Ventania Solar

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FANNY FEIGENSON

VENTANIA SOLAR

SÃO PAULO 2021



PARA ALICE



À

minha filha Tati, por ter me tornado uma pessoa mais presente, sem tanto medo da vida. Musa inspiradora. Ao Jean, companheiro de 45 anos, que sempre me apoiou em todas as iniciativas em que me lancei, por mais estranhas que parecessem. Ao meu filho Riccardo, pelas conversas que tivemos, por sua sabedoria. Aprendo muito com ele. À Suely Rolnik, pelo convite para realizar o pós-doc no Núcleo de Subjetividade. Suas aulas foram muito importantes para mim. Ao Peter P. Pelbart, professor atento, que acompanho com prazer em seus inúmeros cursos desde muito tempo, e supervisor do projeto Ventania Solar. Ao João Perci Schiavone, generoso em suas considerações. Aos colegas da PUC, companheiros nessa longa jornada. À Ana Godoy, que me acompanhou nesses últimos três anos e me ajudou para que eu descobrisse onde estavam as palavras escondidas em meu corpo e quem eu era na emoção da escrita. À Gisela Motta, companheira de projetos há mais de vinte anos, incentivadora, boa ouvinte dos meus desejos como artista, me ajudando a conceituar este livro. À Stella Righini, parceira nova na criação e desenho gráfico dos livros. Tão nova e tão comprometida. À Sheila Dryzun, 40 anos de ricas trocas. Aos meus pais, corajosos sobreviventes do Holocausto, que me deixaram uma herança desafiadora com a qual consegui achar meu caminho na vida. Aos meus irmãos, que com suas histórias pessoais me mostraram o caminho para revelar a história familiar e a minha própria. À Patrícia Martins e à Ana Paula Pontes, parceiras de viagens inesquecíveis com os alunos da arquitetura e colegas que sempre apoiaram minha proposição de fazer o pós-doc. Por fim, às pitangueiras, cerejeiras, vacas, galinhas, roseiras, natureza que me formou.


PREFÁCIO

A PROPÓSITO DE VENTANIA SOLAR FAYGA, NOVAMENTE

Q

uando a conheci, em 2018, durante a exposição O feminino sombrio nas Harpias do século XXI, Fanny Feigenson, percebo hoje, fazia nova torção no imaginário feminino. Seu voo parece incansável. Se ela mesma se define arqueóloga, eu descreveria a presente obra, Ventania Solar, como uma arqueologia dos afetos. Realista, trágica, Fanny não cessa de aludir à ausência-presença de Tati – a filha para a qual, em certos momentos cruciais, cedeu a voz – na vertente mais pessoal de seu romance-arte que, integrativo, registra igualmente, com insistência, a memória impessoal, porém não menos sombria, da discriminação e do holocausto, a repercutir desde seus primeiros anos nos silêncios de sobreviventes tão próximos e, feliz ou infelizmente, tão dedicados a esquecer. Há de fato flutuações de tristeza e alegria no texto de Fanny, e ela chega a listar, de modo confessional, alguns afetos que chamaríamos de tristes, como o medo, a raiva, o ressentimento, a desconfiança, o abuso, a exclusão, a impotência, a fragilidade, mas submetendo-os todos, mediante sua escrita desprendida, à regência dos afetos originários, aqueles de leite e mel. Os “buracos do inconsciente”, ao darem vasão aos sentimentos ruins, ganham o aspecto sublimatório do gesto e da palavra: “o silêncio de toda uma geração que foi calada com assassinatos. Uma caligrafia que se torna imagem dessas lembranças”. Gesto e palavra se juntam em grafias vitais. E por certo reúnem “os cacos da minha história”, como diz Fanny, “para me libertar dela”. Pois há igualmente leveza em sua arte, não importa quão terríveis sejam os elementos da memória, o holocausto, a mãe violentada, a morte de Tati... A tonalidade aérea faz jus aos votos de Paul Klee de alçar-se da terra. Apesar de tudo, leveza: “Eu era uma antena com potência, captando energias anônimas”. O gesto, a palavra, a imagem levam a dor e a desolação a um plano único de desterritorialização contínua. Detenhamo-nos no tecido desse plano: como se entrelaçam, indiscerníveis, os tempos da criança e da artista, e ainda o tempo da filha, não mais aqui e, no entanto, anjo, sempre aqui, numa espécie de Aion reencontrado! Tati fênix. A recherche do tempo é ágil, intensa, volátil, qual voo de pássaro, vogel ou fayga (em iídiche). Vento sobre ventos. “As potências da fragilidade”, lembradas na página introdutória em nome da filha, não cessam de se atualizar ao longo do texto.


Fanny sempre teve a mesma idade. Chamavam-na a raspa do tacho, o finzinho. “Finzinho de quê?”, se pergunta. Cabe a ela “extrair cacos das profundezas. Muito antigos. Limpar com cuidado, para não destruir as várias camadas”. Se é ainda uma tarefa atual, um Artifício, recorda um cuidar remoto, desde o finzinho. Uma visão de fora se reverte, anel de moebius, em visão de dentro, o dentro por inteiro fora do tacho. Desenhar palavras repetidamente, para Fanny, é um ato antigo. Por sinal, as repetições fazem parte da liturgia judaica. O que a autora revela, senão que reescreve, a seu modo, toda uma tradição? Fanny com o seu tefilin, a herança paterna, enlaça cabeça e coração, pensamento e afeto. O que resulta dessas alianças, senão uma estética da repetição ou a repetição de uma estética? É a impressão de que ações da juventude poderiam ser atuais, de que certas imagens se mantêm vivas, sub speciae aeternitatis. “Gestos largos, inspiradores pela sacralidade. Sentia algo antigo, vindo de muitas gerações anteriores à minha”. Desterritorializar é fazer a terra entrar no tempo, na desmedida solar do tempo. Daí, talvez, o recurso insistente ao leite, ao mel, aos ovos. Uma das mais belas passagens do texto descreve uma composição no tempo ou a cena sem idade. “Em uma primeira camada, uma pintura que fiz aos meus sete anos. Em uma segunda camada...”, e prossegue com imagens de diferentes idades que, translúcidas, se ordenam de modo estratigráfico: “uma ação do hoje imaginando outros amanhãs”, a ser conferida pelo leitor. A infância do finzinho, interminável, coexiste com a feminização de Fanny. Se durante a reza do tefilin havia “o balançar do corpo em uma espécie de transe, uma espécie de dança”, à leitura da Torá, já na adolescência, sobreveio a ira: era intolerável a diminuição da mulher dentro da própria religião judaica. Mais tarde viria o vestido-escultura, um olhar crítico à incitação social para que as mulheres idealizem corpos perfeitos. Assim as Barbies no açougue, penduradas em ganchos, entre carnes, músculos e ossos. Uma concepção do fazer artístico desponta aos poucos, revelando a ética do inconsciente: não a arte como fantasia e devaneio, antídoto à dor e à morte, mas como trânsito da fantasia ao real, levando consigo catástrofes e glórias. Amor fati. Fanny descreve esse movimento prodigioso da arte, invertendo o bom senso e o senso comum: “Os fantasmas, eu os transformei em terra, trigo, leite, mel e ovos”. Ave calígrafa, sutil sobrevivente, volta-se às calhas de leite e mel, aos sulcos do amanhã.

JOÃO PERCI SCHIAVON

PREFÁCIO



O que o sujeito pode, é deixar-se estranhar pelas marcas que se fazem em seu corpo, é tentar criar sentido que permita sua existencialização e quanto mais consegue fazê-lo, provavelmente maior é o grau de potência com que a vida se afirma em sua existência.¹ ¹ S. Rolnik. Pensamento, corpo e devir.

SUELY ROLNIK



OS O

CACOS GESTO,

A O

DA A

MINHA

PALAVRA,

HISTÓRIA A

IMAGEM

PALAVRA PASSADO

COMO SE

NARRADA

MISTURADO

USAR

AO

PRESENTE

A HISTÓRIA LIBERTAR

PARA DELA

IMAGINAÇÃO COMO SOBREVIVÊNCIA DAGDA,

RIGA,

SÃO

PAULO

FÊNIX GUERRA, VENTANIA

FAMÍLIA

E

COTIDIANO SOLAR


INTRODUÇÃO

M

inha jornada na PUC começa em 2016, como aluna ouvinte. Assistia às aulas no Núcleo de Subjetividade do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Clínica da PUC. Tive uma filha que cursou psicologia na PUC e mestrado na mesma instituição. O mestrado era sobre sua vida, sua jornada no enfrentamento de um câncer ao longo de 18 anos. Potências da fragilidade: só um corpo vivo sobrevive ² é o nome da dissertação. Realizou sua defesa e concomitantemente uma exposição de arte em 2014. Faleceu um ano depois.

Mas a resposta para essa pergunta veio lentamente. Em uma velocidade quase imperceptível. Por um longo tempo vivia em contradição. Procurando resultados rápidos sem consegui-los. Sentia uma enorme culpa em continuar viva. Nessas horas, paralisava.

Nos primeiros tempos, quando frequentava as aulas e subia devagar as rampas entre os andares para chegar no último andar onde estavam as salas de aula, a paisagem vista à direita, através dos terraços, me enchia de tristeza. Pensava na Tati vendo essa mesma paisagem. Os prédios, as casas e, bem ao longe, o Mais tarde, Suely Rolnik, sua orientadora, convidou- Pico do Jaraguá. -me para realizar o sonho da minha filha: fazer um livro a partir da dissertação. Acolhi a ideia com von- Tati e eu. Juntas. Num só corpo. Depois da sua mortade e energia, e passei a frequentar algumas aulas no te, meu corpo mudou, se transformou. Mas ainda não Núcleo de Subjetividade. Achava que seria uma tarefa sabia como. fácil pegar a dissertação, reunir textos, imagens, procurar uma editora e publicar. Na PUC, chegando ao andar das salas, a lanchonete. Nos primeiros tempos, ficava obsessiva imaginando o Pouco a pouco, percebi que tinha entrado em um labi- que ela comia, onde se sentava. rinto do qual não conseguia sair. Uma tristeza chegou Comecei a me relacionar com colegas que estavam de mansinho. Da tristeza vieram a depressão e a sín- produzindo seus mestrados e doutorados. Muitos codrome de pânico. nheceram Tati, ficaram curiosos em saber o que eu estava buscando ali. No início do pós-doutorado, me fiz uma pergunta: que autoridade eu tinha para mexer no que a Tati Gostava de contar minhas histórias. Histórias com Tati. Até hoje, ao conhecer uma pessoa e começar a criou, no que ela tinha escrito? Mesmo que ela quisesse fazer um livro, eu não saberia conversar, dou sempre um jeito de contar o que aconteceu com Tati. E como terminou. qual caminho ela seguiria.

² https://tede2.pucsp.br/handle/handle/15346


Como professora há tantos anos, pensava que não teria nenhuma dificuldade em me relacionar, na sala de aula, com professores e colegas. Porém, o movimento foi em direção contrária, ficava tímida, constrangida e contida. Não conseguia falar nem interagir. Precisei de um tempo para perceber como e por que estava sendo afetada daquela maneira, paralisada. Eu continuava em luto. Hoje, compreendo que meu silêncio em aula estava ligado a um profundo constrangimento em ocupar o lugar que deveria ser da minha filha fazendo seu doutorado. Tornou-se, para mim, um lugar desconfortável. Mas fui persistente. Continuei. Por mais difícil que fosse.

Recordo-me de, quando pequena, com meu prato cheio de comida, meu pai me obrigando a comer. A sensação de não dar conta daquele prato. Para o projeto de pós-doutorado, depois de anos de indecisão, resolvi narrar histórias de mim criança, adolescente, mulher, misturadas com camadas da história da família como imigrantes contaminados com as mortes ocorridas durante a guerra, acompanhadas de relatos e produções da minha trajetória artística. Além de histórias com Tati. Narrativas, textos escritos à mão, desenhos, projetos. Histórias se misturando.

Elas compõem este livro feito com imagens, Outra questão me constrangia também: alguns cole- palavras, desenhos e pinturas. gas conheciam teorias da psicanálise, filosofia, e eu Um livro-corpo, um livro-processo não. Sentia-me inferior. Com 66 anos. Estava cor- como Tati um dia escreveu que seria seu desejo. rendo atrás, atrasada mais uma vez. Correndo. Sentimento antigo. Sempre me sentindo atrasada. Pernas e fôlego curto. Lembro que, quando pequena, tinha dificuldade em acompanhar os adultos. Adulta, não conseguia trazer com meu corpo, em minha fala, o que tinha aprendido pela vida. O que tinha experienciado como filha, mulher, mãe, artista e professora. Lembro-me que, em outra ocasião, com meus 22 anos, fui fazer psicodrama em grupo e demorei para conseguir me colocar. Tinha um constrangimento que me acompanhava e que continua a me acompanhar em situações novas. Talvez seja uma sensação de não dar conta. Mas não dar conta de quê?

INTRODUÇÃO


OS CACOS DA MINHA HISTÓRIA

“Em sua leveza e estranheza, ele é a figura da desintegração dessa ordem familiar que também é desordem abissal.”³ Jeanne Marie Gagnebin


F

ilha caçula de cinco filhos, quatro mulheres e um homem. Nasci pequena. De cesariana. Não queria comer. Vomitava. Muito magra. Chamavam-me de raspa do tacho. O resto do tacho. O finzinho. Finzinho de quê?

OS CACOS DA MINHA HISTÓRIA

A sensação é que a minha vida sempre foi feita de cacos e abismos. Juntar os cacos. Passado presente passado presente. Quanto mais escrevo, mais me lembro de novos episódios. Uma via com muitas direções. Descobrir memórias do passado e trazer ao presente. Como uma arqueóloga. Extrair cacos das profundezas. Muito antigos. Limpar com cuidado. Com cuidado para não destruir as várias camadas. Camadas no tempo e no espaço. De quantos cacos fui feita ao longo da vida? Cacos da minha história. Memórias. Nascida em 1949, filha de pais sobreviventes do Holocausto. Com urgência em escrever sobre o passado no presente em que vivo. Porosa em uma família sem conexões. Uma família vivendo entre conflitos. Absorvia tudo e me calava. Todos se calavam. Hoje, estou pronta. Falar dos medos, raivas e ressentimentos. Vomitar através do grito, da escrita e das imagens. Falar alto. Chorava muito quando criança. Chamavam-me de chorão, árvore com galhos finos inclinados em direção ao chão. Folhas estreitas, cor verde acinzentada. Galhos como lágrimas. Eu não vivia somente com meus pais e irmãos. Vivia com todos os ancestrais assassinados pelos alemães.

³ Gagnebin, J. M. Walter Benjamin: os cacos da história. São Paulo: n-1 edições, 2018.

Uma tensão constante estufando cada canto dos espaços de nossa casa. Angústia no meio dos livros. Tristeza embaixo dos tapetes. Não entendia o que se passava. Assustada. Cresci assustada, disfarçando. Sempre com um sorriso no rosto. Criança obediente, bem-educada. Hoje, aos 71 anos, resolvi rever minha história.

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O GESTO, A PALAVRA, A IMAGEM


O GESTO, A PALAVRA, A IMAGEM

E

m outros tempos, antes da pandemia, gostava de andar de ônibus, metrô e a pé. Curiosa em explorar a cidade. Olhar as pessoas, roupas, casas, ruas. Olhar pela janela os reflexos do sol, da chuva. O chão molhado. Reflexos. As lanternas vermelhas de trás dos carros. Mundo mágico. Mundo que se movimenta e se transforma com velocidade. Em março de 2020, um raio fez o mundo todo mudar. Entramos em um outro tempo e espaço com violência e mortes. Isolei-me em casa. Iniciei uma nova fase. Desenhos e pinturas misturando tintas, cores e palavras. Escrevendo textos sobre o cotidiano. Desenhando palavras. Repetidamente. Na religião judaica, as repetições fazem parte da liturgia. A começar pelos ciclos do calendário judaico. Os rituais se repetem durante o ano. Rezas diárias, semanais, anuais. Ritmo dos ciclos. Repetindo-se. Meu pai colocava diariamente seu tefilin. Eu ficava quieta no canto do quarto acompanhando com curiosidade seus gestos, sua voz. Sua reza em hebraico. Não ligava para o significado das rezas. Gostava dos gestos. Do som das melodias. Da coreografia. Gestos largos, inspiradores pela sacralidade. Sentia algo antigo, de muitas gerações anteriores à minha. O tefilin é formado por duas pequenas caixas de couro unidas por fitas compridas do mesmo material. Uma caixinha é fixada na cabeça, no meio da testa. A fita é enrolada no braço esquerdo, terminando em outra caixa. Dentro das caixas, pergaminhos com rezas de proteção para serem rezadas diariamente. A união do mental com o emocional através do lugar onde as caixinhas eram colocadas no corpo, perto do coração, perto da cabeça. Durante a reza, o balançar do corpo. Em uma espécie de transe. Uma espécie de dança.

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Dia após dia. Repetindo. O gesto e a palavra. Palavra falada. Palavra escrita. E assim começou um novo projeto de poéticas visuais, escrever e repetir palavras usando diferentes caligrafias. A primeira palavra que escolhi e escrevi sobre uma tela foi TEMPO. Depois vieram outras. Em outras telas e papéis. Palavras que começaram a sair pelos buracos do inconsciente, pelos buracos do meu corpo. Palavras escritas nas obras falavam do nosso tempo presente, o que estávamos vivenciando com a pandemia, mas ao mesmo tempo eram palavras que foram abafadas dentro da minha casa desde a chegada de meus pais ao Brasil. O silêncio de toda uma geração que foi calada com assassinatos. Uma caligrafia que se torna imagem dessas lembranças.

Figura 5: Tempo (detalhe). 2020. Nanquim sobre papel artesanal.

O GESTO, A PALAVRA, A IMAGEM

Medo. Raiva. Ressentimento. Desconfiança. Abuso. Exclusão. Impotência. Fragilidade. 19


A PALAVRA NARRADA


A PALAVRA NARRADA

P

or ser filha, neta e bisneta de perseguições religiosas no Leste Europeu, o medo da exclusão está nas minhas entranhas. Na carne, nos músculos, nos ossos e no sangue. Meus pais nunca conseguiram narrar suas perdas. Famílias excluídas durante a Segunda Guerra Mundial por serem judias. Minha família vivia anestesiada. Não falava, não ouvia, não olhava. Meus pais achavam que assim conseguiriam sobreviver mais facilmente. A doença e a morte ficariam para fora da porta de entrada da casa. Para sempre. Obedecia à ordem dada pelos adultos e silenciava. Adolescente, acompanhava meus pais às rezas na sinagoga. Um dia, li na Torá, a bíblia dos judeus, uma reza onde o homem diz que agradece a Deus por não ter nascido mulher, e a mulher agradece por ter nascido segundo a vontade de Deus. Essa leitura me deixou brava. Era a exclusão praticada dentro da própria religião judaica. A mulher sendo excluída e apequenada. Sem poder falar, baixando a cabeça. Comecei a ver que eu era também tratada como alguém a quem não se dá muita atenção. Café com leite. Desde pequena, enfeitavam-me e impediam-me a livre expressão. Cresci briguenta, precisando falar cada vez mais, e exercitando a competição na vida, dia após dia.

Figura 6: Tempo. 2020. Nanquim sobre papel artesanal.

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Esse hábito me fez gastar, muitas vezes, mais energia do que o necessário. É como se eu estivesse o tempo todo cercada de inimigos. Em guerra contra o apagamento. O desafio continua.

A PALAVRA NARRADA

Figura 7: Apagament0. 2020. Nanquim sobre papel artesanal.

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DE QUANTAS CAMADAS SOU FEITA?

Figura 8: Cicatrizes. 2018. Tecido musseline queimado e cortado.

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CAMADA ROMPIDA, VIRANDO CACO. VIRANDO PEDAÇOS. VIRANDO REMENDOS. COSTURAS E CICATRIZES. FERIDAS FÁSCIAS COM NÓS. 25


O PASSADO MISTURADO AO PRESENTE Figura 9: Série Identidade 05. 1964. A3, guache sobre sulfite.

“[...] a imagem é aquilo em que o ocorrido encontra o agora num lampejo, formando uma constelação.”5 Walter Benjamin 5 Benjamin, W. Passagens. Belo Horizonte: UFMG; São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2006.


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O PASSADO MISTURADO AO PRESENTE

E

m uma primeira camada, uma pintura que fiz aos meus sete anos. Em uma segunda camada, por baixo, uma foto de mim quando bebê em preto e branco. Uma ação do hoje imaginando outros amanhãs. Na pintura, um barco pintado a guache. Casco branco. Duas velas rosadas. Uma bandeirola na mão de um homem com chapéu. O homem acena para duas crianças. Meu pai? As crianças estão na beira d’água. Uma menina e um menino. Eu e meu irmão? Acenam com lenços para o barco. Águas azuis esverdeadas. O céu em tons alaranjados, avermelhados, amarronzados. Imprimi a cena no acetato. Por baixo da película semitransparente, na área do casco, coloquei a foto. O encaixe ficou perfeito. Comecei a imaginar uma história. O que estou fazendo no barco? Indo para onde com esse pai? Protegida. Desejada. Barco-útero. Útero-barco. Não era uma figura de mãe. Era um pai embalando a filha com o balanço das águas. Mas eu estava também acenando, na beira d’água. Uma dupla imagem. Um duplo de mim. Estranha gestação. Estranha imagem.

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Figura 10 e 11: Duplo de mim. 1956-2020. Montagem, reprodução em acetato com fotografia de Fanny em 1949 sobreposta a guache sobre papel.


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COMO USAR A HISTÓRIA PARA SE LIBERTAR DELA “O cronista que narra os acontecimentos, sem distinguir entre os grandes e os pequenos, leva em conta a verdade de que nada do que um dia aconteceu pode ser considerado perdido para a história.”6 Walter Benjamin

Benjamin, W. Sobre o conceito de história. Tese n. 3. In: Obras escolhidas, vol. 1. São Paulo: Brasiliense, 1987.

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A

os 37 anos, casada, dois filhos, foi a primeira vez que olhei mais atentamente para minhas origens. Para um projeto que pediram para criar, tirei fotos como se eu fosse uma imigrante judia. Estavam relacionadas com as histórias de fugas, esconderijos, guerra. Uma série de desenhos compuseram cartografias desde as cidades onde meus pais nasceram, Riga e Dagda, até símbolos e rituais judaicos. A cultura de origem da minha família. Judeus. Pai, mãe e três irmãs chegaram ao Brasil em 1941, fugindo da Letônia. O antissemitismo se espalhando. Entrar na história da família, com mortes e silêncios, mentiras e segredos, não foi uma tarefa fácil. Minha mãe sempre chorando pelos cantos, culpando-se, lembrando da mãe que deixou em Riga e que foi morta durante a guerra. Eu era uma antena com potência, captando energias anônimas. Percebi coisas estranhas, que inicialmente não conseguia identificar. Como filha de imigrantes, na escola primária, passei por maus momentos. Miúda esquisita estranha estrangeira. Mesmo sendo brasileira, parecia uma criança europeia. Usava combinação por baixo do vestido. Tinha vergonha. Outras vezes, usava avental por cima do vestido.

Figura 12: Performance Fuga (detalhe). 1986.

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COMO USAR A HISTÓRIA PARA SE LIBERTAR DELA

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Uma lembrança. O dia amanheceu ensolarado. Tinha, na época, seis anos. Acordei feliz, pulei da cama para ver como estava o tempo. Fora programado um passeio pelo Parque Buenos Aires. O parque tinha árvores muito antigas, gramados, lago ornado com bordas onduladas de cimento e uma pequena fonte. Grandes esculturas completavam a paisagem da praça. O céu estava muito azul, o sol iluminava os prédios, as ruas, as árvores. As folhas nas árvores criavam uma sinfonia de formas e cores. Verdes amarelados, verdes azulados, verdes acinzentados. O som das folhas nas árvores farfalhando com a brisa que passava pelos galhos. Tomei rápido o café da manhã na grande mesa de madeira escura, na sala de jantar. Estava feliz em sair para passear. O apartamento onde vivia com minha família me oprimia. Era um espaço denso, espesso e pegajoso. Antes de sair, minha mãe me colocou um avental branco e disse para ir brincar no parque. Aproveitar. Que desespero. Como poderia brincar e não sujar o avental… avental branco, drapeado e com rendas nas bordas e um grande laço que terminava nas costas. Lindo, mas pesado. O medo de sujar fazia o avental pesar como se fosse feito de chumbo, sensação de vestir uma armadura. Como poderia pular, rolar no chão, sem me sujar? Como obedecer à minha mãe, na fantasia de querer fazer o que ela desejava e ganhar seu carinho? Essa sensação ficou no meu inconsciente. Já adulta, artista, criei um avental feito de chumbo em tamanho real. A arte ajuda a entender a história. Figura 13: Avental. 2001. Avental infantil feminino rendado, tamanho 6 anos, feito em chumbo. Figura 14: Xale (detalhe). 2001. Placa de chumbo com bordados coloridos e franjas.

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COMO USAR A HISTÓRIA PARA SE LIBERTAR DELA

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Figura 15: Performance Fuga (detalhe). 1986. Figura 16: Desenho a partir da performance (detalhe). 1986. Nanquim sobre papel fabriano.

COMO USAR A HISTÓRIA PARA SE LIBERTAR DELA

Fanny Feigenson. Tenho nome e sobrenome estrangeiros. Lembro de uma vez, na escola, quando meus colegas fizeram uma roda no pátio e cantaram uma música gozando do meu nome. Fanny Feijão. Feijão Fanny. Não comentei com ninguém. Silenciei. Enfiei essas lembranças, junto com outras, no fundo do meu corpo. Cresci, e na mesma época em que realizei as fotos de mim mesma representando uma refugiada de guerra e os desenhos baseados nas imagens, percebi que tinha um quebra-cabeça com peças que não se encaixavam. Para conseguir encaixar, tive que mergulhar muito mais profundamente nas minhas memórias, o que resultou em um mestrado e um doutorado.

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Descobri camadas de dores. Toquei em ausências. A solidão nunca se esgota. Das ausências, procurei presenças. Os fantasmas, eu os transformei em terra, trigo, leite, mel e ovos. Matérias vivas. Cada uma com seus espíritos. Estar com os pés no chão, na terra. Na lama. Mexendo no trigo. O leite das vacas é tomado direto das tetas. Os ovos do Sítio Sete Lagoas. O mel das colmeias cultivadas. Essas eram verdades inquestionáveis que me davam alegria. Transformar fantasias em realidade e poesia. Sentava-me nos degraus de ladrilho vermelho da antiga casa e fazia perfume juntando pétalas de rosas em potes de geleia com água. As pétalas se mexiam, assim como as bolhas de sabão que fazia com canudinhos de refresco. Elas voavam produzindo reflexos do entorno. Terra, mala, lona de caminhoneiro, um vídeo de meus pés marcando o chão com lama. Rastros de trajetórias incertas. Sesc Pompeia, prenhe de vida. Lina Bo Bardi construiu um forno de barro para fazer pão. Dentro, coloquei grãos de trigo, um vídeo de mãos distribuindo a hallah, o pão trançado dos judeus. Flashes saem do meu corpo revelando imagens. Intuições. As entranhas do lugar ocupadas com arroz, lugar fértil, onde crianças, jovens e velhos se misturam lendo, dançando, rindo e dormindo. A calha com mel. A calha com leite. Acompanhar os restos, lambuzar-se. Cheiros. Figura 17: Fértil. 1993. Tubos com arroz. Figura 18: Via Láctea (detalhe). 1996. Vidro sobre calha com leite.

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Figura 19: Grão (detalhe). 1993. Instalação site specific com forno de pão do Sesc Pompeia.

Figura 20: Grão (detalhe). 1993. Frame do vídeo.

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COMO USAR A HISTÓRIA PARA SE LIBERTAR DELA

Figuras 21 e 22: Rastros (detalhe). 1992. Instalação no MAC-USP.

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IMAGINAÇÃO COMO SOBREVIVÊNCIA

“Todas as desgraças podem ser suportadas se você as colocar em uma estória ou narrar uma história a respeito delas.”7 Karen Blixen Blixen, K. A festa de Babette e outras anedotas do destino. Trad. Isabel Paquet de Areripe. Rio de Janeiro: Record, 1986.

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M

esa baixa onde me sentava junto da professora Piroska. Nascida na Hungria, contavam que era uma refugiada de guerra. Não entendia na época o significado dessas palavras. Eu a achava esquisita, mas gostava de ir a suas aulas. Primeiramente, contava alguma história. Depois, convidava-me a voar com tintas coloridas e pincéis. Muitos pincéis. Muitos potes. Uma alegria poder expressar o mundo, usar a imaginação. Pintava de tudo. Cenas do dia a dia. A casa desenhada era muito presente. A cozinha da casa. Jogos de futebol. A fogueira da Festa Junina. Despedidas. Circo. Passeios. Lago. O sol e a lua sorrindo. Minha mãe guardou todas essas pinturas. Sorte minha. Pude revê-las muitas vezes ao longo da vida. Foram importantes em vários momentos de crise pessoal e profissional. Elas têm uma verdade palpável. Muitas vezes, essas pinturas me salvaram. Salvaram quando mergulhava em racionalismos e controles exagerados. O processo de criação paralisava. Depois de colocá-las na parede do ateliê e observar por horas, dias e meses, pouco a pouco minha alegria de criar começava a fluir novamente. A imaginação voltava a habitar meu corpo, movimentando. Lembro-me vagamente de que essas primeiras pinturas foram mostradas em uma exposição. Um espaço com paredes muito altas. Painéis organizados com pinturas. Talvez um espaço público. Lembranças muito vagas. Quase sumindo.

Fotografia aos 6 anos. 1956. Registro de família.

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IMAGINAÇÃO COMO SOBREVIVÊNCIA

Figura 23: Série Identidade 04 (detalhe). 1956. A3, guache sobre sulfite. Figura 24: Série Identidade 08 (detalhe). 1956. A3, guache sobre sulfite.

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Gostava também de fazer teatro. Criava pequenas peças e as mostrava na escola e em casa. Mostrarme nessa família séria demais. Adulta demais. Hoje, tornei-me uma pessoa séria. Era vaidosa desde pequena. Usava muitos colares e brincos. Lembro-me de um colar com pedras retangulares lilases, a luz passando por entre elas. Tenho uma foto em que estou com esse colar, talvez por isso a lembrança seja mais presente. Na escola, quando pequena, vestia roupas incomuns. Gostava de vestir roupas diferentes. Lembro-me de uma blusa bordada com linha vermelha e desenho com flores e folhas. Mangas curtas bufantes. Pequenos pompons fechavam a gola careca. Ou um conjunto de saia e colete com um papagaio bordado e colorido costurado sobre o veludo verde-musgo. Meu pai viajava e me trazia roupas dos lugares aonde ia para trabalhar. Tinha facilidade em fazer amizades. Possuía uma energia que fluía. De outro lado, uma carência em receber afeto e ser reconhecida. Um desejo que conseguia muitas vezes alcançar, mas sempre com um gosto de quero mais. Na escola, fazia recitais, tocava piano. E desde que comecei a frequentá-la, divertia-me com as surpresas que criava. Em casa, sentia-me vigiada. Mãe, pai, governante. Não gostava de ouvir as brigas dos meus pais. Tapava os ouvidos com as mãos. Desenhava e pintava para escapar de uma realidade conflituosa. Figura 25: Série Identidade 06 (detalhe). 1956. A3, guache sobre sulfite. Figura 26: Série Identidade 09. 1956. A3, guache sobre sulfite.

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IMAGINAÇÃO COMO SOBREVIVÊNCIA

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IMAGINAÇÃO COMO SOBREVIVÊNCIA

Anos mais tarde, quando pintava em meu ateliê, sentia-me solitária. Dúvidas sobre os caminhos a trilhar na arte me levaram a procurar outras possibilidades de expressão. Fui para as instalações, que naquele momento davam mais oportunidades de conversa e troca. Por serem obras mais abertas, precisavam muitas vezes de um interlocutor. Hoje, percebo que com qualquer obra, seja bidimensional ou tridimensional, é possível haver trocas e conversas com o observador. Depende de como a gente se posiciona em relação à obra, onde se chega, quais as referências. Depois que casei e tive meus filhos, nos anos que se seguiram, vivi, muitas vezes, estados de ansiedade.

Consumia a vida com uma velocidade exagerada. Comia cru.

Na época, tinha a sensação de estar sempre correndo atrás do tempo. Depois, eu me dei conta de que corria na frente do tempo. Antecipava-me. Uma angústia me acompanhava continuamente. Não conseguia parar. Dor ancestral. Um corpo precisando contar histórias. Falar. Gritar.

Figura 27: Sem título. 1986. Aquarela e pastel seco sobre papel.

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Figura 28: Sem título (detalhe). s/d. Pastel seco sobre papel fabriano marrom.

Figura 29: Sem título (detalhe). s/d. Pastel seco sobre papel fabriano marrom.

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Figura 30: Sem título (detalhe). 1986. Tinta acrílica sobre papel.

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Nos anos 1980, chamei modelos para virem em casa, para pintá-las. Mas o resultado ficava muito diferente da realidade. As figuras eram disformes. Não eram pinturas realistas. Mas era uma pintura que me atraía. Hoje, revendo-as, elas continuam presentes e fortes. Descobri, na época, que meus desenhos lembravam obras expressionistas. De Kooning, Francis Bacon, Edvard Munch, dentre muitos. Egon Schiele. Fui me identificando cada vez mais com esses artistas.

Figura 31: Sem título (detalhe). 1986. Nanquim sobre papel.

Percebi que, quando observava as modelos, meus olhos se transformavam em raios x. Olhava o fora e o dentro. Da modelo e de mim. As emoções. Medos, sustos, alegrias e tristezas. Camadas. Fragmentos. Traço nervoso. Rápido. Cores fortes. Escavando e trazendo para a superfície minha subjetividade.

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Aprender na vida. Aprendia, esquecia, aprendia, esquecia.

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Aprender na vida. Aprendia, esquecia, aprendia, esquecia. Reconstruir minha história. Necessidade de repetir. Repetir ação e gesto. Durante vários momentos, senti necessidade de repetir o gesto de outras maneiras. Repetir uma fala. Repetir e revelar o que mais marcou. Flashes de lembranças. Sons de pés em cima de jornais. Rezas com galinhas sobre a cabeça. AnoNovo. Yom Kipur. Vestidos de boneca soterrados, desenterrados. Um tempo de infância.

Figura 32: Vestido Sereia. 2000. Vestido-escultura em acetato azul, instalação na Casa Blindada.

Passagens por entre histórias familiares de vida, mortes e vida, como quando coloquei tapumes corde-rosa em volta das portas, deixando uma passagem estreita. Provocar desconforto no ato de passar. Um corpo alterado por uma ação. Passagem já tinha sido tema de muitas pinturas feitas anteriormente. Figuras andando. Figuras paradas,

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Figura 33: Passagem (detalhe). 2020. Hidrocor e pastel seco sobre papel artesanal.

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outras saindo. Passagens de mulheres. Buscando uma presença. Sereia, vestido-escultura pendurado em um varal de roupas no terraço de fundo de uma casa. Outros sons. Outra paisagem. Em vez de barulho, tranquilidade, pássaros cantando, telhados baixos, em um movimento contrário aos sons altos da Avenida Rebouças, das motos, ônibus e carros. O vestido-escultura feito com uma base de tela plástica transparente costurada com pequenas placas de acetato impressas com imagens repetidas de fragmentos do corpo feminino. Bundas, pernas, genitálias, umbigos, seios. As imagens mostravam um padrão predeterminado de corpos. Beleza uniforme. Foi a primeira obra onde lancei um olhar crítico sobre o que e quem estava incitando as mulheres a idealizar corpos perfeitos. Quadris largos. Cintura estreita. Seios volumosos. As Barbies da vida real. As mulheres correndo para fazer cirurgias plásticas desnecessárias, e que muitas vezes levavam à morte. Esqueciam que as cirurgias invasivas envolviam Figura 34: Vestido Casulo. 2004. Vestido-escultura em acetato preto, instalação na Expo História da Moda. Figura 35: Vestido Sereia (detalhe). 2000. Vestido-escultura em acetato azul, instalação na Casa Blindada.

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Figura 36 e 37: Vestido Sereia (detalhe). 2000. Vestido-escultura, Tela plástica. 300 lâminas impressas em acetato azul.

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anestesias, manipulação em todos os órgãos do corpo. Com as Barbies, o tema continuou. As meninas, brincando com as Barbies, projetam-se no corpo perfeito e almejavam aquele corpo. E se essa criança fosse gordinha, com o cabelo rebelde? E se fosse negra? E se tivesse cintura larga, coxas gordas? Onde essa criança colocará sua frustração? Metalizadas em prata, instalei as bonecas em uma vitrine de um açougue de rua. As Barbies ficavam penduradas em ganchos no meio de outros ganchos com carnes, peles, músculos e ossos. Em outra obra, coloquei as Barbies como marionetes penduradas, duas TVs com vídeos de olhos machucados pós-cirurgia e a voz de Marilyn Monroe cantando Happy Birthday Mr. President. Boneca com medidas perfeitas, Marilyn, atriz criada e moldada segundo padrões desejados pela sociedade americana em um país, Estados Unidos, que se vangloriava de ser perfeito. Tudo foi minando. O presidente assassinado, o Vietnã resistindo, Marilyn morrendo por excesso de drogas.

Figura 38: Papou la. 2001. Bonecas Barbies metalizadas em prata penduradas por cabos de aço.

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Figuras 39 e 40: Papou la, inserção em circuito urbano. 2001. Obra Papou la inserida no açougue, em paralelo às obras da exposição.

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Figuras 41 e 42: deadline. 2001. Frame do vídeo.

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Figura 43 e 44: P, M, G. 2002. Lingeries costuradas com lâminas de acetato vermelho com bocas eróticas impressas.

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Figura 45: Aranha (detalhe). 2004. Calcinha preta com aranhas de plástico e inserção de pele de coelho. Figuras 46 e 47: Sutiã tamanho G. 2002. Sutiã metalizado em prata. Figura 48: Calcinha ouro. 2004. Calcinha feita em crochê com fio de ouro. Figura 49: P, M, G. 2002. Sutiã costurado com lâminas de acetato vermelho com bocas eróticas impressas.

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O perfeito desmorona porque não existe. Ficou podre. A jornada de trabalhos sobre o feminino continua. Sutiãs cobertos de acetatos com imagens de bocas em poses eróticas até a realização de uma exposição Sex Shop, onde criei releituras em torno dos desenhos pornográficos de Carlos Zéfiro com bordados, impressões, calcinhas tricotadas com fios de ouro. Nesses trabalhos, o lúdico vinha misturado com uma potência de alegria na vida. Potência na criação, no desejo. Tudo misturado.

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Figuras 50 e 51: Titia. 2004. Instalação no Lord Palace Hotel. Lençol estampado com a história Titia de Carlos Zéfiro.


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Framboesas e cerejas. Site specific dentro de um elevador. Um doutorado sobre ritos de passagem, apagamentos, busca de identidade. Com portas pantográficas de metal, o elevador foi transformado em um armário com roupas femininas em tons rosados, da década de 1950. Rosa era a cor dos meus cabelos naquele momento. Durante um mês, as pessoas que usavam o elevador para chegar aos outros andares precisavam ficar entre as roupas. Passando de um andar a outro, o elevador é um lugar de trânsito. Quando dentro, ele é estático, visto por fora, em outra perspectiva, é móvel. Avança por um buraco vazio. Sobe e desce. Passagem. Um tempo que inclui passado, presente e futuro. Sai de um andar em direção a outro. Abre as portas, fecha e se dirige a um outro espaço e tempo. Repetir um nascimento. Com três anos de idade, tive uma experiência difícil com o elevador de minha casa. Em um domingo, voltando do sítio onde passávamos o fim de semana, entrei sem querer, sozinha, no elevador. Sozinha naquele pequeno espaço. Assustada, quis sair, e a porta se fechou na minha cabeça. Sangue, hospital. Meu pai segurando a cabeça para o médico costurar. Dezessete pontos. Uma grande cicatriz.

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Figura 52: Cerejas e Framboesas. 2003. Instalação com roupas no elevador do Centro Universitário Maria Antonia.

A solidão, da qual sempre tive medo, me pregou uma peça, e foi a primeira vez que enfrentei a morte. Sobrevivi.


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“Eu gosto de ambiguidade. Não gosto da arte fechada em si mesma. Detesto verdades absolutas.”8 Lygia Pape 8 Sobral, D. Lygia Pape: Tudo o homem devora. Entrevista por Divino Sobral. Revista Visualidades do Programa de Mestrado em Cultura Visual, Goiânia, v. 2, n. 1, Jan-Jul 2004.


Em 1996, viajei para Lietzen, na Alemanha, para participar de um workshop e de uma exposição com um grupo de artistas mulheres. Éramos um grupo de alemãs e brasileiras.

Riga. 1996. Registro de família.

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Levei um trabalho que já tinha apresentado em São Paulo. Carreguei na mão, durante a viagem, um rolo de cobre de 15 metros de comprimento por 40 centímetros de largura, tendo nas duas beiradas lâminas de serra. Chegando em Lietzen, fiz uma dobra, transformando a placa em uma calha, e enterrei-a na terra, enchendo-a de mel. Sweet and bitter. O mel é um símbolo judaico, alimento consumido durante as comemorações do Ano-Novo. Mergulha-se a maçã no mel no jantar da véspera, reza-se desejando um ano novo doce. Sweet.

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O bitter está no fato de não existir, na vida, o doce sem o amargo. As abelhas da região, atraídas pelo cheiro do mel, vinham em grande número. Muitas se afundavam no mel e não conseguiam mais voar. Morriam. Uma artista jovem, com uma fala agressiva, chegou para mim e perguntou o que eu iria fazer com todas aquelas abelhas que estavam morrendo. E completou sua fala dizendo que eu estava interferindo no ecossistema do lugar. Fiquei tão enlouquecida com a observação que respondi:

“E com os seis milhões de judeus assassinados pelos alemães, o ecossistema foi modificado?”

Figura 53: Sweet & Bitter/Doce e Amargo (detalhe). 1994. Lâmina de cobre com dentes de serra, enterrada no meio da canaleta e submersa em mel.

Meu ato seguinte foi a destruição da calha. Essa ação coincidiu com a inauguração da mostra. E o mel entrou na terra alemã. Fiz o que precisava ser feito. Com esse ato, trouxe simbolicamente um pouco de doce para a terra amarga e machucada da Alemanha. Um pouco de doce na história perturbadora da minha família. Na minha vida familiar, o amargo vinha através de brigas, conflitos e tristezas que presenciava dentro de casa envolvendo meus pais e irmãos.

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Depois dessa performance inesperada, viajei para encontrar Jean em Berlim. Tomamos um trem e fomos visitar as quatro cidades de nossos pais. Libau, Nowy Sacz, Riga e Dagda. A mãe de Jean nasceu em Nowy Sacz, na Polônia, perto do campo de concentração de Auschwitz, e o pai, em Libau. Minha mãe, nascida em Riga, em 1911, meu pai, em Dagda, em 1899. Essas três últimas cidades estão situadas na Letônia. Como resolvemos ficar poucos dias em cada cidade, visitamos o cemitério e a sinagoga em cada um dos lugares. Muitas vezes, era difícil enfrentar o que encontrávamos. Sinagogas transformadas em museus de história natural. Peles de ursos com cabeças penduradas, bocas abertas cheias de dentes fixadas nas paredes. Cemitérios judaicos com lápides destruídas, jogadas umas sobre as outras para impedir os cultos e as rezas.

Quando retornamos à Cracóvia, meu corpo doía. Fomos comer comida judaica em um restaurante. Músicas judaicas cantadas em iídiche. Foi reconfortante sair da experiência da morte e entrar na vida novamente. Fico me perguntando em que lugar minha família foi exterminada. Riga teve um gueto e, em algum momento, todos foram mortos. Riga, a maior cidade das quatro que visitamos. Cidade com maior concentração em arquitetura art nouveau no mundo.

Quando meu pai pressentiu o que estava para acontecer, fugiu de Riga. Atravessou o Mar Báltico, chegando em Estocolmo em 1940. Todos os familiares do lado de mãe e pai permaneceram na Letônia. Ninguém acreditava no pior. Foram todos mortos. Meu pai chegou em Santos, no Brasil, com minha mãe e minhas três irmãs: Hannah, nascida em Riga em 1937; Judith, nascida em Bruxelas em 1938; NoeJean achou o nome do avô no caderno dos enterros mi, nascida em Estocolmo em 1940. Nascimentos em no cemitério em Libau, mas a localização era difícil fuga. devido aos atos de vandalismo feitos durante os anos em que o nazismo permaneceu no poder. Na viagem, Praticamente toda a população judaica de Riga, Dagda sentimos no corpo a trilha da morte e do apagamento. e Libau foi exterminada durante o Holocausto. LançaFomos ao campo de extermínio de Auschwitz, perto ram, no fim da guerra, uma relação com os nomes dos de Nowy Sacz. Quando entrei, senti os mortos me mortos. Os nomes de meus pais estavam incluídos. acompanhando. Muitos dos judeus que escaparam saíram dos países do Leste Europeu antes de 1935. Tristeza ao ver os vestígios. Malas, cabelos, sapatos. Os caminhos. Paredes de tijolo com buracos de ba- Dagda era uma cidade pequena. Um vilarejo. Meu pai las. Os galpões em madeira onde os prisioneiros dor- contava que, quando era adolescente, 70% de seus hamiam. O silêncio. bitantes eram judeus. As festas, celebrações e rezas nas sinagogas eram compartilhadas pela maioria da população. Uma vida além da religião. Dagda. 1994. Registro de família.

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Fomos ao cemitério. Abandonado, o mato cobriu as lápides. Um riacho corria ao largo. O que mais me chamou atenção nessa viagem foram as paisagens e a arquitetura. As árvores, rios e riachos. As casas, os prédios. Reconheci meus pais através da paisagem. Parecia que mesmo sem ter conhecido meus ancestrais existia uma raiz em comum. A raiz estava na paisagem.

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Ao chegarem no Brasil, meus pais se estabeleceram primeiro em uma casa antiga na Rua Maranhão, esquina com a Rua Sabará. Quando nasci, minha família, pais e quatro irmãos, mudou-se para um apartamento na Avenida Higienópolis. As rampas que davam à rua, a passagem coberta para os carros, eu as usava para andar de patins. Eram quatro rodas, duas a duas, com suporte de couro vermelho para colocar os pés. Ficava horas andando de um lado para o outro. Muitas vezes caía e me machucava, mas me levantava e continuava. O prazer era maior que a dor. O apartamento era grande. Quatro quartos. Terraços. Em cada quarto, uma grande veneziana marrom que subia e descia por uma fita de lona. De noite, quando um carro passava na rua, linhas de luz se movimentavam pelas paredes do meu quarto, criando um desenho em movimento. A cozinha era grande. Na bancada de mármore para preparar as comidas, eu fazia desenhos com açúcar queimado. Lembro-me de um armário no quarto onde dormia. Nele havia um espelho onde podia ver minha figura por inteiro. Brincava de pôr as roupas de minha mãe, meias de nylon com risca no meio da perna, pintava-me. Batom e lápis de sobrancelha. Depois de um tempo brincando, tirava tudo e ia dormir.

Dagda. 1994. Registro de família.

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Fiz o primário perto de casa. Às vezes, minha mãe me buscava com Lady, uma collie. A professora de piano morava na Rua Marquês de Itu. Toquei piano dos 6 aos 18 anos. Detestava, mas tocava. Saía da aula, que fazia uma vez por semana, e, quase sempre com minha mãe, parávamos em uma quitanda, onde ela me comprava pé de moleque. Sabor de infância. Doce e amargo.

Figura 54: Brincando de Boneca. 1998. 3 vestidos de boneca, metalização em cobre.

O dentista tinha um consultório perto do Theatro Municipal. Ia ao teatro ouvir concertos de piano. Tive que fazer longos tratamentos nos dentes depois do acidente no elevador. Quando saíamos do dentista, minha mãe me levava para comer um lanche. Certa vez, comprou-me um vaso com pequenas violetas roxas. Nunca esqueci. Uma loja com roupas de festa na Rua Xavier de Toledo, Casa Clo. Lá, comprei o vestido que usei quando minha irmã mais velha se casou. Eu tinha oito anos. Era um vestido com cintura baixa, modelo charleston. Um laço comprido de veludo saía da gola. Cor clara. Demorei para fazer corpo de mocinha. Muito magra. Mesmo com pouco peito, consegui realizar o sonho de usar sutiã. Todas as minhas colegas já usavam. Fiz um na Casa Fretin que ficava perto do Vale do Anhangabaú. Um fio solto: lembro-me de ir bastante ao correio. Com 16 anos, entrei no Conservatório Dramático e Musical de São Paulo, formando-me concertista com 18 anos. Era 1967. Nessa época, fazia o cursinho para o vestibular de arquitetura. Desenhava loucamente e não queria saber do piano. Nunca mais toquei. Para a formatura no conservatório, fiz um vestido na costureira. Estampa abstrata em verdes e azuis. Comprido. Sem mangas. Um recorte retangular embaixo do braço. Sem gola. Inventava minhas próprias roupas. Quando pequena, ia nas costureiras com minha mãe. Lembro-me que elas costuravam ouvindo novelas de rádio. Gostava de ver como ficavam envolvidas com as vozes dos protagonistas e a emoção em torno das histórias. Um tempo, um espaço. Uma outra vida. Cenas que nunca esqueci.

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GUERRA, FAMÍLIA E COTIDIANO “[...] acredito que os doze anos hitlerianos compartilhem sua violência com muitos outros espaços/tempos históricos, mas que se caracterizem por uma difusa violência inútil, com um fim em si mesma, voltada unicamente para a criação da dor [...].”9 Primo Levi Levi, P. A trégua. São Paulo: Planeta de Agostini, 2004.

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M

inha mãe, grávida da terceira filha, Noemi. Ao chegar perto do porto de Estocolmo, os alemães tomaram o navio levando-o de volta para Riga.

Nesse navio, minha mãe foi violentada. Em Riga, conseguiu um atestado médico de sua condição de gravidez, com uma declaração de que precisava urgentemente encontrar seu marido em Estocolmo. No dia seguinte, pegou o último navio que saiu da Letônia, pouco antes de a guerra começar. Quando minha irmã nasceu, em 1940, minha mãe chorou. Dizia que minha irmã tinha nascido feia. Imagino o trauma. O nascimento ligado à violência que sofreu. Contava que, na hora do nascimento, os sinos tocaram, anunciando a passagem dos alemães pelo território sueco. Questionou aquele som. — Cuida da sua filha que está nascendo — a enfermeira falou. Acompanhando algumas histórias que me foram relatadas quando pequena, ficou muito marcado o abuso que minha mãe sofreu. Esse abuso provocou outros, físicos e psicológicos, dentro da família.

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Figura 55: Segredo guardado em silêncio, 2000. Instalação na Biblioteca George Alexander. Figura 56: Segredo guardado em silêncio, 2000. Frame do vídeo.

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Figura 57, 58, 59 e 60: Segredo guardado em silêncio, 2000. Frame do vídeo.

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A partir de 1939, e já antes, os judeus eram perseguidos e discriminados na Letônia, na Polônia e em outros países vizinhos. Na Letônia, país de meus ancestrais, os judeus tinham que, constantemente, fazer acordos com os líderes políticos que dominavam, a cada período histórico. O medo, a desconfiança e a insegurança que sentiam vinha de séculos atrás. Os prussianos, russos e alemães dominaram a região durante centenas de anos. A Letônia conseguiu se tornar independente somente em 1991. O arruinamento e o rompimento dos vínculos, resultado da guerra, produziu cicatrizes profundas na família Feigenson. Em 1941, a guerra continuava. Era uma barbárie. E os judeus não estavam ainda, até aquele momento, em uma posição confortável.

Figura 61: A Loba e a Formiga. 1981. História em quadrinho em hidrocor.

Demorou alguns anos até que essa situação mudasse. Minha mãe tinha sentimentos ambíguos e os transmitia aos filhos. Até sua saída forçada, ela era feliz em Riga. Sua juventude foi boa, com amigos alemães, e, de um momento para outro, eles se tornaram inimigos, estupradores e assassinos. A desconfiança se instalou, tornando-se uma das palavras-chave na família. O amigo se torna um inimigo. O afeto, desafeto.

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Estabelecido em São Paulo, meu pai começou a criar um novo negócio. Na Europa, era importador e exportador de linho, mas aqui, no Brasil, percebeu que essa atividade não daria o mesmo resultado. Importar e comercializar carros foi o início de suas atividades comerciais. Em 1950, nasceu a Telespark na garagem da casa onde a família morava. Montava e vendia rádios para carros. Depois de algum tempo, alugou galpões na Vila Anastácio, na beira da linha férrea. Lembro-me dessas construções. As paredes revestidas de tijolos vermelhos. Nos fins de semana, quando meu pai ia trabalhar em sua sala, eu gostava de ir com ele, sentar-me diante da máquina de escrever, com um papel enfiado no rolo, e brincar de escrever palavras, frases. Andar dentro da fábrica era divertido também. Passava pela marcenaria, onde as caixas dos rádios eram feitas. O cheiro do verniz contaminava o espaço. Noutro espaço, sentia o cheiro da solda e da fumaça que subia. A Telespark cresceu. Cheio de garra e vontade de vencer, assim era o patriarca da família.

A Telespark cresceu. Cheio de garra e vontade de vencer, assim era o patriarca da família. Era um tempo bom pra isso, com muitas oportunidades e vantagens econômicas. Mas, dentro de casa, vivíamos um inferno.

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Rádio Telespark. s/d.

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s gritos de meus pais eram de tal ordem que os vizinhos, uma vez, chamaram a polícia. Tinham personalidades muito diferentes. Minha mãe, ao se estabelecer no novo país, quando teve consciência de que tinha perdido toda a família, amigos, perdido tudo, transformou-se em uma mulher deprimida. Uma mulher com um marido dominador, cinco filhos, sem um trabalho que a satisfizesse — lembro-me de sempre me recomendar que eu tivesse uma profissão, para não depender de ninguém. Ela se isolava, não tinha amigas. Cuidava dos filhos. Era do lar. Sua atividade principal era fazer compras para os almoços e jantares. E compras de roupas. A família, para o mundo externo, tinha que ser perfeita. Lindas roupas. Compradas ou feitas em costureiras especiais. Íamos na sinagoga, entrávamos, e todos nos admiravam. Dentro de casa, um caos. Tornou-se melancólica na vida, sem ninguém para compartilhar suas tristezas.

Eu era uma criança solitária. Tinha um monte de pessoas cuidando de mim, mas ninguém para brincar. A dor que sentia quando criança. Tinha gente ao meu redor e não tinha. Tinha gente, mas não se conectavam comigo. Desde pequena conversar é fundamental em minha vida. É uma necessidade corporal. Dizem que quando você conversa, esquenta internamente o corpo. Lembro de uma ocasião em que uma amiga da família veio nos visitar. Ela me pegou no colo. Deu carinho. Eu devia ter uns oito anos. Nunca esqueci o calor daquele colo.

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Meu pai tinha personalidade forte. Signo Touro. Não aceitava negativas. Avançava em seus propósitos como um grande tanque de guerra. Comandava a família a ferro e fogo. Usava a sedução para exercer poder, prática copiada pelos irmãos. Talvez eu mesma tenha me valido desse artifício. Mas percebi que, no final, a sedução produz resultados desastrosos. Vaidoso do poder que exercia, não enxergava a realidaQuando eu tinha por volta de três anos, minha mãe de à sua volta, já que tinha salvado da morte a família. tentou o suicídio pulando do terraço. Foi salva pelas De outro lado, ele tinha uma joie de vivre muito potenmulheres que trabalhavam em casa. Essa história mi- te. Vivia e trabalhava intensamente. nha irmã mais velha me contou pouco tempo atrás. Comentei com outra irmã, e ela nunca soube deste episódio antes. A desconexão sempre presente no dia a dia. Desconexão para sobreviver. Como minhas irmãs eram bem mais velhas e meu pai viajava muito, eu ficava perto de minha mãe, ouvindo, desde muito pequena, histórias e queixas. Tornei-me sua confidente. Figura 62: Abuso e Poder (detalhe). 2020. Hidrocor e pastel seco sobre papel artesanal.

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No sítio, tínhamos cavalos. Fazíamos passeios no meio do mato e das árvores. Momentos surpreendentes de proximidade. Certa vez, segurei um galho, o cavalo seguiu e caí no chão. Subi novamente, e seguimos. Vacas holandesas em um estábulo onde se tirava leite. O cheiro forte do leite. O marrom avermelhado das vacas. As grandes tetas de onde se tirava o leite em jatos fortes. Queijo e manteiga eram produzidos em batidas fortes. O leite parado no pano grosso, transformando-se em ricota. Uma granja com galinhas, pintos e ovos. Dezenas de pintinhos amarelos correndo dentro de uma caixa de madeira. Os pequenos caminhos da horta, onde minha mãe me dava para comer uma cenoura recém-tirada da terra, depois de lavá-la na torneira. Um lago onde carpas vinham comer o pão que jogávamos com o som de palmas. Percorrer todos esses lugares era fascinante. Meu pai gostava de ficar em meio às coisas do campo. Da terra. Lembrava suas origens. Tinha prazer em nos proporcionar aventuras, e eu embarcava em todas quando deixavam. As aventuras me atraíam, mas era uma criança assustada, sempre esperando a próxima briga. Um hábito familiar. Quando a desconfiança emergia por alguma razão, meu pai excluía filhos, esposa, netos, funcionários, ninguém escapava. Dentro e fora de casa. Nunca delegava nada. A última palavra era sempre dele. Um pai patrão. Tinha acessos de raiva. Bebia. E quando bebia, seus acessos eram piores. Estimulava conflitos. A família permaneceu presa em uma teia de aranha até a morte dele. Com minha mãe passiva, vieram as preferências. Jogos de poder. As brigas continuaram entre irmãos. Seguiram vivendo por caminhos abusivos, com mentiras e segredos, repetindo o padrão ensinado. Sedução, poder, desconfiança, exclusão permaneceram na nossa família impedindo o fluxo da vida.

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Fotografia do Sítio da família. Registro de família.


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Hoje, convivo com esses fantasmas. Desde criança a arte da música, da dança e da pintura Mas não herdei os traumas da guerra da mesma ma- esteve presente. Ao longo do tempo, isso me fortaleneira que meus pais e irmãos. ceu e, quando adulta, me realizei com e na arte. As artes plásticas foram chegando devagarinho e ocuTalvez porque nasci depois da guerra, porque fiquei pando um espaço-tempo cada vez mais definitivo. mais afastada por ser a caçula. Nasci e cresci em uma Tornei-me artista e professora de artes visuais. estufa. Uma plantinha frágil. E era estimulada a permanecer nesse lugar. Casei em 1975. Instalei-me em ateliês diferentes. Fiz contatos e traTalvez por isso, muitas vezes, eu tenha me colocado vei conversas com outros artistas. Amadureci. Um em uma posição inferior. Anulava-me, esquecendo o percurso iniciado em 1977. E não parei mais. Inquieta. que havia trilhado, as conquistas que havia feito por A arte se tornou um instrumento que movimenta minha vida, que me dá prazer. mim mesma. Figuras 63 e 64: Performance Fuga. 1986.

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FÊNIX RENASCE DAS CINZAS “Todo ser humano possui uma reserva de forças cuja medida lhe é desconhecida: pode ser grande, pequena ou nula, e só a adversidade extrema permite avaliá-la”10 Primo Levi 10 Levi, P. Os afogados e os sobreviventes: os delitos, os castigos, as penas, as impunidades. 2. ed. Trad. Luiz Sérgio Henriques. São Paulo: Paz e Terra, 2004.

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m outubro de 1997, minha filha Tati, com 19 anos, ficou doente pela primeira vez. Leucemia linfoide aguda. Fez quimioterapia e se curou.

Em 2002, a doença voltou. Com um transplante de cordão umbilical, curou-se novamente. Em 2006, a doença voltou pela terceira vez. Transplante de medula. Curou-se, mas com sérias sequelas. Sobreviveu por mais nove anos. Uma longa jornada. Dezoito anos de luta. Alegrias e tristezas. Muitas conquistas e muitos medos também. Quando eu cursava a universidade, numa certa ocasião, fiz um desenho colorido, com lápis de cor, de um pássaro emergindo em direção ao céu. Uma fênix. Li que o mito surgiu no Egito Antigo. Quando a ave sentia estar em perigo, montava um ninho com ervas diversas para serem incineradas pelos raios de sol. Das cinzas, nascia uma nova ave. Segundo o que minha mãe contava, o nome Fanny tem sua origem na tradução em alemão de vogel, pássaro. Em iídiche, fayga. Em 2018, fiz uma exposição, Harpia XXI. Uma das obras era um ninho com ovos e ervas. Ciclos se repetindo.

ela tinha que fazer exames e tratamentos invasivos. No último mês de vida, era levada na cama para fazer hemodiálise. Tinha que pesar antes e depois de fazer o procedimento. A balança ficava fora do quarto onde estavam todas as aparelhagens. Ela sentia muito frio. Colocavam cobertores e uma manta que injetava continuamente ar quente. Tinha diarreia e hemorragias. Sua alimentação era feita pelo nariz. Enteral. Mas mesmo com todas essas intercorrências, achávamos que ela iria, mais uma vez, conseguir sair viva do hospital. Sair e voltar ao mundo que ela tanto amava e vivia intensamente.

FÊNIX RENASCE DAS CINZAS

Procurava constantemente outros caminhos para Tati se salvar. Inclusive, em uma ocasião, conversei com uma médica-chefe do setor de transplantes de Seattle, Estados Unidos. Ela estava participando de um congresso em Foz do Iguaçu. Fui e voltei no mesmo dia. Pensava que seria possível arranjar um tratamento não protocolar. Procurar pares dentro de universidades pensando em alternativas de tratamento. Não desistia. Nem ela.

Hoje, rememorando essas histórias, lembro-me da Tati. Inúmeras vezes, em sua curta vida, ela foi uma fênix. Renascia das cinzas, enfrentando tantas vezes a morte. Desde o dia em que ficou doente pela primeira vez, fui sua fiel guardiã. Fui sua voz quando ela não tinha força para falar, nem para agir. Traduzia o que seus olhos diziam. Eu a acompanhava em todos os tratamentos. Meu coração ficava pequenino quando

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Mas, na última semana, Tati estava cansada. Cansada de lutar, comentou isso com uma amiga. Mas dizia ter receio de me deixar. Faleceu em 21 de setembro de 2015. Uma segunda-feira, final de tarde. Sua pressão começou a ficar instável. Os médicos tentando equilibrar. Tinha contraído uma nova pneumonia. Chegou um momento em que pediram para eu sair do quarto. Depois, me avisaram que ela tinha falecido. Até hoje me cobro por não ter permanecido no quarto até o fim.

Quando entrei, eu a abracei, beijei e senti uma leve brisa sair de sua boca. 106


Acabou. Era o fim de nossa jornada juntas. O fio que unia Tati a mim se rompeu. A vida, naquele momento, fez-se morte. A Grande Morte, que estava no inconsciente, girou, girou, girou, em um tempo em espiral, até a morte da Tati. A morte de todos meus ancestrais e a morte da Tati se cruzaram. Eterno retorno. Duas espirais que se cruzaram se transmutando.

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Nos últimos anos de vida, Tati viveu acontecimentos que marcaram a todos nós. Muitas viagens. Mal saía do hospital, entrava em um avião buscando novas aventuras. Dentro e fora do Brasil. Com irmão e pais. Conquistas como em abril de 2014, quando finalizou seu mestrado, Potências da fragilidade: só um corpo vivo sobrevive. Resultado de cinco anos de muito estudo e trabalho, em meio a inúmeras internações. Em um espaço vizinho ao local de defesa de seu mestrado, criou uma exposição com fotografias, objetos e instalações. As obras conversando com seu texto. Falavam de sua vivência de muitos anos dentro do hospital cuidando das leucemias e dos transplantes que realizou.

Figura 65: Autora Tatiana Grinfeld. Croqui de exposição. 2014. Figura 66: Autora Tatiana Grinfeld. Instalação tecidos impressos. 2014. Figura 67: Autora Tatiana Grinfeld. Bordado sobre algodão. 2014.

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Figura 68: Autora Tatiana Grinfeld. Croqui de exposição. 2014. Figura 69: Autora Tatiana Grinfeld. Bordado sobre gaze. 2014.

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espaço onde ela apresentou seu mestrado era ao ar livre. A natureza celebrando o acontecimento. Tudo era motivo de celebração. Um dia, Jean, Tati e eu fomos atrás de uma roupa nova para ela usar na defesa. Ela descobriu um ateliê onde faziam roupas manualmente com fios de lã incorporados em tecido bem fino. Escolheu uma blusa curta. Corte bem simples. Os fios faziam desenhos abstratos em tons de azul. Resolveu presentear os componentes da banca com pequenos copos adesivados com a frase: só um corpo vivo sobrevive. E no final nós todos tomamos vodca. Bebida de nossos ancestrais. Uma mesa foi colocada ao fundo do pátio entre as árvores. Peter Pál Pelbart, Suely Rolnik e Laymert Garcia, a banca examinadora, sentados. Peter iniciou sua fala dizendo que nunca tinha visto uma lista tão grande de agradecimentos. Tati, de lado, em uma pequena mesa, óculos de armação cor tartaruga, com seu exemplar da dissertação para fazer anotações, já pensando na continuidade do mestrado. Um doutorado e a criação de um livro. Um grupo de 50 cadeiras completava o cenário desse ritual. Muitos amigos, colegas, família. Agora, enquanto escrevo este texto, relembro e me emociono.

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Ajudá-la na criação da exposição que acompanhava a dissertação foi intenso e prazeroso para nós duas. A decisão de quais obras iriam participar, os bordados feitos, as impressões nos tecidos, montagens de fotografias, a criação de grandes carimbos com imagens de coração, pulmão, tudo era tema de conversas deliciosas que tínhamos. Tati estava muito bem em 2014, nos meses que antecederam a finalização de sua dissertação. Escrevia o texto final com segurança e competência. Eu ficava admirada. Orgulhosa. Em 2015, foi enfraquecendo aos poucos. Dormia mais. Tinha infecções. Não conseguia engordar.


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Figura 70: Autora Tatiana Grinfeld. Mapa sobre fotografia de pele. 2014.


“ Assim, cada linha, por mais que tenha sido escrita com a tua dor, o teu sangue, a tua sensibilidade, conecta-se imediatamente com o que está presente como questão por toda parte: Apresentação de Peter Pál Pelbart, por ocasião da mesa composta para apresentação do mestrado de Tatiana Grinfeld, Potências da Fragilidade. PUC - SP. 2015.

a relação entre vida e sofrimento, sofrimento e potência, sobrevivência e reinvenção, aqui, nos hospitais, nas favelas, nos campos de extermínio, nas práticas estéticas feitas em condições de precarização da vida, como o revelam tão tocantemente seus trabalhos em que se sobrepõe alguma radiografia feita sobre o seu corpo com o mapa dos campos de concentração na Europa, atingindo uma dimensão histórico-mundial da qual você não poderia fazer a economia, sob pena de elidir um passado que sobrevive no seu corpo próprio.

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No final de 2015, Suely me convidou para fazer um pós-doutorado no mesmo Núcleo de Subjetividade onde Tati havia feito seu mestrado. Demorei quatro anos para conseguir iniciar o projeto. Resolvi construir uma série de narrativas e desenhos contando a história da minha família, minha história, a história com Tati.

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Sinto uma saudade absurda. Saudade de pegá-la, abraçá-la, beijá-la. Mãozinhas com dedinhos finos. Magrinha. Muito magrinha. Saudade de deitar e dormir ao lado dela, das comidas que fazia. Adorava comer. Lembro-me dos acarajés que comíamos em Salvador. Mal descíamos no aeroporto, ela corria para a banca. Muitas vezes fugíamos do hospital para um restaurante de comida japonesa e voltávamos felizes! Saudade das compras que fazíamos para nossa loja Chic Chic, criada com tanto carinho. Roupas, acessórios, objetos. Jogava infindáveis partidas de tranca — ela era muito melhor jogadora do que eu. Enquanto preparava seu mestrado, Tati descobriu a vontade de seguir a carreira de professora e de continuar seus projetos de artista plástica. A partir de sua experiência como paciente de leucemia linfoide aguda, duas recidivas, dois transplantes não aparentados, ela começou a dar aulas. Era um caso raro de sobrevivência no mundo. A segurança ao falar de seu caso, as histórias engraçadas, as críticas aos procedimentos por demais protocolares, levavam as alunas a um lugar essencial para futuras ações como enfermeiras. Deu aula no curso de cuidados paliativos: como cuidar de pessoas que estavam no momento terminal de vida. Tati não tinha receio de conversar sobre vida e morte. Suas falas vinham com muita naturalidade e respeito por esses temas. Tudo que fazia era com muito amor, cuidado e dedicação. Tinha seus momentos de braveza também. Tristezas também. Fazia parte.

Figura 71: Fênix. 1974. Desenho em lápis de cor sobre papel sulfite recortado.

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Acho que tínhamos um cordão umbilical contínuo. Eu a nutria para sua sobrevivência física e a nutria com a arte também. E ela me nutria para que eu pudesse ter menos medo da vida. Muitas vezes éramos três: Tati, eu e a arte. Achei um pequeno texto escrito por ela na época.

Figura 72: Cordão Umbilical. 2020. Hidrocor sobre papel artesanal.

“Ver que estar perto da Arte seria viver a experiência viva, aquela que dá sentido ao viver. Estar perto da arte é estar perto do corpo, estar perto de si. É estar acompanhado de si. Isso pode se dar tanto no fazer/produzir como no sentir/ admirar ou no perceber arte no cotidiano, com um olhar que abre possibilidades”. Tati nasceu em 29 de dezembro de 1977. Primeira filha. O nome Tatiana já estava escolhido antes mesmo de ela nascer. É um nome russo. Meu pai gostava desse nome e inclusive me presenteou com um livro antigo, de capa dura, cor vermelho escuro, escrito em russo, e cujo título era Tatiana. Quando minha filha nasceu, no décimo dia meu pai foi na sinagoga e deu o nome dela em hebraico. O nome escolhido foi Tauba. Tereza. Nome da minha avó materna. Bebê, criança, adolescente tranquila. Com 19 anos, iniciou sua difícil jornada. Inúmeras vezes pensei o quanto era responsável pela doença dela. Poderia ter sido diferente? Como mãe, sempre achei que estava fazendo o máximo que podia. Mas depois que Tati foi embora, duvidei. Continuo duvidando. Vou morrer duvidando.

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VENTANIA SOLAR


E que caldo farei, faremos com o livro? Bom encontro de Tati e Dr. Celso, dois incentivadores. E depois Soraia. Juntos, trazem essa ventania solar. O que vem por aí não sei. Mas gosto muito da ideia de reconectar com a dissertação. TATIANA GRINFELD

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VENTANIA SOLAR

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screveu essas palavras em seu quarto, no hospital. Tinha ganho um caderno para fazer anotações. Capa dura de cor amarela. Gostava da cor amarela. Amarelo sol. Deitar na areia ao sol. Nadar no mar. Guardo muitas fotos dela na Bahia. Viajava com os amigos e com Lucas, namorado de adolescência. O que fazer com todas as fotos? Me dá uma certa agonia... Já pensei em fazer colagens, misturar com desenhos. Já pensei em jogar fora, mas é esquisito. As fotos estão dentro do armário. Não as vejo. Sei que elas estão lá. Se as imagens são de pessoas vivas, ok, mas de alguém que não existe mais? Tudo muda na passagem entre o mundo físico e o mundo das lembranças. Muitas vezes, o mundo das memórias se torna mais marcado que a realidade. “E eu na ansiedade pelo arroz com caldo… mas tudo bem. a maçã cozida vem”. Tati disse. Ventania solar... Inicialmente achei curiosa e instigante a junção dessas duas palavras. Ventania é vento forte. Tudo se mexe. Papéis e plásticos voam. As roupas das pessoas se agitam. Chapéus caem da cabeça. Cabelos esvoaçam. Portas batem. Vidros das janelas vibram. Cortinas se agitam. Folhas e galhos dançam. Ventos criam desenhos com as nuvens no céu se desmanchando logo a seguir. Solar tem a ver com o sol. Calor iluminando. Criando contrastes de luz e sombra nos objetos, natureza, bicho e gente. Imagino que Tati, na expressão Ventania Solar, queria expressar a luz e o calor do sol juntamente com o movimento da ventania, que faz tudo se mover.

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Lembrei-me de cenas dos meus tempos de criança. A primeira, no sítio da família, onde vivi as mais importantes experiências em contato com a natureza. Atrás da casa tinha um pequeno morro, um varal com roupas penduradas. Lençóis se agitavam com o vento. Fico fascinada também quando observo plantas agitando suas folhas. Sem ninguém mexendo-as. As brincadeiras que o vento cria. Ou a mágica em fazer surgir desenhos no chão. Aparecem e somem. Aí o autor da brincadeira é o sol, brincando de esconde-esconde. Lembrei-me também da cena de um dia de muito calor, no asfalto, olhar para imagens no limite da superfície do chão e elas ficarem borradas, construindo uma miragem. No texto de Tati, Ventania Solar seria uma sinergia de vários parceiros, amigos, médicos e terapeutas, se juntando para criar algo novo e potente. Um livro. E a mãe torcendo junto. Sempre. Era muito difícil acompanhar a montanha-russa que vivíamos dentro do hospital. Lembro de Tati comentando que tinha dificuldade em entrar para fazer algum procedimento. Se internar, ficar algum tempo, e depois sair do hospital. Voltar ao seu cotidiano. Dizia que sentia viver em duas bolhas, dentro e fora do hospital, e que demorava para se adaptar ao transitar de um ao outro. Para mim, também era difícil. Ficava brava quando a enfermeira, antes de algum exame, perguntava se eu era a acompanhante. Respondia em tom ríspido: — Não sou a acompanhante. Sou mãe. Para dizer a verdade, ficava brava muitas vezes. Hoje, revendo aqueles tempos, a braveza era para disfarçar o medo. Hoje, essa braveza se instalou em definitivo dentro de mim. Medo de sentir medo, de ver acontecer novamente algo inesperado. Perder o controle.


Tatiana Grinfeld. Registro de família.

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Figura 73: Autora Tatiana Grinfeld. Bordado sobre gaze. 2014. Figura 74: Autora Tatiana Grinfeld. Fragmento de diário. 2015.

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Continuei carregando a morte, medo da Tati não conseguir ficar na vida. Tinha um lado meu que acreditava que conseguiríamos vencer. De outro lado, olhava tudo com ceticismo. Naqueles primeiros tempos, tive medo que desse algum problema na quimioterapia, radioterapia, nas cirurgias para colocar e tirar os cateteres, medo do resultado da retirada do liquor da medula. Saber se a doença tinha voltado. O tempo vira outro tempo. Um tecido que vai se esgarçando. Quantas vezes me senti tão pequena que acabava me transformando na criança que fui. Sozinha, procurando colo. Firme na frente dela, criança no banheiro. Chorando. Fiquei com sono leve. Qualquer barulho me fazia acordar. No quarto do hospital, ficava alerta. Como Tati estava dormindo? Sentia alguma dor?

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Figuras 75 e 76: Autora Tatiana Grinfeld. Fragmento de diário. 2015.


Nas últimas semanas de vida, estava cansada de lutar para sobreviver. Mas tinha garra também. Gana de viver. Queria publicar o livro. Como seria... ainda não sabia. Eu vivia em uma montanha-russa. Quando íamos com os filhos pequenos em parques de diversões, eu fugia da montanha-russa. Sempre busquei equilíbrio. Precisava. Desde pequena, procurava por equilíbrio. Dentro de minha casa não encontrava equilíbrio. Faltava ar para respirar. O dedo na boca me acalmava. Segurando um lenço. Com a doença da Tati, essa sensação de subidas e descidas abruptas se enraizaram em meu corpo. Pensamentos recorrentes sobre a morte. Eu acompanhava seus desejos e, juntas, sonhávamos. Ela na cama, deitada. E eu no sofá-cama onde dormia. E uma grande janela que iluminava o quarto. De lá, víamos as ruas, prédios sendo construídos, casas. O céu. Era nosso cinema. Víamos o dia se arrastar. Ou correr. Variava, dependendo do que vivíamos. De repente tudo acabou. Tati foi embora. Hoje, depois de cinco anos que Tati faleceu, ainda tenho um gosto de morte que me acompanha. Meu senso de humor mudou. Pouca tolerância. A energia de Tati continua a correr pelo corpo. Junto com meu sangue.

Sinto ao mesmo tempo que continuo vivendo no fio da navalha. Por mais que continue fazendo projetos e exposições, continue dando aula, tenho uma necessidade, como de uma viciada em droga, de seguir falando sobre minha história, me alimentando, falando sobre o que aconteceu na minha vida. De ter tido uma filha que adoeceu e morreu. Falo e escrevo em contínuo looping. E em cada looping volto naquele lugar da dor. Esse estado contradiz um outro lado presente e resiliente em mim. Uma coragem de estar na vida. Criando com os alunos, e o livro de artista que está em produção. Inúmeras vezes, volto a escrever episódios do passado que Tati e eu vivemos juntas. Noutro momento, conto sobre coisas depois de sua morte, e de novo volto aos episódios de antes de sua morte. Comendo meu próprio rabo. Sou uma serpente como a ouroboros, criatura mitológica simbolizando o ciclo de vida, a evolução, morte e renovação. Me identifico com esta imagem. Tati me ajudou a trazer consciência, pertencer a um ciclo de vida maior. Escrevo com um esforço enorme. Dá angústia. Vontade de desistir muitas vezes. Mas a escrita como criação também dá uma alegria que me empurra para continuar. Recaídas, eu as tenho, e vou continuar a ter.

VENTANIA SOLAR

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Mas uma velha casca está caindo e uma nova pele está nascendo. Sinto essa transformação lentamente. Dói. Às vezes mais, em outras, menos. Como será essa nova pele, eu ainda não sei. Vivendo, saberei.


VENTANIA SOLAR

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BENJAMIN, W. PASSAGENS. BELO HORIZONTE: UFMG; SÃO PAULO: IMPRENSA OFICIAL DO ESTADO DE SÃO PAULO, 2006. BENJAMIN, W. SOBRE O CONCEITO DE HISTÓRIA. TESE N. 3. IN: OBRAS ESCOLHIDAS, VOL. 1. SÃO PAULO: BRASILIENSE, 1987. BLIXEN, K. A FESTA DE BABETTE E OUTRAS ANEDOTAS DO DESTINO. TRAD. ISABEL PAQUET DE ARERIPE. RIO DE JANEIRO: RECORD, 1986. GAGNEBIN, J. M. LIMIAR, AURA E REMEMORAÇÃO: ENSAIOS SOBRE WALTER BENJAMIN. SÃO PAULO: ED. 34, 2014.

GAGNEBIN, J. M. WALTER BENJAMIN: OS CACOS DA HISTÓRIA. SÃO PAULO: N-1 EDIÇÕES, 2018. LEVI, P. A TRÉGUA. SÃO PAULO: PLANETA DE AGOSTINI, 2004. LEVI, P. OS AFOGADOS E OS SOBREVIVENTES: OS DELITOS, OS CASTIGOS, AS PENAS, AS IMPUNIDADES. 2. ED. TRAD. LUIZ SÉRGIO HENRIQUES. SÃO PAULO: PAZ E TERRA, 2004. SOBRAL, D. LYGIA PAPE: TUDO O HOMEM DEVORA. ENTREVISTA POR DIVINO SOBRAL. REVISTA VISUALIDADES DO PROGRAMA DE MESTRADO EM CULTURA VISUAL, GOIÂNIA, V. 2, N. 1, JAN-JUL 2004.


Ventania Solar 2021 FIG. 1 / CAPA 1

Pastel sobre papel 21 X 29 cm

Ventania Solar 2021 FIG. 2 / PÁG.1 1

Nanquim sobre papel 21 X 29 cm

Espirais 2021 FIG. 3 / PÁG. 4 1

Pastel seco sobre papel 21 X 29 cm

Espirais 2021 FIG. 4 / PÁG.9 1

Pastel seco sobre papel 21 X 29 cm


Tempo 2020 Nanquim sobre papel artesanal 39 x 34,4 cm

FIG. 5 / PÁG. 181

Tempo 2020 Nanquim sobre papel artesanal 39 x 34,4 cm

FIG. 6 / PÁG. 211

Apagamento 2020 Nanquim sobre papel artesanal 39 x 34,4 cm

FIG. 7 / PÁG. 221

Cicatrizes 2018 Tecido musseline queimado e cortado Dimensões variadas

FIG. 8 / PÁG. 241


Série Identidade 05 1964 FIG. 9 / PÁG. 27 1

Guache sobre sulfite 29,7 x 42 cm

Série Identidade 07 1964 FIG. 10 / PÁG. 29 1

Guache sobre papel 29,7 x 42 cm

Duplo de mim 2020 FIG. 11 / PÁG. 29 1

Montagem, reprodução em acetato com fotografia de Fanny em 1949 sobreposta a guache sobre papel

Performance Fuga 1986 FIG. 12 / PÁG. 31 1

Fotografia de Silvia Heller Dimensões variadas


Afeto que pesa: Avental 2001 Avental infantil feminino rendado, tamanho 6 anos feito em chumbo

FIG. 13 / PÁG. 321

Fotografia de Rômulo Fialdini

Afeto que pesa: Xale 2001 Placa de chumbo com bordados coloridos e franjas Fotografia de Rômulo Fialdini

FIG. 14 / PÁG. 331

136 x 36 cm

Performance Fuga 1986 Fotografia de Silvia Heller Dimensões variadas

FIG. 15 / PÁG. 341

Desenho a partir de performance 1986 Nanquim sobre papel fabriano 14,8 x 21 cm

FIG. 16 / PÁG. 351


Fértil 1993 FIG. 17 / PÁG. 36 1

Grupos de 30 m de tubos flexíveis de plástico transparente com 5 cm de diâmetro, preenchidos com diferentes tipos de arroz Dimensões variadas

Via Láctea 1996 FIG. 18 / PÁG. 37 1

Calha de ferro de 10 m, cheia de leite Duração 1 mês. Vidro sobre a calha

Grão 1993 FIG. 19 / PÁG. 38 1

Instalação site specific no forno de pão do Sesc Pompeia. TV de tubo com vídeo de mãos fazendo pão. Inúmeros grãos de trigo dentro do forno

Grão 1993 FIG. 20 / PÁG. 39 1

Still do vídeo de mãos fazendo pão Captação e edição por Angela Di Sessa


Rastros 1992 Instalação no MAC-USP Monte de terra

FIG. 21 / PÁG. 401

Rastros 1992 Monte de terra, lona, mala de imigrante de papelão. TV de tubo com vídeo dos pés da Fanny pisando numa bacia com água e

FIG. 22 / PÁG. 411

terra, deixando vestígios cada vez mais fracos à medida que caminha. Captação e edição do vídeo por Bill Lundberg

Série Identidade 04 1956 Guache sobre sulfite 29,7 x 42 cm

FIG. 23 / PÁG. 441

Série Identidade 08 1956 Guache sobre sulfite 29,7 x 42 cm

FIG. 24 / PÁG. 451


Série Identidade 06 1956 FIG. 25 / PÁG. 46 1

Guache sobre sulfite 29,7 x 42 cm

Série Identidade 09 1956 FIG. 26 / PÁG. 47 1

Guache sobre sulfite 29,7 x 42 cm

Série Mulheres 1986 FIG. 27 / PÁG. 49 1

Aquarela e pastel seco sobre papel 70 x 50 cm

Série Mulheres 1986 FIG. 28 / PÁG. 50 1

Pastel seco sobre papel fabriano marrom 14,8 x 21 cm


Série Mulheres 1986 Pastel seco sobre papel fabriano marrom

FIG. 29 / PÁG. 511

14,8 x 21 cm

Série Mulheres 1986 Tinta acrílica sobre papel 14,8 x 21 cm

FIG. 30 / PÁG. 521

Série Mulheres 1986 Nanquim sobre papel 66 x 48 cm

FIG. 31 / PÁG. 541

Vestido Sereia 2000 Vestido-escultura, tela plástica. 300 lâminas impressas em acetato azul de nus femininos extraídos de revistas masculinas. Imagens de seios, depois abdômenes, vaginas, pernas e pés. Coleção Gilberto Chateaubriand, em comodato com MAM-RJ. 140 X 42 X 20 cm

FIG. 32 / PÁG. 561


Passagem 2020 FIG. 33 / PÁG. 58 1

Hidrocor e pastel seco sobre papel artesanal 39 X 34,4 cm

Vestido Casulo 2004 FIG. 34 / PÁG. 60 1

Vestido-escultura, tela plástica. Lâminas impressas em acetato preto de nus femininos extraídos de revistas masculinas. Imagens de seios, depois abdômenes, vaginas, pernas e pés Exposição História da Moda, 2004, Oca, SP. 140 X 42 X 20 cm

Vestido Sereia (detalhe) 2000 FIG. 35 / PÁG. 61 1

Vestido-escultura, tela plástica. 300 lâminas impressas em acetato azul com imagens extraídas de revistas masculinas com fragmentos de nus femininos. Na altura dos seios imagens de seios, depois abdômenes, vaginas, pernas e pés

Vestido Sereia (detalhe) 2000 FIG. 36 / PÁG. 62 1

Lâminas impressas em acetato azul com imagens extraídas de revistas masculinas com fragmentos de nus femininos


Vestido Sereia (detalhe) 2000 Lâminas impressas em acetato azul com imagens extraídas de revistas masculinas com

FIG. 37 / PÁG. 631

fragmentos de nus femininos

Papou la Bonecas Barbies metalizadas em prata penduradas por cabos de aço Fotografia de Rômulo Fialdini

FIG. 38 / PÁG. 641

30 x 5 x 3 cm 2001

Papou la, inserção em circuito urbano 2001 Obra Papou la inserida em açougue Dimensões variadas

FIG. 39 / PÁG. 661

Papou la, inserção em circuito urbano 2001 Obra Papou la inserida em açougue Dimensões variadas

FIG. 40 / PÁG. 671


deadline 2001 FIG. 41 / PÁG. 68 1

Vídeo 16X9, duração 6 minutos Edição por Leando Lima Resolução DVCPRO 720 X 480 px

deadline 2001 FIG. 42 / PÁG. 69 1

Vídeo 16X9, duração 6 minutos Edição por Leando Lima Resolução DVCPRO 720 X 480 px

PMG 2002 FIG. 43 / PÁG. 70 1

6 sutiãs vermelhos costurados com acetatos impressos com bocas eróticas, 04 espelhos convexos. Instalação. Fotografia de Rômulo Fialdini 12m²

PMG 2002 FIG. 44 / PÁG. 71 1

6 sutiãs vermelhos costurados com acetatos impressos com bocas eróticas, 04 espelhos convexos. Instalação. Fotografia de Rômulo Fialdini 12m²


Aranha 2004 Calcinha preta com 3 aranhas de plástico com inserção com pele de coelho

FIG. 45 / PÁG. 721

Fotografia de Rômulo Fialdini 27 X 22 X 4 cm

Sutiã de chumbo Sutiã em tamanho real fabricado em chumbo, pérola e veludo Fotografia de Rômulo Fialdini

FIG. 46 / PÁG. 731

Dimensões variadas 2002

Sutiã tamanho G 2002 Sutiã metalizado em prata tamanho G Fotografia de Rômulo Fialdini

FIG. 47 / PÁG. 731

Dimensões variadas

Calcinha de ouro 2004 Calcinha feita em crochê com fio de ouro Fotografia de Rômulo Fialdini 14 X 12 X 2 cm

FIG. 48 / PÁG. 731


Sutiã vermelho 2004 FIG. 49 / PÁG. 73 1

Sutiã em acetato com impressões de bocas eróticas retiradas da internet. Do Espartilho ao Silicone, Itaú Cultural. Fotografia de Nino Andrés 35 X 64 X 14 cm

Titia 2004 FIG. 50 / PÁG. 74 1

Lençol estampado com a história Titia do Carlos Zéfiro Dimensões variadas

Titia 2004 FIG. 51 / PÁG. 75 1

Instalação no Lord Palace Hotel. Lençol de casal estampado com a história Titia do Carlos Zéfiro

Cerejas e Framboesas 2003 FIG. 52 / PÁG. 77 1

Instalação dentro do elevador no Centro Universitário Maria Antonia. Roupas femininas em tons vermelhos da década de 1950 Fotografia de Sacha Hochstetter Dimensões variadas


Sweet & Bitter (Doce e Amargo) 1994 Lâmina de cobre cortada em forma de serra (com dentes) enterrada no meio

FIG. 53 / PÁG. 801

da canaleta submersa no mel 10 x 0,4 x 0,25 m

Brincando de boneca 1998 3 vestidos de boneca, metalização em cobre Fotografia de Rômulo Fialdini

FIG. 54 / PÁG. 871

20 X 10 X 4 cm

Segredo Guardado em Silêncio 1996 Estante de ferro preta com 5 andares. 5 gailolas de aço, com 5 galinhas e 5 galos. 5 tvs de tubo onde passam o

FIG. 55 / PÁG. 901

mesmo vídeo das mãos da Fanny quebrando um ovo Dimensões variadas

Segredo Guardado em Silêncio 1996 Frame do vídeo das mãos da Fanny quebrando um ovo Captação e edição por Glaudia Davino

FIG. 56 / PÁG. 911


Segredo Guardado em Silêncio 1996 FIG. 57 / PÁG. 92 1

Frame do vídeo das mãos da Fanny quebrando um ovo Captação e edição por Glaudia Davino

Segredo Guardado em Silêncio 1996 FIG. 58 / PÁG. 92 1

Frame do vídeo das mãos da Fanny quebrando um ovo Captação e edição por Glaudia Davino

Segredo Guardado em Silêncio 1996 FIG. 59 / PÁG. 93 1

Frame do vídeo das mãos da Fanny quebrando um ovo Captação e edição por Glaudia Davino

Segredo Guardado em Silêncio 1996 FIG. 60 / PÁG. 93 1

Frame do vídeo das mãos da Fanny quebrando um ovo Captação e edição por Glaudia Davino


A Loba e a Formiga 1981 História em quadrinho, hidrocor 21 x 29,7 cm

FIG. 61 / PÁG. 941

Abuso e Poder 2020 Hidrocor e pastel seco sobre papel artesanal 39 X 34,4 cm

FIG. 62 / PÁG. 981

Performance Fuga 1986 Fotografia de Silvia Heller Dimensões variadas

FIG. 63 / PÁG. 1021

Performance Fuga 1986 Fotografia de Silvia Heller Dimensões variadas

FIG. 64 / PÁG. 1031


Autora: Tatiana Grinfeld 2014 FIG. 65 / PÁG. 108 1

Potências da fragilidade: só um corpo vivo sobrevive. Croqui de exposição / obras do mestrado

Autora: Tatiana Grinfeld 2014 FIG. 66 / PÁG. 108 1

Potências da fragilidade: só um corpo vivo sobrevive Tecidos impressos, instalação 90 X 210 cm

Autora: Tatiana Grinfeld 2014 FIG. 67 / PÁG. 109 1

Potências da fragilidade: só um corpo vivo sobrevive. Bordado sobre algodão 21 x 29,7 cm

Autora: Tatiana Grinfeld 2014 FIG. 68 / PÁG. 110 1

Potências da fragilidade: só um corpo vivo sobrevive Croqui de exposição / obras do mestrado


Autora: Tatiana Grinfeld 2014 Potências da fragilidade: só um corpo vivo sobrevive Bordado sobre gaze

FIG. 69 / PÁG. 1111

14,8 x 21 cm

Autora: Tatiana Grinfeld 2014 Potências da fragilidade: só um corpo vivo sobrevive Sobreposição de acetatos impressos com imagem da

FIG. 70 / PÁG. 1121

pele da autora, sobrepostos a uma imagem de mapa da localização dos campos de concetração nazistas

Fênix 1974 Desenho em lápis de cor recortado sobre papel sulfite

FIG. 71 / PÁG. 1141

60 X 32 cm

Cordão Umbilical 2020 Hidrocor sobre papel artesanal 39 X 34,4 cm

FIG. 72 / PÁG. 1171


Autora: Tatiana Grinfeld 2014 FIG. 73 / PÁG. 122 1

Potências da fragilidade: só um corpo vivo sobrevive Bordado sobre gaze 14,8 x 21 cm

Autora: Tatiana Grinfeld 2015 FIG. 74 / PÁG. 123 1

Fragmento do diário

Autora: Tatiana Grinfeld 2015 FIG. 75 / PÁG. 124 1

Fragmento do diário

Autora: Tatiana Grinfeld 2015 FIG. 76 / PÁG. 125 1

Fragmento do diário


ESTA PUBLICAÇÃO FOI IMPRESSA EM PAPEL COUCHÉ 150G/M², 26X20CM, EM SETEMBRO DE 2021, NA CIDADE DE SÃO PAULO. UTILIZA AS FONTES OBVIOUSLY, DE OH NO TYPE COMPANY; FREIGHT TEXT, DE PHIL’S FONTS INC., E BLUU, DE JEAN-BAPTISTE MORIZOT.


VENTANIA SOLAR 2021 FANNY FEIGENSON 1ª EDIÇÃO

PREPARAÇÃO DE TEXTO ANA GODOY REVISÃO DIVINA PRADO PROJETO GRÁFICO STELLA RIGHINI ASSISTÊNCIA GISELA MOTTA


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