e dados. Lembro-me bem que nesse dia passei a tarde na Praça Oito, vendo os fluxos de carro, de pedestre, o vento, conversando com as pessoas que passavam. E assim me veio à

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primeira reflexão sobre cidade do percurso desse trabalho. Nesse dia pude senƟ-la como um conjunto de fluxos, de velocidades, em que um movimento se refleƟa no outro. Assim como os pedestres que atravessam a avenida quando os movimentos dos carros paravam, já estes seguiam o ritmo do sinal, que era coordenado pelo ritmo de outros sinais. As folhas no chão seguiam a velocidade do vento, e esse diminuía ou aumentava a velocidade pelas edificações ou vazios entre elas. A cidade parecia dançar, as velocidades se adaptavam uma com as outras e se transformavam e transformavam a infraestrutura İsica, aparentemente estáƟca, mas que também se movimenta na sua composição, ou até onde os olhos vêem, se movimenta lentamente. E foi assim que surgiu esse projeto de graduação, trata-se de experiências urbanas no Centro de Vitória. O Centro foi escolhido através de uma afinidade pessoal, e pela infinidade de situações que ele permite. Trata-se de um local com um meio İsico bastante interessante, e com uma grande carga de memória e épocas sobrepostas, que resultam numa diversidade e vivências intensas. O Centro reflete a história da cidade de Vitória contada através dos seus habitantes, das ruas, das edificações históricas, das praças, becos, escadas e texturas. O trabalho também tem como objeƟvo refleƟr sobre o espaço para o arquiteto e sua atuação na cidade, como agente com uma carga grande de responsabilidade no contexto em que atua, já que o urbanismo é mais uma

força que atua diretamente nos lugares onde se desenvolve nossa existência no coƟdiano, podendo ajudar a construir ou diminuir relações, nas fronteiras dos lugares, e na forma como o vemos. Nesse trabalho o processo, e o caminho que ele traça são as principais caracterísƟcas como metodologia. Nesse senƟdo, a sua estrutura foi criada e recriada várias vezes de acordo com os acontecimentos. E dessa forma possibilitou que o trabalho fluísse de uma forma mais livre, procurando formas de pensar as discussões propostas Assim, ele se configura como um ‘diário’ e não possui um final estabelecido, trata-se de um começar a pensar.

“Não sirvo pra observar. Verso, persevero e conservo um susto de quem se perde no exato lugar onde está.” (LEMINSKI, 1987, s.p)

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METODOLOGIA O trabalho tem como disposiƟvo1 o processo, o percurso metodológico foi criado e recriado várias vezes na ordem dos acontecimentos2, experiências na cidade e referências bibliográficas. Assim, o mais importante é o caminho traçado e não o final em si, e se disƟngue bastante das pesquisas tradicionais que uma etapa inicia depois que terminada a anterior. De acordo com Regina: “O desafio é o de realizar uma reversão no senƟdo tradicional de método - não mais um caminhar para alcançar metas pré-fixadas (metá-hódos), mas o primado do caminhar que traça, no percurso, suas metas. A reversão, então, afirma um hódos-metá.” (BARROS e PASSOS, 2009, p.17) Nesse senƟdo o processo metodológico se apóia em quatros pistas principais que acontecem simultaneamente no percurso do trabalho, são estes: poros, olhares, rastros e relatos.

Poros “O rebanho é os meus pensamentos. E os meus pensamentos são todos sensações. Penso com os olhos e com os ouvidos.

E com as mãos e os pés. E com o nariz e a boca.” (CAEIRO, 2008, p.34) Os poros representam o contato, o toque, as frestas do corpo que nos permitem senƟr, ouvir, olhar, absorver o espaço. Temos receptores espalhados pelo corpo todo, e através desses receptores somos tocados por algo no qual dirigimos nossa atenção. “Não é o movimento que explica a sensação mas, ao contrário, é a elasƟcidade da sensação que explica o movimento.” (Deleuze, 1981, p.30) Assim o toque é senƟdo como uma rápida sensação, e é essa que aciona o processo de seleção. Virgínia diz que seria como uma antena parabólica, que explora o terreno, com movimentos aleatórios de passa e repasse, até que através de uma aƟtude recepƟva, somos tocados por algo. (KASTRUP, 2009, p.42) O toque pode ter diferentes graus de intensidades e múlƟplas entradas e assim, assegura a imprevisibilidade como parte do processo de produção. Dessa forma, a atenção é um ponto importante. Essa não deve ser de simples seleção de informação, mas sim flutuante e aberta, que não deve ser inibida pela atenção seleƟva que fixa um ponto e negligencia os outros. Com a atenção aberta nos permiƟmos tocar e seguimos para o pouso.

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“O pouso não deve ser entendido como uma parada do movimento, mas como uma parada no movimento. Vôos e pousos conferem um ritmo ao pensamento, e a atenção desempenha aí um papel essencial.” (KASTRUP, 2009, p.42) Na cidade existem inúmeros elementos salientes, mas a idéia principal não é prestar atenção em tudo, mas sim redirecionar, tatear o que nos afeta e que muitas vezes não nos fazem senƟdo imediato. De acordo com Virgínia: “O gesto de pouso indica que a percepção, seja ela visual, audiƟva ou outra, realiza uma parada e o campo se fecha, numa espécie de zoom. Um novo território se forma, o campo de observação se reconfigura. A atenção muda de escala.” (KASTRUP, 2009, p.43) O zoom não deve ser confundido com focalização. E em cada movimento na dinâmica atencional, todo o território de observação se reconfigura. Quando nos tocamos a pergunta que deve ser feita é se vamos ver ´o que está acontecendo` em vez de ´o que é isso`. Já que a idéia é acompanhar processos e não representar objetos. Podemos experimentar a cidade de várias formas. Se fecharmos os olhos, podemos percebê-la como música, numa combinação de sons que se repetem, se destacam, desaparecem e aparecem mais alto, alternando graves e agudos. Podemos ainda senƟ-la através das texturas, como se essa fosse uma superİcie/pele que dobra, desdobra, se esƟca, apresentando inúmeras texturas que se 16

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costuram, assim como uma colcha de retalhos. A cidade também tem seus poros, sua frestas que nos permite movimentar nela, e assim nos absorve, nos imerge, e aos poucos vai se revelando. Para tanto é necessário se permiƟr tocar, se misturar, se diluir. No percurso desse trabalho, busquei por experimentar o Centro de Vitória de diversas formas, me mudei por algumas semanas para ter a sensação do que é acordar e dormir nesse bairro com tantos ritmos diferentes. Busquei senƟ-lo através de outros movimentos e olhares, tais como a bicicleta, a catraia, o barco. Busquei nele a madrugada dos bares, o samba nas escadas, becos, botecos e até os protestos que tomavam a rua. E foram essas experiências que foram dando rumo ao trabalho, alterando idéias estabelecidas, criando outros caminhos, outras dobras. Poderia ficar por muito mais tempo nesse processo, criando outras várias experimentações, já que a cidade se abre num leque infinito de possibilidades. E deixar o corpo ir, é ir cada vez mais, e se tornar mais parte. 1- “Um dispositivo pode ser um sistema, um mecanismo, uma estratégia, uma lógica operativa ou organizacional (infra-estrutural). Não se refere a estruturas vinculantes, mas a processos relacionais, que podem mesmo negar a formalidade do sistema. Um dispositivo é um veículo de processar informações e situações, é simultaneamente “resposta global e local”, que pode ser apresentado por um “mapa de movimentos ou diagramas” (Manuel Gausa, 2001. s.p). 2 Segundo Ericson: O acontecimento é um feixe de afetos que se produz no/como instante, atualizando-se em sua intensidade. O acontecimento pode ter linhas de força


que produzam sentido histórico, mas ele não se reduz à causalidade imposta por essas composições. (PIRES, 2007, p.16)

Olhares “Os habitantes raramente são vistos em terra: têm todo o necessário lá em cima e preferem não descer. (...) Há três hipóteses a respeito dos habitantes de Bauci: que odeiam a terra; que a respeitam a ponto de evitar qualquer contato; que a amam da forma que era antes de exisƟrem e com binóculos e telescópios apontados para baixo não se cansam de examiná-la, folha por folha, pedra por pedra, formiga por formiga, contemplando fascinados a própria ausência.” (CALVINO, 1990, p.46) Trata-se de olhar de outro jeito, pegar emprestados outros olhos, ver determinadas situações com determinados conceitos, criar conceitos, ver a cidade de infinitas formas. Nesse senƟdo Iazana nos coloca a idéia de lente: “Cada lente faz ver uma forma. Recorta, amplia, foca. Podemos, por exemplo, ver azul, amarela, vermelha, a mesma cena. Cada cor provoca uma sensação, uma distorção no que vemos.

As cores, aqui, exemplificam as inúmeras maneiras possíveis de olhar um momento. Não só são inúmeras lentes simultâneas em uma cidade, como são também mutáveis(...) As lentes não são fixas, uma interfere na outra. Elas se encontram e provocam interferências nas suas cores. Sobrepostas já não são mais as mesmas lentes. Tampouco são a soma das lentes anteriores ao encontro; elas são uma outra composição e espalham pelo mundo a cor transmutada”. (GUIZZO, 1998, p.28) Instrumentos como máquinas fotográficas, câmera filmadoras, fotos de satélite, óculos, são formas de se ver diferente. São instrumentos que permitem trocar, emprestar, vender, misturar olhares. Pegar emprestado olhares é mudar a forma de ver o mundo, de ver a cidade. As referências bibliográficas através dos conceitos dos seus autores também são formas de olhares, os usamos como ferramenta de ver e pensar determinados espaços. Ajudam a nos direcionar na cidade e buscamos discuƟ-la através desses olhares. Iazana menciona o fato de que a arquitetura passou a ver a cidade através de lentes técnicas como mapas, dados, estáƟcas. E sugere inverter para ver a cidade através das

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lentes afeƟvas. (GUIZZO, 1998, p.29) Olhares afeƟvos nos permitem ver o que olhares técnicos, com suas ruas e lotes não conseguem, tais como músicas, texturas, cheiros, e que são em alguns momentos, elementos urbanos mais importantes do que a praça e a calçada. Mas será que não cabe tentar misturar os olhares? Nesse trabalho, a questão não é escolher nenhum em detrimento de outro, trata-se de combinar, pegar emprestados os olhares técnicos dos mapas, os olhares de outras pessoas, aqueles por detrás da câmera, os de outros autores, misturar com os olhares afeƟvos, sobrepor, recortar, brincar com as possibilidades de olhares que podemos alcançar.

Rastros “Às vezes, basta-me uma parơcula que se abre no meio de uma passagem incongruente, um aflorar de luzes na neblina, o diálogo de dois passantes que se encontram no vai-vém, para pensar que parƟndo dali construirei pedaço por pedaço a cidade perfeita, feita de fragmentos misturados com o resto, de instantes separados por intervalos, de sinais que alguém envia e não sabe quem capta (...)” (CALVINO, 1990, p.) A experiência urbana deixa rastros, até mesmo o andar na cidade resulta numa

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intervenção, já que a cada passo a cidade muda e passa a ser outra, e assim deixamos marcas e afetamos outros corpos. Eduardo Passos diz que toda pesquisa é uma intervenção: “Pois a intervenção sempre se realiza por um mergulho na experiência que agencia sujeito e objeto, teoria e práƟca, num mesmo plano de produção ou de coemergência - o que podemos designar como plano da experiência”. (PASSOS e BARROS, 2009, p.17) A ordem se inverte, no lugar de conhecermos um lugar para intervir, o transformamos com a pesquisa e vamos o conhecendo. O que difere bastante das metodologias de intervenção do campo da arquitetura que muitas vezes, começa com uma “coleta de dados” e análise do local para depois pensar na intervenção de acordo com o método pré-estabelecido. Segundo Eduardo: “O ponto de apoio é a experiência entendida como um saber-fazer, isto é, um saber que vem que emerge do fazer. Tal primado da experiência direciona o trabalho da pesquisa do saber-fazer, do saber na experiência à experiência do saber. Eis aí o ‘caminho’ metodológico.” (PASSOS e BARROS, 2009, p.18) As experiências nos afetam através dos senƟdos, e ela se torna expressiva a parƟr do momento em que se consƟtui como uma vivência, uma forma de ver a cidade estando imersa nela, ou seja, é impossível experienciar


sem que a presença interfira no contexto. Sendo assim, em relação às pesquisas realizadas como métodos tradicionais, na pesquisa-intervenção existem mais possibilidades de diferenciação de uma pesquisa para outra, já que a experiência é singular e proporciona conhecimentos diferentes. Acompanhar processos e estar junto com eles. “Conhecer é, portanto, fazer, criar uma realidade de si e do mundo, o que tem conseqüências políƟcas. (...) nesse senƟdo, conhecer a realidade é acompanhar seu processo de consƟtuição, o que não pode se realizar sem uma imersão no plano da experiência. Conhecer o caminho de consƟtuição de um objeto equivale a caminhar com esse objeto, consƟtuir esse próprio caminho, consƟtuir-se no caminho. Esse é o caminho da pesquisaintervenção.” (PASSOS e BARROS, 2009, p.31)

IMAGEM 0.1. Poema Paulo Leminski.

Relato Trata-se de registrar as experiências vividas por meio de diário escrito, vídeos e fotos. É importante que se registre não só o que é pesquisado, mas o processo como um todo e que além de informações objeƟvas, registre-se impressões que emergem do contato. Ou seja: “Esses relatos não se baseiam em opiniões, interpretações ou análises objeƟvas, mas buscam, sobretudo, captar e descrever aquilo

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que se dá no plano intensivo das forças e dos afetos.” (BARROS & KASTRUP, 2009, p.70) De acordo com Certeau: “O relato é, em si, a teoria das práƟcas coƟdianas de que se trata. Porque consƟtui igualmente, uma práƟca coƟdiana. Ele é o único Ɵpo de texto que é, ao mesmo tempo, uma discussão das práƟcas coƟdianas e uma práƟca coƟdiana em si. Ele próprio consƟtui a teoria daquilo que faz, daquilo que conta. Assim podemos analisar a narraƟvidade como a teoria do possível, o discurso teórico das práƟcas coƟdianas.” (CERTEAU 1985, p. 18) Walter Benjamin (1936) fala de uma dificuldade de narrar, como uma dificuldade de trocar experiências, já que essas estão diminuindo no coƟdiano. Um outro fator que diminui o valor da narraƟva está na difusão da informação: “Nada está a serviço da narraƟva, está quase tudo a serviço da informação. Metade da arte da narraƟva está em evitar explicações. (...) Um episódio narrado aƟnge uma amplitude que não existe na informação.” (BENJAMIN, 1936, p.203) A informação só tem valor no momento em que é novidade, por isso precisa recorrer a muitas explicações, já a narraƟva, conserva as suas forças, e depois, com o tempo ainda é capaz de se desenvolver e causar diferentes reflexões. Para o autor, seria 20

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uma forma artesanal de comunicação, que precisa de um mergulho em si para que depois seja expresso. (BENJAMIN, 136, p.204 e 205) Dessa forma, o registro não tem a intenção de propriamente concluir ou apresentar os resultados finais do trabalho, mas sim os desdobramentos da pesquisa. Nesse senƟdo busca-se pensar a pesquisa-intervenção por meio de uma políƟca de narraƟvidade. “A políƟca se faz também em arranjos locais, por microrelações, indicando esta dimensão micropolíƟca das relações de poder. Nesse senƟdo podemos pensar a políƟca da narraƟvidade como uma posição que tomamos quando, em relação ao mundo e si mesmo, definimos uma forma de expressão do que se passa, do que acontece.” (BARROS & PASSOS, 2009, p.150)

IMAGEM 0.2: Sequência caminhar Praça Oito.


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PELE A pele é abismo da carne acuidade da alma poros do toque escultura do tempo tecido de absorver frasco que transborda É a cerca “entre” A conexão “para” A pele é o encontro numa sinergia mútua e constante

IMAGEM 0.3: Pele.

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Através da pele separamos o nosso corpo İsico do mundo, mas muito além de se configurar como fronteira, a pele se configura como conexão, interface do nosso corpo com o espaço. Trata-se da nossa primeira forma de comunicação, o mais extenso órgão de senƟdo do nosso corpo, além do primeiro sistema sensorial a tornar-se funcional através da epiderme, camada mais exposta ao ambiente, abriga o sistema táƟl. Juhani afirma que na evolução dos senƟdos o tato foi o primeiro a surgir e é a origem dos nossos olhos, ouvidos, nariz e boca. Nas suas palavras: “Todos os senƟdos, incluindo a visão, são extensões do tato; os senƟdos são especializações do tecido cutâneo, e todas as experiências sensoriais são variantes do tato, e portanto, relacionados à taƟlidade. Nosso contato com o mundo se dá na linha divisória de nossas idenƟdades pessoais, pelas partes especializantes de nossa membrana de revesƟmento.” (PALLASMAA, 2011, p.10) Dessa forma, a pele nesse trabalho se refere ao contato, à interação. E de perceber o Centro de Vitória na escala 1/1, com todos os senƟdos reunidos sobre essa interface do corpo. Segundo Paul Valery “O mais profundo é a pele.” A frase apresenta um paradoxo subvertendo o hábito de considerar a pele como superficial e desprezível. Nesse senƟdo Juhani diz que a cultura ocidental tem destacado a visão como 24

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principal senƟdo ao longo da história, assim como a filosofia grega baseavam as suas certezas nesse senƟdo. No período da renascença, se considerava que os cinco senƟdos formavam um sistema hierárquico no qual a visão está no topo, e o tato na base, e nessa fase com a invenção da representação em perspecƟva, os olhos se tornaram o ponto central do mundo. De acordo com Peter Eisemann: “A perspecƟva tornou-se então o meio pelo qual a visão antropocêntrica se cristalizou na arquitetura subseqente àquela mudança de paradigma1. Mas o sistema de projeção de Brunelleschi2 teve um efeito bem mais profundo que todas as mudanças esƟlísƟcas subseqüentes, pois validou a visão como discurso dominante na arquitetura desde o século XVI até o presente.” (EISEMANN, p.602) Para Juhani, a arquitetura muitas vezes falha, por causa dessa cultura que prevalece a visão, e que no lugar, deveria enfaƟzar uma experiência mulƟssensorial, em que todos os senƟdos, inclusive a visão, podem ser consideradas como extensões do senƟdo tato, como especializações da pele. “Espaço, matéria, e tempo se fundem em uma dimensão única, na substância da vida, que penetra em nossas consciências. IdenƟcamo-nos com esse espaço, esse lugar, esse momento, e essas dimensões se tornam ingredientes de nossa própria existência.” (PALLASMAA, 2011, p.68) Podemos pensar também, a própria cidade como uma pele, uma superİcie formada de fragmentos heterogêneos, como se


fossem retalhos e que cria e recria seus poros, intersơcios que permitem uma interação com o corpo. Para o autor Pierre Hundertasser3,além da epiderme o homem tem mais quatro peles, cada uma ligada a uma esfera do ser, são essas: o seu vestuário, a sua casa, o meio social (família e nação, e afinidades eleƟvas da amizade) e a úlƟma seria a planetária, ligada ao desƟno da biosfera, ao estado da crosta que nos protege e alimenta. A primeira pele, a epiderme, tratase da primeira esfera do ser. O arƟsta usava essa pele para fazer discurso nu contra uma arquitetura racionalista e por direito a terceira pele. Além de discuƟr a parƟcipação do homem ao ciclo orgânico da matéria. Já a segunda pele, o vestuário, ele quesƟona a uniformidade, a simetria na confecção e a Ɵrania da moda. Além de pensar o vestuário como passaporte social. Sendo assim, ele cria suas próprias roupas aproveitando a variedade de formas e cores e afirmando o direito à diversidade. Já a terceira pele, a casa, ele afirma o direito do morador de modificar a sua casa de acordo com a sua subjeƟvidade, se manifestando contra a uniformidade na arquitetura. “A arte pela arte é uma aberração, a arquitetura pela arquitetura é um crime.” (HUNDERTWASSER, 2003, P.43) Nesse senƟdo, ele propõe uma reestruturação na arquitetura com a realização de projetos singulares. Já a quarta pele, que se refere a esfera social, consiste na formação da idenƟdade, onde ele considera bastante

a família e a nação. Além do conjunto dos grupos associaƟvos que gerem a vida de uma coleƟvidade. Por úlƟmo, a ecologia, representa o cuidado com o meio global e os recursos do planeta. Ele sempre relacionava as cinco peles, usando a quinta na terceira, por exemplo, com bastante uso de vegetação nas edificações. Ou como através da segunda pele, refleƟr sobre a quarta. 1- A mudança de paradigma se refere à substituição da visão de mundo teocêntrica e teológica por uma visão+ antropomórfica e antropocêntrica. 2-Brunelleschi foi quem inventou a perspectiva linear, com um ponto de fuga. 3-Hundertwasser nasceu em Viena em 1928. Hoje é um dos artistas mais conhecido na Áustria, além de bastante polêmico. Sua carreira se consolidou no final dos anos sessenta, iniciada com uma estada em Paris onde, neste período, apresenta a sua produção numa série de exposições, discursos-manifestos e performances-happenings, fomentadas pelo seu empresário Joram Harel. IMAGEM 0.4: As cinco peles de Hundertwiasser.

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IMAGEM 0.5: superfície cidade IMAGEM 0.6: Superfície multidão

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COTIDIANO Existem teias invisíveis que suturam a cidade, seus habitantes, e as relações que acontecem entre as pessoas e dessas com o espaço. São linhas traçadas em cada percurso do dia a dia, no viver, trabalhar, morar, brincar. São teias construídas a parƟr do coƟdiano que formam e se formam na cidade. A palavra coƟdiano vem do laƟm quoƟdianus que significa de todos os dias. Mas diferente da palavra roƟna, trata-se de um dia-a-dia que é relacionado com o contexto. Totalmente vinculado ao espaço/tempo. Ou seja, é através do coƟdiano que uma pessoa se relaciona com o espaço, começa a fazer parte dele, se apropriar, o tecer, e costurar as suas relações. E dessa forma o tempo é fundamental. O coƟdiano de uma pessoa é resultado de sua história, suas caracterísƟcas pessoais, memória, afinidades, mas também se cria a parƟr do contexto, do que este impõe com as suas caracterísƟcas İsicas, sociais, políƟcas. Ou seja, se eu acordo às 9:00 da manhã, pego a linha de ônibus especifica que passa pela orla para que eu possa contemplar a paisagem no engarrafamento, se eu chego no ponto e até chegar no trabalho passo por uma escada que corta caminho. São aƟvidades que se criam junto ao meu contexto e que resultam no meu dia-a-dia. Mas obviamente todos os dias não são iguais, por mais que alguns coƟdianos sejam

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parecidos, cada dia tem suas peculariedades na relação com o espaço tempo. E se o contexto transforma o meu dia-a-dia, esse também vai deixar rastros na cidade, transformações suƟs, mas que junto com o demais habitantes, faz com a cidade acorde diferente a cada dia. O coƟdiano de uma cidade está repleto de casualidades, encontros, acontecimentos, forças que afetam. E é através desse que ocorrem as experiências urbanas. Esse trabalho se constrói nesse dia a dia, num estudo na escala 1/1 do Centro de Vitória, onde o coƟdiano costura todas as experiências e a estrutura do trabalho. A estrutura se divide em 3 etapas.: A primeira trata-se da escala 1/1, sobre a experiência urbana inserida nesse coƟdiano, sobre o Centro de Vitória e de algumas formas que ele foi experienciado e alguns elementos ressaltados, como as escadas e as texturas. Já a etapa 2, seriam questões relacionadas a subjeƟvidade e corpo, com algumas discussões sobre alguns habitantes do Centro que surgiram durante o trabalho. Tratase de um zoom na pessoa e nas suas histórias e procurar pensar a cidade através das questões que ela levanta. já a etapa 3, trata-se das costuras, de pensar o lugar e o espaço, e o entre, as frestas urbanas. E por fim trata de discuƟr a cidade como um conjunto de todas essas questões e


o arquiteto e urbanista nesse contexto, já que esses são mais uma força que atua de forma direta na cidade. O coƟdiano traça as costuras das relações e a base na qual o trabalho foi construído. E a pele surge no senƟdo de interface entre o corpo e o espaço. Importante ressaltar que a estrutura não está em ordem cronológica e não precisa estar necessariamente organizada dessa forma, não precisa ser fixa, essa seria uma das possibilidades.

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“Eu confronto a cidade com meu corpo; minhas pernas medem o comprimento da arcada e a largura da praça; meus olhos fixos inconscientemente projetam meu corpo na fachada da catedral, onde ele perambula sobre molduras e curvas, senƟndo o tamanho de recuos e projeções; meu peso encontra a massa da porta da catedral e minha mão agarra a maçaneta enquanto mergulho na escuridão do interior. Eu me experimento na cidade; a cidade existe por meio de minha experiência corporal. A cidade e meu corpo se complementam e se definem. Eu moro na cidade, e a cidade mora em mim.” (PALASMAA, 2011, p.38)

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Percorrem-se cidades. Percorrem-se becos, escadas, calçadas com um corpo que caminha a passos que medem o espaço com o tamanho das pernas, com o fôlego que resta, com braços que se prendem em sacolas ou então, que se alternam no andar. Percorre-se com um corpo que sua no calor de um sol quente, que se deixa tocar por ruídos, onde um se sobressai quando se chega perto e depois vai se perdendo de acordo com a velocidade dos passos. Percorre-se uma cidade com corpos que se olham, se esbarram, pedem licença, com corpos que se deixam marcar em outros corpos apenas com a presença. Percorrem-se cidades com um corpo que se permite senƟr cheiros, cheiros de fragmentos de cidade que se misturam e hora se destacam, hora desaparecem. Percorrese uma cidade com o movimento que seu corpo te permite, com a velocidade que ele consegue, quer ou precisa alcançar, com o que ele consegue, quer ou precisa registrar, guardar, pensar. Percorre-se uma cidade com um corpo que deseja forte, tem vontades, objeƟvo, que guarda uma história. Percorre-se uma cidade com memória presente num coƟdiano afoito. Percorrem-se cidades com um corpo. Percorrem-se corpos com cidades que se deixam marcar. Com lugares que te permiƟram criar, sonhar. Percorre-se um corpo com fragmentos, texturas cores de cidade que se sobressaem no olhar. Percorre-se um corpo com espaços grandes, desejos, infinitos. Percorre-se um corpo com paredes com quadros pendurados

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A EXPERIÊNCIA URBANA de histórias. Percorre-se um corpo com espaços que se abrem com percursos de possibilidades. Percorre-se um corpo com cidades que já foram de outros corpos. Percorrem-se corpos com cidade. Percorrer espaços urbanos e deixar que ele percorra o corpo faz parte da experiência urbana. No dicionário a palavra experiência significa: “Experimentar algo através dos senƟdos existentes no ser humano.” Assim, para experimentar é preciso se permiƟr, colocar o corpo em contato. De acordo com Olivier: “A experiência urbana se inscreve em um lugar que tornam possíveis práƟcas, movimentos, ações, pensamentos, danças, cantos, sonhos.” (MONGIN, 2005, p. 33) Nesse caso, se a gente pensar a cidade como processo/produto dessas experiências, ela será sempre considerada como tecido de percursos corporais infinito: “O corpo dá uma forma à cidade, mas a forma de uma cidade está, antes de tudo, ligada ao percurso dos corpos individuais que se aventuraram no tudo, ligada ao percurso dos corpos individuais que se aventuraram no corpo da cidade (...) então há tantas poéƟcas da cidade quanto corpos que a percorrem e nela se aventuram. E, em todos os casos, a escrita corporal percorre cidades que se apresentam, ela próprias, como

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livros.” (MONGIN, 2005, p. 46) Mongin procura pensar a cidade como palco da experiência entre o individual e o coleƟvo, já que de certa forma, ela os entrelaça e possibilita que o corpo individual saia de si próprio para se aventurar/se expor perante a um corpo coleƟvo. “A experiência urbana é mulƟdimensional, ela desenvolve um processo poéƟco, um espaço cênico e um espaço políƟco; ela orquestra portanto, relações originais entre o privado e o público.” (MONGIN, 2005, p.39). Neste senƟdo, conƟnuando com Olivier: “A cidade é mesmo uma questão de corpo, desse corpo individual que sai de si próprio para se aventurar dentro de um corpo coleƟvo e mental onde se expõe a outros: a história de corpos que criam um espaço comum sem por isso buscar a fusão, a história de um mundo políƟco que acompanha as genealogias da democracia. Pensar em termos de um Ɵpo-ideal não equivale, portanto, a privilegiar uma ou outra das linguagens evocadas, mas a pensar a cidade como esse espaço que torna possível uma experiência urbana que dá lugar à relações específicas que não se encontram em todos os lugares.” (MONGIN, 2005, p.38) Já Certeau, por sua vez, diferentemente de Olivier, não disƟngue coleƟvo de individual, ele afirma que não existem práƟcas estritamente

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individuais e que não existe diferença cienơfica possível entre uma psicologia individual e uma coleƟva. O autor explica a experiência urbana por meio do conceito de práƟcas coƟdianas. Assim, temos que os lugares (privados ou públicos), ritos, lendas consistem, além de uma síntese, numa forma de vocabulário, e a questão das práƟcas se torna, entender quais usos as pessoas fazem desse vocabulário e, da mesma forma, de como nos servimos dos sistemas de representação. Nos termos do autor: “Tendo um certo Ɵpo de alimento, um certo Ɵpo de alojamento, tornase preciso saber como uƟlizá-lo, se virar com ele. Eis uma questão que diz respeito à práƟca. E o problema se torna analisar, ou poder analisar, as práƟcas coƟdianas enquanto uma lógica de práƟcas, como uma rede de operações cuja formalização pode ser analisada.” (CERTEAU, 1985, p.45) A maioria dessas práƟcas são consideradas furƟvidades, onde tentamos Ɵrar vantagem através de práƟcas muito suƟs de um espaço que não somos proprietários, como a rua, um ediİcio, etc. ConƟnuando com Certeau, ele diria que além disso, essas práƟcas coƟdianas são, no fundo, antropofágicas. “Mas trata-se de uma antropofagia não ritualizada, não visível, e que obriga a que se perceba que o essencial não é aquilo que o praƟcante come, atravessa ou vê, mas sim o que ele faz daquilo que


com a ordem ou com a lei dos fatos. É o abrir de um espaço. Um espaço que não é fundado sobre a realidade existente, mas sobre uma vontade de criar alguma coisa. Assim, na mulƟplicidade dessas práƟcas coƟdianas, dessas práƟcas transformadoras da ordem imposta há constantemente um elemento éƟco. Isto é uma vontade histórica de exisƟr o que também deve ser restaurado como realidade histórica das práƟcas coƟdianas.” (CERTEAU, 1985, p. 7)

O autor discute três elementos principais referentes a essas práƟcas coƟdianas, a saber: um caráter estéƟco, um caráter éƟco e um caráter polêmico: Um caráter estéƟco já que se trata de uma arte do fazer1, que está na maneira que se uƟliza a rua, a praça etc. Trata-se de um esƟlo que significa o de por em práƟca uma ordem e um sistema lingüísƟco que são impostos a todos. Por exemplo, uma dona de casa dentro de um supermercado, vai arƟcular uma mulƟplicidade de elementos em um instante - o da ocasião nessa questão que encontra o caráter estéƟco, está em lidar com mil fatores de acordo com o seu esƟlo, fazendo disso uma arte. (CERTEAU, 1985, P.6) Já o caráter éƟco se refere à maneira como as práƟcas coƟdianas se apresentam, ou seja: como uma maneira da pessoa se recusar a se relacionar com a ordem que lhe é imposta: “O éƟco recusa a idenƟficação

O caráter polêmico se refere às práƟcas coƟdianas como uma intervenção em um conflito permanente, numa relação de forças, onde quanto mais fraco, é necessário ser mais inteligente. As práƟcas são maneiras de lutar contra o maior, o contornar para o uƟlizar, seria nos termos de Certeau: “Uma arte de pessoas fracas tendo em vista reencontrar, através da uƟlização da forças existentes, um meio de se defender ante uma posição mais forte.” (CERTEAU, 1985, p. 8) As práƟcas coƟdianas também podem ser discuƟdas através do conceito de enunciação, já que do mesmo jeito que falar efeƟva a língua, o espaço de um apartamento, por exemplo, só é real no ato de habitar. E nesse senƟdo Certeau compara o conceito de espaço a lingua, ao falar, já que o espaço consiste num processo/resultado de práƟcas. (melhor tratado no bloco 3) “Aquilo que é essencial é exatamente o uso que fazemos das palavras “bom dia” e não

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come, vê ou atravessa. Ou seja, a questão essencial é aquilo que ele fabrica com a imagem de TV, com os utensílios eletrodomésƟcos, com a rua que cruza, etc. Deste ponto de vista a questão das práƟcas coƟdianas é uma valorização, é uma tentaƟva de interpretação dessa antropofagia praƟcada pelo consumidor que no próprio ato do consumo uƟliza para fins próprios uma norma que lhe é objeƟvamente imposta.” (CERTEAU 1985, p. 6)

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o seu senƟdo literal.” (CERTEAU, 1985, p.13) Além disso, há a questão de como o locutor se apropria da língua, ou como a pessoa se apropria do espaço, ou seja, pelo ato de andar, dormir, etc. “O ato de falar consƟtui um contrato relacional. ConsƟtui um eu e você (...) Da mesma forma as práƟcas coƟdianas podem ser focalizadas como contratuais, como convencionais, isto é, como tratamento de uma rede de relações, como manipulação de relações.” (CERTEAU, 1985, p.15) Um outro modelo para definir práƟcas coƟdianas seria a diferenciação entre estratégias e táƟcas, ou seja, estratégias estariam sempre ligadas ao “próprio”, a “uma vitória do lugar sobre o tempo”. Seriam como um lugar do poder e do querer. Assim: “Permite capitalizar vantagens conquistadas, preparar expansões futuras e obter assim para si uma independência em relação à variabilidade das circunstâncias. É um domínio do tempo pela fundação de um lugar autônomo.” (CERTEAU, 2004, p.99) transformam incertezas da história em espaços legíveis. Já a táƟca se define como a ausência de um próprio, não tem um lugar senão o do outro. Trata-se de movimento. “Ela opera golpe por golpe, lance por lance. Aproveita as “ocasiões” e delas depende, sem base para estocar beneİcios, aumentar a propriedade e prever saídas. 0 que ela ganha não se conserva.” Aproveita possibilidades oferecidas por um

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instante, cria surpresas, e pela astúcia consegue estar onde ninguém espera. “Em suma, a táƟca é a arte do fraco.” (CERTEAU, 2004, p.101) “As táƟcas são procedimentos que valem pela perƟnência que dão ao tempo - as circunstâncias que o instante preciso de uma intervenção transforma em situação favorável, a rapidez de movimentos que mudam a organização do espaço, as relações entre momentos sucessivos de um “golpe”, aos cruzamentos possíveis de durações e ritmos heterogêneos etc. Sob este aspecto, a diferença entre umas e outras remete a duas opções históricas em matéria de ação e segurança (opções que respondem, aliás, mais a coerções que a possibilidades): as estratégias apontam para a resistência que o estabelecimento de um lugar oferece ao gasto do tempo; as táƟcas apontam para uma hábil uƟlização do tempo, das ocasiões que apresenta e também dos jogos que introduz nas fundações de um poder.” (CERTEAU, 2004, p. 102) As práƟcas urbanas são, em sua maioria, táƟcas, em que prevalece o tempo e não o próprio, a posição. Um exemplo seriam as manifestações contra o aumento da passagem que aconteceram recentemente em Vitória. Num episódio, a estratégia - representada pela


posição do governador, e pela polícia -, abriu uma brecha e, a parƟr dessa ocasião, a manifestação de estudantes conseguiu ocupar um evento nacional, que acarretou no cancelamento deste. Os estudantes, por sua vez, representando a táƟca, agem por meio da astúcia e do tempo, sem um “próprio” definido. Nota: 1: Arte do fazer porque se traduz num ato e não num discurso. IMAGEM 1.1: Catraieiros na baía.


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AS EXPERIÊNCIAS E A VELOCIDADE Em relação a esse contato do corpo, do toque, que gera a experiência nas cidades, fala-se muito que está se perdendo, e que por uma questão de velocidade e de disposiƟvos tecnológicos e a cidade se torna um simples trajeto entre um ponto e outro. De acordo com Benjamin (1993): “Aqui se revela, com toda clareza, que nossa pobreza de experiências é apenas uma parte da grande pobreza que recebeu novamente um rosto, níƟdo e preciso como o do mendigo medieval. Pois qual o valor de todo o nosso patrimônio cultural, se a experiência não mais o vincula a nós?” (BENJAMIN, 1986, p.1) Sabe-se que essa pobreza de experiências no período contemporâneo adquire novos fatores, e que muito se vincula a um sistema capitalista que contribuem com cidades cada vez mais fragmentadas. Atualmente constroem-se muros como sinônimo de segurança, as pessoas se isolam em condomínios fechados com o que consideram seus “iguais”. E a cidade passa a ser um “entre”. Um “entre” o muro do condomínio e o trabalho, um “entre” o muro da escola e o shopping. Um entre - distância que vai ser vencido com a velocidade do automóvel, onde neste se cria uma “bolha” de vidros fechados, de ar condicionado, de música. Bolha esta que afasta o corpo de experienciar a cidade com

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os senƟdos. Richard menciona o fato de que o espaço urbano tornou-se um mero lugar de passagem, um simples corredor, perdendo seus atraƟvos, já que o motorista só deseja atravessálo e medido pela facilidade de ser atravessado. Em seus termos: “A condição İsica do corpo em deslocamento reforça a desconexão do espaço.” (SENNET, 2001, p.3) Benjamin enfaƟza a questão da velocidade e menciona o fato de que isso proporciona experiências em excesso e que pela velocidade que uma experiência sobrepõe a outras, não dá tempo que elas sejam absorvidas e digeridas. Considerando que esse texto foi escrito em 1933, hoje essa questão ainda é pior, com excesso de informações advindas do Facebook, TwiƩer e etc. Nos termos de Benjamin: “Não se deve imaginar que os homens aspirem a novas experiências. Não, eles aspiram a libertar-se de toda experiência, aspiram a um mundo em que possam ostentar tão pura e tão claramente sua pobreza externa e interna, que algo de decente possa resultar disso. Nem sempre eles são ignorantes ou inexperientes. Muitas vezes, podemos afirmar o oposto: eles “devoraram” tudo, a “cultura” e os “homens”, e ficaram saciados e exaustos.” (BENJAMIN, 1986, p.3)


modal. Em algum momento a velocidade do automóvel na cidade pode permiƟr um “toque”, no senƟdo de se deixar tocar por uma paisagem, por um ambiente. A música do rádio pode vir como trilha sonora no senƟdo de esƟmular um senƟr a cidade passando rápido, mas se trata de outra perspecƟva, de um motorista que além de passar pela cidade, sente-a mesmo que através do contato visual, e de uma carona que observa e sente a cidade se movendo na janela entre o tempo que agora é mais veloz. Talvez a questão seja não negar um Ɵpo de velocidade, modal ou de experiência. E sim potencializar a combinação de vários Ɵpos de velocidades e formas de se inserir na cidade.

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A velocidade de informação permite um excesso de experiências superficiais, mas talvez a questão seja saber lidar com isso, e que talvez com o tempo as pessoas se adaptem criando seleções em relação a essas informações. Sobre a grande adesão de automóveis na sociedade, a velocidade que ele permite, e ao “isolamento” que ele proporciona através do micro clima gerado com ar condicionado, a sua música interna, e a sua forma que reƟra a “pele” do mundo, não podemos dizer que esse modal é totalmente de caráter negaƟvo e que sempre anula as experiências urbanas. A forma paradigmáƟca que ele é tratado na sociedade contemporânea, em que as cidades são projetadas em função deste, que se configura como um problema. Atualmente optar por não ter um automóvel se trata de uma exceção, de um não se enquadrar num sistema e muitas vezes essa opção é vista com estranheza. Para viver na cidade, a impressão é que torna obrigatório que se tenha ou que se aspire a essa

IMAGEM 1.2: Orla Centro de Vitória

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FORMAS DE EXPERIENCIAR “A cidade de quem passa sem entrar é uma; é outra para quem é aprisionado e não sai mais dali; uma é a cidade à qual se chega pela primeira vez, outra é a que se abandona para nunca mais retornar; cada uma merece um nome diferente; talvez eu já tenha falado de Irene sob outros nomes; talvez eu só tenha falado de Irene.” (CALVINO, 1990, p.73) Numa cidade existem inúmeros pontos de vista e formas de se experienciar o urbano, e estas variam de acordo com a velocidade, com disposiƟvos mecânicos, com a altura do corpo em relação ao nível do chão, com a estrutura urbana, e mil outros fatores. Pensaremos em algumas formas, dentro de inúmeras que permitem percepções diferentes do espaço e da cidade.

O voyeur De cima de um prédio ou de um mirante, o corpo já não está ‘embrenhado’ pela cidade, como ao nível do chão. Sob esse ponto de vista a cidade se apresenta como um filme, uma imagem a ser lida e assim passamos para uma posição de espectador. Nas palavras de Certeau: “O corpo não está mais enlaçado pelas ruas que o fazem rodar e girar segundo uma lei anônima:

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nem possuído, jogador ou jogado, pelo rumor de tantas diferenças e pelo nervosismo do tráfego nova iorquino. Aquele que sobe até lá no alto foge à massa que carrega e tritura em si mesma toda idenƟdade de autores ou de espectadores.” (CERTEAU, 2004, p.170) É como se a pessoa se tornasse um Voyeur, e o mundo que o envolvia, a parƟr do momento em que se eleva, se abre diante de si como um texto a ser lido. Olivier Mongin diz que esse ponto de vista é uma única forma de se ter noção da cidade como corpo global, já que para esse fim, torna-se necessário sair, descentrar-se radicalmente, exƟrpar-se corporalmente dela. Sendo assim o pedestre cujo ponto de vista é bem pouco acima do solo não consegue ter essa noção global. (MONGIN, 2005, p.63) Nesse senƟdo, podemos considerar que a experiência voyeur é uma da formas de se ter noção global da cidade, mas não podemos considerá-la como a única. Como Mongin, corpos ‘embrenhados’ no urbano podem ter essa noção através de um conhecimento prévio sem precisar se elevar em relação ao solo. Do mesmo jeito que atualmente tecnologias de GPS, mapas, Google Earth permitem essa noção, sem a elevação İsica, apesar de que também são formas de se ver a cidade do alto, mesmo que indiretamente.


Passos De passo em passo a cidade se apresenta para o corpo a parƟr de um percurso. Com os pés no chão se experiencia o espaço num ritmo lento, paciente, onde se consegue senƟr o relevo, as irregularidades da superİcie, a temperatura que vai aumentando de acordo com o ritmo. Através dos passos permite-se expor o corpo em contato intenso, deixando/absorvendo cidade, seus intersơcios, suas texturas e suas minúcias. Nas palavras de Certeau: “Os jogos dos passos moldam os espaços. Tecem os lugares. Sob esse ponto de vista, as motricidades dos pedestres formam um desses sistemas reais cuja existência faz efeƟvamente a cidade, mas não tem nenhum receptáculo İsico. Elas não se localizam, mas são elas que espacializam. (...) O ato de caminhar está para o sistema urbano como a enunciação está para a língua.” (CERTEAU, p.177)

Com os passos marcam-se lugares através de rastros, e através desses mesmos passos nos permiƟmos deixar marcar pela experiência, e pelo inesperado. Segundo Olivier: “Se a práƟca da caminhada é uma experiência banal, uma experiência ordinária que é o feito do homem ordinário, ela experimenta, entretanto, o inesperado, a indeterminação e o insólito. O ordinário não é o inverso do extraordinário, mas a oportunidade, pela simples razão de fazer sair de casa e de si, de se confrontar com o inesperado cujas figuras principais são a da sedução corporal e a do ignoto.” (MONGIN, 2005, p.64)

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De qualquer forma a experiência voyeur não pode ser ignorada ou considerada como uma forma negaƟva de se relacionar com o urbano. No centro de Vitória temos um exemplo posiƟvo sobre isso: trata-se de um garçom de um dos bares da Rua 7, que todos os dias de madrugada, leva o cachorro para passear no mirante de Santa Clara, na ocasião quando ele descreveu o fato, disse que se sente dono da cidade assim, que faz parte dela observando o emaranhado de luzes acessas lá embaixo.

Passos foi à principal forma de experienciar a cidade, sobretudo o Centro de Vitória, no percurso desse projeto. Dessa forma, foi possível senƟr as texturas, descobrir intersơcios, conhecer pessoas que habitam aquele lugar. Fazer parte dele, o conhecer e se conhecer melhor. ConƟnuando com Olivier: “Os jogos de passos não são fabricações de espaços. Eles urdem os lugares. Se a cidade é um lugar composto de ritmos inventados por corpos caminhantes, se a arte corporal de ser um pedestre faz eco ao trabalho da escrita, a dimensão corporal igualmente fornece matéria à arquitetura para a qual ela é a instância de uma

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“Ɵpologia matreira”. “O espaço é um prolongamento do corpo”, afirma Henri Gaudin, “As coisas estão em círculo ao nosso redor. Não é, portanto, uma questão de frontalidade. A arquitetura não pode se colocar assim, como qualquer coisa que se volta para si. Ela não pode ser uma imagem, porque é da ordem do corporal, do percurso. A cidade do transeunte, aquela onde transita, traduz um desejo de exteriorização que se exprime por uma libertação, uma saída de si, uma saída de casa.” (MONGIN, 2005, p.63)

A bicicleta Com a bicicleta consegue-se alcançar uma velocidade maior do que a caminhada, e com isso maiores distâncias percorridas, onde no percurso sente-se intensamente o lugar, o vento como aliado ou obstáculo, o relevo, as irregularidades do chão, as texturas do piso. Depois de seis anos morando em Vitória, trouxe a minha bicicleta, e a minha percepção de Vitória mudou completamente. Na primeira vez que andei, fui de Jardim da Penha ao Centro de Vitória de madrugada, e nunca me senƟ tão parte da cidade como esse dia. A noção geral sobre cidade é aguçada, e assim passamos a conhecer melhor os fluxos das vias, as melhores paisagens, sombras e cantos da cidade que a bicicleta te permite explorar. O arƟsta Nakao falou dessa experiência no 5° Seminário Do Museu da Vale:

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“Creio que andar de bike é uma forma de manter uma conexão humana com a cidade, de ser turista do lugar em que você mora. Se todos renunciarem a esse direito, andar de bike em sua própria cidade, a humanidade urbana embrutece. Andar de bike é senƟr o vento que a cidade sopra, é estar conectado com o entorno, com o outro, é compreender a dimensão irrestrita de cidadania, de casa. Nossa casa é além portas, muros, grades, é a nossa cidade (...) Andar de bike e procurar os trajetos mais bonitos, não seguimos rotas predefinidas, descobrimos caminhos. O mesmo acontece quando fazemos com as mãos, respeitamos as vocações da matéria e descobrimos novas formas de moldar a obra.” (NAKAO, 2011, p.151 e 153). Além dessas formas de experiências temos outras inúmeras, tais como o le parkour, o skate, a catraia, até mesmo ficar parado, como uma estátua viva, vendo a cidade passar ao redor, ou se sentar numa praça, parque ou um boteco. Ao longo do percurso desse trabalho serão mencionadas outras formas.

IMAGEM 1.3: Estátua viva e ao fundo escadaria Maria Ortiz.


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EXPERIÊNCIAS COMO CRÍTICA “Eu amo a rua. Esse senƟmento de natureza toda ínƟma não vos seria revelado por mim se não julgasse, e razões não Ɵvesse para julgar, que este amor assim absoluto e assim exagerado é parƟlhado por todos vós. Nós somos irmãos, nós nos senƟmos parecidos e iguais; nas cidades, nas aldeias, nos povoados, não porque soframos, com a dor e os desprazeres, a lei e a polícia, mas porque nos une, nivela e agremia o amor da rua. É este mesmo o senƟmento imperturbável e indissolúvel, o único que, como a própria vida, resiste às idades e às épocas. Tudo se transforma, tudo varia – o amor, o ódio, o egoísmo. Hoje é mais amargo o riso, mais dolorosa a ironia, Os séculos passam, deslizam, levando as coisas fúteis e os acontecimentos notáveis. Só persiste e fica, legado das gerações cada vez maior, o amor da rua.” (BARRETO, 1905, p.1) Texto de Barreto, conhecido como João do Rio, escrito por volta de 1905, que faz uma reflexão sobre a Rua num período de grandes transformações do Rio de Janeiro realizadas pelo engenheiro e prefeito Pereira Passos. Num contexto parecido, Baudelaire escrevia

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sobre Paris em 1855, numa época em que Haussmann cuidava do planejamento da cidade e a modificava completamente. Essas modificações bruscas são exemplos de cidades que foram planejadas num contexto onde o que importava era a modernização através de uma políƟca que Ɵnha como objeƟvo higienizar as cidades, reƟficar a malha urbana, abrir grandes avenidas e expulsar quem possuía baixa renda dos centros. Como críƟca a isso, de acordo com Paola Berenstein, existe um histórico de movimentos de experiências urbanas, através de uma práƟca que ela chama de errâncias e estas coincidem, com as três fases do urbanismo “dito” moderno. Nas palavras de Paola: “Os errantes modernos não perambulam mais pelos campos como os nômades, mas pela própria cidade grande, a metrópole moderna, e recusam o controle total dos planos urbanísƟcos modernos. Eles denunciam direta ou indiretamente os métodos de intervenção dos urbanistas, e defendem que as ações na cidade não podem se tornar um monopólio de especialistas.” (JACQUES, 2006, p.1) A primeira fase das errâncias se refere ao período das flanâncias, aconteceu entre metade e fim do século XIX até início do


Olivier explica que o flâneur se disƟngue do pedestre já que está sempre procurando um terceiro termo entre o privado e o público. Nas suas palavras: “O ritmo de caminhada inventa um equilíbrio instável com os outros corpos que povoam a cidade. Para Baudelaire, a deambulação na cidade é inseparável do modo de relação que ela torna ou não possível. Quando não há ninguém, é preciso ser vários; quando há muita gente, é preciso estar só, mas em cada um dos casos há movimento, caminhada, flanância. É preciso não se enrolar sobre si mesmo nem se massificar na mulƟdão, donde o imperaƟvo urbano do

movimento. Colocação em forma, colocação em cena e colocação em movimento se cruzam e se reforçam mutuamente.” (MONGIN, 2005; 68)

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século XX, e criƟcava exatamente a primeira modernização das cidades. Baudelaire com a figura flâneur representa bem essa fase. João do Rio menciona esse personagem no seu texto: “Essas qualidades nós as conhecemos vagamente. Para compreender a psicologia da rua não basta gozar-lhe as delícias como se goza o calor do sol e o lirismo do luar. É preciso ter espírito vagabundo, cheio de curiosidades malsãs e os nervos com um perpétuo desejo incompreensível, é preciso ser aquele que chamamos flâneur e praƟcar o mais interessante dos esportes – a arte de flanar.” (BARRETO, 1905, p.3)

Walter Benjamin também praƟcou a flânerie em Paris na mesma época que escreveu o texto sobre pobreza e experiência. A segunda fase das errâncias se refere às deambulações, entre 1910 e 1930, foram errâncias que fizeram parte das vanguardas modernas, mas que ao mesmo tempo criƟcou algumas de suas idéias urbanísƟcas do início dos CIAMs (Congressos Internacionais de Arquitetura Moderna). Segundo Paola: “Corresponderia às ações dos dadaístas e surrealistas, as excursões urbanas por lugares banais, as deambulações aleatórias organizadas por Aragon, Breton, Picabia e Tzara, entre vários outros, que desenvolveram a idéia de Hasard ObjecƟf, ou seja, da experiência İsica da errância no espaço real urbano, que foi a base dos manifestos surrealistas, do Nadja de Breton ou ainda do próprio Paysan de Paris de Aragon.” (JACQUES, 2006, P.2) Já o terceiro momento se refere ao das derivas (1950-60), que criƟcou tanto os pressupostos básicos dos CIAMs quanto sua vulgarização no pós-guerra. Consiste no pensamento urbano dos situacionistas, uma

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críƟca radical ao urbanismo, que também desenvolveu a noção de deriva urbana, da errância voluntária pelas ruas, relatadas principalmente nos textos e ações de Debord, Vaneiguem, Jorn e Constant. Sobre a deriva, esta era uma técnica urbana para tentar desenvolver na práƟca a idéia de construção de situações através da psicogeografia. Seria como uma apropriação do espaço urbano pelo pedestre através da ação do andar sem rumo. Todos movimentos aconteceram em Paris em momentos bem diferentes e foram registrados através da escrita. Após esses momentos as idéias de errâncias foram desenvolvidas também no meio arơsƟco. Como por exemplo, com o grupo neo-dadaísta Fluxus que começaram as experiências dos “happenings”, por volta de 1960 nos espaços públicos. Trata-se de performance, porém mais imprevisíveis e que envolve parƟcipação direta ou indireta do público. ConƟnuando com Paola: “Dentro do contexto da arte contemporânea, vários arƟstas trabalharam no espaço público de forma críƟca ou com um quesƟonamento teórico. O denominador comum entre esses arƟstas, e suas ações urbanas, seria o fato de que eles vêem a cidade como campo de invesƟgações arơsƟcas aberto a novas possibilidades sensíveis, e assim, possibilitam outras maneiras de se analisar e estudar o espaço urbano através de suas obras ou experiências.”

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(JACQUES, 2006, p.3) Através dessas errâncias podemos perceber que as maiores intervenções em cidades, parƟram de uma visão voyeur, que ignora outros Ɵpos de experiências urbanas, e os percursos e coƟdianos de quem habita a cidade de fato.

IMAGEM 1.4: Sequência transeuntes na Praça Oito.


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“Ah eu te amo. Vitória, cidade infame, como Baudelaire disse de Paris. Estende o pulso, enfiando a gilete até senƟr dor. O horizonte, ontem, sempre, amanhã. Então se abraçam. O vento sopra. É tão fácil adivinhar as coisas, é que eu havia bebido vinho. Tão simples viver, uma rua úmida, algumas flores. O cheiro de manacá espalha-se pela cidade. Quem suporta um dia inteiro de primavera. Nada haveria a ser dito. Então se abraçam. Nascera, fundamentalmente para caber no mundo. Este é o instante em que Vitória perde suas caracterísƟcas geográficas, as únicas que possui, e então se parece com qualquer cidade do mundo; em cada rua, em cada esquina, no rosto de seus habitantes, Vitória então se apresenta anônima. Ouve-se o coração do mundo. É para sempre. Longe, muito longe daqui, as estrelas por cima. O vento sul sopra, como se fosse maio, ou talvez fosse. Então se abraçam.” (ALMEIDA, 1988)

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O CENTRO DE VITÓRIA

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MulƟplicidade, gente, memória, situações, cores, formas, texturas, movimentos. São as primeiras palavras que vêem à cabeça quando se trata do Centro de Vitória. Com toda a sua diversidade espacial/cultural, o Centro permite intensas e variadas experiências urbanas, que permeiam esse local que é processo/resultado de tantas épocas e histórias sobrepostas. E assim, se apresenta como lugar de infinitas descobertas, intersơcios e possibilidades de acontecimentos. Trata-se de uma estrutura urbana complexa, incrustada a caracterísƟcas İsicas singulares, como o relevo bastante variado e a baía de Vitória. Tudo isso com grande significado simbólico, e uma carga de memória e história que vai muito além das funções básicas que uma cidade pode ter. O Centro se configurava por si só, como toda a cidade, possuindo todas as suas funções e dinâmicas. Com o tempo e novas áreas de expansão, se espalhou levando alguma de suas funções, se tornando o que chamamos de Centro de Vitória. Sendo assim, se enfraqueceu na dinâmica de Vitória que passou a privilegiar as novas áreas ditas “nobres” da cidade, tais como as regiões do novo arrabalde1, recebendo pouca atenção do setor público. Hoje se fala muito de uma revitalização do Centro, um termo inadequado, considerando que o Centro nunca deixou de ter vida, nunca deixou de pulsar de forma intensa, mesmo que hoje esteja degradado, com uma imagem de bairro perigoso e com edificações históricas bastante

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deterioradas pelo tempo e descaso. Em relação a sua localização, o Centro possui uma posição estratégica na circulação de pessoas e mercadorias tanto em nível local, como em nível interestadual e internacional. Situado próximo a BR 262 e 101, muitas vezes se configura como passagem entre o fluxo norte-sul. Sofre influências do porto com seu fluxo de mercadorias. Além de se situar próximo ao terminal ferroviário e da rodoviária do município. Em relação ao âmbito metropolitano, consƟtui-se como passagem do fluxo de automóveis entre os municípios da região, fato que afeta bastante o local com poluição sonora e do ar e deteriora ainda mais as edificações históricas das principais avenidas. Apesar das proximidades com a baía, não possui transporte aquaviário coleƟvo, o que se configura com um dos paradoxos da cidade, já que esse seria de fundamental importância para a cidade que privilegia o transporte terrestre em função de grandes empresas. No entanto, existe a linha aquáƟca que realiza o percurso Paul-Centro através de catraias, se configurando como uma resistência histórica da cidade. Por sua conformação natural entre o morro da fonte grande e a baía, suas principais conexões acontecem via maríƟma ou terrestre. Outra caracterísƟca importante do Centro seria o seu caráter histórico e cultural. O local possui grande parte do acervo patrimonial e equipamentos culturais de Vitória (86% dos imóveis de interesse de preservação do


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MAPA DE LOCALIZAÇÃO|CONEXÕES CENTRO DE VITÓRIA 1- Rodoviária 2- Estação Ferroviária 3- conexão com Vila Velha.Catraia 4- Porto: conexão internacional mercadorrias vias de caráter arterial metropolitano (classificação PMV) localização área de estudo

IMAGEM 1.5: Esquema localização e conexão.

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município mapeados até 2006)2. Entretanto existe um número considerável de edificações subuƟlizadas ou abandonadas, além de certa desproporcionalidade em relação ao seu entorno imediato mais recentemente construído, que muitas vezes compromete a ambiência local e altera por completo a implantação original dessas edificações. O fato de serem de interesse de preservação não garante a sua conservação. Em relação ao uso do solo, 60% dos imóveis possuem uso residencial e 21% uso comercial/serviços. Fato que se contrapõe a uma imagem da polução não residente que geralmente o associa ao comércio e serviço, porque esses predominam nas vias com caracterísƟcas de corredor de passagem. O local possui um percentual considerável de áreas públicas, onde nem todas são apropriadas pela população e de equipamentos culturais que se situam em avenidas com maior intensidade de fluxo, evidenciando um caráter metropolitano. A morfologia urbana é bastante irregular, nas áreas planas e de aterro os lotes são mais geométricos e as vias reƟlíneas com caráter de passagem, as edificações na sua maioria ocupam o lote inteiro, principalmente na Avenida Jerônimo Monteiro e entorno da Praça Costa Pereira. As inúmeras escadas fazem a ligação com a cidade alta, onde as edificações são mais espaçadas e o traçado mais irregular. O estudo de morfologia é importante aqui, já que esse interfere de forma direta nas vivências e apropriações do espaço. Quanto aos limites de bairros, na página tal segue um mapa com os traçados definidos pela prefeitura de Vitória. Esse trabalho não se

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prende aos limites insƟtucionais e se baseia em alguns pontos de parƟda do território, onde os acontecimentos traçariam os percursos, que se concentraram principalmente entre o Parque Moscoso e início da Avenida Jerônimo Monteiro. Notas: 1. Projeto de 1896 do Engenheiro Saturnino de Brito para ocupação da área mais ao norte de Vitória. 2. Todas as estatíticas foram retirados do planejamento urbano interativo do Centro, da Prefeitura Municipal de Vitória.


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DIAGRAMA DE CONEXÕES | RUPTURA CENTRO DE VITÓRIA

IMAGEM 1.6: Diagrama de conexões.

Conexões Rupturas espaciais barreira İsica (relevo) fronteira | conexão İsica (baía)

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IMAGEM 1.7: Sequência de layers. Morfologia urbana.

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5 MORFOLOGIA CENTRO DE VITÓRIA

IMAGEM 1.8: Sobreposição de layers.

1. Curva de nível. 5 e 25 m 2.Estrutura Viária 3.Quadras 4.Edificações 5.Sobreposição de layers

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LIMITE DE BAIRROS CENTRO E ENTORNO 1. Centro de Vit贸ria 2.Parque Moscoso 3.Vila Rubim 4.Santa Clara 5.Piedade 6.Fonte Grande

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IMAGEM 1.9: Limite institucional dos bairros.


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PONTOS DE PARTIDA IMAGEM 1.10: Pontos de partida.

1. Parque Moscoso 2.Praça Oito 3.Costa Pereira 4.Casa da Priscila

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BREVE HISTÓRICO

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Uma cidade cria sua forma sobre um conjunto de modificações realizadas no meio İsico natural para que esse ambiente se adeque às necessidades/vontades e interesses humanos dentro de um contexto histórico. E assim, a infra-estrutura dessa cidade vive em constante adaptação com meio natural e o humano numa constante transformação. Nesse senƟdo, em Vitória, as primeiras intervenções significaƟvas de urbanização do meio İsico, aconteceram após a chegada da companhia de Jesus em 1551, quando aconteceu a construção do Colégio São Thiago, sede administraƟva dos jesuítas no Espírito Santo. Nesse período a vila foi fundada, e a consƟtuição do centro Urbano da cidade alta, em torno do colégio. Em 1760 os jesuítas foram expulsos. A vila de Vitória se torna cidade em 1823, quando ainda era considerada uma vila inexpressiva e em 1860 consta com aproximadamente 5.000 habitantes, que moravam entre o porto dos Padres, atual Rua General Osório, e a capixaba. Quando o Brasil se torna república, parte da elite busca modernização para se inserir na economia nacional e mundial, fator que resultou na adoção de novas concepções, não somente econômicas, mas também socioculturais, e passaram a considerar a urbanização dentro dessa nova mentalidade capitalista. Isso resulta numa nova configuração do espaço İsico das vilas e cidades. Essas possuíam uma função específica dentro da dinâmica colocada pelo sistema capitalista, se caracterizava pela ligação

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entre as suas regiões produƟvas e o mercado internacional. O elo local/regional indicado para realizar a ligação foi o porto. Eram cidades portos que realizavam o fluxo de exportação/ importação em suas áreas de influência. Pelos portos regionais eram exportados os produtos agrícolas das fazendas da região e importadas as mercadorias européias para atender a demanda local. Dessa forma, segundo Leonor Araújo: “O processo urbano-modernizador de Vitória, considerando suas especificidades em relação ao Brasil e ao mundo, inicialmente não esta associado a industrialização, apesar dos esforços de diversificação de Jerônimo Monteiro. Este processo esteve diretamente ligado a formação de uma praça comercial, que convergisse para si, função de escoar a produção do café, não somente do estado, mas também da área centro-oeste e de Minas. A criação dessa praça comercial, norte dos projetos de Muniz Freire, dependia da sistemaƟzação de políƟcas urbanistas, e a agilização das demandas municipais, via centralização políƟco administraƟva. Tal demanda consubstanciou-se na criação do órgão gestor da modernização paisagísƟca da capital do estado, a prefeitura de Vitória, em 1908.


Sendo assim, Muniz Freire pretendia transformar o Espírito Santo, reelaborar a organização espacial e centralizar os empreendimentos na capital. Para tanto, previa a reestruturação da rede ferroviária, para ligar as regiões produtoras à capital e a (re)construção do porto na cidade de Vitória, com capacidade de compeƟr com os outros centros exportadores. Tentando transformar Vitória num grande centralizador de todo o comércio de exportação/importação do Estado – especialmente do café, que era o nosso principal produto na época. Com a intenção de conferir à Vitória um caráter moderno, foi realizado ainda no século XIX, o projeto de um Novo Arrabalde, desenvolvido pelo engenheiro sanitarista Saturnino de Brito, que quintuplicava a área urbana da época. Mas as crises financeiras relacionadas ao café inviabilizaram a urbanização imediata da área, e contribuíram para a retomada de invesƟmentos públicos, de menor porte, sobre o próprio núcleo urbano existente; Outro aterro importante foi o de Campinho, área do parque Moscoso, inaugurado 1896. Alguns anos depois, o Governo Jerônimo Monteiro foi marcado pela quanƟdade de obras que realizou em Vitória.

“As mudanças colocaram abaixo quase todo o casario colonial da cidade, deram nova feição e consƟtuição ao prédio do Palácio do Governo, transformaram ruas em avenidas, valas em ruas, e alagados em praças. A consƟtuição do Parque Moscoso foi o primeiro grande passo para inverter a posição das moradias, os ricos começaram a ocupar as baixadas, agora saneadas e aterradas, e os pobres subiram os morros, aonde não chegava a urbanização... Nas décadas seguintes, em conƟnuidade a esse processo, foi desenvolvida uma série de projetos urbanísƟcos, planos e obras públicas com a intenção de reƟficar, ampliar e alongar percursos, além de criar novos espaços públicos sobre o traçado colonial da cidade ou em seu prolongamento.” (ARAÚJO, 2006, p.)

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Em resumo, a políƟca urbanista capixaba centralizou suas ações na capital, tendo nos governos Moniz Freire, Jerônimo Monteiro e FlorenƟno Avidos, seus principais executores.” (ARAÚJO, 2006, s/p.)

Já no início dos anos 20, a principal realização em Vitória foi à abertura da Avenida Capixaba, que ligava a Av. Jerônimo Monteiro ao chafariz da Capixaba. Em 1926 foi aprovada a construção da ponte FlorenƟno Avidos que permaneceu durante 50 anos como a única ligação entre Vitória e o conƟnente pelo seu lado sul. O governo de FlorenƟno Ávidos foi o principal responsável pelas transformações urbanas neste período. Com obras tais como: Av. Capixaba e Rua Jerônimo Monteiro, que

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resultariam na Av. Jerônimo Monteiro, os prédios públicos construídos, as escadarias, ruas e o viaduto, que proporcionaram ligações mais adequadas e interessantes entre a parte alta e baixa da cidade, e a inauguração da Costa Pereira em 1928. Depois Punaro Bley, nos anos 1930 conƟnuou modernizando a cidade com novos equipamentos urbanos e melhorias na infra estrutura rodoviária e portuária. Na década de 40, destaca-se o prefeito Américo Poli Monjardim que remodelou a Praça 8 de setembro, inserindo o monumento do relógio. Nessa época o número de ediİcios aumenta e também a aƟvidade portuária com a conclusão das obras do porto. A vida cultural se intensifica com o funcionamento do Teatro Carlos Gomes, dos cinemas e das praças. No ano de 1951, a capital registra população fixa de 53.000 habitantes e população móvel de 81.422

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habitantes. O número de pessoas em circulação e uƟlização dos serviços da capital é quase o dobro de seus moradores. O aterro do novo arrabalde projetado pelo Engenheiro Saturnino de Brito, a convite de Muniz Freire, começa a ser implantado a parƟr dos anos 20 e 30. E começa a se tornar alvo de políƟcas públicas junto com outros locais até mesmo fora do município, como Vila Velha. Entretanto a verƟcalização se transforma num processo conơnuo dos anos 40, para frente. O aumento populacional, mas também a formação de uma classe média alavancada pela instalação de algumas empresas como: CVRD (Companhia Vale do Rio Doce) que demandam nova infra-estrutura urbanísƟca planejada. Nesse momento a Esplanada da Capixaba, aterro realizado nos anos 50, no governo do Jones Santos Neves, que foi um vazio urbano por cerca de 10 anos, torna-se então a concentração


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da verƟcalização durante seu desenvolvimento e expansão. Já da década de 70 em diante, os governos estaduais perderam o interesse na área central de Vitória. A valorização imobiliária, entre outros fatores, tais como: saturação do centro, engarrafamento, o plano diretor 1984 indicando áreas lucraƟvas (verƟcalizadas) provocada de outras áreas, principalmente da região conhecida como “Novo Arrabalde”, registra a falta de planejamento para o Centro num contexto de descentralização. O centro sofre um processo de deterioração. Recentemente passa a ter uma nova atenção do governo.

Obs: Texto baseado no documento Evolução Urbana do Planejamento Interativo do Centro, da Prefeitura Muncicipal de Vitória, escrito por Leonor Franco de Araújo em 2006.

IMAGEM 1.11: Av. Jerônimo Monteiro em 1940. IMAGEM 1.12: Mapa Centro em 1895. IMAGEM 1.13: Centro em 1930. IMAGEM 1.14: Centro em 1940.

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.1 | [esc. 1.1] IMAGEM 1.15: Vitória em 1955 IMAGEM 1.16: Escadaria Maria Ortiz em 1930 IMAGEM 1.17: Vista aérea em 1940 IMAGEM 1.18: Ponto catraia IMAGEM 1.19: Praça da Misericória em 1908 IMAGEM 1.20: Pavimentação Jerônimo Monteiro depois alargamento IMAGEM 1.21: Processo de verticalização do Centro IMAGEM 1.22: Vista área década 70/80

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SE ESSA RUA FOSSE MINHA “O olho da rua vê o que não vê o seu. Você, vendo os outros, pensa que sou eu? Ou tudo que teu olho vê você pensa que é você?” (LEMINSKI, 1990, s.p.) As ruas se definem pela função de ligação, são essas que fazem as conexões, ligam as edificações. Seria como se fosse um emaranhado que permeia a cidade, distribuindo e recebendo fluxos, costurando os diversos usos e universos que ela abriga. Nas palavras de François: “O que é uma rua? Uma via no interior de um aglomerado urbano que serve, especifica ou simultaneamente, para atravessar uma zona desse aglomerado, para acessar lugares situados ao longo ou imediatamente próximos a essa via e para produzir espaço coleƟvo uƟlizável em diversos Ɵpos de aƟvidades.” (ASCHER, 2010, p.18) Ou seja, além da função de ligação, as ruas podem abrigar uma série de aƟvidades e apropriações, e em algumas situações, muitas se tornam extensões das casas, e se configuram como nó de diversidades, de tempos, de histórias e culturas. Nos termos de Margareth: “Em países laƟnos como o Brasil, onde a

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vida coleƟva em áreas abertas e lugares públicos é quase sinônimo da própria cidade, as ruas são ferramentas potentes no desvelamento das diferenças e na dupla construção idenƟtária de cada indivíduo: como cidadão e como citadino.” (PEREIRA, 2010, p.140) São as ruas que nos permitem as experiências urbanas mais intensas. E são sobre os seus pavimentos e planos, que são guardados fragmentos de histórias, odores, árvores, folhas, movimentos de corpos que se somam e se misturam ao ritmo dos veículos e outros fluxos, criando assim a rede dos afetos de cada um com a cidade em que habita e o habita. “Sons e gestos vão sendo colhidos pelo olhar de cada indivíduo, fazendo com que a rua aqui e ali, seja ela, a rua ordinária, nossa e de todos os outros, única e comum, sob nossos pés.” (PEREIRA, 2010, p.140) Dessa forma, é impossível falar de rua sem pensar o patrimônio material e imaterial que elas somam, e nas suas transformações constantes que são suporte de sonhos, de memória. Nas palavras de João do Rio: “Se a rua é para o homem urbano o que a estrada foi para o homem social, é claro que a preocupação maior, a associada a todas as outras idéias do ser das cidades, é a rua. Nós pensamos sempre na rua. Desde os mais tenros anos ela


As ruas podem ser ainda de caráter monofuncionais, como as que dão acessos a residências e as rápidas vias urbanas, ou ainda de caráter mulƟfuncionais como as ruas prémodernas, que abrigavam diversas aƟvidades, tais como o boulevard com seus espaços de lazer e calçadas largas onde circulam transeuntes, comerciantes e residentes. Mas são as coexistências dos fluxos que atualmente trazem problemas. De acordo com François: “Os romanos já Ɵnham inventado as calçadas, que permiƟram separar os carros dos pedestres. E dos comerciantes e artesãos instalados na rua que, certamente, estabeleceram regulamentos de circulação diferenciado de acordo com as diversas horas do dia. Nas ruas da Idade Média era o estatuto social ou as relações de forças que definia quem poderia uƟlizar a parte alta do pavimento e, dessa maneira, manter os pés secos quando duas pessoas se cruzavam.” (ASCHER, 2007, s.p) Hoje a relação desses fluxos e ritmos

nunca foi tão quesƟonada, já que são cada vez mais necessários e intensos. É progressiva a necessidade de se movimentar, com o crescimento das cidades, as distâncias a serem percorridas aumentam, junto com a população e moƟvos de locomoção por trabalho, estudo, lazer. Com a necessidade de se transportar mais, surge a demanda de mais espaços e maiores velocidades. Sendo assim, aumentam-se as ruas e desenvolvem-se calçadas, que também é uma forma do transeunte interagir com as vitrines dos comércios. A parƟr do século XIX, começa a aparecer o automóvel e esse se firma como um paradigma de solução para se habitar as cidades. Nas palavras de Teles: “A parƟr dos anos 50 e com a vulgarização da uƟlização do advento do automóvel, a maioria das cidades, principalmente aquelas cuja existência remonta aos séculos passados, começaram a debater-se com o problema da oferta de espaço para a uƟlização do automóvel.” (TELES, 2006, p.31)

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resume para o homem todos os ideais, os mais confusos, os mais antagônicos, os mais estranhos, desde a noção de liberdade e de difamação – idéias gerais – até a aspiração de dinheiro, de alegria e de amor, idéias parƟculares.” (BARRETO, 1905, s.p.)

Nesse senƟdo, para dar uso à demanda crescente de espaço pelos automóveis, os espaços públicos urbanos desƟnados à aƟvidades diversas passam a serem reduzidos junto com as calçadas, causando mudanças bruscas nas práƟcas urbanas. Assim, as cidades passam a ser estruturadas em favor desses corredores retos e longos que favorecem grandes fluxos, maximizando o tráfego e como consequência criando cicatrizes no espaço, segregando-o. Nesse modelo, o fluxo é dividido

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em vias secundárias e terciárias, até o desƟno final, assim como se organiza eletricidade e água encanada. Dessa forma amplia-se a dinâmica de ir e vir, de um ponto ao outro, mas perdemos em relações, nós e encontros. E ainda assim, ao mesmo tempo em que se conseguiu um maior rendimento de velocidade, já nos deparamos com uma crise em que o crescimento dos espaços desƟnados a automóveis, não conseguiu acompanhar a velocidade em que se aumenta a frota de carros. E a coexistência deste com outros modais, tais como pedestres, ciclistas, ônibus, entrou em colapso. E assim fica evidente a necessidade de que outro olhar passe a ser criado, ou então recriado, e a necessidade da rua ser vista como lugar do inesperado, do imaginário e muitas vezes do conflito, começe a reaparecer, muitos locais já apostam no caráter mulƟfuncional e na coexistência de fluxos novamente. Segundo Ascher: “Nem as ruas exclusivamente de pedestres nem a autopista estão por desaparecer, mas sim reservadas a situações precisas e tendem a combinar-se hoje com outras formas de ruas. Inclusive, é possível a coexistência de ruas mulƟfuncionais e mulƟmodais. Assim, o soterramento de grandes infra-estruturas de autopistas urbanas, como, por exemplo, em Boston e Saint Denis, permiƟu criar na superİcie espaços que reconciliam o trânsito, a distribuição e aƟvidades várias.” (ASCHER, 2010, p.20)

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Hoje o que é necessário não é separar os fluxos ou tentar de qualquer forma unilos, mas pensar outras formas de mistura, de sobreposição, de fusão. Relacionar os diversos atores numa forma que seja aceitável pela maioria, arƟcular com interesses locais e com o contexto do funcionamento do sistema urbano. Dessa forma, diante dessa complexidade crescente, complica-se a tarefa dos urbanistas e a necessidade de sensibilidade, criaƟvidade e técnica nas suas intervenções. Nas palavras de Eliana e Robert: “Da rua queremos a alma, aquilo que dá idenƟdade à cidade, aquilo que a faz o microcosmo da cidade, o cerne de seu ser: a sua dimensão pública. Então a rua para além de sua mineralidade, para além de sua funcionalidade, se nos revela na sua publicidade. Desse ponto de vista, a rua, portanto, é a possibilidade da cidade, é a reafirmação da cidade no seu senƟdo mais amplo: lugar do acontecimento, arena do inesperado, possibilidade do encontro, reconhecimento do outro, acolhimento da diferença.” (KUSTER E PECHMAN, 2007, s.p.)

IMAGEM 1.23: Av. Punaro Bley. Centro de Vitória


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AS RUAS DO CENTRO São muitas as diferenças entre as ruas do centro. Com inúmeras escalas, formas, texturas, essa malha se apresenta como um emaranhado de descobertas e diversidades. Na parte baixa, o fluxo de passagem é bem intenso, a sensação é caóƟca e as calçadas, no horário comercial, lotadas de gente. Pessoas fantasiadas de Chapolim ou de palhaço gritam no microfone para atrair clientes, os camelôs lotam as calçadas, e os pontos de ônibus em horário comercial ficam cheios de gente, e nesses passam a maior parte das linhas de Vitória e muitas da Região Metropolitana ressaltando a conexão que o bairro tem. Na medida em que começa a chegar às ruas da cidade alta, a sensação é que estamos em outro lugar de Vitória. Tem ruas onde a maioria das edificações são residências, nessas o clima é leve, a sensação é de conforto, de tranqüilidade. Mas de qualquer forma cada rua tem suas especificidades, suas caracterísƟcas principais, suas sensações, e que claro que variam de acordo com o dia, com a hora e tudo mais. Nas ruas que acontecem grande parte das experiências urbanas e essa permite uma série de aƟvidades e apropriações, em que algumas serão relatadas a seguir.

IMAGEM 1.24: Avenida Jerônimo Monteiro

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A RUA SETE

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Sentada na Rua Sete, me chama atenção um moço que passa apressado na direção da Costa Pereira à Piedade. No rosto, uma expressão de cansado, nas mãos, algumas sacolas de supermercado. Fiquei pensando que talvez Ɵvera um dia cansaƟvo e quisesse passar o resƟnho do seu dia (eram cerca de 22 horas) com a família. Fiquei pensando que é nesse coƟdiano que a cidade se transforma, antes do seu passar apressado, a cidade era uma, agora a cidade tem as marcas dos seus passos. Assim como um rio que corre, e que a cada unidade mínima de tempo, não é mais aquele rio. Assim como era a Rua Sete antes, um trecho que carregava as águas da Fonte Grande, e agora carrega séculos de memória. A Rua Sete é um pedaço significaƟvo da riqueza que é o Centro, uma construção coleƟva de muitas de sobreposições. Olhando para os lados existem as casas baixinhas em esƟlo ecléƟco e em esƟlo proto-moderno. E olhando para cima, prédios já em esƟlo moderno, afirmando que sim, viveram ali gerações e gerações de pessoas, que deixaram no espaço e no tempo pedaços do que foram. E o mais interessante é que os prédios gigantes e imponentes, convivem com as casas pequenas e modestas, com os botecos e lojas de armarinho, óƟca e num sei o que mais, com os milhares de fios em cima, com o piso irregular do chão. Tudo isso resultando num caos/harmonia único, numa vivência intensa de quase 24 horas no dia, mostrando que sim, diversidade também é fator

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relevante de cidade que se vive. E assim, foi tomando cerveja na Rua Sete que eu Ɵve certeza (vou falar de forma geral) que por mais que vivemos num sistema capitalista, que usa como sustentação, moldar o indíviduo como se esƟvessem fazendo biscoito. Tentando diminuir o sujeito como mero objeto de produção e de consumo. Por mais que digam que os sistemas de informação e comunicação chegaram num ponto em que as cidades vão perder suas caracterísƟcas que as diferenciam e se tornarem lugares sem idenƟdade. Foi vivendo o urbano que pude perceber que elas possuem uma resistência própria, que na sua construção coleƟva, ela deixa frestas, intersơcios a serem descobertos, lugares que para alguém vai ser especial de alguma maneira. E assim a gente vai se idenƟficando e se senƟndo dono, autor, parte. Bonito foi o garçom de um dos bares da Rua Sete falando que todo dia, de madrugada, ele leva o cachorro para passear e uma garrafa de vinho, lá no mirante do morro de Santa Clara. É um dos casos de vários, de gente que no coƟdiano, se apropria dos espaços públicos, modifica a história de um lugar e se modifica numa sinergia necessária com o espaço que vive. Fiquei imaginando ele no mirante, assisƟndo uma cidade lá em baixo, que agora é tranquila e com imagem feita de luzes. Uma cidade que na sua maioria dorme, mas deixa ali aparente um processo/produto de séculos


de vida. E ele ali, se senƟndo parte de Vitória. Esqueci o nome do garçom, mas com certeza vou voltar para falar com ele. Depois disso, já meio viajando nessas histórias todas, fui embora, e lá mesmo na Rua Sete, em cima de um prédio gigante, se destaca uma única lâmpada acesa, enfaƟzando uma subjeƟvidade que mesmo sem ser vista, se faz presente na composição da cidade.

(Relato 17 de Fevereiro de 2011).

IMAGEM 1.25: Rua Sete


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O SAMBA

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Uma escada que antes era passagem, parte do trajeto na volta para casa, e que agora tem uma mesa com pano de chita em cima do patamar. Daqui a pouco vai começar, as pessoas se aconchegam sentadas nos degraus, buscam cervejas no bar da frente, as pessoas com instrumentos se acomodam em volta mesa. E de repente o clima muda. A escada não é mais passagem, trajetória de um ponto a outro, a escada agora é o ponto. Nem todos se conhecem, mas se olham nos olhos e se cumprimentam. Uma capacidade linda que o samba tem é essa, de causar encontros e sintonizas das pessoas em volta da música. Quem está chegando do trabalho fica em volta da mesa, moradores de rua cantam animados, uma moça que mora no prédio ao lado desce com uma torta maravilhosa de atum e serve a todos. A imagem daquele lugar, que antes parecia perigoso, agora é de festa, de coleƟvidade. Interessantes são esses encontros proporcionados por uma roda de samba. No Centro estas se fazem e fazem as ruas, enunciam lugares, também dão vida ao bairro. Trata-se de uma experiência urbana que existe em várias escalas de se apropriar e recriar espaços, e de uma linguagem que está presente em diversos núcleos, que durante a roda se unem para fazer a música. Essa relação do Centro com o samba é histórica e a Rua Sete é um exemplo. Ela é reflexo da vida boêmia de Vitória e de onde aconteciam as principais rodas de sambas da

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cidade. Fernando Tatagiba escreveu sobre a relação dessa Rua com o samba na década de 80: “...Por longos anos expôs um painel de Vitória ainda cidade-menina. Agora um banco, uma sapataria, lojas, ou um buraco transformará tudo: o painel anƟgo desaparecendo e com ele a mudança da cidade num lugar lúgubre, cada vez mais desumano e irreconhecível. ... Restarão talvez alguns versos do OƟnho – poeta da Rua Sete por excelência. Restará provavelmente uma valsa, tocada paradoxalmente neste samba-enredo chamado Vitória. Ficará, às vezes, quem sabe, um pedaço de balcão para que um boêmio faça dele um violão.” (TATAGIBA, 1986, p.66) Nesse trecho Tatagiba se refere à Lanchonete Sete, um dos principais pontos de boêmia da cidade e que já exisƟa há 15 anos e nesse momento fechou as portas, dando lugar a outros comércios, ele associa esse declínio com a vinda de grandes empresas para o estado e a modernidade que o período demandava. De fato a imagem da Rua Sete se alterou bastante, fecharam alguns bares, abriram outros e ainda


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está longe de ser um local desumano. Lá o samba ainda resiste e o da escadaria da piedade comprova isso. Em 2009, a escola de samba da piedade fez seu enredo em homenagem a Rua Sete, mostrando como essa rua e o samba estão estreitamente relacionados. Segue abaixo dois trechos do enredo: “Outrora a se banhar no mar Costa Pereira ainda hei de encontrar O flerte nos bancos da praça E conversa fiada, papo furado, samba e carnaval (...) Vamos nos alegrar nessa folia A Rua Sete é minha oitava maravilha. Se essa rua fosse minha brincava o meu samba No berço volto a ser criança O meu coração explode em saudades Sou Piedade.” (Compositor: Leley do Cavaco e Renilson Rodrigues) Os ensaios da Piedade que ficam numa quadra aberta no finalzinho da Rua Sete também mudam o caráter do entorno, pessoas de Vitória inteira vão sambar e conhecer essa parte mais escondida da cidade. A bateria soa alta e é ouvida desde o início da Rua Sete, perto do carnaval esse lugar do Centro vive samba todos os dias. Mas é de fato o samba de roda que mais se destacou para mim. No centro esses nascem no bar da Zilda e se expande para Rua. Nos bares da Rua Sete, quando se encontram amigos com meia dúzia de instrumentos em instantes já se formou a roda. Interessante também é isso, se

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encontram alguns instrumentos em torno de uma melodia, e o caráter do espaço já muda. Nas sextas feiras, quando começa a anoitecer a Praça Getúlio Vargas também se tranforma completamente, é como se fosse uma pausa no caos do centro, contrastando com aquela avenida engarrafada. A praça enche de gente e o som da música vai longe. Outra apropriação das ruas pelo samba aconteceu em fevereiro, um bloco de rua organizado pelo grupo Regional da Nair ocupou as ruas do centro, e o asfalto ficou todo colorido de fantasias e confete. As janelas cheias de gente, numa forma linda de retomar a cidade e até mesmo retomar a memória de uma cidade que anƟgamente vivia o carnaval.


.1 | [esc. 1.1] IMAGEM 1.26 (p谩g. anterior): Rua Sete IMAGEM 1.27: Carnaval na Jer么nimo Monteiro em 1940 IMAGEM 1.28: Bloco Regional da Nair na Rua Sete. IMAGEM 1.29: Samba no bar da Zilda.

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A PERFOMANCE

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A performance muitas vezes busca na rua a imprevisibilidade dos acontecimentos, a coleƟvidade, o coƟdiano. E, assim procura tocar a percepção de passantes, que viciados numa roƟna, não se vêem, ou não vêem mais a cidade. Dessa forma, usa-se de maneiras não habituais de se comportar diante de desconhecidos para abrir essas frestas. Nas palavras de Maycira: “O exercício de ‘estar’ na rua, onde os simples e outrora passantes assumem o protagonismo de um experimento estéƟco, é devolver ao sujeito o poder de reconhecer-se como singular e frear seu anseio verƟginoso pela velocidade coƟdiana.” (LEÃO, 2007, p.101) Ou seja, tratase de maneiras de usar o corpo com o objeƟvo de fazer emergir singularidades enclausuradas nesse coƟdiano. Tive a oportunidade de acompanhar algumas performances no Centro, abaixo segue um relato de uma ocasião específica: Talvez a palavra seja excesso, mas excesso que transborda e se dobra, não que sobra. De longe ouço um apito de um navio, sinto o vento forte, o barulho de folha caindo, uma criança mal vesƟda, um moço com cordão de prata me encarando. Vejo cores de pessoas, uma face serena de uma menina dentro do ônibus, mais um rosto de vários dentro desse mesmo ônibus, mais um rosto dentro de um ônibus, numa fila de muitos outros ônibus. Mais um rosto, mas com seu mundo dentro, com sua face serena guardando pensamentos que só pertencem a si de início a fim. Logo após

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meu olhar se detém em outra face, agora uma criança me fazendo careta de outro ônibus, de outra fila, porque aquela já se foi. Uma criança com outro mundo guardado, outras referências, outras histórias, outro desenho de linhas na mão. Cidade tem dessas coisas, uma teia de rostos se cruzando o tempo todo, onde cada um guarda seus anseios, seus medos, seu filme preferido, o que faz rir, cada um sabe o que tem dentro de si, o que faz ali, de onde veio e pra onde vai. O coƟdiano de cada um é resultado de toda uma vida, de vários fatores que geram uma combinação de movimentos, e se misturam, um interfere no outro, mesmo que não se perceba. CoƟdianos também viciam, faz com que o percurso de um ponto ao outro seja feito no “modo automáƟco”, onde pouco se presta atenção no caminho, nas outras pessoas, em outras histórias. Fecha a gente na gente mesmo. E transforma tudo que tá em volta em pano de fundo, paisagem. Posso te citar como exemplo eu mesma, já fiz o percurso de casa a UFES infinita vezes, é só consegui ver que Ɵnha uma árvore linda no caminho, quando está deu flores que gritaram aos meus olhos. Também já fiz o percurso até a praia outras infinitas vezes, e no caminho tem uma moça que vende água de coco, só fui ver que Ɵnha um rosto muito bonito quando esta passou a me cumprimentar, de tanto me ver. Antes ela era só mais um rosto de vários nesse mesmo caminho viciado. Hoje fui ao centro, e vi uma cena dessas


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que acordam a gente, uma moça vinha da Casa Porto, na Jerônimo Monteiro com uma mala, cara de menina do interior e o que ela fazia era bem simples, trocava de roupa o percurso todo até o Palácio Anchieta. Bonito era ver a fila de ônibus engarrafado (a mesma lá de cima) com as pessoas colocando a cabeça para fora, formando um grande público, tentando entender. Bonito era aquele cenário, com aquele barulho todo de gente falando, perguntando se era novela. “Aposto que é pegadinha”. Bonito era ver coƟdianos se embolando e trocando interrogações. “Não! Deve ser um trabalho de escola”. E a moça da mala seguia imparcial, colocando mais uma combinação esquisita de roupa. “Moça! Tem vesƟário aqui dentro.” E aquela quanƟdade infinita de roupas nas lojas, misturadas com as roupas na mala, se misturando as roupas das pessoas que sem ver se tornavam público, ator, personagem. Bonito isso, seria ainda mais, se as pessoas interagissem mais uma com as outras, ou se o caminho deixasse de ser apenas a trajetória de um ponto a outro e se tornasse local de encontro, de vida. A perfomance serve para acordar, desviciar um pouquinho do mesmo arroz com feijão de cada dia, faz pensar.

Relato 14.01.11 O nome da moça é Amanda e a performance faz parte do projeto Trampolim.

IMAGEM 1.30 e 1.31: Cenas da perfomance

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OS PROTESTOS

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Hoje eu vi uma cidade acordar... Barulho de porta de ferro, ônibus despejando uma massa de pessoas nos pontos que iam se diluindo em todas as direções, mercadorias sendo organizadas cuidadosamente em painéis nos camelôs, vassouras na praça, faixas com textos sendo esƟcadas no chão, navio chegando no porto, carros começando a se acumular na avenida... Hoje é dia de protesto e eu vi o centro de Vitória acordar. Cheguei por volta das 7:00 horas da manhã, e a cidade dava os seus primeiros sinais de uma roƟna densa, movimentada, intensa. De fato sabemos que a cidade não dorme, na madrugada se torna suporte de habitantes silenciosos que escorrem em becos, intersơcios, que sobrevivem do que ficou de uma cidade que de dia ferve. De noite também tem os trabalhadores que são como vigias e mantém a cidade viva 24 horas, taxistas, porteiros, seguranças, ou ainda pessoas que não aprenderam a encaixar a sua roƟna, com o coƟdiano “normal” da sua cidade, e que se fazem presente com as únicas luzes acesas em prédios que dormem. Mas é mesmo na luz do dia que a cidade ferve, e os primeiros movimentos vêm com os primeiros raios de sol, é quando as linhas de ônibus voltam a funcionar, os garis Ɵram o que ficou do dia anterior e preparam a rua para esse dia. E hoje vai ser um dia especial, como todos os outros são especiais de alguma maneira, já que tem os seus acontecimentos marcantes e

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singulares. Mas hoje é dia de protesto, e eu vi a cidade acordar. O protesto, em relação ao caso de despejo de Aracruz estava marcado para as 9 horas da manhã, parƟndo do Palácio Anchieta. A idéia era ocupar as ruas, numa caminhada até o Palácio da Fonte Grande na Rua Sete, deixando uma faixa livre para veículos. Ou seja, essa é outra forma de usar a rua de uma forma bastante singular, como uma forma de se manifestar e exigir direitos. No modelo atual de cidades, se manifestar de forma que pare o movimento motorizado através da ocupação de ruas, e que essas de preferência tenham caráter arterial, podem causar vários prejuízos econômicos. Ou seja, é uma táƟca que usa a função principal da rua, que seria a de circulação, para conseguir atenção da cidade, da mídia, do governo e assim se fazer ouvir. E nesse dia além da cidade acordar para o dia, parecia acordando também em relação à forma repressiva que ela é tratada. Este protesto, como ocupou só parte da rua e por pouco tempo não teve tanto problema, como o outro contra o aumento da passagem, que fechou umas das principais avenidas de Vitória por uma manhã inteira. Esse fez com que a rua, além de lugar de protesto, virasse lugar de guerra, com policial versus estudante numa das cenas mais tristes que eu já pude parƟcipar. Tudo isso porque conseguiu interferir na dinâmica de circulação da Região Metropolitana inteira, fazendo com que o governo Ɵvesse que usar a força.


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Depois da Jerônimo Monteiro de um jeito muito mais cinza, fui à Rua Sete comprar fantasias para festa junina, e o que eu fiquei surpreendida foi como ali do lado já parecia outro mundo, clima de leveza de uma cidade que conƟnua.

Relato Junho de 2011 IMAGEM 1.32: Protesto em frente ao Palácio Anchieta.

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AS ESCADARIAS As inúmeras escadarias do Centro são elementos com bastante significado. Tratam-se de infra-estruturas que representam a conexão verƟcal entre os níveis de ocupação do relevo e, assim se configuram como nós que amarram esses platôs de uma forma que parecem ligar cidades diferentes. A cidade baixa causa uma sensação de confusão, mulƟdão, barulho. Enquanto a cidade alta já representa uma calmaria, onde a maior parte das edificações são residenciais, e as igrejas e monumentos históricos enfaƟzam um caráter nostálgico. As escadas que mais se destacam na paisagem fazem parte do esƟlo ecléƟco, que refletem as primeiras décadas do Século XX. Período de impulso econômico da cidade proporcionado pela produção cafeeira. Essas possuem linhas sinuosas, adornos e platôs para permanência e contemplação, tais como: Escadaria Maria OrƟz, a Escadaria São Diogo, Bárbara Lindemrberg e São Bento. Mas além dessas existem várias escadarias estreitas e mais escondidas, em que muitas conectam a cidade

alta a ocupações informais no maciço central. As escadas fazem a transição verƟcal, mas de uma forma que vai além de passagem, elas se tornam suporte de diferentes apropriações do espaço. Além do samba, que já foi mencionado, às vezes viram local de práƟcas de Le Parkour, de manifestações arơsƟcas, como grafites, de conversas durante o dia, camelôs, etc. Pensando nesse caráter passagem/ apropriação que eu e um amigo resolvemos projetar um filme na escadaria São Diogo, que conecta a Costa Pereira à cidade alta, na Região próxima a Catedral de Vitória. O filme era do Charlie Chaplin, foi escolhido porque além de não ter falas, é de fácil idenƟficação para quem está passando. Escolhemos também um dia de samba com bastante movimento próximo a Rua Sete, já que assim a escadaria ficaria no percurso dessas pessoas. Para a experiência, puxamos uma extensão do prédio vizinho, ligamos o data show projetado para os espelhos da escada, jogamos

maciço central

platô (cidade alta)

parte baixa (aterross) mar

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umas esteiras no chão. Tudo bem simples para que as pessoas vissem que elas também poderiam fazer aquilo ou parecido. A cidade se apresenta com infinitas possibilidades de apropriações e vivências que precisa ser uƟlizada para que conƟnue “pele”, para ser humana. Foi incrível a quanƟdade de gente que se interessou e parou nas esteiras para ver o filme com a gente. Foram meninos de rua, cantor de loja que fez questão de cantar no microfone, pessoas saindo do trabalho, misturadas a pessoas que iam para o samba. Nesse senƟdo, de forma simples, pudemos viver outro Ɵpo de apropriação, uma forma de trazer a sala de casa para o Centro, ou de fazer de uma parte do Centro - nesses espaços que possuem tanta memória e significado para cidade - a sala de casa.

IMAGEM 1.33: Perfil topográfico Centro IMAGEM 1.34: Escadaria Maria Ortiz


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IMAGEM 1.35: Escadaria Bárbara Lindemberg IMAGEM 1.36: Escadaria Bárbara Lindemberg e o Palácio Anchieta IMAGEM 1.37: Le Parkour na escadaria São Diogo

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1 3 2 ALGUMAS ESCADARIAS IMAGEM 1.38: Escadarias do Centro de Vitória.

1. Carlos Messina 2. Bárbara Lindemberg 3. Maria OrƟz 4. São Diogo 5. Djanira Lima 6. Nicolau Abreu

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IMAGEM 1.39: Escadaria Igreja do Rosário IMAGEM 1.40: Escadaria Carlos Messina IMAGEM 1.41: Escadaria Nicolau Abreu IMAGEM 1.42: Escadaria Maria Ortiz IMAGEM 1.43: Escadaria Djanira Lima

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IMAGEM 1.44, 1.45 e 1.46: Projeção Charlie Chaplin na escadaria São Diogo

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AS TEXTURAS

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Se olharmos com atenção para alguns lugares que fazem parte da nossa roƟna diária, podemos nos surpreender com alguns detalhes. Foi pensando nisso que eu resolvi andar no centro com o objeƟvo de pensar e registrar as texturas das superİcies que compõe esse urbano. Comecei pelo início da Jerônimo Monteiro e fui reparando nas texturas que chamavam mais atenção nesse caminho, sejam estes pisos, paredes, painéis de camelôs, vidros, o mar, as sombras, as janelas. Assim, a gente percebe que a cidade inteira é coberta por um conjunto de texturas que se costuram, se dobram, desdobram, se emendam ou não. Essas se apresentam de várias formas, tamanhos, cores. E são resultados de várias sobreposições de épocas, histórias, manifestações, intervenções. Interessante que não são estáƟcas, podem se alterar com a sombra, reflexos, luzes e cores de outras, tudo isso numa sinergia constante. São detalhes do espaço urbano, numa escala aproximada e que reflete o contexto e se apresenta com estéƟcas bastante interessantes. Trata-se de perceber uma paisagem que é feita de ferro, asfalto, vidro, papelão, plásƟco, lixo e confusão. E no meio disso podemos perceber o grafiƟ, os efeitos causados pelas intempéries e até a diversidade do local, como no Centro, onde existem muitas texturas diferentes umas das outras. Segue algumas dessas imagens. O trabalho inteiro se encontra no www.flickr.com/samiraproeza.

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IMAGEM 1.47: Sequência Texturas


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“Não sei quantas almas tenho. Cada momento mudei. ConƟnuamente me estranho. Nunca me vi nem acabei. De tanto ser, só tenho alma. Quem tem alma não atem calma. Quem vê é só o que vê, Quem sente não é quem é, Atento ao que sou e vejo, Torno-me eles e não eu. Cada meu sonho ou desejo É do que nasce e não meu. Sou minha própria paisagem; Assisto à minha passagem, Diverso, móbil e só, Não sei senƟr-me onde estou. Por isso, alheio, vou lendo Como páginas, meu ser...” (Não Sei Quantas Almas Tenho - Fernando Pessoa)

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“A subjeƟvidade sempre teve alguma relevância ao longo da história, mas a parƟr do momento em que foram assumidas pela mídia, parecem prestes a desempenhar um papel preponderante.” (GUATTARI, 1992, p.12) Ou seja, nunca se levou tanto em consideração a subjeƟvidade como o sistema atual, e assim é impossível falar da subjeƟvidade contemporânea sem falar de um capitalismo que tem na mídia uma ferramenta indispensável. Sobre essa palavra, é importante destacar que o termo origina da palavra sujeito, mas como afirma Peter Paul Pelbart, adiciona a noção de exterioridade, de pluralidade e de diferenciação, que a palavra sujeito, na sua simplicidade tautológica, interiorizada e autocentrada não comportam. (PELBART, 2000, p.14) Nas palavras de GuaƩari: “Seria conveniente definir de outro modo a noção de subjeƟvidade, renunciando totalmente à idéia de que a sociedade, os fenômenos de expressão social são a resultante de um simples aglomerado, de uma simples somatória de subjeƟvidades individuais. Penso, ao contrário, que é a subjeƟvidade

individual que resulta de um entrecruzamento de determinações coleƟvas de várias espécies, não só sociais, mas econômicas, tecnológicas, de mídia, etc.” (GUATTARI, 1992, p.34) Dessa forma, o que podemos perceber, é que somos subjeƟvidades esculpidas pelo “sistema” que atua de fora para dentro da gente. E assim, parece que cada dia que passa vamos sendo anestesiados por uma rede de captura, que aos poucos, vai tentando nos fazer parar de senƟr, de querer, de pensar, de inventar, de sonhar. O objeƟvo é nos moldar na nossa essência, cortar o que nos diferenciam e assim nos tornar seres que se sentem impotentes, dormentes e sem coragem de brigar, de lutar contra o que nos aflinge ou nos oprime. Temos medo até de senƟr desejos mais simples e humanos, como gritar, correr, chorar. Passamos a viver com moderação de senƟmentos, cortando os que pareçam ser improduƟvos e não tenham alguma lógica racional de mercado. Ou seja: somos subjeƟvidades criadas, “podadas” e esculpidas à moda capitalista, consumista, máquinas de sustentação do sistema em que o que importa é produzir e consumir. Nas palavras de GuaƩari: “As máquinas tecnológicas de informação e de comunicação operam no coração da

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SOBRE SUBJETIVIDADE

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subjeƟvidade humana, não só na sua memória, na sua inteligência, mas também na sua sensibilidade, nos seus afetos, nos seus fantasmas inconscientes.” (GUATTARI, 1992, p.14) Assim, o exterior, já que a subjeƟvidade se define por sua exterioridade, torna-se cada vez mais intrusivo no ínƟmo do corpo que é docilizado de uma forma que na época atual não é mais necessário recorrer à violência İsica. Agora é possível moldar o corpo, excitá-lo, obrigá-lo a emiƟr signos através de aparelhos de captura, e estes hoje são tão complexos que conseguem moldar inúmeros corpos juntos, anestesiá-los através de seu ínƟmo, de uma forma que pouco se perceba e, além disso, ainda se convença de que não é negaƟvo. Não é como a violência İsica em que o agressor se sente agredido e segue as regras por opressão. Agora o corpo não percebe, tudo acontece como se fosse hipnose e por não se senƟr agredido, não existe moƟvo para lutar ou para resisƟr. Ou seja, se antes se impunha ordem por meio da força, da repressão İsica, hoje se impõe ordem através do ínƟmo, através do que a gente pensa e sente e assim se interfere até nos nossos desejos e vontades. Eduardo Galeano descreve bem essa situação: “O colonialismo visível te muƟla sem disfarce: te proíbe de dizer, te proíbe de fazer, te proíbe de ser. O colonialismo invisível, por sua vez, te convence de que a servidão é .pele | experiências urbanas no Centro de Vitória

um desƟno e a impotência, a tua natureza: te convence de que não se pode dizer, não se pode fazer, não se pode ser.” (GALEANO, 1989, s/p) Sobre essa questão Peter Pal Pebart cita Foucalt, nos termos: “Hoje em dia, ao lado das lutas tradicionais contra a dominação (de um povo sobre outro, por exemplo), é a luta contras as formas de assujeitamento, isto é, de submissão da subjeƟvidade, que prevalece cada vez mais. Do que ele conclui: o objeƟvo principal hoje não é descobrir o que somos, mas recusá-lo. Podemos, então por fim, compreendê-la como plenamente fabricada, produzida, moldada, modulada- e também, a parƟr daí, automodulável.” (PELBART, 2000, p.13) Sobre as transformações tecnológicas, alguns autores dizem ser uma tendência a homogeneização e reducionismo da subjeƟvidade e ao mesmo tempo um reforço da heterogeneidade e singularização dos seus componentes. Mas de qualquer forma, é preciso evitar qualquer visão pessimista que faz parte de uma aƟtude anƟmodernista que consiste em rejeitar as inovações tecnológicas, principalmente as que estão ligadas à revolução da informáƟca. Essa evolução pode funcionar tanto para o bem, quanto para o mal, na verdade


em todos os lados, entubados na velocidade. O terceiro fenômeno diz que existe um tele comando universal, que subsitutui as regras, leis e éƟcas locais, onde o controle tecno-social tornou-se o novo meio ambiente. O resultado é toda essa velocidade, paralisia e extremo controle. (PELBART, 2000, p.15) “Se o capitalismo desterritorializa os sujeitos de suas esferas natais, fazendo com que às vezes eles se reterritorializem sobre referências idenƟtárias arcaicas ou midiáƟcas, ao mesmo tempo essa nomadização generalizada pode significar uma refluidificação aberta a novas composições, a novos valores e novas sensibilidades. É nesse vetor molecular, subrepresentaƟvo, coleƟvo, que podem surgir novos agenciamentos de desejo os mais inusitados, polifônicos, heterogêneos.” (PELBART. 2000,14) Foi Eduardo Pavlovsky que disse: “Basta de vínculos, nunca mais vínculos, apenas conƟgüidades de velocidades.” Ou seja, talvez seja uma subjeƟvidade mais fluxonária, mais rizomáƟca, mas de vizinhança e ressonância, de composição de movimentos, e talvez por isso mais resistente aos inúmeros aparelhos de captura, inclusive os de âmbito relacional. Talvez seja uma maneira entre outras, de evitar que a subjeƟvidade seja moldada ao capital, de suas carências fabricadas, de suas estereoƟpias seriais, de suas capturas. (PELBART, 2000, p.19)

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tudo depende de como for sua arƟculação com agenciamentos coleƟvos de enunciação. “0 melhor é a criação, a invenção de novos Universos de referência; o pior é a mass-midialização embrutecedora, a qual são condenados hoje em dia milhares de indivíduos.” (GUATTARI, 1992, p.16) Mas mesmo mediante a todas essas transformações, novas formas de resisƟr, e novas subjeƟvidades devem ser buscadas. O capitalismo requer uma grande plasƟcidade subjeƟva para que consiga atuar, mas acontece que essa mesma plasƟcidade exigida é capaz de produzir linhas de fugas, se recriar nos desejos, inƟmidades, prazeres. “A forma homem historicamente esculpida, as múlƟplas forças que batem a porta e põem em xeque essa mesma força-homem, e a idéia do experimentador de si mesmo.” (PELBART, 2000, p.13) A questão seria, quais são essas forças e quais seus poderes de afetar e ser afetado? De acordo com Paul Virilio, já não habitamos a um lugar, mas a própria velocidade. Alguns fenômenos acompanham esse processo. O primeiro diz respeito à rapidez absoluta que reduz distâncias e encolhe o espaço tempo, elimina a profundidade de nossa experiência sensorial, percepƟva, nos colocando numa realidade instantânea hipnóƟca e chapada. O segundo fenômeno consiste em nossas referências, que passam do território existencial, dos eixos temporais ou espaciais do mundo e da comunidade, para nós mesmos como terminais, “alejados”, cercados de próteses tecnológicas

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REDES SOCIAIS E ENCONTRO

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As redes sociais por meio digital nunca Ɵveram tanta repercussão como agora, o Facebook, TwiƩer, Youtube, dentre outros, dominaram a capital de uma forma que “estar presente” em Vitória, é estar conectado. As noơcias agora são dadas em tempo real, por ‘anônimos’ que munidos de câmera, celular, registram e divulgam fatos que ocorrem no espaço com uma velocidade e alcance inéditos. Agora para saber noơcias, eventos, músicas novas, vídeos que vão ser comentados a semana inteira, precisa-se estar conectado. Lembro que muito se falava que a internet teria um caráter negaƟvo, no senƟdo que trocaria o contato pessoal, por um virtual. Mas o que tem acontecido é bem diferente. A vida cultural, social, os encontros em Vitória foram bastante potencializados. Não vou dizer que em alguns casos a relação de contato pessoal realmente não tenha sido subsƟtuída. Mas no geral a cidade vive intensamente relações que foram divulgadas, marcadas pela internet. Um exemplo disso foi um dia que eu queria dar uma volta à ilha de Vitória de bicicleta. Criei um evento no Facebook, e logo o evento chegou em perfis sociais de gente que eu nem conhecia. E o resultado foi uma volta à ilha com quinze pessoas com interesses semelhantes, onde eu só conhecia cinco. E eu jamais poderia pensar nessa capacidade de encontro, antes do Facebook.

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E o que está acontecendo, é que agora as pessoas estão descobrindo as redes sociais como uma forma de se encontrar e de se manifestar. Desde 2005, quando aconteceu um protesto dos estudantes contra o aumento da passagem de ônibus que pouco se houve falar sobre movimento estudanƟl. A impressão é uma anestesia dentro da universidade, onde existe um processo de individualização e de apaƟa grande. Mas nesse úlƟmo mês (Junho de 2011), parece que os estudantes de certa forma acordaram, e a peculariedade desse momento são as redes sociais que estão funcionando como veículo de comunicação, denúncia, divulgação e arƟculação bastante eficiente, se tornando base das manifestações e protestos. O movimento estudanƟl, agora com essas novas ferramentas passaram a ter um caráter de rizoma, sem hierarquia e o que importa são as conexões, quanto mais elas exisƟrem, melhor e mais forte o movimento. Sobre o rizoma, nos termos de Deleuze: “Princípios de conexão e de heterogeneidade: qualquer ponto de um rizoma pode ser conectado a qualquer outro e deve sêlo. É muito diferente da árvore ou da raiz que fixam um ponto, uma ordem.” (DELEUZE,1995, p.15) Nesse caso a sinergia existente entre redes sociais e movimento reforça esse caráter de conexão, e da não-ordem e não-centralidade. O princípio da mulƟplicidade também é bastante percepơvel, nas palavras de Deleuze:


Um exemplo é o caso de Aracruz, há pouco mais de um mês (Maio de 2011), 1600 pessoas foram removidas violentamente de um “bairro” chamado de Nova Esperança em Aracruz (ES). Nesse mesmo dia o Facebook estava cheio de atualizações a respeito, várias pessoas se revoltaram com a causa e postaram informações ou críƟcas sobre o que estava acontecendo. Nesse dia, a função do “comparƟlhar” do Facebook foi ao auge, uma pessoa escrevia uma carta de repúdio ou editava um vídeo com as fotos do ocorrido e todos comparƟlhavam para que seus amigos vissem. Interessante ressaltar aqui o significado da palavra “comparƟlhar”, que segundo o dicionário consiste em “ter parte em, parƟcipar de” ou “parƟlhar com alguém”. E assim essa

ferramenta se tornou uma forma de parƟcipar de um manifesto, de dizer com um clique que você faz parte dessa corrente, e que luta contra ou a favor de uma causa. Esse episódio para mim foi um dos mais significaƟvos até agora, aqui em Vitória, e que conseguiu arƟcular através das redes sociais: informações, denúncia e protesto. Naquela semana realmente achei que da mesma forma que a rede social te permite saber uma série de noơcias que não estão na mídia oficial, ela de certa forma anestesia, pelo excesso de “porradas” que a passamos a ter acesso, e que acabamos por não dar conta. E assim, limita-se a “protestar” por uma revolta efêmera e um clique no botão “comparƟlhar.” Mas aconteceu que a guerra da estudante/rede social versus governo estava apenas começando aqui em Vitória.

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“Somente quando o múlƟplo é efeƟvamente tratado como substanƟvo, mulƟplicidade, que ele não tem mais nenhuma relação com o uno como sujeito ou como objeto, como realidade natural ou espiritual, como imagem e mundo.(...) Uma mulƟplicidade não tem nem sujeito nem objeto, mas somente determinações, grandezas, dimensões que não podem crescer sem que mude de natureza (as leis de combinação crescem então com a mulƟplicidade).” (DELEUZE, 1995, p.16)

#protestoemvitoria No mês de maio, os muros de Vitória apareceram com o aviso: “Dia 02/06 a cidade vai parar”. Pareciam avisos despretensiosos, não parece tão simples parar uma cidade assim. Até que no dia 2, fui ao centro fazer uma entrevista na catraia, e realmente vi uma cidade parada, assim a gente repensa o quão frágil pode ser a dinâmica de uma cidade que depende de movimento motorizado para sobreviver. Os estudantes pararam a via na frente do Palácio Anchieta no senƟdo rodoviária ao norte da ilha, por uma manhã inteira. Eram poucos estudantes, aproximadamente uns 100, até que houve uma ação efusiva do BME (Batalha

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de Missões especiais) a mando do governo, que através da repressão, retomaram a via e “restabeleceram a ordem da cidade”. O governo agiu com repressão e em vez de buscar um consenso, “apertou o botão” de um BME equipado para guerra, com escudos gigantes, balas de borracha e bombas de gás de pimenta e efeito moral, que dissiparam em segundos aqueles estudantes cheios de aƟtude. E o que parecia uma medida fácil e eficiente para o governo gerou uma forte reação. O protesto através da rede social se rearƟculou, agregou mais adeptos e depois se tornou um protesto também contra a repressão e a prepotência do governo. Se organizaram na UFES, e dessa vez também houve repressão para dentro da universidade, o que só havia acontecido até hoje na época da ditadura. E depois disso, para fechar o dia, houve uma passeata até a terceira ponte, onde aconteceu a pior repressão do dia, além de dissiparem o movimento com bombas e Ɵros, agiram com prisões arbitrárias e violência İsica em excesso, tais como: prisões e espancamentos de estudantes e civis. As cenas de violência e arbitrariedade da polícia se espalharam na internet em tempo recorde. Logo depois do ocorrido havia uma quanƟdade imensa de vídeos de anônimos que parƟciparam do protesto e registraram em câmeras digitais o ocorrido. Ou seja, outro princípio do rizoma: “Princípio de ruptura a-significante: contra os cortes demasiado significantes que separam as .pele | experiências urbanas no Centro de Vitória

estruturas, ou que atravessam uma estrutura. Um rizoma pode ser rompido, quebrado em um lugar qualquer, e também retoma segundo uma outra de suas linhas e segundo outras linhas. É impossível exterminar as formigas, porque elas formam um rizoma animal do qual a maior parte pode ser destruída sem que ele deixe de se reconstruir. Todo rizoma compreende linhas de segmentaridade segundo as quais ele é estraƟficado, territorializado, organizado, significado, atribuído, etc; mas compreende também linhas de desterritorialização pelas quais ele foge sem parar. Há ruptura no rizoma cada vez que linhas segmentares explodem numa linha de fuga, mas a linha de fuga faz parte do rizoma. Estas linhas não param de se remeter uma às outras. É por isto que não se pode contar com um dualismo ou uma dicotomia, nem mesmo sob a forma rudimentar do bom e do mau.” (DELEUZE, 1995, p.18) Na quinta de madrugada foi criado um evento de uma grande manifestação na sexta que agora agregava uma série de reivindicações, onde a maior agora era a repressão desmedida do governador Renato Casagrande. Malini descreve nesses termos:


Foi uma mulƟdão na definição de Negri , como um conjunto de singularidades que de branco e flores na mão gritava a todo custo contra um sistema repressor. Até então eu Ɵnha uma idéia completamente diferente desse sistema. Para mim ele agia apenas de forma indireta, que não aƟngia ao corpo com violência İsica e sim, somente a subjeƟvidade moldando o indivíduo de acordo com seus interesses. Mas se nesse caso, foi preciso usar a força İsica, é porque nem tudo está tão certo assim. 1

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Não se sabe ainda o futuro do #protestoemvitoria, essa tag2 se tornou uma das mais usadas do TwiƩer no início do protesto, em questão de segundos. Eram inúmeras opiniões contra e a favor. E a mídia dita informal, realizada pela população mostrou a força que ela consegue alcançar e se destoou completamente da mídia formal que informa os acontecimentos de acordo com a imagem que o governo deseja passar. Provou-se que de fato essa mídia existe como ferramenta de um governo, onde a maior parte das noơcias são tendenciosas, além de formar opinião da maioria da população. A mídia das redes sociais vem como uma resistência, uma táƟca de guerra contra isso. Sendo assim, por mais que o protesto perca as forças e seja vencido pelo cansaço, um dos maiores resultados posiƟvos alcançado, foi o nível de discussão e esclarecimento que ele conseguiu alcançar numa parte da população de Vitória, foi como um acordar de um pensamento mais críƟco em relação a TV, aos jornais e ao governo e que esclareceu a muitos sobre abordagem da polícia e sobre transporte público. Importante mencionar que essas pessoas que ainda tem acesso a informação que não é a de massa e que ainda se revoltam, fazem parte de uma parcela da população, em que a maior parte são estudantes ou pessoas que Ɵveram acesso a uma educação mais críƟca. A outra grande parte das pessoas tem uma roƟna considerada “ideal” nos parâmetros do sistema. São pessoas que trabalham a maior parte do dia, porque precisam de dinheiro para manter

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“Agora o movimento contava com o apoio de professores e funcionários da Ufes, e de diversos movimentos sociais da capital. Enquanto isso um excessivo conƟngente policial cercava toda a cidade, com sua cavalaria, viaturas, caminhões e muito munição de bala de borracha. Tudo registrado por anônimos, que, dos seus celulares, publicavam fotos e vídeos dos locais por onde os estudantes passariam, mandando alertas para os manifestantes. A passeata contabiliza cerca de 5 mil pessoas. Daí a relação de força virou. A policial foi reƟrada das ruas. E todo protesto ocorreu pacificamente na praça do pedágio da Terceira Ponte, onde foram liberadas as cancelas para o trânsito fluir livremente. “ (MALINI, acesso em 08/11)

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a família, assim são extremamente sugadas no trabalho na lógica de ter sempre que produzir, e ainda estão sempre em dívida pagando prestações de “sonhos de consumo” como a TV de nem sei quantas polegadas, tudo isso dentro da lógica de ter que consumir. Depois do trabalho, já exaustas, vão assisƟr à novela como forma de relaxar de um dia estressante, intercalado a isso, tem o jornal que vai informar da forma que achar mais coerente. Nos fins de semana como forma de lazer (sempre associado ao consumo) essas pessoas tem os shoppings centers que promete segurança, já que os demais espaços públicos são considerados muito perigosos, quase um risco de vida. Essas pessoas geralmente discordam do protesto, por atrapalhar a ordem da cidade e gerar

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desperdícios econômicos e tempo no trânsito. Mas o que de fato importa aqui, é que essas manifestações arƟculadas na internet, como a marcha da liberdade, que aconteceu simultaneamente em 20 cidades brasileiras, é uma prova que as cidades estão começando a se revoltar e aprendendo a usar objetos de consumo que mantém o capitalismo, como máquinas fotografias e câmeras, e a internet, com seu bombardeio de noơcias e função “comparƟlhar” como resistência. A sociedade, em relação a esse novo contexto, parece que está aprendendo a trilhar as linhas de fuga e a reagir frente a todas essas forças que moldam a subjeƟvidade. Por mais que pareça bem longe aprender a lidar com essas forças, criar outras. Trata-se do início de um caminho.


.1 | corpo] Notas: 1. Antonio Negri trata o conceito de multidão como um conjunto de singularidades cooperantes que trabalham em rede. O termo singularidade consiste no homem que se define e existe na relação com o outro. Diferente de individualidade que tem uma alma, uma consistência, por separação em relação à totalidade, em relação ao conjunto. Uma força centrípeta. (NEGRI, 2005, s/p) 2. Tags são palavras-chave ou marcas usadas para agrupar itens semelhantes no Twitter. IMAGEM 2.1: Protesto na Terceira Ponte. Foto: Rodrigo Gavini IMAGEM 2.2, 2.3 e 2.4. Cobertura do Protesto. Fotos: Francisco Neto

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SOBRE O CORPO Na escala do passo rasgo o espaço recolho esvaio me moldo. Cabe em mim esses atos desato em rastros Me reinvento com o toque Transformo. Fala-se muito do corpo, mas qual seria o senƟdo dessa palavra? Falar sobre esse termo parece óbvio, já que se trata de algo tão coƟdiano, corriqueiro, İsico. Mas se nesse momento escrevo aqui com um corpo, já neste outro momento, leio aqui com o mesmo/outro corpo, o mesmo na sua maioria, e outro, porque o mesmo já se modificou, e se modifica em cada fração mínima de tempo. A palavra corpo possui um senƟdo que ultrapassa essas imagens de livro de biologia. Além dessa questão İsico-biológica, ele é um processo, e carrega em si, como um diário de minúcias, toda a materialização de uma subjeƟvidade. Sendo assim, esse diário é conƟnuamente escrito em todos os momentos do exisƟr, e a escrita registra na forma de gestos, jeitos, marcas, rugas, cicatrizes. Se hoje eu ando de um jeito, faço gestos exagerados com as mãos, mecho no cabelo, tenho marcas

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de sol, cicatrizes, estrias, barriga. São registros que além das minhas caracterísƟcas naturais/ genéƟcas, foram criadas pelo que eu vivi até esse momento. Dessa forma, o processo de “esculpir” esse corpo fica sobre a responsabilidade dos afetos, estamos o tempo inteiro submeƟdos a forças que nos afetam, sejam essas presentes no nosso meio İsico, na TV, na internet, ou já dentro da gente, por meio de senƟmentos, idéias. E nesse senƟdo podemos falar do corpo como expressão, ou seja, uma forma de expressão desses afetos, das nossas emoções e até da forma como estruturamos tudo isso, lidamos com as dificuldades para sobrevivermos, nos organizarmos como seres vivos. Pedro BriƩo define corpo como: “A parte consƟtuinte de um ser enquanto está vivo, sua porção İsica, e na cidade o corpo é a menor dimensão viva de tudo que nela habita. Mas cada corpo é um limite de um conjunto específico da matéria permeada por uma separação entre o interno e o externo, o lado de dentro e o lado de fora de um corpo a definir o que é cidade e o que é corpo, o que é fora e o que é dentro. Para o lado de fora está o relacional do corpo com outros corpos e com o ambiente,


Nesse senƟdo, Nelson Lucero e Viviane Mosé nos definem como sendo feito desses afetos. E através da ação que estes impulsionam, tentamos ressignificar e manifestar o que nos afeta, mas a gente sempre se depara com limite, e estes quando organizados, nos ajudam a lidar com as forças que nos tocam. Nos afetamos através da experiência e esta é sempre singular e de primeira pessoa. A forma como buscamos transbordar esses afetos seria por meio da expressão. Nesse senƟdo o corpo com seus gestos e formas já é uma forma de expressão. E ao se movimentar, faz movimentos de contração e expansão, que gera um movimento chamado pulsação, e este faz com que afetamos também

nosso entorno e outros corpos. (LUCERO e MOSÉ, Acesso: 06/11) Ou seja, através da experiência absorvemos e transformamos a cidade. Afetamos e somos afetados por diferentes forças e assim somos construídos a cada relação. Nesse senƟdo, a pele representa a superİcie, limite İsico, interface, se conforma como fronteira entre dentro e fora. Entre o que eu sou, com os meus senƟmentos, desejos, ideais, e o que a cidade é, com toda as suas forças que nos afetam. Mas se a pele é o limite, a barreira, ela também se estabelece como conexão e me permite se afetar, transbordar e senƟr o mundo a minha volta. O corpo transborda por meio da expressão, ele brinca, organiza e sistemaƟza uma série de forças vetoriais no qual interagimos e nos afetamos. E assim, como resultado desses vetores, ele assume direções que lhe dão forma e senƟdo. Ou seja, o corpo se compõe como um conơnuo jogo de forças e ao mesmo tempo, o registro dos jogos anteriores. Se pensarmos essas forças como cores, podemos dizer que não nascemos de uma cor, nos tornamos aquela cor, e podemos ser pintados por outra, podemos misturá-las ou não. Nesse senƟdo, corpo para Iazana: “Deve ser compreendido com um processo que se forma a cada relação com a exterioridade, como um plano mulƟcolorido de forças externas.” (GUIZZO, 2008, s/p.) conƟnuando com a autora, podemos dizer que os corpos também inibem ou induzem ações: “Os corpos, como os endereços, são

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e para o lado de dentro estão as sensibilidades que consƟtuem os afetos do corpo, o que o torna sensível. É como corpo que estamos no mundo e é pelo corpo que o mundo nos afeta. No mundo construído o corpo transita entre objetos técnicos, se relacionando por meio destes objetos que atuam como extensões dos seus senƟdos e potências, próteses e órteses acessórios do corpo na cidade, mediadores de uma gama de sensibilidades. A cidade produzindo engendramentos de devires e agenciamentos do corpo, permeando as relações.” (BRITTO, 2011, p.110)

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forças em relação com outras forças que irão afetar-se e modificar-se a cada relação. Os jeitos de ser, os espaços, a mídia, a linguagem, tudo isso são formas, mas são formas associadas a forças que estão em relações de poder; são os terminais de GuaƩari. Os sujeitos e os espaços são terminais e estão sempre sendo afetados e afetando outras forças, estão sempre em movimento, se formando (reformando-se) nessas relações, aumentando ou diminuindo seu poder. Por isso não há um sujeito, um José, mas um processo José que será interferido incessantemente por inúmeras forças, inclusive os inúmeros endereços que ele irá, com a relação da sua própria força, também produzir.” (GUIZZO, 2008, s/p.)

O corpo, espaço e políƟca Da mesma forma como não existe um corpo fixo, não existe um espaço fixo, existe um espaço folheado que surge a cada composição das relações de forças num determinado endereço. O espaço só existe nessas relações, assim como o José também surge nas relações. José é um elemento que compõe o espaço folheado, e esses objetos espaciais também parƟcipam da produção de José. Nesse senƟdo, afirma-se que os espaços são produtores parciais de subjeƟvidade. E as subjeƟvidades parciais produtoras de objeƟvidade, porque José também compõe espaço. A palavra parcial vem no senƟdo que ambos não são a única força na composição. Sendo assim, endereço produz corpo e vive-versa. Num momento 106

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são umas forças aƟvas que produzem e no outro momento, essas mesmas forças inaƟvas são produzidas. Mas o que isso significa? Nos termos de Iazana: “Implica dizer que corpos e endereços – como terminais de forças em relações de poder, ou seja, inseridos na possibilidade de serem forças aƟvas e inaƟvas – são fatos políƟcos. Toda a produção de endereço dispara uma relação políƟca com os corpos e sempre os corpos podem ser forças aƟvas ou inaƟvas em relação aos endereços.” (GUIZZO, 2008, s/p.) Dessa forma, podemos considerar que corpos e endereços são políƟcos porque ambos produzem relações sociais, ambos afetam e estão em relação constante com o campo social. E é nessa relação que se criam acontecimentos políƟcos, isso porque fazem produzir as formas com que nos relacionamos nas cidades, às formas das cidades. Sendo assim, tudo é políƟco porque tudo provém de uma relação de poder. E essa políƟca é ao mesmo tempo macropolíƟca e micropolíƟca, essas se diferenciam, entretanto são inseparáveis, ficam constantemente entrelaçadas. “A micropolíƟca trata do campo das forças, do que é invisível, enquanto a macropolíƟca trata das formas, do que é visível”. A questão desses modos inseparáveis que nos interessa a análise micropolíƟca, enquanto


.1 | corpo] IMAGEM 2.5: Sequência Cotidiano do Centro de Vitória

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profissão de arquitetura e urbanismo. (GUIZZO, 2008, s/p)

Corpografias urbanas Uma forma de se estudar a relação do corpo com espaço seria através da corpografia urbana de Paola Berenstein. A corpografia é um método num contexto em que a cidade sofre um processo de espetacularização que gera um empobrecimento das experiências do corpo. Nesse senƟdo, usa-se a própria experiência urbana, por meio da práƟca que ela chama de errâncias, como uma micro-resistência a esse processo, e esta resulta em diferentes corpografias. Segundo Berenstein: “Uma corpografia urbana é um Ɵpo de cartografia realizada pelo e no corpo, ou seja, a memória urbana inscrita no corpo, o registro de sua experiência da cidade, uma espécie de grafia urbana, da própria cidade vivida, que fica inscrita, mas também configura o corpo de quem a experimenta (...) Cada corpo pode acumular diferentes corpografias, resultados das mais diferentes experiências urbanas vividas por cada um. A questão da temporalidade e da intensidade dessas experiências é determinante na sua forma de inscrição.” ( JACQUES, 2008, s/p) Além da corpografia, temos a cartografia

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que já foi mencionada na metodologia desse trabalho, e a coreografia que “pode ser vista como um projeto de movimentação corporal, ou seja, um projeto para o corpo (ou conjunto de corpos) realizar, o que implica, como no projeto urbano, em desenho (ou notação), composição (ou roteiro) etc.” ( JACQUES, 2008, s/p) Através de um estudo de gestos e movimentos, pode se chegar a uma corpografia, e através dessa a experiência urbana que a gerou. Esse estudo pode ser interessante para se compreender as pré-existências espaciais registradas no próprio corpo através das experiências urbanas. E as experiências, através da técnica das errâncias, poderiam registrar corpografias mais complexas. Através dessa práƟca da experiência, se atualizam os projetos urbanos que foram planejados por urbanistas, mas que não são eles que os atualizam. São as apropriações dos espaços que o legiƟma, antes era lugar, com o uso se torna espaço. “Os praƟcantes da cidade, como os errantes, realmente experimentam os espaços quando os percorrem e, assim, lhe dão “corpo” pela simples ação de percorrê-los. Estes partem do princípio de que uma experiência corporal, sensório-motora, não pode ser reduzida a um simples espetáculo, uma simples imagem ou um logoƟpo. Ou seja, para eles a cidade deixa de ser um simples cenário no momento em que ela é vivida. E mais do que isso, no


Paola usa o conceito de corpografia como resistência, quando o corpo experimenta um espaço urbano não espetacular. O interesse principal da corpografia urbana para a compreensão dos espaços estaria no estudo das corpografias involuntárias e também na voluntária, ou seja: na incitação de corpografias nos corpos daqueles que pretendem apreender os espaços urbanos de outra forma, de uma forma não espetacular ou de resistência, daqueles que pretendem estudar as cidades de uma forma corporal, ou seja, incorporada. A deriva é uma dessas formas de errâncias que se preocupa mais em ver a cidade de dentro, através dos seus percursos do que de cima. E não precisa de necessariamente registrar, além do registro que ocorre no corpo. Essa postura já difere dos tradicionais métodos urbanísƟcos, baseado em estaơsƟcas, criƟcando-o, além de criƟcar a espetacularização das cidades. Existem três caracterísƟcas principais nas errâncias: a de se perder, a da lenƟdão e da corporeidade. Se perder se contrapõe a obsessão pela legibilidade de um urbanismo baseado em planos e mapas, e assim busca-se a desorientação. A lenƟdão vem da negação da

velocidade imposta pela contemporaneidade. “Entretanto, a lenƟdão do errante não se refere a uma temporalidade absoluta e objeƟva, mas sim relaƟva e subjeƟva, ou seja, significa uma outra forma de apreensão e percepção do espaço urbano, que vai bem além da representação meramente visual.” (JACQUES, 2008, s/p) A lenƟdão não precisa ser necessariamente voluntária, ela pode acontecer por quem fica a margem da velocidade contemporânea, como os moradores de rua. O terceiro aspecto: a corporeidade vem da contaminação entre a cidade e o corpo İsico. (JACQUES, 2008, s/p) Essas três caracterísƟcas de errâncias denunciam, através da incorporação na cidade, o coƟdiano contemporâneo cada vez mais desencarnado e espetacular, e poderia possibilitar um urbanismo que uƟlizasse as corpografias e errâncias como forma de intervir de forma mais coerente com o contexto e coƟdiano do espaço.

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momento em que a cidade – o corpo urbano – é experimentada, esta também se inscreve como ação percepƟva e, dessa forma, sobrevive e resiste no corpo de quem a praƟca.” (JACQUES, 2008, s/p)

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Uma das primeiras intenções desse trabalho era tentar entender como as pessoas se relacionavam com o Centro através de conversas que seriam filmadas, seria um pouco menos formal que entrevista, já que não teria nem um roteiro fixo. As pessoas seriam escolhidas através dos acontecimentos que me levassem até elas, e o único critério era ter um tempo grande de vivência no Centro, que poderia ser por moradia, lazer ou trabalho. Entretanto, depois de algumas tentaƟvas eu fui percebendo que as conversas não estavam tão significaƟvas quanto eu queria. Primeiro porque eram gravadas, acabava inibindo a pessoa, e depois porque eram intencionais, parecia uma tentaƟva da pessoa falar o que eu queria ouvir, foram poucas vezes que eu consegui senƟr que realmente fluiu e, além disso, entender a relação dessa pessoa com o Centro através de algum tempo conversando não é tão simples assim. Outra questão seria que as conversas mais interessantes no decorrer do trabalho aconteciam de forma inesperada, quando eu não estava gravando. Assim, essas intencionais acabavam se perdendo no meio de outras tantas pessoas que apareciam durante o percurso, e que me ajudavam mais a entender a cidade. Essas por mais que não estejam registradas, permeiam o trabalho e estão na forma como eu passei a me relacionar com a cidade.

Sobre essas gravações, Ɵveram quatro que foram mais significaƟvas no senƟdo de me provocar a pensar sobre algumas questões desse trabalho e sobre o Centro. Importante ressaltar que não se trata de analisar as falas, ou a gravação, trata-se de buscar pensar sobre algumas questões que foram levantadas durante a conversa. A primeira se refere à Dona Marinalva, que trabalha no parque Moscoso vendendo pipoca. A segunda se refere ao Seu Barroco, a terceira trata-se do Zé Carlos catraieiro da baía de Vitória e a úlƟma a Dona Neuza, que tem uma banquinha de jogo do bicho.

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O CORPO E O CENTRO

IMAGEM 2.6: Sequência O andar pela cidade.

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DONA MARINALVA

Para variar um pouco meu ponto de origem - na maioria das vezes era na Praça Oito - fui para o Parque Moscoso, desci do ônibus e assim que entrei fui procurar um banquinho na sombra para me situar. Comecei tentando entender os barulhos, destoava o de crianças no balanço, o de carrinho de picolé andando, e o de árvore no vento, aquele lugar sempre me lembra barulhinho de vento. O cheiro era de pipoca doce e o que mais se viam eram homens conversando por toda parte, e mulheres com crianças. Resolvi conversar com as pessoas. Engraçado como isso é comum no centro, sempre um desconhecido vai falar com você quando esƟver num daqueles banquinhos. Mas eu morri de vergonha, tentei primeiro com o vendedor de picolé, esperei todo mundo sair de perto, e na terceira tentaƟva que consegui puxar assunto. Não conseguia fazer a conversa fluir, resolvi desisƟr e perguntar se ele sabia de alguém que eu pudesse conversar que morava por ali, ele me indicou a Dona Marinalva, vendedora de pipoca do parque. Fui falar com ela, pedi autorização para filmar e tudo certo, ela foi umas das poucas que ficou à vontade com a câmera. Dona Marinalva trabalha no parque há aproximadamente 30 anos vendendo pipoca. Sua mãe já vendia, ela deu conƟnuidade, e agora seus filhos também vendem, alternando alguns dias com ela:

“Minhas crianças tavam pequena, e um ia pra escola e outro ficava aqui. Quando um chegava da escola um vinha pra cá e o outro ia pra escola. Muitos anos, já tão tudo crescido, já tão com 30, 35.” Ela mora perto da Vila Rubim e trabalha de 7 da manha até 6 da noite e o que mais me tocou nela é como a sua roƟna diária, ou até as épocas da sua vida, são medidas em torno na Televisão: “Pro meu menino, eu digo assim: Paulinho você vai pra lá umas 5 e meia, 6 horas. Que aí eu vou pra casa e eu deixo você ficar até umas 7 horas, que dá pra você comprar um leite e um pão. Aí ele vem e fica, pega e guarda o carro, e eu vou pra casa, mas num é por nada não, é porque tá passando uma novela muito bonita, cordel encantado, mas nossa eu acho ela tão engraçadinha né, aí eu vou com tudo pra assisƟr a novela, eu chego em casa, vou mudando a roupa, vou tomando banho rápido, ás vezes nem tomo banho, tem vez que eu chego tá quase começando, aí eu depois que termina que eu vou lá dentro tomar banho...” Me lembro que eu tentava falar sobre

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Ou ainda falava sobre o Sílvio Santos, de como ele era bonzinho e dava geladeiras de presente. Em outro momento, fiz um comentário sobre o Parque Moscoso, de como era e como é, e acho que foi a única hora, na conversa inteira, que ela falou sobre o espaço, ou até de como transformaria esse espaço: “Do princípio, quando minha mãe e meu pai trabalhavam aqui Ɵnha mais movimento, porque eu não trabalhava não, só eram eles, os meus meninos ainda estavam pequenos. Depois que demorou

um pouquinho foi que eu vim. É! O movimento era melhor, olha! Tinha barraca dali daquele princípio ali até lá no fim. Tinha barraca assim com pizza, torta, cachorro quente, hambúrguer, refrigerante, Ɵnha tudo, bolo, tudo que você quiser Ɵnha. E Ɵnha uns pés de rosa, plantados assim ó, pelo caminho e Ɵnha um ar mais de alegria. Agora tá bonito também, essas plantas que eles fizeram, né?! O parque ficou muito lindo, essas plantas aqui, tem muitas casas que tem pé dessas plantas na porta, as plantas já estão crescidas, ficam tão bonitas. E aqui é muito lindo, eu gosto daqui. Mas se esse parque daqui fosse meu mesmo, se eu fosse a dona. Eu ia plantar, ia mandar adubar bem a terra e plantar tudo flores, rosas, adália, por aí tudo, angélica, margarida, encher os lugares tudo. Agora eu deixava os pés de palmeiras, os pés de palmeira é muito bonito. Mas eu ia mandar eles entupir de rosas. Mas ia ficar tão bonito. Né?”

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o parque, sobre a cidade, sobre o centro, e ela sempre voltava para os programas e novela, parecia que não Ɵnha lembranças ligadas a espaços, eram todas vindas da TV. Perguntei sobre onde ela levava os filhos quando criança: “Num levava pra canto nenhum, só levava no médico, na igreja, na escola. Pra passear eu não levava, porque dinheiro não dava, eu Ɵnha que trazer eles e eles viam às pessoas comer e queriam comer também alguma coisa. Eu preferia ficar dentro de casa.” E então ela já emendava com algum assunto da televisão: “Eu gostava também da cantora Gretchen, quando ela era nova, mas ela era uma gaƟnha, mas cantava bonito. Né? Nossa mas eu me empolgava quando ela chegava e fazia aquelas coisas finas. Ai! Ui! Quando ela começava a cantar, mas eu achava tão lindinho.”

E depois já veio me mostrando a revista do Sílvio Santos, mas já foi um alívio. Essa foi a primeira conversa “oficial” para o trabalho, depois fiquei pensando nessa frase do Galeano: “A televisão mostra o que

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acontece? Em nossos países, a televisão mostra o que ela quer que aconteça; e nada acontece se a televisão não mostrar. A televisão, essa úlƟma luz que te salva da solidão e da noite, é a realidade. Porque a vida é um espetáculo: para os que se comportam bem, o sistema promete uma boa poltrona.” (GALEANO, 1989, s/p) Dona Marinalva é um elo entre várias fases e gerações do Parque Moscoso, da sua evolução, seus projetos de transformações e tudo mais. Fiquei um pouco triste de ter ouvido tão pouco sobre isso, e um pouco assustada de como existem pessoas que realmente, muito mais que assisƟr, vivem a TV. Lembro de alguns momentos da entrevista que ela falava com tanta convicção de algum evento, como uma procissão, por exemplo, que eu achava que ela esƟvesse falando como se esƟvesse vivido aquilo, e só depois ela comentava o canal que passou. De fato, uma conversa como essa não é muito aprofundada e só pode ajudar a gente a refleƟr e discuƟr sem Ɵrar conclusões, e dessa forma foi uma maneira até de pensar o capítulo acima sobre subjeƟvidade e a sua relação com a mídia. (Conversa com Marinalva da Silva em Abril de 2011.)

IMAGEM 2.7: Sequência com Marinalva.

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Barroco Viana é um dos moços que cuidam de uma máquina fotográfica anƟga, conhecida como lambe-lambe, no Parque Moscoso. Nesse dia, estava ele e um amigo dele, que eu realmente não me lembro o nome, conversando. Expliquei do que se tratava o trabalho, liguei a câmera, e já percebi que a postura deles mudou, começaram a falar de um jeito mais formal. O amigo começou contando que é de Vitória e se mudou para Brasília, mas diz que Brasília não tem a alma que Vitória tem, por se tratar de uma cidade administraƟva. Ele se aposentou e voltou para Vitória e passa todos os dias no Parque Moscoso. “De manhã e de tarde eu tô aqui, isso aqui é a minha área de lazer.” Nunca deixou de ir ao parque quando morava em Brasília, passava em Vitória todas as suas férias. Ele conta sobre o processo de transformação do parque: “Isso aqui não era nada. Conheci isso aqui, era tudo aberto, você num Ɵnha nem projeto de vida. Eu sou de 1933. A construção dessa concha aí, eu assisƟ todinha. Inaugurada em 1951 com a orquestra sinfônica do Rio de Janeiro, regida por uma mulher, a primeira música que eles tocaram foi o guarani. Esse parque aqui não coube, de tanta gente, foi pequeno,

verdadeira maravilha.” Já Barroco - o fotógrafo - conta que começou a trabalhar com foto no Parque em 1967 e, naquela época, os fotógrafos eram considerados arƟstas. “A história da fotografia é anƟga, tem pessoas que nunca viram essa máquina aí. Tinha era muito aqui, Ɵnha 18, dos anos que eu tô te falando de 70, 80.” Fala que depois da popularização fotográfica, os fotógrafos foram indo embora, e o lambe-lambe que fica lá, é para memória da cidade, ele junto com outros fotógrafos, cuidam e expõe ela, mas Ɵram fotos 3x4 com câmera digital. Ele ainda fala bastante sobre a desvalorização do centro, em relação à Região do Novo Arrabalde: “Essa praça aqui nos anos 70, 80 Ɵnha um movimento de gente absurda, Ɵnha fila de gente pra entrar. Porque Ɵnha umas atrações aqui no parque bem mais do que hoje. O centro aqui ficou um pouco parado né, agora eles tão retornando, é a políƟca do governo. O shopping, por exemplo, Ɵrou muita gente daqui, aqui era ơpico lugar de turísƟco. Chegava ônibus, parava do outro lado ali e entrava aqui. Aqui era considerado o Centro de Vitória. Na capital, o

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BARROCO VIANA

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Centrão era aqui. O lado lá da praia, o boulevard, aquilo ali, cresceu muito, então eles tem que lá é o centro, mas o centro verdadeiro é aqui. Praça oito, Costa Pereira.” Interessante quando parte da história é contada por quem foi de fato afetado por ela, Barroco viveu a desvalorização políƟca ocorrida no Centro, mas ainda resisƟu a esse processo e habita aquele lugar até hoje, de uma forma que ainda conta essa memória e o processo de popularização da fotografia com a “escultura” de câmera anƟga que ele expõe. Outra questão que eu fiquei pensando depois é de como a gente, passando por um lugar, como por exemplo: passar a tarde no Parque Moscoso, não tem idéia da rede de teias invisíveis que compõe aquele lugar, vivem pessoas ali que se relacionam a muitos anos, que cuidam do espaço, acompanham a sua transformação, junto com a sua própria transformação. Entrelaçam a sua história àquela história, e os fatos de ambas parecem se misturar. São infinitas as linhas que tecem um lugar, e viver a cidade, é tecer linhas que se embolam a essas teias.

(Conversa com Barroco Viana e amigo em Maio de 2011) IMAGEM 2.8: Sequência com Barroco Viana.

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Realmente, acordar no centro de Vitória já faz toda diferença. Passa uma sensação de pertencionismo ao lugar muito mais intensa do que pegando um ônibus para vir fazer “pesquisa de campo”. Acordei na casa de uma amiga, e junto com um amigo fui para catraia com o objeƟvo de conversar com alguém que tem uma experiência da cidade muito mais tempo em água do que em terra. Fomos para catraia com objeƟvo de falar com o Seu João, que é a pessoa que tem mais tempo na catraia hoje (54 anos). Como ele não estava, porque já não tem mais condições de remar, então resolvemos falar com o seu Zé Carlos (34 anos de catraia). Entramos na catraia dele, junto com mais uns cinco passageiros e fomos conversando até atravessar a baía em direção a Paul. A conversa não fluiu ainda como deveria. E a câmera atrapalhou um pouco. Já em Vila Velha, descemos num cais com uma infra-estrutura péssima. No lado esquerdo ruínas de um anƟgo aquaviário, na frente uma rampa de passarela em espiral em péssimo estado de conservação. O mais interessante é que a rampa dá umas três voltas. Na segunda ela tem uma “emenda” com uma passarela de estrutura metálica, mas depois ainda dá outra volta, criando um mirante, obra de um acaso. E lá em cima, a gente tem aquela vista linda do centro do outro lado da baía, e em baixo as ruínas e o porto de Capuaba. De certa forma

aquele lugar para mim ainda representa uma conƟnuidade do Centro, onde as catraias fazem a ligação de uma forma muito eficiente. Assim aquela área se configura como um intersơcio, onde a maioria da cidade desconhece, mas que faz parte da roƟna das pessoas que fazem da catraia seu transporte de ligação Centro-Vila Velha, uma forma de experienciar a cidade é descobrir esses entres. Entre prédios que criam lugares, becos. Entre tempo, passado e presente que criam essa bricolagem desses espaços que “sobram” e passam a ter outro significado. Acabou que a entrevista da catraia me fez refleƟr muito mais sobre esse lugar do que eu esperava. Ficamos lá algumas horas senƟndo, Ɵrando fotos, e esperando o Zé Carlos voltar para buscar a gente. À volta para a margem de Vitória foi mais descontraída, Zé Carlos contou a importância da catraia pra ele, para o centro, para a cidade. Bonito era o orgulho que ele sente de fazer parte dessa história de Vitória, que segundo ele começou ali nas catraias, falou da importância da baia para Vitória e ainda brincou que daqui a pouco vai dar para atravessar de um lado para o outro com uma prancha: “Mudou muita coisa né, na época Ɵnha rodoviária ali, Ɵnha é, maré estreitou mais, canal mais largo, hoje em dia tá estreiƟnho, o pessoal invadia, o porto invadia, e são muitos casas, muitos prédios...

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ZÉ CARLOS

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E diz eles que vai mudar mais, o porto vai lá aonde tá aquele farol, qualquer dia você vai atravessar aqui em cima de uma prancha.” Interessante ver como as referências dele são outras: um navio que fez manobra, a velocidade do vento, os aterros. Da baía ele viu uma cidade que cresceu com inúmeros problemas e ele senƟu isso no seu barco, pela quanƟdade de gente que atravessa, pelas dificuldades em conƟnuar trabalhando ali: “Nós trabalhávamos à noite, fazendo a travessia, dos gringos, esƟvador, as dama da noite. Aí como o aquaviário acabou, aí nós assumimos a responsabilidade com a comunidade, né? Passamos o trabalho pro dia, paramos de trabalhar à noite. Diz eles que o aquaviário não dava certo né, porque tava dando pouco passageiro. Tava dando prejuízo. Mas na hora de pico de manhã e de tarde, tava dando muito passageiro, muito mesmo, mas eles falaram que tava dando prejuízo e a empresa sumiu.” Assim, na água ele sente as consequências de um porto que quer expandir e Ɵrá-los dali. Na água ele luta para que aquela história conƟnue sendo contada, mas não só em palavras, que seja contada no percurso, na

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travessia, permiƟndo que as pessoas através da experiência também façam parte. Desse momento ficaram várias idéias na cabeça, e uma vontade gigante de intervir naquele “entre” nem que seja para valorizá-lo como um entre. Deixar ele falar. (Conversa com Zé Carlos em Junho de 2011)

IMAGEM 2.9: Sequência Zé Carlos levando a gente de volta para a margem de Vitória.


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DONA NEUZA

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Fui à Costa Pereira logo após a catraia com o objeƟvo de conversar com um moço que tem uma barraquinha de ervas, raízes e outras coisas há 30 anos ali. Já Ɵnha ido umas duas vezes tentar falar com ele, que sempre se dizia ocupado. Depois de mais uma tentaƟva, desisƟ dele e fui andando por ali, para ver se Ɵnha outra pessoa que chamava atenção. Andei pela Rua 7, pela Graciano Neves, mas foi em um beco, que fica ali perto, entre dois prédios que me chamou atenção. O local se configura como outro espaço entre, mas agora em outro senƟdo, seria um intersơcio de uma cidade que para maioria das pessoas significa lugar de passagem, um atalho, mas que para alguns é quase como casa. Encontrei com um cara na porta de uma galeria que tem uma loja de relógio e que trabalha ali há 40 anos, mas ele falou que o moço que trabalhava lá dentro gostava de conversar muito mais. Entrei, e o moço lá de dentro me mandou conversar com o dono da loja que ia chegar do horário de almoço. DesisƟ dali também, não tava fluindo, e na saída do beco me chamou atenção uma senhora que trabalha com jogo do bicho. Parei para conversar com ela e descobri que ela trabalha ali também há 30 anos. Interessante que o limite do beco cria uma moldura que lembra uma janela, e ela se refere ao que está depois do fim do beco, depois

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da janela, no caso a Praça Costa Pereira, como se fosse um ‘lá fora’ e o beco fosse uma área interna e parƟcular em que as pessoas que trabalham ali são proprietárias e o ‘lá fora’ se configura como um local de risco, onde os drogados e os mendigos habitam a praça. Para ela foi uma das maiores transformações no local. Ela diz que a praça em si mudou pouca coisa, mas as pessoas que a habitam são completamente diferentes. Outra questão interessante consiste em como alguém pode fazer de um lugar com caráter basicamente de passagem - já que é estreito, no meio de dois prédios altos e que conecta dois pontos bastante movimentados, a Avenida Governador Bley e a Praça Costa Pereira - um lugar de permanência por mais de 30 anos. E ainda no mesmo ponto, com a banquinha na mesma posição, no fim do beco, voltada para Costa Pereira. Trata-se mais uma vez daquelas teias invisíveis de memória e amizade, que quando se passa por ali para cortar caminho, jamais se imaginaria. Pensei muito em intervir nesse local também, na questão de mostrar um pouco disso para os passantes, mas de qualquer forma, por falta de tempo, deixo para outras ocasiões ou pretextos. (Conversa com Dona Neuza em Junho de 2011) IMAGEM 2.10: Sequência de pessoas passando no beco e Dona Neuza atrás da placa “compro ouro” lendo jornal.


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[ ] ENTRE!


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“Poderia falar de quantos degraus são feitas as ruas em forma de escada, da circunferência dos arcos dos pórƟcos, de quais lâminas de zinco são recobertos os tetos; mas sei que seria o mesmo que não dizer nada. A cidade não é feita disso, mas das relações entre as medidas de seu espaço e os acontecimentos do passado: a distância do solo até um lampião e os pés pendentes de um usurpador enforcado; o fio esƟcado do lampião à balaustrada em frente e os festões que empavesavam o percurso do cortejo nupcial da rainha; a altura daquela balaustrada e o salto do adúltero que foge de madrugada...” (CALVINO, 1990, p.9)

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Nesse trecho do livro Cidades Invisíveis, que diz respeito à cidade e a memória, observamos que uma cidade é consƟtuída não só da sua estrutura İsica, mas das relações dessa estrutura com o que lhe confere vida e a transforma em cada fração do tempo. É nesse senƟdo que Certeau diferencia espaço de lugar. Para ele o lugar é a distribuição dos elementos, onde cada um possui uma localização “própria”. O elemento aqui é usado no senƟdo de “coisa”, e uma “coisa” necessariamente não ocupa o mesmo lugar de outra. “Um lugar é, portanto uma configuração instantânea de posições. Implica uma indicação de estabilidade.” (CERTEAU, 2004, p. 201) Já o espaço é definido no senƟdo de lugar praƟcado. Para ele a relação espaço/ lugar, seria como a palavra quando é falada, já que entra o fator tempo e se modifica pelas transformações e proximidades sucessivas. Nesse senƟdo, espaço seria quando existem vetores de direção, velocidades mais o tempo. Nos termos de Certeau: “O espaço é um cruzamento de móveis. É de certo modo animado pelo conjunto dos movimentos que aí se desdobram. “Espaço é o efeito produzido pelas operações que o orientam, o circunstanciam, o temporalizam e o levam a funcionar em unidade polivalente de programas conflituais ou de proximidades contratuais.” assim, o

espaço não adquire a estabilidade do “próprio”.¹ (CERTEAU, 2004, p.202)

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DO LUGAR AO ESPAÇO

Se pensarmos, num espaço, como por exemplo, o Parque Moscoso, veremos que é um lugar, que foi um parque projetado com seus elementos, tais como paisagismo, mobiliários, pavimentação, e o que torna desse lugar um espaço, são as práƟcas que ocorrem ali, tais como: a moça vendendo pipoca, as crianças correndo, os aposentados passando a tarde jogando baralho, etc. A relação de espaço/lugar de Tuan se diferencia da forma que pensa Certeau, mas é nessa palavra “estabilidade” que as duas definições possuem um ponto em comum. Para Tuan o lugar é entendido como segurança, proteção e de certa forma estabilidade, enquanto que o espaço é visto como liberdade. Segundo Tuan: “Na experiência, o significado do espaço freqüentemente se funde com o de lugar. Espaço é mais abstrato do que lugar. O que começa como espaço indiferenciado transforma-se em lugar à medida que o conhecemos melhor e dotamos de valor. Os arquitetos falam sobre qualidades espaciais do lugar; podem igualmente falar das qualidades locacionais do espaço. As idéias de espaço e lugar

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não podem ser definidas uma sem a outra. A parƟr da segurança e estabilidade do lugar estamos cientes da amplidão, da liberdade e da ameaça do espaço, e vice versa. Além disso, se pensamos no espaço como algo que permite movimento, então lugar é pausa; cada pausa no movimento torna possível que localização se transforme em lugar.” (TUAN, 1983, p.6) E esse lugar, pode ser até considerado como uma classe especial de objeto, no senƟdo de que acumula valor, e apesar de não ser facilmente transportado (com exceções), é um objeto que se pode morar, viver, se encontrar. Dessa forma, os homens precisam de espaço e lugar. Já que se trata de um movimento dialéƟco entre refúgio e aventura, dependência e liberdade.2 (TUAN, 1983, p.61) Assim, se compararmos as duas definições veremos que além da noção de “estabilidade” atribuída a lugar, veremos que até a noção de objeto, bastante usada por Tuan, se assemelha com a idéia de Certeau, já que para ele o lugar é a disposição de “coisas” que é como se gerasse um objeto que com o movimento/tempo se torna espaço. A noção de abstrato de Tuan também se assemelha, se pensarmos que o espaço de Certeau não possui só caracterísƟcas İsicas, se trata de relações, da enunciação do lugar. Já o autor, Milton Santos trata o conceito de espaço dividindo-o em elementos. A palavra elementos é usada no senƟdo de “categoria”,

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que pode ser usada em todos os tempos, para a compreensão, desde que se levem em conta as mudanças históricas. Nas suas palavras: “O espaço não pode ser apenas formado pelas coisas, os objetos geográficos, naturais e arƟficiais, cujo conjunto nos dá a natureza. O espaço é tudo isso mais a sociedade: cada fração da natureza abriga uma fração da sociedade atual... Assim temos de um lado, um conjunto de objetos geográficos distribuídos sobre um território, sua configuração geográfica ou sua configuração espacial e a maneira como esses objetos se dão aos nossos olhos, na sua conƟnuidade visível, isto é, a paisagem; de outro lado, o que dá vida a esses objetos, seu princípio aƟvo, isto é, todos os processos sociais representaƟvos de uma sociedade em um dado momento” (SANTOS, 1985, p.1) Dessa forma, percebemos que os principais elementos dessa composição seriam: os homens, as firmas, as insƟtuições, o chamado meio ecológico e a infra-estrutura. Assim os homens seriam elementos na condição de fornecedores de trabalhos ou de nãoempregados, aposentados e desempregados, já que só de estarem presentes num lugar, demandam certo Ɵpo de trabalho para os outros. As firmas respondem pela produção de bens, serviços e idéias e as insƟtuições


.3 | entre! IMAGEM 3.1: A Praça Costa Pereira/arredores e os elementos que compõem o espaço.

pelas normas, ordens e legiƟmações. O meio ecológico consƟtui o conjunto de complexos territoriais que consƟtuem a base İsica para o trabalho humano e as infra estruturas consƟtuem o trabalho humano materializado na forma de casas, plantações, caminhos, etc. (SANTOS, 1985, p.6) Apesar da forma de pensar o espaço divido em elementos, ressalta-se que estes estão em relação um com outro o tempo todo: “homens e firmas, homens e insƟtuições, firmas e insƟtuições, homens e infra-estruturas, etc. Mas não são relações bilaterais, todos se relacionam com todos, mas não nessas coisas em si, mas através de suas qualidades e atributos, formando um sistema.” (SANTOS, 1985, p.14) Onde esse sistema é organizado pelo modo de produção dominante. Nesse sistema, além dos elementos que atuam no lugar, ele terá relações diretas ou indiretas com outros lugares, que podem ser, de onde vem matériaprima, recursos e até decisões que afetem esse espaço. Dessa forma, se Certeau determina

espaço com vetores/velocidade/tempo que ocorrem num lugar, Santos define espaço como a relação dos elementos. O lugar de Certeau seria como se fosse o meio ecológico mais a infra-estrutura de Milton Santos, e se tornaria espaço para Certeau se os outros elementos (firma/homens/insƟtuições) agissem no lugar.

1- O “próprio” no sentido de que cada elemento se situa num lugar “próprio” e distinto que o define, sendo impossível que mais de um elemento ocupe o mesmo lugar. (CERTEAU, 2004, p.201) 2 A definição de espaço e lugar de Tuan é bastante dialética, em que o ‘entre’ não é tão considerado como Certeau considera.

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ESPAÇO LISO | ESTRIADO

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Cabe aqui também, pensar a cidade por meio do conceito de liso e estriado de Deleuze. Os dois espaços apesar de serem diferentes, não são uma dualidade, o importante é que um é constantemente traduzido no outro. “Num caso, organiza-se até mesmo o deserto; no outro, o deserto se propaga e cresce; e os dois ao mesmo tempo. Note-se que as misturas de fato não impedem a disƟnção de direito, a disƟnção abstrata entre os dois espaços.” (DELEUZE, 1997, p.157) Deleuze explica os dois conceitos com base em diversos modelos, nos quais citarei alguns: O primeiro refere-se à comparação de um espaço estriado a um tecido, já que este é consƟtuído por dois elementos paralelos, verƟcais e horizontais que se cruzam perpendicularmente. Enquanto um senƟdo é fixo, o outro é móvel passando entre os fixos. Além disso, um espaço estriado é sempre limitado, assim como o tecido é na sua largura, apesar de que no comprimento pode ser infinito, e esse Ɵpo de espaço, assim como o tecido, apresenta um lado certo e um avesso. (DELEUZE, 1997, p.158) Já o espaço liso se compara ao feltro, já que este não possui disƟnção alguma entre os fios, nem cruzamentos, são fibras emaranhadas por prensagem. Sendo assim, se opõe ao espaço do tecido em cada ponto: não é homogêneo, é aberto e infinito para todos os lados, além de não ter lado direito nem avesso, nem centro e

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IMAGEM 3.2: Esquema sobre base do Centro de Vitória.


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nem fios fixos e móveis estabelecidos. (DELEUZE, 1997, p.159) Outra comparação pode ser feita entre o bordado como espaço liso, já que tem seu tema central, apesar de poder ser bastante complexo nos seus fixos e móveis, variáveis e constantes. Bastante diferente da colcha de retalhos, o patchwork, que não há centro, nem base e é feito como pedaços de tecido sucessivos e infinitos, nas palavras de Deleuze: “O espaço liso do patchwork mostra bastante bem que “liso” não quer dizer homogêneo; ao contrário, é um espaço amorfo, informal, e que prefigura a op’art.” (DELEUZE, 1997, p.160) Outro modelo- o maríƟmo - referese aos dois espaços como um conjunto de pontos, linhas e superİcies, mas a diferença é que no espaço estriado, as linhas/trajetos tendem a ficar subordinadas a pontos, vai-se de um a outro e assim nasce a linha. No liso, os pontos nascem do trajeto. É por exemplo, a subordinação do habitat ao percurso, o espaço de dentro conformado ao de fora, como no iglu, a tenda, o barco. O trajeto provoca a parada e o intervalo e a linha consiste num vetor/direção e não dimensão. Ou seja, o espaço liso é direcional e não dimensional. Segundo Deleuze: “O espaço liso é ocupado por acontecimentos ou hecceidades, muito mais do que por coisas formadas e percebidas. É um espaço de afectos, mais que de propriedades. É uma percepção hápƟca, mais do que ópƟca. Enquanto no espaço estriado as formas organizam uma matéria,

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no liso materiais assinalam forças ou lhes servem de sintomas. É um espaço intensivo, mais do que extensivo, de distâncias e não de medidas (...) Por isso, o que ocupa o espaço liso são as intensidades, os ventos e ruídos, as forças e as qualidades tácteis e sonoras, como no deserto, na estepe ou no gelo. Estalido do gelo e canto das areias. O que cobre o espaço estriado, ao contrário, é o céu como medida, e as qualidades visuais mensuráveis que derivam dele.” (DELEUZE, 1997, p.163) Considera-se o mar um espaço liso por excelência, mas também um dos primeiros que sofreu processo de estriagem pela navegação de longo curso, através da conquista astronômica e geográfica, tais como longitudes e laƟtudes, pelos astros, sol, mapa com meridianos e paralelos. Assim, pouco a pouco o mar foi passando de direcional para dimensional. De liso para estriado. (DELEUZE, 1997, p.164) Em relação ao modelo estéƟco, referese ao liso como um objeto de visão aproximada e o elemento de um espaço hápƟco (tato aƟvo)². Já o espaço estriado remete a uma visão mais distante e mais ópƟca. Mas de qualquer forma a passagem de um para outro é bastante incerta. Seria como um quadro que apesar de ser feito de perto, é para ser visto de longe. Nos termos de Deleuze: “O espaço liso, hápƟco e de visão aproximada, caracteriza-se por

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um primeiro aspecto: a variação conơnua de suas orientações, referências e junções; opera gradualmente. Por exemplo, o deserto, a estepe, o gelo ou o mar, espaço local de pura conexão. Contrariamente ao que se costuma dizer, nele não se enxerga de longe, e não se enxerga o deserto de longe, nunca se está “diante” dele, e tampouco se está “dentro” dele (está-se “nele”...).” (DELEUZE, 1997, p.181) Além dos modelos resumidos aqui, existem diversos, mas não é o caso de se discuƟr todos, importante aqui é considerar a passagem de um para o outro. O espaço é constantemente estriado sob as forças que nele exercem, mas ao mesmo tempo ele desenvolve outras forças e cria novos espaços lisos através da estriagem. Nos termos de Deleuze: “Mesmo a cidade mais estriada secreta espaços lisos: habitar a cidade como nômade, ou troglodita. Às vezes bastam movimentos, de velocidade ou de lenƟdão, para recriar um espaço liso. Evidentemente, os espaços lisos por si só não são liberadores. Mas é neles que a luta muda, se desloca, e que a vida reconsƟtui seus desafios, afronta novos obstáculos, inventa novos andamentos, modifica os adversários. Jamais acreditar que um espaço liso basta para nos salvar.” (DELEUZE, 1997, p.189)


.3 | entre! 2 Háptico: tato ativo. “Se trata de um sistema perceptivo complexo que incorpora e combina informações a partir de distintos subsistemas tácteis, como o cutâneo (percepção da pressão e da vibração), o sistema térmico e as terminações nervosas da dor. Além disso, o sistema háptico inclui também o sistema cinestésico que processa informação sobre a posição e o movimento por meio de receptores existentes em articulações do corpo, músculos e tendões.” (Loomis y Lederman 1986. Disponível em: www.proz.com/kudoz/1235971. Acesso 08/2011)

IMAGEM 3.3: Linhas e fios.

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AS FRESTAS URBANAS Chamaremos de frestas urbanas o ‘entre’, o que fica entre o espaço e o lugar e vice versa. Se a cidade cria e recria seus espaços em cada movimento, inventa seus ritmos, traça seus percursos, nesse contexto, as práƟcas urbanas também surgem, se reinventam, desaparecem. E se essas práƟcas criam e consolidam espaços, quando deixam de exisƟr, podem deixar restos, lugares que são resultados de diferentes momentos de práƟcas, e que também são reflexos das despráƟcas e do tempo. Uma malha urbana possui muito desses entres, estruturas que ocupam um território, tem sua memória, compõe uma paisagem, mas que no coƟdiano de uma cidade se configuram como “buracos”, intersơcios que são como esculturas, onde a matéria prima consiste no que sobrou até o momento em que foi vivenciada, e daí em diante passam a ser moldadas, deformadas por um acaso/descaso. Esses entres, além de se configurarem como frestas İsicas de uma cidade, são também 132

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frestas de um sistema, já que se perderam ou se tornaram desnecessárias na dinâmica que é estabelecida para que uma cidade se sustente. Determinadas práƟcas urbanas fazem parte de um contexto social, políƟco, espacial, e se o contexto muda, essas práƟcas também mudam ou deixam de exisƟr, resultando nessas marcas İsicas na cidade. O Centro de Vitória, como é resultado de inúmeras sobreposições ao longo da história, possuem muito dessas frestas, lugares carregados de memória, mas que são buracos na malha urbana, já que não são vivenciados. A experiência urbana permite que possamos perceber esses “espaços” como foi o caso da intervenção catraia, e o local apesar de não se localizar insƟtucionalmente no Centro de Vitória, se configura como extensão deste.


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A INTERVENÇÃO CATRAIA Estudar a cidade por meio da experiência urbana já se trata de uma intervenção, porque quando a vivemos, estamos a transformando e deixando rastros, como foi discuƟdo na metodologia. Dessa forma, a idéia na intervenção catraia é enfaƟzar esses rastros a parƟr de uma ação mais efeƟva no espaço, e usar o próprio objeƟvo da ação como forma de uma experiência urbana mais intensa. Além disso, se pensarmos que a práƟca urbana transforma o lugar em espaço, outro objeƟvo da intervenção seria perceber como uma fresta urbana, que já foi espaço de diversas práƟcas e hoje se encontra abandonado, pode se alterar através de outras práƟcas. Seria um recriar o espaço, potencializá-lo através do uso, do encontro. O local é o ponto de embarque/ desembarque da catraia, no lado de Vila Velha, no bairro de Paul. A escolha se deu através do percurso da pesquisa, que através da experiência, surgiu uma necessidade minha

IMAGEM 3.4: Panorâmica fresta urbana, catraia em Paul.

de intervir nesse lugar, mudando a direção do trabalho para que esse siga a ordem dos acontecimentos e dos afetos. O lugar trata-se de uma estrutura que foi construída para abrigar o terminal aquaviário de Paul, este fazia parte de um sistema composto ainda pelos terminais de Dom Bosco, Porto Santana, rodoviária de Vitória, Centro e Prainha. A linha Paul/Centro é a mais anƟga no sistema de transporte aquaviário da Grande Vitória, a sua origem é por volta de 1850, já que a ocupação de Vila Velha aconteceu em volta da linha do bonde que ligava a sede de Vila Velha ao cais de Paul, onde exisƟa a integração entre esses dois modais, a linha do bonde foi exƟnta em 1967. E o terminal de Paul entrou em operação em 1978 sob administração da COMDUSA- Cia de melhoramentos e desenvolvimento urbano-. (NEVES, 1980, p.13) O território se divide em três partes principais de acordo com a imagem 3.5, são

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essas:

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A parte 1 consiste em uma área aberta com piso de barro e árvores, é onde embarcam e desembarcam os passageiros da catraia, apesar de não oferecer estrutura adequada e nem segurança para atender as centenas deles que fazem o trajeto todos os dias. A parte 2 trata-se da edificação que abrigava as funções do anƟgo terminal aquaviário, até que por decisões políƟcas foi desaƟvado, ou seja: é uma sobra da cidade gerada por uma políƟca que ao privilegiar o transporte terrestre deixou como conseqüência essas fissuras na cidade. Depois a edificação passou a ser uƟlizada como local de drogas e prosƟtuição, que apesar de ser uma forma “marginal” de uƟlizar o espaço, ainda se configurava como práƟca que o alterava e sobrepunha camadas na estéƟca desse, tais como as pichações que hoje existem lá. Já a parte 3: consiste em uma rampa helicoidal de três voltas, onde a impressão é em que algum momento se anexou nela uma passarela metálica que a liga a uma das ruas de Paul, interessante é que a passarela foi emendada na segunda volta, e “sobrou” uma terceira que se configura como um “mirante” para o Centro e aƟvidades do porto que acontecem em volta. O local é todo cercado por áreas portuárias, além de um dos lados, que é a baía de Vitória. Quando foi construído, por trás do terminal passava uma via de uso público que foi tomada pelo porto de Paul e hoje é fechada, sendo assim, o acesso (fora o da baía) acontece só pela passarela que funciona como uma

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tentaƟva de conectar o local ao bairro Paul, passando por cima do porto e da via fechada. Depois que o sistema aquaviário foi desaƟvado e o local passou a ser usado como ponto de drogas e prosƟtuição, seguranças do porto (através da passarela) e os catraieiros (através do baía) resolveram controlar o acesso a essa estrutura. Atualmente ela se encontra subuƟlizada, e além de passagem, é usado para as refeições dos catraieiros, apesar de não exisƟr estrutura nenhuma, sendo que o local é bastante sujo e não tem equipamentos adequados, água e energia elétrica. Entretanto, o local tem uma das vistas mais privilegiadas do Centro de Vitória, e acesso é rápido e fácil através das catraias, que seria um sistema que dilui as fronteiras entre Vila Velha e Vitória (apesar de insƟtucionalmente se tratar de território de Vila Velha, a sensação é que ainda estamos no Centro). O fato de o local ser, de certa forma, mais conectada a Vitória através da catraia e da paisagem, mostra que a baia nem sempre se configura como uma barreira, e nesse caso o porto de Capuaba se configura como a barreira principal , uma ruptura dessa estrutura com a malha urbana. O que se propõe nessa experiênciaintervenção é que através da praƟca urbana, retorne o caráter de espaço a essa “fresta urbana”, mas que através dessa praƟca também se enfaƟze esse lugar como sobra. Ou seja, destacá-lo, enfaƟzá-lo, mostrar sua história, sua memória. torná-lo gritante, e através da enunciação aumentar a sua voz. Portando, a idéia é perceber a experiência urbana como re.criadora de espaços e percebemos que


2

a configuração da cidade não vem apenas do planejamento ou da sua forma concreta. A cidade acontece na experiência “entre” essa forma, no imaterial, nas forças com que afetamos e somos afetados. Sabe- se que somente através dessa experiência não conseguiremos consolidar aquele espaço de fato, mas pretende-se que seja um início, um movimento para que os catraieiros percebam o potencial daquele lugar como praƟcável, e que tenham vontade de melhorá-lo, sabendo que isso pode parƟr deles. A intenção é que parƟndo da práƟca, eles consigam o remodelar e o colocar de volta na dinâmica dos espaços da cidade.

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IMAGEM 3.5: Esquema área de intervenção.

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LOCALIZAÇÃO

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fresta urbana conexão- parcial | controlada ruptura Vistas (próxima página) IMAGEM 3.6: Esquema sobre base google earth.

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VISTAS

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.3 | entre! IMAGEM 3.7: Panorâmica de cima da passarela da área de intervenção para área portuária e Centro de Vitória.

IMAGEM 3.10: Localização da imagem 3.6 no contexto de Vitória e parte de Vila Velha. IMAGEM 3.8: Panorâmica do Centro de Vitória para Porto de Capuaba e destacado a fresta catraia.

IMAGEM 3.9: Panorâmica da catraia para o Centro e pôr do sol.

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O PROJETO | EXPERIÊNCIA O projeto|experiência se baseia em dois pontos principais e que se relacionam: a memória e a práƟca. A memória será buscada em imagens fotográficas, recortes de jornais e na própria estrutura İsica do lugar. Sendo assim foi deixada uma câmera descartável com 27 poses com os catraieiros para que para Ɵvéssemos acesso aos seus olhares diante de suas roƟnas e contexto. Além dessas, Ɵve acesso a 15 fotos do fotografo Humberto Capai que parƟcipou de uma publicação em 1995 sobre a memória dos catraieiros. Trata-se de um trabalho que eles se orgulham e se idenƟficam bastante. Foram usadas também fotos minhas do processo. De acordo com Lucrécia: “A percepção como controle da experiência urbana surge como aquela dimensão da linguagem responsável pelo desenvolvimento da capacidade de apreender o coƟdiano da cidade e extrair, daí, os elementos capazes de esƟmular a ação, o comportamento e a intervenção sobre ela (...)” (FERRARA, 1991, p.107) Serão marcadas algumas caracterísƟcas da edificação que denunciam o tempo e as práƟcas que ocorreram ali, tais como algumas pichações que seriam enquadradas com molduras e marcas de deterioração como problemas na estrutura e buracos na alvenaria, essas serão contornadas de preto. As fotos serão

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pregadas em barbantes e lonas amarradas nos pilares, junto com texto explicaƟvo da exposição. Tudo isso na parte da edificação que era o anƟgo terminal. Na rampa que acessa a passarela, a idéia é traçar barbantes entre todos os andares, e nesses amarrar fitas com frases que dizem respeito à memória, a baía e ao lugar. No chão, desde a passarela, passando pela rampa, pela parte descoberta e terminando na edificação, será traçada uma linha branca para enfaƟzar o percurso para ser percorrido na exposição. Tudo de forma simples, mas significaƟva para os catraieiros, buscando a idenƟficação deles com cada detalhe. Já a práƟca, a idéia é um churrasco realizado pelos catraieiros, passageiros, amigos e pessoas que forem no evento, de forma que durante essa tarde, junto com o churrasco, se monte a exposição para que aconteça uma interação entre todos. A intenção também será dar uma visibilidade ao lugar, com outras pessoas indo o conhecer, além de mostrar para os catraieiros que estão ali coƟdianamente, que eles também podem usar aquele lugar mais intensamente, o modificar e se apropriar mais dele.

3 Tratam-se de fotos do livro Memória Viva: catraieiros da Baía de Vitória da Secretaria Municipal de Cultura e Turismo, Vitória, 1995.

IMAGEM 3.11: Projects. Vitória vista do cais de Paul.


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PROJETO | DIAGRAMAS

área de embarque báia de Vitória

projeção edificação anƟgo terminal

linha de conexão entre as três áreas (anƟgo terminal, rampa e área de embarque)

molduras

IMAGEM 3.12: Diagrama área de intervenção.

murais

percursos

esteiras

IMAGEM 3.13: Planta baixa antigo aquaviário.

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.3 | entre! IMAGEM: 3.14: Esboço da ambientação da intervenção.

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Fotos do local IMAGEM 3.15: Interior antigo terminal aquaviário. IMAGEM 3.16: Rampa de acesso a passarela. IMAGEM 3.17: Área embarque e desembarque ao fundo.

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Fotos Humberto Capai IMAGEM 3.18: Seu João. IMAGEM 3.19: Seu Raimundo. IMAGEM 3.20: Passageiros embarcando.

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Fotos Ɵradas pelos catraieiros IMAGEM 3.21: Catraias. IMAGEM 3.22: Roney. IMAGEM 3.23: Zé Carlos. IMAGEM 3.24: Negativos de algumas fotos.

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O DIA

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Tudo pronto, fotos impressas, materiais comprados, pão de alho caseiro, cervejas ganhadas da Clara e da Tetê, caixa de som, lonas do CALAU e um tempo meio chuvosa. Saí de casa atrasada, já no centro, por volta de meio dia, recebo um telefonema do Zé Carlos (catraieiro) preocupado que a gente não Ɵnha chegado ainda. Passamos em alguns lugares que faltaram e chegamos à catraia. Lá foi um sufoco para por no barquinho aquela caixa de som pesada, mais um monte de sacola, tudo isso junto com o Gaúcho, catraieiro que levou a gente, mas uns três passageiros de Paul, um moço de Recife que estava voltando para o

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navio pasmo com a situação, três amigos e eu. Eu estava indo lá na catraia todos os dias da semana, mas já havia uns dois que não atravessava para Paul, e chegando lá Ɵvemos a primeira surpresa: O local estava limpo, um dia antes, uns quatro catraieiros se reuniram entre uma travessia e outra, e limparam praƟcamente tudo, como estava cheio de entulhos e algumas pessoas usavam as ruínas como banheiro, uma das minhas maiores preocupações era como estaria aquilo no dia. Mas meu alívio foi que os catraieiros jogaram água, Ɵraram os entulhos e deixaram o lugar encaminhado para o churrasco, com grelha para a churrasqueira e


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tudo mais. Para mim a intervenção já Ɵnha dado certo ali, eles se reunirem para limpar um local que nunca limparam antes era um bom começo e o orgulho que eles estavam disso era óƟmo. Começamos a organizar a mesa na área aberta, era um barco com um compensado em cima e uma toalha de chita, ficou linda. Apesar da chuva fininha, as pessoas foram chegando pela baía e pela passarela, e junto delas a cerveja, o gelo e os demais materiais. Depois o fundo do barco serviu para gelar a cerveja, segundo um moço da catraia, o casco é óƟmo para conservar o gelo. Para tocar um samba foi um sufoco, lá não tem energia, Ɵvemos que ligar a caixa de som ligada com uma extensão de 20 metros ligada à recepção do Porto de Capuaba, como estava em cima da via do porto, quando passava um caminhão ela estourava e o moço que toma conta da recepção emendava os fios de novo. Apesar da estrutura improvisada e do clima nublado, a interação que exisƟu ali foi inacreditável, todo mundo fazendo alguma coisa do trabalho ou do churrasco, conversando, ouvindo histórias. A noite chegou rápido, mas mesmo sem energia, muita gente não queria ir embora. De várias cenas, vou descrever quatro que foram bem marcantes: (Relato dia 25.07.2011)

IMAGEM 3.25: Mural fotos do processo. IMAGEM 3.26: Vão com barbantes e fitas. IMAGEM 3.27: Montagem mural fotos catraieiros. IMAGEM 3.28: Catraia chegando na intervenção.

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No início do churrasco Ɵnham uns cinco catraieiros conversando, entreguei para eles o pacote das fotos reveladas. Zé Carlos foi passando as fotos e mostrando para os demais, começaram com as minhas Ɵradas do processo, depois passaram para as que eles Ɵraram com a câmera descartável, com essas eles ficaram rindo e se implicando enquanto viam, mas emocionante mesmo foi quando eles pegaram as do Humberto Capai. Nesse bloco Ɵnham fotos do Zé Carlos anƟgas que ele nunca Ɵnha visto, fotos do Seu João (o catraieiro mais anƟgo ali), e fotos do Seu Raimundo, um catraieiro que faleceu. Essas fotos foram uma surpresa, Zé Carlos ficou emocionado e num parava de olhar: “Ô filha! Onde você conseguiu isso? Faz uma cópia dessas pra mim, por favor, tem eu, tem Seu João, tem Raimundo que era amigão meu...” Outro momento foi quando Zé Carlos falou que tem 32 anos que ele trabalha lá e nunca viu aquilo acontecer e uma galera tão legal, e que tem muita gente que faz pesquisa lá, mas que nunca foi para eles de verdade. Falou que estava muito orgulhoso daquele lugar, da vista e que a parƟr daquele momento cuidaria melhor dali e conversaria com os amigos para que fizessem o mesmo. Vi também o Gaúcho no telefone com a esposa: “Mas só tem gente bonita aqui, um monte foto nossa, cerveja, vem pra cá...” Lembro-me bem que teve uma hora em que estávamos contemplando a vista deitados nas esteiras e um menino, que até então eu nem conhecia, comentou que se Ɵvesse ido em outra ocasião, teria achado o lugar assustador, mas daquela forma, com aquela interação entre as

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pessoas e com o espaço, era tudo muito bonito. E como ele conheceu desse jeito, as outras vezes que voltasse ficaria ainda com essa impressão. Outra situação foi quando tava tudo montado e eu chamei eles para verem como ficou, já estava meio escuro, uma pena. Mas fiquei de longe observando eles discuƟndo as fotos, relembrando histórias, e mostrando-as um aos outros. Depois de tudo pronto, ficamos mais um pouco conversando e esperando a chuva passar, depois atravessamos de catraia, umas 10 pessoas na mesma, quase superlotação e os meninos implicando com Zé Carlos se exisƟa lei seca no mar. Nos despedimos, Zé Carlos e Roney agradeceram emocionados. Expliquei mais uma vez que os responsáveis eram eles, que se dispuseram a parƟcipar com toda a disposição desde o inicio, fazendo com que o trabalho simplesmente fluísse. Fomos embora com a certeza de um dia bem marcante de trabalho coleƟvo e que deu muito certo em tudo. E ainda fomos comemorar na Rua Sete.


.3 | entre! IMAGEM 3.29: Catrieiros olhado as fotos. IMAGEM 3.30: Zé Carlos e a sua foto tirada por Humberto Capai. IMAGEM 3.31: Gaúcho levando a gente para a intervenção.

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IMAGEM 3.32: Camila e Léo traçando linha do percurso. IMAGEM 3.33: Bárbara com as fitinhas de poesias. IMAGEM 3.34: Placa de chegada do local. IMAGEM 3.35: Vão com as fitinhas.

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.3 | entre! IMAGEM 3.36: Barco/mesa e as pessoas cuidando do churrasco. IMAGEM 3.37: Mural fotos do Humberto Capai. IMAGEM 3.38: Meninas fazendo a placa de chegada. IMAGEM 3.39: Uma das molduras de pichação. IMAGEM 3.40: Mural fotos catraieiros. IMAGEM 3.41: Mural fotos do processo. IMAGEM 3.42: Linha percurso pronta. IMAGEM 3.43: Pessoas conversando na esteira. IMAGEM 3.44: Zé Carlos levando a gente de volta para o centro.

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O DEPOIS

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Dois dias após a intervenção voltei às catraias, com o coração na mão, já que com tudo que está na cidade, nunca se sabe exatamente o que vai acontecer. E foi assim mesmo: Surpresas! Quando eu cheguei à roleta (margem do Centro) o Gaúcho já comentou que eles Ɵveram um probleminha, atravessei a baía e de longe já vi. O primeiro mural de fotos estava vazio. Não falei nada e esperei eles comentarem. Lá estava Zé Carlos que veio me contar que uma pessoa que não quis parƟcipar do churrasco Ɵnha pegado as fotos bem cedinho para fazer um álbum na casa dele. Zé Carlos bravo, fez ele voltar em casa e buscar as fotos. E juntou todas num mural só. Até as que estavam na lona. Aliás, a lona desapareceu. Conversei de novo com cada um sobre o porquê daquelas fotos estarem ali, e que era interessante mostrar a história deles para eles mesmos e para cidade, alguns Ɵnham total consciência disso, os outros foram entendendo, reorganizei o material, e depois fiquei conversando com Zé Carlos, e aí que eu fui entender que eles eram bastante desarƟculados entre eles, a ponto de não conseguirem entrar num consenso nem sobre o término de uma obra que Zé Carlos começou de uma cozinha e de um banheiro, fundamental na situação de trabalho que eles vivem. Fiquei um pouco triste com essas histórias todas, a catraia trata-se de uma resistência histórica, atua por meio de táƟca nas frestas do sistema e já sobreviveram a várias

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situações e épocas, tais como o inicio e o fim do aquaviário. Uma desarƟculação entre eles enfraquece e pode até fazer com que esse Ɵpo de transporte que faz parte da memória da cidade, desapareça. Mas enfim, voltando à intervenção, de certa forma acho que esse jeito de intervir, se relacionando com as pessoas, conseguem fazer imergir uma série de fatores intrínsecos a aquele grupo, que por métodos tradicionais, tais como a entrevista, jamais conseguiria ter acesso. Sem falar das relações de amizade e afetos que se criam através da interação. Sendo assim, percebi que esse Ɵpo de vivência seria fundamental, se no caso eu fosse fazer um projeto naquele lugar, ou seja, seria uma base muito mais consistente de informação, vivência e envolvimento com o espaço que traria segurança para alterá-lo de acordo com as relações que ocorrem nele. Outra observação foi como a forma como a relação das pessoas com o espaço se alterou a parƟr da intervenção, me surpreendeu que uma ação tão simples pudesse trazer tantos resultados. Primeiramente do lado dos catraieiros, que a parƟr daquele momento começaram a reaver os projetos de melhoria e já estão tentando se rearƟcular para dar conƟnuidade da obra refeitório/cozinha. Sem contar que o local se tornou muito mais limpo, cuidado e moƟvo de orgulho. Achei interessante que eles falam para os passageiros seguirem a linha no chão do percurso que passa pelas ruínas do aquaviário.


.3 | entre! IMAGEM 3.45: Seu João na catraia.

Em relação aos convidados que foram, notei que já apareceram diversos planos de uso do lugar. Tais como reuniões, projetos de intervenção e etc. No dia, pessoas que não conheciam, gostaram muito do local e quem já conhecia, mudou a visão sobre ele. Deixando evidente que a percepção que a gente tem de um lugar e estreitamente relacionada à memória e do que a gente viveu sobre ele. E que a interação sobre o lugar e com o lugar é capaz sim de inseri-lo na dinâmica dos espaços da cidade, reintegrando-o a malha urbana. Mostrando que para um projeto é necessário muito mais que a distribuição de elementos com lugar próprio. A vivência e a interação onde se vai intervir são de fundamental importância para que este seja

inserido na cidade. Ou seja, a intervenção, apesar das divergências do dia posterior, foi um sucesso e um início de um processo de recriação de um espaço, uma camada a mais naquele lugar, na sua memória e na sua estéƟca e uma semente jogada para que ele seja tranformado e tranforme a cidade. (Relato dia 25.07.2011)

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SOBRE O AQUAVIÁRIO

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Intervir em alguns locais, pode fazer emergir uma série de problemáƟcas que precisam ser quesƟonadas, como nesse caso da intervenção.catraia. O transporte aquaviário é um dos assuntos urbanos mais polêmicos da Grande Vitória, já que possuímos a baía de Vitória que é um elemento natural de ligação que poderia ser bastante aproveitada em questão de transporte público, conectando diversos pontos da Região Metropolitana. Mas acontece que esse modelo já foi usado, e até o ponto que eu pude perceber, funcionava de forma eficiente como ligação entre as margens de Vila Velha, Vitória e Cariacica. Mas acontece que uma políƟca voltada para grandes empresas de transporte terrestre, fez com que gerasse uma desaƟvação do transporte maríƟmo. Os argumentos do governo são muitos, poucas travessias, preço da passagem que não cobria os custos, dentre outros. Se os argumentos são reais ou não, não possuo base o suficiente para afirmar, mas sei da opinião de Zé Carlos que afirma que o movimento do aquaviário na época que foi desaƟvado era imenso e que gerou um grande descontentamento da população. Quanto aos custos desse transporte, acho que não se compara aos prejuízos em poluição, engarrafamentos e manutenção de estradas que uma políƟca voltada ao transporte motorizado terrestre pode causar. E o que conseguiu resisƟr ainda nessa história toda, são as catraias. Sobrevivem realmente nas frestas do sistema, e do espaço.

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Resistem como sempre ao longo da história “aos trancos e barrancos”, como eles mesmos dizem. A cada dia o porto esmaga mais o espaço de travessia, e eles precisam ficar fazendo o percurso de forma perigosa, circulando os navios. As reclamações são muitas, e sempre no senƟdo de uma cidade que não os respeitam e não respeitam os passageiros. Mas é como tudo nessa cidade, que nos oferece uma geografia linda, com muitos potenciais, e ainda assim, tudo é forçado para que façamos ao contrário, abrimos pistas onde era água, nos apertamos em engarrafamentos do lado de uma baía que cada vez diminui mais. “Atravessar a baía em cima de uma prancha” é a frase do Zé Carlos, uma das que eu mais guardei no percurso desse trabalho. Um dia parei para ler as noơcias de jornais que diziam respeito ao aquaviário, era uma noơcia mais revoltante que a outra. Ora falava bem do sistema, quando ainda fazia parte da políƟca da época e depois o discurso muda completamente e o aquaviário passa a ser um peso para a cidade. Tem uma noƟcia de 2002 com o seguinte trecho: “A poucos dias de completar dois anos de desaƟvação, o futuro do sistema aquaviário da Grande Vitória ainda é uma incógnita. O governo do estado alega que não há viabilidade para voltar a operar o sistema e o novo projeto, voltado para o turismo, depende


Ou seja: Projeto voltado para o turismo falta de verba para planejamento integrado,

combinados com uma falta de respeito enorme por quem habita essa cidade, são caracterísƟcas ơpicas de urbanismo em Vitória, trata-se da mesma história sempre. E enquanto essa forma de pensar a cidade permanecer, vai conƟnuar negando o que ela pode nos oferecer em termos de qualidade de vida, para nos trancafiarmos em vias de carros.

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do planejamento integrado com outros serviços, o que requer um plano detalhado e verbas que não estão disponíveis.” (A Gazeta, 2002, p.13)

IMAGEM 3.46: Recorte jornal A gazeta de 31 de Maio de 2003.

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“Um mapa de Esmeraldina deveria conter, assinalados com Ɵntas de diferentes cores, todos esses trajetos, sólidos ou líquidos, patentes ou escondidos. Mas é diİcil fixar no papel os caminhos das andorinhas, que cortam o ar acima dos telhados, perfazem parábolas invisíveis com as asas rígidas, desviam-se para engolir um mosquito, voltam a subir em espiral rente a um pináculo, sobranceiam todos os pontos da cidade de cada ponto de suas trilhas aéreas.” (CALVINO, 1990, p.52)

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Impossível marcar no papel todos os movimentos de uma cidade, são movimentos que criam percursos, se entrecruzam, criam espaços, e definem as cidades. A experiência urbana acontece na escala que permite o toque, toque que transforma a cidade nos seus detalhes, nas suas minúcias e a torna uma construção coleƟva de seus habitantes. Dessa forma para pensar sobre cidade, imagine se sentar num banquinho, como por exemplo, na Praça Oito, e de lá ficar observando o entorno. As edificações, o monumento do Relógio, os carros passando a mil, os inúmeros pedestres, o barulho do vento carregando as folhas, a sensação de calor minimizado pelas árvores, as pessoas conversando do seu lado, e muitas vezes vindo conversar com você. As histórias delas, os guindastes do porto aparecendo lá do outro lado, a textura do piso, a ponta da catedral em cima na cidade alta, o conforto do banquinho naquela confusão e por aí vai. Dessa forma podemos perceber que a cidade é formada por uma série de elementos numa composição que sempre se relaciona, se sobrepõe, se entrelaça numa sinergia constante. Ou seja, a cidade é sempre um processo, além de um resultado das relações que já lhe acontecerem. Nesse senƟdo a cidade também não se faz apenas por espaços públicos, pelo contato İsico “carne e pedra”, ela também existe nessas

relações indiretas, nas frestas, no entre. Nos pombos nos fios, vasos de flores no peitoril, barulho de plásƟco de toldo no vento, nas luzes acesas nos prédios de madrugada, evidenciando que para parƟcipar na composição de uma cidade, basta exisƟr nela. No decorrer desse trabalho, sempre se destacou para mim as janelas, já que ao mesmo tempo em que ela se configura como uma barreira, “um atrás”, se trata de uma abertura, um foco para uma parte da cidade, que a gente pode interagir todos os dias. Nesse senƟdo, Georges Teyssot cita Baudelaire, nos termos: “Existe uma irrupção do exterior (metropolitano) no interior, o que tem duas conseqüências: o interior transforma-se numa fachada, ao passo que o transeunte se torna voyer: Olhando do exterior numa janela aberta nunca se vê tanto quanto se vê olhando através de uma janela fechada. Nada é mais profundo, mais misterioso, mais sugesƟvo, mais insidioso e mais fascinante que uma janela iluminada por uma vela... Naquele cubículo escuro ou luminoso a vida vive, a vida sonha, a vida sofre. Para o poeta da cidade moderna, a janela, vista através da sua exterioridade desorientada,

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SOBRE CIDADE

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é melhor percepcionada a parƟr do exterior e à noite. Enquadra a existência solitária e anônima da humanidade metropolitana, e oferece uma imagem, uma alegoria, da solidão contemporânea.” (TEYSSOT, 2010, p.237) Poderíamos dizer também, que no geral uma cidade surge de acordo com as necessidades de um agrupamento de pessoas, nesse senƟdo elas adaptam o meio natural para que saƟsfaçam sua sobrevivência, a sua fome, a sua sede, a necessidade de um abrigo que lhe proteja das intempéries, a necessidade de circular, e de outros serviços que vão além de seu abrigo, tudo isso num processo sem fim. Ou seja, a cidade é como se fosse uma extensão das pessoas, do que elas precisam para sobreviver, se encontrar e viver de fato. Sendo assim, poderíamos considerar o corpo, e as subjeƟvidades com suas histórias, desejos, memórias, como imprescindível, como o principal. E é a parƟr dessa questão subjeƟva, que podemos pensar que dentro de uma mesma cidade, existem outras várias cidades, e que estas variam de acordo com a subjeƟvidade que a percorre, já que cada um cria cidades para si, que está relacionado com o percurso, com o ponto de vista, a forma de perceber os signos e tudo isso mediante a carga de memória que a subjeƟvidade possui. “A cidade, já não como uma imagem do pensamento, mas como

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uma imagem do inconsciente, do desejo, com suas camadas superpostas, com seus rastros e ruínas.” (PAL PEBART, 2000, p.43) Sendo assim, a subjeƟvidade está sempre a moldando, e a transformando e se transformando, a parƟr do que se considera como a “sua” cidade, a que faz parte do seu percurso coƟdiano. Pal Pebart diz que ao se percorrer um trajeto na cidade, esta remete a duas cidades sobrepostas: a real, a imaginária, e um trânsito metódico entre elas. Nas palavras dele: “Pois todo objeto, pessoa, grupo, singularidade com a qual ela cruza, já carrega consigo um meio em constante germinação, já esta rodeado de uma névoa de virtualidade que o acompanha, já habita uma espécie de inconsciência que o povoa, já pode ser a ponta de um cristal de inconsciente.” (PAL PEBART, 2000, p.44) O autor cita o exemplo das crianças, elas estão constantemente explorando o meio virtual, o piso da rua, os gritos da feira, as árvores. Ela explora os trajetos inventados, onde cada elemento pode lhe afetar diretamente, e lhe desencadeia múlƟplos devires. E esse virtual se atualiza a parƟr da experiência, da invenção. Essa dimensão não é mais subjeƟva, imaginária ou ausente do que aquilo que podemos ver, ou tocar. Nem é mais operaƟva que o concreto. Ela é apenas mais molecular. ConƟnuando com Calvino:


Nesse trecho o autor nos coloca uma questão essencial, se a cidade foi criada como um processo para dar forma aos desejos e necessidades das subjeƟvidades, até quando ela conƟnuou ou vai conƟnuar com essa função? Até quando ela existe na escala do corpo, do toque? Sabe-se que atualmente nas cidades operam outras forças e que estas se sobrepõem ao corpo, são outros interesses baseado num sistema capitalismo e num mundo globalizado. A necessidade que de que elas ainda sejam consideradas como lugar do possível, tal como disse Peter Paul Pebart no seu livro, é óbvia. Ela precisa conƟnuar dando forma aos anseios, necessidades e desejos, precisa de conƟnuar como lugar de vida e encontro. Sobre essa questão, fica uma pergunta do autor: “O quanto a cidade preserva ainda seu caráter de exterioridade, o quanta ela comporta de virtualidade, o quanto ela consƟtui

O autor fala que vivemos num estado de nomadismo desenfreado, mas um falso nomadismo, já que o fazemos parcialmente e na condição de terminais imóveis, cercados de próteses tecnológicas, em que uma sociedade do controle passa a se estender sobre o planeta e os disposiƟvos tecnológicos vão subsƟtuindo o que chamávamos de meio ambiente. Sendo assim, nas suas palavras: “Como podemos ainda traçar trajetos exploratórios na cidade, se mal temos um meio, se mal dispomos de uma exterioridade, se mal deslumbramos um virtual, de tão saturados que estamos entre outras coisas pelo que ironicamente se chama de realidade virtual. (...) O desafio consisƟria em livrar-se do pseudo-movimento que nos faz permanecer no mesmo lugar, e sondar que Ɵpo de meio uma cidade ainda pode vir, que afetos ela favorece ou bloqueia, que trajetos ela produz ou captura, que devires ela libera ou sufoca, que forças ela agluƟna ou esparze, que acontecimentos ela engendra, que potências fremem nela, e à espera de quais novos agenciamentos.” .pele | experiências urbanas no Centro de Vitória

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“Dito isto, é inúƟl determinar se Zenóbia deva ser classificada entre as cidades felizes ou infelizes. Não faz senƟdo dividir as cidades nessas duas categorias, mas em outras duas: aquelas que conƟnuam ao longo dos anos e das mutações a dar forma aos desejos e aquelas em que os desejos conseguem cancelar a cidade ou são por esta cancelados.” (CALVINO, 1990, p.18)

ainda um meio a ser explorado, o quanto ela se presta todavia a novos trajetos, a novos traçados de vida? (PAL PEBART, 2000, p.45)

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(PAL PEBART, 2000, p.45)

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Paola Berenstein fala de uma redução da vitalidade popular dos espaços da cidade, que dentro da lógica da cidade espetacular, em que os espaços públicos são pensados enquanto peças publicitárias, para consumo imediato. Esses espaços precisam ser reduzidos, assepƟzados e gentrificados por projetos urbanos, para que se tornem espaços midiáƟcos e espetaculares. Mas de qualquer forma é importante perceber sempre que existe uma “outra cidade” escondida e que resistem nas margens e brechas dessas cidades espetacularizadas. As micro-resistências são infiltrações ou pequeno desvios que ocorrem nesse processo e essas podem ser encontradas no coƟdiano da cidade, na experiência não planejada. Nos termos de Paola: “Essas táƟcas ou astúcias que não se restringem aos espaços opacos mais delimitados das cidades, como as favelas, mas infiltram também nos seus espaços mais luminosos, através de uma série de atores: vendedores ambulantes, moradores de rua, catadores, prosƟtutas etc. Aqueles que, não por acaso, são os principais alvos da assepsia promovida pela maioria dos projetos urbanos pacificadores, ditos revitalizadores.” (JACQUES, 2010, p.112)

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No entanto, por mais que a cidade realmente sofra um processo de espetacularização, essa palavra resistência de certa forma me incomoda, me vem a imagem de uma cidade em guerra em que as pessoas estão o tempo inteiro resisƟndo nos intersơcios, vivendo nas frestas. Que a resistência acontece é fato, mas não de uma maneira radical, ou proposital. Essa resistência existe como um processo natural de uma cidade que ainda flui, se dobra, e se reinventa. E em que a espetacularização é uma força, existem outras: “Somos sempre interiores e exteriores à cidade, o que nos faz sair dos possíveis estocados para afrontar outros mundos, outras histórias, outros agrupamentos virtuais, sempre recriando espaços lisos, reinventando singularidades de espaço-tempo, reabrindo em nosso cérebro e na cidade, as passagens, os sulcos, seus escapes, suas novas conexões.” (PAL PEBART, 2000, p.48)

A cidade e os afetos Pensar a cidade através da questão da relação de forças é percebê-la que ela está sempre mudando, em cada fração de tempo, em cada passo de uma criança, em cada barulho de folha caindo, ela se torna outra, assim como um rio que corre e que cada vez que se entre nele, mesmo que seja no mesmo ponto, ele não vai ser o mesmo. Assim, podemos dizer que quando tocamos objetos de uma cidade, não tocamos o objeto de fato, tocamos um conjunto de parơculas em relação e movimento. De acordo


acordo ou combate. Nesse senƟdo poderemos ter vários outros agentes, como um guarda que informa a maneira amarela de sentar, ou até olhares reprovaƟvos das pessoas passando. Nos termos de Iazana: É um conjunto de amarelo que move uma percepção e é um conjunto de azul que quer contrapor essa percepção. Pode também haver um conjunto de cinza, verde e lilás que juntos colocam suas forças em ainda outras direções. E é por haver tantas direções que esse lugar ora se torna azul, ora amarelo ou ainda um cinza esverdeado. Os espaços não pré-existem a essas pinturas, as forças estão sempre em disputa pela pintura do lugar. Não há espaço incolor ou neutro, há sempre uma composição de forças produzindo um espaço a cada instante em um endereço. O espaço, então, ao invés de ser algo dado, uma vez criado, é a materialização das relações de forças produzidas em um instante. Sua duração é de um instante porque no próximo a composição das forças já será outra. (GUIZZO, 2008, s/p)

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com Iazana: “Há um universo intocável com as mãos, que vive no entre, na relação entre coisas – na relação entre o banco e a árvore, na relação entre um transeunte e o gramado – que podemos perceber mesmo que temporariamente.” Ela cita o exemplo de um banco, o que torna ele ser chamado um banco é uma questão percepƟva que parte de uma organização que define percepções e formas para que se reconheçam objetos e sujeitos. “São forças que conectam as parơculas para consƟtuir um banco e são outras forças que fazem ver o banco”. Ou seja, junto com esses objetos e sujeitos existem um plano de relações e de forças que são tão reais quanto o banco, mas que são mutáveis quanto a nossa percepção, já que o que toca são forças que atuam e transformam a cada instante. (GUIZZO, 2008, s/p) A cidade se cria e se recria no conjunto dessas forças. Iazana usa o exemplo da força como cor, a cada instante uma cor pinta um endereço - Endereço no senƟdo de delimitar um espaço geográfico - sendo assim, imagine o banco como da cor amarela. Essa forma surge de um conjunto de forças amarelas que não estão apenas na forma do banco, estão na forma de usá-lo, de vê-lo. A forma de percebê-lo que faz consisƟr essa força. Apesar dessa cor de força prevalecer no momento, não faz como que exista sozinha. Quando por exemplo, alguém que não reconhece aquela forma e senta-se ‘de forma incorreta’ faz como que surja outra força, a azul, por exemplo, que nesse momento pode subsƟtuir à amarela ou no mínimo entrar em

Toda relação de força se consƟtui como uma relação de poder. O poder do azul é dado quando ele não compõe com o amarelo e esse perde potência e passa para uma condição .pele | experiências urbanas no Centro de Vitória

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de possibilidade. Portanto em cada relação de espaço, de sujeitos, de mídia, existe uma relação de poder, que está “entre” nas práƟcas coƟdianas, está intrínseco no corpo social, e não acima dele. E é essa questão que pode ser chamada de microİsica do poder. Este está nas relações coƟdianas enquanto relações. A microİsica é a analise dessas relações de forças. E essas relações existem em toda parte, o poder se produz em cada instante, com forças que surgem de todos os lados: “Se a força amarela consiste é porque desenhamos um banco amarelo, mas não só, também produzimos olhares amarelos, frases amarelas, gosto amarelo. Se por todos os lados a força pintada é amarela, começamos a somente perceber amarelo e agir amarelo, passamos a ser agentes do amarelo.” (GUIZZO, 2008, s/p) Assim, essas relações de poder acontecem no nível dos afetos, do corpo, da forma de como saímos das relações. A análise das forças que o espaço agencia, é a mesma que analisar os afetos que ele dispara. Dessa forma, pensando o espaço como agente de forças, destaca-se que ele não apenas representa, mas produz realidades. Os espaços arquitetônicos e urbanísƟcos não são apenas materiais, eles agem como forças, induzindo ou inibindo ações. O poder do espaço está

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precisamente aí, na medida em que ele produz realidades. ConƟnuando com Iazana: “Corpos e endereços são políƟcos porque ambos produzem relações sociais, ambos afetam o campo social. Os espaços não são fechados em si, os corpos não são interioridade, são ambos forças em relações constantes com o campo social. É essa relação que os fazem acontecimentos políƟcos, porque os fazem produzir as formas com que nos relacionamos nas cidades, as formas das cidades.” (GUIZZO, 2008, s/p) Nesse senƟdo, importante destacar que toda políƟca é ao mesmo tempo macropolíƟca e micropolíƟca. São formas diferentes, mas que são inseparáveis. E é justamente por serem inseparáveis que interessa a análise micropolíƟca. Essa trata do que é invisível, enquanto a macropolíƟca trata do que é visível. Sendo assim nos interessa, porque a arquitetura costuma olhar só para forma, como se no espaço exisƟsse apenas a macropolíƟca. “A parƟr da idéia de que tudo é engendrado em uma relação de força, Felix GuaƩari vai propor uma micropolíƟca, que devolve ao campo políƟco cada ação, cada ato de produção de realidade. Esses atos nunca são fatos isolados, não são apenas formas, mas


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sempre estão engendrados em uma relação de poder, em uma relação de força. A micropolíƟca é um modo de recortar a realidade a parƟr do campo das forças, na medida em que essas também produzem realidades, afetos, desejos.” (GUIZZO, 2008, s/p) A micropolíƟca nos permite analisar cada corpo ou cada endereço sob uma perspecƟva de relações de poder. E a arquitetura e urbanismo seriam como práƟcas políƟcas através de forças que podem facilitar ou dificultar ações. Seriam como produtoras de subjeƟvidade, já que num determinado endereço existe uma rede de relações, e que por esse espaço desenhado pelo arquiteto nunca estar sozinho é que ele produz subjeƟvidades de morar, de viver. Os espaços são micropolíƟcos, sendo assim: “O que as forças dos objetos arquitetônicos e urbanísƟcos potencializam? Em que direções às forças dos nossos desenhos atuam? Que afetos um espaço produz?” (GUIZZO, 2008, s/p). A micropolíƟca permite fazer invesƟgações políƟcas em cada objeto. Permite um exercício de cartografias de forças que se preocupa com os Ɵpos de subjeƟvidades, em que os objetos arquitetônicos ajudam ou não a produzir.

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O ARQUITETO E URBANISTA Trata-se aqui das formas como são geridas e planejadas as cidades. Já que nessas, em toda sua complexidade, existem várias formas de vida, de relação e de expressão que ultrapassam todos os seus limites geográficos, urbanísƟcos. E que fogem principalmente às formas de planejamento que tentam intervir na cidade como se fosse um corpo estáƟco. Segundo José Miguel: “A arquitetura cria os lugares onde se desenvolve nossa existência coƟdiana, estabelece uma ordem e origina as fronteiras que conduzem a construção de um mundo determinado e a maneira como o vemos. Deste modo se ajudam a construir e reproduzir as relações de sexos, raças, culturas, idade e classe social. Já que o conceito de espaço não é um grupo abstrato nem homogêneo nem arbitrário de relações, bem ao contrário, nosso entendimento do espaço emerge da ação. (CORTÉS, 2010, s.p) Nesse senƟdo, muitas vezes as cidades são planejadas de uma forma racionalista e através de um olhar de cima, e à distância, no lugar de enfaƟzar um imaginário da cidade, aquela dos transeuntes, do homem comum, do coƟdiano, da experiência urbana. Nas palavras

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de Olivier: “Para o urbanismo, o lugar deve corresponder a uma ordem que distribui os elementos dentro das relações de coexistência. O olho do engenheiro exclui, realmente, que duas coisas possam “estar no mesmo lugar ao mesmo tempo”: aquilo com o que sonha, em contraparƟda, a imaginação do arƟsta e do transeunte. Para o primeiro, a cidade é um lugar onde a lei do próprio deve reinar; para o segundo, o espaço urbano é um não lugar, ou seja, um cruzamento de móveis, em suma um lugar praƟcado.” (MONGIN, 2005, p. 35) Ou seja, a forma de se pensar a cidade deveria remeter a uma linguagem da pluralidade e a uma linguagem políƟca que busca a parƟcipação, tanto na igualdade como no conflito. Sendo assim: “O lugar desenhado pelo urbanista poderia dar corpo a uma experiência urbana que se enuncia em diversos níveis, aqueles de uma poéƟca, de um cenário e de uma políƟca?” (MONGIN, 2005, p.36) Outra questão, além da críƟca à forma racionalista de transformar uma realidade, tratase de uma críƟca contra o caráter alienante, como fala Lefebvre: “Da própria pretensão de


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tornar os problemas urbanos uma questão meramente administraƟva, técnica, cienơfica, pois ela mantém um aspecto fundamental da alienação dos cidadãos: o fato de serem mais objetos do que sujeitos do espaço social, fruto de relações econômicas de dominação e de políƟcas urbanísƟcas por meio das quais o Estado ordena e controla a população.” (ELIAS & MEDEIROS, 2010,P.13) Nesse senƟdo, o Estado pode até resolver necessidades materiais como moradia e transporte, porém priva as pessoas da condição de sujeitos da construção da sua própria cidade. Assim Lefebvre fala de uma cidadania que vai além do direito de voto e expressão verbal. Trata-se de uma cidadania em que as pessoas possuem controle direto sobre a forma de habitar a cidade, e essa se torna uma obra coleƟva em que cada um tem espaço para manifestar a sua diferença. Nos termos de Gabriel Santos Elias e João Telésforo: “O novo urbanismo idealizado por ele (Lefebvre) é o da utopia experimental, que parte dos problemas de lugares concretos, onde se desenvolvem relações sociais, e os submete à críƟca e à imaginação de novas possibilidades. O papel da ciência é auxiliar, cabendo-lhe fazer a críƟca da vida coƟdiana por meio da análise do ritmo da vida diária das pessoas, e estudar as implicações e conseqüências das novas formas .pele | experiências urbanas no Centro de Vitória

de apropriação inventadas pelos cidadãos.” (ELIAS & MEDEIROS, 2010,P.13) Os ritmos da populaçãourbana definem o coƟdiano, e esse é resultado/processo de uma mulƟplicidade de momentos, tais como trabalho, arte, jogo, amor, conhecimento, lazer, cultura. Uma nova sociedade urbana seria criada na alteração desses ritmos, de modo que propiciasse o uso completo dos lugares com plena fruição de direitos. Seria para Lefebvre, a imaginação sobre a razão, a arte sobre a ciência, criação sobre repeƟção, e assim seria possível restaurar a cidade como obra dos seus habitantes. Trata-se de um procurar um outro olhar sobre a cidade, que não esteja preocupado com a ordem em si, e nem com uma necessidade absurda de tentar controlar, podar fluxos e Ɵpos de apropriações. Trata-se de procurar um olhar de dentro do urbano, preocupado em permiƟr Ɵpos de interações, manifestações, recriações e apropriações do espaço. Trata-se de pensar o espaço como forma de eclodir singularidades.

IMAGEM 4.1 (página anterior): Fios e Janelas IMAGEM 4.2: Liberte-se


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CONSIDERAÇÕES FINAIS

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Este trabalho consiste em experiências urbanas no Centro de Vitória como forma de pensar a cidade e o urbanismo. Dessa forma, procurou-se parƟr de uma postura de (re)conhecer o Centro, sem conceitos já estabelecidos sobre o local, e tentando buscar ou deixar fluir elementos e acontecimentos que se destacassem dentro de uma infinidade que a cidade apresenta. Outra questão foi buscar não importar um discurso de uma visão pessimista, de quem estuda cidade estando fora dela e, como se essa fosse algo longe, separado, em terceira pessoa. Além de lugar de perigo, e de limitações. Assim, entende-se que a cidade está na gente, do mesmo jeito que a gente está nela, trata-se de uma coisa só, por isso foi uma dificuldade tratar alguns conceitos de forma separada, já que todos se sobrepõem e se relacionam sempre, existe uma interface e um fluxo que conectam todos essas questões de corpo, espaço, experiência, que talvez tenham feito que alguma parte se repeƟsse. Outra questão buscada foi permiƟr que o trabalho se desdobrasse além desse volume, de um jeito que até retornasse para o urbano, nesse senƟdo a intervenção catraia foi uma dessas maneiras, quando foram expostas fotos do processo do trabalho e levantadas questões inerentes de planejamento, memória, políƟca para a população. Nesse senƟdo foi um ponto

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de parƟda que conƟnua através de movimentos políƟcos que foram conhecer e divulgar como a InsƟtuição Social Olho da Rua1, de um interesse do Célula-EMAU2 e dos próprios catraieiros que estão se arƟculando para melhorar o espaço e para reivindicar direitos melhores nessa cidade que é pensada em prol de grandes empresas, em detrimento dos reais praƟcantes e habitantes. Esse trabalho também foi importante para perceber na práƟca que um lugar realmente precisa das relações que ocorrem nele para que se configurar como um espaço de fato inserido na cidade. Mais um desdobramento, é pensar essa intervenção como uma primeira de um processo que conƟnua, além das projeções de filmes em lugares públicos e outros trabalhos que incitem uma apropriação dos espaços pela população, numa tentaƟva de mostrar que a cidade existe como lugar de todos e que seus lugares públicos podem ser mais vivenciados. Importante mencionar que esse projeto foi uma construção coleƟva, o que fez com que o trajeto ficasse mais intenso e mais sincero. De certa forma todos os trabalhos são coleƟvos, já que nada acontece de forma completamente individual, mas neste isso se tornou muito evidente. Sendo assim, além das pessoas que habitam o Centro que eu conheci durante esse tempo, na maior parte das experiências urbanas e decisões, Ɵnham amigos comigo mudando os


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percursos, discuƟndo, pensando a intervenção. Assim, agora vejo que além de pensar, discuƟr essas questões, trata-se de provocar mudanças. A experiência por si só já causa mudanças na gente, na forma como passamos a nos ver, a ver o outro e a ver o espaço. E essa experiência para o arquiteto e urbanista é fundamental. Mas acho que a questão ainda não seja tratar a “experiência urbana” como algo que deve ser feito, mas como algo que flui e que agora se insere na forma de se levar uma vida que é urbana e aberta a possibilidades e acontecimentos. Trata-se de um permear a cidade de forma entregue e que contagie, movimente, provoque. Talvez provocar esses acontecimentos, movimentar de uma forma que faça imergir processos, vivências, afetos, que possam ser uma das maiores contribuições da nossa profissão para cidade. Esse trabalho, já que se trata de um processo, não acaba aqui. Novas experiências urbanas estarão em www.singularcidades. blogspot.com, junto com algumas experiências que não apareceram nesse volume. O acervo fotográfico está em www.flickr.com/ samiraproeza. 1_CCCP Centro de comunicação e cultura popular “olho da rua” é uma é uma instituição social que utiliza as novas tecnologias da informação, a produção de mídias e outros elementos culturais para debater os diversos problemas sociais e opressões vivenciadas no cotidiano, a fim de pensarmos soluções coletivas por meio das idéias e práticas de transformação da sociedade e das relações humanas que surgem ao longo deste processo de educomunicação. 2_Célula- Escritório Modelo de Arquitetura e Urbanismo que trabalha com o objetivo de articular acadêmia e comunidades

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“E agora o que fazer com essa manhã desabrochada a pássaros?” (Manoel de Barros)


ÍNDICE DE IMAGENS IMAGEM 0.1: Poema Paulo Leminski. Fonte: Blog Margarida e Violeta, jul 2011 <www.margaridaevioleta.wordpress.com IMAGEM 0.2: Sequência caminhar Praça Oito. IMAGEM 0.3: Pele. Fonte: Morgan Lucas Art, jul, 2011 <hƩp://morganlucasart.blogspot.com/> IMAGEM 0.4: As cinco peles de Hundertwiasser. Fonte: Ideapete, ago 2011 <www.ideapete.com/Hundertwasser.html> IMAGEM 0.5: Superİcie prédios IMAGEM 1.1: Catraias na baía. IMAGEM 1.2: Orla Centro de Vitória. IMAGEM 1.3: Estátua viva e ao fundo escadaria Maria OrƟz. IMAGEM 1.4: Sequência transeuntes na Praça Oito. IMAGEM 1.5: Esquema localização e conexão sobre base Google Earth. Fonte: Google Earth, jul 2011 <hƩp://maps.google.com/> IMAGEM 1.6: Diagrama de conexões. Fonte:SkyscraperCity, jul 2011 < hƩp://www.skyscrapercity.com/> IMAGEM 1.7: Sequência de layers. Morfologia urbana. IMAGEM 1.8: Sobreposição de layers. IMAGEM 1.9: Limite insƟtucional dos bairros. IMAGEM 1.10: Pontos de parƟda sobre base Google Earth. Fonte: idem. IMAGEM 1.5 IMAGEM 1.11: Av. Jerônimo Monteiro em 1940. Fonte: acervo Janaina Barros Souza. IMAGEM 1.12: Mapa Centro em 1895. Fonte: acervo IPHAN. IMAGEM 1.13: Centro em 1930. Fonte desconhecida. IMAGEM 1.14: Centro em 1940. Fonte desconhecida. IMAGEM 1.15: Vitória em 1955.

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...p.37 ...p.39 ...p.43 ...p.46 ...p.51 ...p.53 ...p.54 ...p.55 ...p.56 ...p.57 ...p.60 ...p.61 ...p.61 ...p.61 ...p. 62


Fonte: Baía de Vitória, jul 2011 <hƩp://legado.vitoria.es.gov.br/baiadevitoria/> IMAGEM 1.16: Escadaria Maria OrƟz em 1930. Fonte: idem. IMAGEM 1.15 IMAGEM 1.17: Vista aérea em 1940. Fonte: idem. IMAGEM 1.15 IMAGEM 1.18: Ponto catraia. Fonte: idem. IMAGEM 1.15 IMAGEM 1.19: Praça da Misericória em 1908. Fonte: idem. IMAGEM 1.15 IMAGEM 1.20: Pavimentação Jerônimo Monteiro depois alargamento. Fonte: idem. IMAGEM 1.15 IMAGEM 1.21: Processo de verƟcalização do Centro. Fonte: idem. IMAGEM 1.15 IMAGEM 1.22: Vista área década 70/80. Fonte: idem. IMAGEM 1.15 IMAGEM 1.23: Av. Punaro Bley, Centro de Vitória. Fonte: Midiã Fraga, jul 2011 <www.flickr.com/midilee> IMAGEM 1.24: Avenida Jerônimo Monteiro IMAGEM 1.25: Rua Sete. IMAGEM 1.26: Rua Sete. Fonte: Fernando Lopes, jul 2011 <hƩp://regionaldanair.wordpress.com> IMAGEM 1.27: Carnaval na Jerônimo Monteiro em 1940 Fonte desconhecida. IMAGEM 1.28: Bloco Regional da Nair na Rua Sete. Fonte: Ary Machado, jul 2011 <hƩp://regionaldanair.wordpress.com> IMAGEM 1.29: Samba no bar da Zilda. Fonte: Regional da Nair, jul 2011 <hƩp://regionaldanair.wordpress.com> IMAGEM 1.30 e 1.31: Cenas da perfomance. IMAGEM 1.32: Protesto em frente ao Palácio Anchieta. IMAGEM 1.33: Perfil topográfico Centro. IMAGEM 1.34: Escadaria Maria OrƟz. IMAGEM 1.35: Escadaria Bárbara Lindemberg. IMAGEM 1.36: Escadaria Bárbara Lindemberg e o Palácio Anchieta. IMAGEM 1.37: Le Parkour na escadaria São Diogo.

...p. 62 ...p. 62 ...p. 62 ...p. 62 ...p. 62 ...p.63 ...p.63 ...p.67 ...p.69 ...p.71 ...p.73 ...p.75 ...p.75 ...p.75 ...p.77 ...p.79 ...p.80 ...p.81 ...p.82 ...p.82 ...p.82


Fonte: Parkour Espírito Santo, jul 2011 <hƩps://picasaweb.google.com/parkoures/> ...p.82 IMAGEM 1.38: Escadarias do Centro de Vitória. ...p.83 IMAGEM 1.39: Escadaria Igreja do Rosário ...p.84 IMAGEM 1.40: Escadaria Carlos Messina. ...p.85 IMAGEM 1.41: Escadaria Nicolau Abreu ...p.85 IMAGEM 1.42: Escadaria Maria OrƟz. ...p.85 IMAGEM 1.43: Escadaria Djanira Lima. ...p.85 IMAGEM 1.44, 1.45 e 1.46: Projeção Charlie Chaplin na escadaria São Diogo ...p.86 IMAGEM 1.47: Sequência Texturas. ...p.89 IMAGEM 2.1: Protesto na Terceira Ponte. ...p. 102 Fonte: Rodrigo Gavini, Tumblr, jun 2011 <hƩp://rodrigogavini.tumblr.com/page/5> IMAGEM 2.2: Cobertura do Protesto. ...p. 103 Fonte: Francisco Neto, Flickr, ago 2011 <hƩp://www.flickr.com/photos/chicow/> IMAGEM 2.3: Cobertura do Protesto. ...p. 103 Fonte: idem. IMAGEM 2.2 IMAGEM 2.4: Cobertura do Protesto. ...p. 103 Fonte: idem. IMAGEM 2.2 IMAGEM 2.5: Sequência CoƟdiano do Centro de Vitória. ...p. 107 IMAGEM 2.6: Sequência O andar pela cidade. ...p. 110 IMAGEM 2.7: Sequência com Marinalva. ...p. 114 IMAGEM 2.8: Sequência com Barroco Viana. ...p. 116 IMAGEM 2.9: Sequência Zé Carlos levando a gente de volta para a margem de Vitória. ...p. 119 IMAGEM 2.10: Sequência de pessoas passando no beco e Dona Neuza atrás da placa “compro ouro” lendo jornal. ...p. 121 IMAGEM 3.1: A Praça Costa Pereira/arredores e os elementos que compõem o espaço. IMAGEM 3.2: Esquema sobre base do Centro de Vitória. Fonte: Site da Prefeitura de Vitória, jul 2011 <www.vitoria.es.gov.br> IMAGEM 3.3: Linhas e fios. Fonte: Flickr, nov 2008 <www.flickr.com> IMAGEM 3.4: Panorâmica fresta urbana, catraia em Paul. IMAGEM 3.5: Esquema área de intervenção. IMAGEM 3.6: Esquema sobre base Google Earth. Fonte: Google Earth, jul 2011 <hƩp://maps.google.com/>

...p. 127 ... p. 128 ...p. 131 ...p. 132 ...p. 135 ...p. 136


IMAGEM 3.7: Panorâmica de cima da passarela da área de intervenção para área portuária e Centro de Vitória. ...p.138 IMAGEM 3.8: Panorâmica do Centro de Vitória para Porto de Capuaba e destacado a fresta catraia. ...p. 138 IMAGEM 3.9: Panorâmica da catraia para o Centro e pôr do sol. ...p. 138 IMAGEM 3.10: Localização da imagem 3.6 no contexto de Vitória e parte de Vila Velha. ...p. 139 IMAGEM 3.11: Projects. Vitória vista do cais de Paul. ...p. 141 IMAGEM 3.12: Diagrama área de intervenção. ...p. 142 IMAGEM 3.13: Planta baixa anƟgo aquaviário. ...p. 142 IMAGEM 3.14: Esboço da ambientação da intervenção. ...p. 143 IMAGEM 3.15: Interior anƟgo terminal aquaviário. ...p. 144 IMAGEM 3.16: Rampa de acesso a passarela. ...p. 144 IMAGEM 3.17: Área embarque e desembarque ao fundo. ...p. 144 IMAGEM 3.18: Seu João. Fonte: acervo Humberto Capai. ...p. 145 IMAGEM 3.19: Seu Raimundo. Fonte: idem. IMAGEM 3.18 ...p. 145 IMAGEM 3.20: Passageiros Embarcando. Fonte: idem. IMAGEM 3.18 ...p. 145 IMAGEM 3.21: Catraias. Fonte: Fotos Ɵradas pelos catraieiros para a exposição. ...p. 146 IMAGEM 3.22: Roney. Fonte: idem. IMAGEM 3.21 ...p. 146 IMAGEM 3.23: Zé Carlos. Fonte: idem. IMAGEM 3.21 ...p. 146 IMAGEM 3.24: NegaƟvos de algumas fotos. ...p. 147 IMAGEM 3.25: Mural fotos do processo. Fonte: Blog Olho da Rua, jul 2011, <hƩp://olhodarua.wordpress.com/2011/07/30/intervencaoarƟsƟca-em-paul/> ...p. 148 IMAGEM 3.26: Vão com barbantes e fitas. Fonte: acervo Thairo Pandolfi. ...p. 148 IMAGEM 3.27: Montagem mural fotos catraieiros. Fonte: idem. IMAGEM 3.26 ...p. 149 IMAGEM 3.28: Catraia chegando na intervenção.


Fonte: idem. IMAGEM 3.26 IMAGEM 3.29: Catrieiros olhado as fotos. Fonte: idem. IMAGEM 3.26 IMAGEM 3.30: Zé Carlos e a sua foto Ɵrada por Humberto Capai. Fonte: idem. IMAGEM 3.26 IMAGEM 3.31: Gaúcho levando a gente para a intervenção. Fonte: idem. IMAGEM 3.26 IMAGEM 3.32: Camila e Léo traçando linha do percurso. Fonte: idem. IMAGEM 3.26 IMAGEM 3.33: Bárbara com as fiƟnhas de poesias. Fonte: idem. IMAGEM 3.26 IMAGEM 3.34: Placa de chegada do local. Fonte: idem. IMAGEM 3.26 IMAGEM 3.35: Vão com as fiƟnhas. Fonte: idem. IMAGEM 3.26 IMAGEM 3.36: Barco/mesa e as pessoas cuidando do churrasco. Fonte: idem. IMAGEM 3.26 IMAGEM 3.37: Mural fotos do Humberto Capai. Fonte: idem. IMAGEM 3.26 IMAGEM 3.38: Meninas fazendo a placa de chegada. Fonte: idem. IMAGEM 3.26 IMAGEM 3.39: Uma das molduras de pichação. Fonte: idem. IMAGEM 3.26 IMAGEM 3.40: Mural fotos catraieiros. Fonte: idem.IMAGEM 3.26 IMAGEM 3.41: Mural fotos do processo. Fonte: idem. IMAGEM 3.26 IMAGEM 3.42: Linha percurso pronta. Fonte: idem. IMAGEM 3.26 IMAGEM 3.43: Pessoas conversando na esteira. Fonte: idem. IMAGEM 3.25 IMAGEM 3.44: Zé Carlos levando a gente de volta para o centro. Fonte: idem. IMAGEM 3.26 IMAGEM 3.45: Seu João na catraia.

...p. 149 ... p. 151 ... p. 151 ... p. 151 ... p. 152 ... p. 152 ... p. 152 ...p. 153 ...p. 154 ...p. 154 ...p. 154 ...p. 154 ...p. 154 ...p. 154 ...p. 155 ...p. 155 ...p. 155



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Samira Proêza


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