chupa manga zine
número 8 ● dezembro 2017
RABANADAS: BANDA NOVA NO CATÁLOGO BAGDÁ MIRIM PELA PRIMEIRA VEZ AO VIVO INCRÍVEL: A MAIOR PEDALEIRA DO MUNDO E MAIS: JOHN LURIE WEB RÁDIOS BANDA DE ALUGUEL SONGBOOK
chupa manga zine
número 8 ● dezembro 2017
EXPEDIENTE editor-chefe Stêvz estagiário Stêvz financeiro Stêvz
Impresso, dobrado e grampeado em casa no fim de 2017
Chupa Manga Records Porto Alegre • Brasil
cbna
Stêvz é o nosso fantástico editor, e apesar de preferir não empregar superlativos, referir-se a si mesmo na primeira pessoa do plural ou na terceira do singular, é exatamente isso que está fazendo agora. Assina todos os textos deste zine, exceto onde indicado.
fale conosco chupamangarecords@gmail.com chupamanga.tumblr.com
na capa: ilustração do Almanhaque de 1949, editado pelo ilustre Barão de Itararé. Na legenda, lê-se: ARY BARROSO, o compositor da "Aquarela do Brasil" e da "Baixa do Sapateiro", não está satisfeito com a alta do preço dos sapatos e de outras utilidades. Vítima, como todos nós, da falta de gêneros alimentícios, mas desejando viver da arte pura para a manutenção da carcassa (sic), desesperado, está comendo, sob a forma de sanduíches, com pão de fôrma, velhos discos de malacacheta, com suas próprias gravações.
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di
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Mais um ano desastroso chega ao fim, amiguinhos, e o nosso zine continua de pé. É mesmo um sinal dos tempos que essa seja a nossa maior satisfação comunicativa no momento, muito mais do que clicar ou compartilhar qualquer coisa nas redes sociais. A edição constante do dito cujo me obrigou a manter afiados os sentidos críticos e até a voltar a desenhar — como você pôde conferir no último número e agora neste, em um quadrinho sobre A MAIOR PEDALEIRA DO MUNDO —, mas sobretudo a continuar gravando e lançando coisas obscuras, pelo menos para ter assunto! Soltamos mais uma dezena de títulos, entre álbuns completos, EPs, singles, videoclipes e compactos, tudo na raça e praticamente de graça para quem quiser ouvir. A ideia agora é sair um pouco do mundo virtual e impresso e voltar a circular por aí, de corpo presente, o que não será fácil mas certamente necessário para que todo esse material encontre ouvintes e leitores que porventura ainda não conheçam o seu selo musical independente favorito — a Chupa Manga, isso mesmo — e nem sabem o que estão perdendo. Em outubro, por exemplo, o nosso recluso editor chegou mesmo a sair de casa e pôde ser visto (com binóculos especiais) nas redondezas da CNF, em Taguatinga, DF, fazendo barulho com uma formação-relâmpago da Bagdá Mirim, a pedido de Biu, somente para a ocasião. Agora, acabou de sair o debute do mais novo grupo do nosso catálogo, o EP das Rabanadas, que ainda prometem alguma apresentação para o ano que vem. Fora o inevitável retorno do Chapa Mamba e a possível criação de novos projetos imprevisíveis. Quem viver, verá. No mais, vocês sabem onde nos encontrar.
SESSÃO MARMELADA
banda nova no catálogo!
CHUPA.024 Rabanadas EP
OUÇA chupamanga.bandcamp.com rabanadas.bandcamp.com
Rabanadas é a mais nova banda da Chupa Manga Recs, formada por Clara do Prado e Stvz em Porto Alegre (RS). Em seu EP de estreia, o duo de guitarra e bateria apresenta rockinhos sujos e aparentemente despretensiosos, naquela onda caseira "faça-vocêmesma" que você já conhece. As curtas canções tratam de temas bestas do cotidiano, como comida e
trabalho, mas mesmo cantando "sem diversão, neném / chatão, meu bem, chatão" em uma das faixas — numa versão antropofágica do hino pré-punk dos Stooges, com ecos de Mutantes e Jovem Guarda — pelo menos eles parecem estar se divertindo. Em breve disponível em um vinil de tiragem tão limitada que provavelmente já estará esgotado quando você ler isso.
punk de apartamento Bagdá Mirim contraria previsões de especialistas e se apresenta, pela primeira vez, ao vivo
Lançado em junho desse ano, o disquinho de demos da Bagdá Mirim quase passou batido pelos mais desatentos. Gravado sozinho dentro de casa, o projeto de "punk de apartamento" consistia de 6 canções em 5 minutos e quem piscou, perdeu. Sua estreia nos palcos, em outubro, também foi assim, com apenas 15 minutos cronometrados de show — isso contando com o cover capenga de Devo no final pra encher linguiça.
tada formação não dá as caras novamente por aí em outro momento? —, após um único e corrido ensaio para regurgitar, na raça, os petardos incompreensíveis de protesto do EP.
Em uma noite agradável na tradicional praça da CNF, em Taguatinga (DF), nosso editor foi acompanhado por Felipe Rodriguez (Os Gatunos, Signo 13), Helder Aragão (Under The Ruins) e Diego Mendes (Valdez, Frank Sidartha) no provavelmente único show da banda — mas quem sabe essa inusi-
Fica o nosso agradecimento a todos que tornaram possível essa conjunção astral barulhenta. Sem dúvida, um evento memorável.
Pra terminar, foi a vez do aguardado retorno de River Phoenix — lançando o compacto Olhos de Cobra, pela Lombra Records — em um show intenso, com a participação especial do lendário Davi Kaos no bis.
OUÇA NOVAMENTE chupamanga.bandcamp.com /album/demos
Bagdรก Mirim e River Phoenix em Taguรก fotos: Joelma Antunes (shows) e Everaldo Maximus (retrato) na pรกgina ao lado, o cartaz do evento
ENSAIO
eu não quero dizer nada Poesia, crônica, diálogo, trocadilho, discurso? Os caminhos da letra de uma canção podem depender tanto do processo quanto da inspiração
Escrever canções é quase como criar pequenos monumentos imaginários no ar. Micro-universos auto-suficientes com sua própria coerência interna. E eu já fiz algumas delas por aí, mas apesar de ter desenvolvido certo tipo de método para isso — ou pelo menos um mínimo otimismo de que "vai dar certo" — ao longo dos anos, para mim ainda é como se começasse tudo sempre do zero outra vez. E na verdade é mesmo. Até por não querer me ater a nenhum tipo (inevitável) de fórmula, procuro (ou deveria) fazer as coisas de jeitos diferentes, me propor desafios a serem solucionados ou restrições formais que acabem por tornar o processo mais interessante. Sim, sabemos que o que importa mesmo é o resultado, afinal a coisa deve fazer sentido durante a sua curta duração e existência, mas o processo, meus amigos, é onde a mágica realmente acontece. É por isso que ainda insisto em me meter nessa inútil empreitada: pelo simples prazer de conseguir surpreender a mim mesmo de vez em quando. Seja ao encontrar, após semanas (ou anos, as canções às vezes levam anos para se revelar por completo, e talvez nunca fiquem definitivamente prontas, de fato), uma rima para ______, descobrir a harmonia (agora óbvia) que transforma uma coisa em outra, ou ao conseguir encaixar a palavra "otorrinolaringologista" em um verso, são esses pequenos desafios que tornam a composição a parte mais interessante do processo.
Ultimamente, o que me mata mesmo é o texto. A necessidade da comunicação verbal no meio da música popular é uma obrigação que por vezes pode destruir uma boa composição. Ou pelo menos é como me sinto, e por isso sofro mais com a letra do que com a música. Mesmo um letrista genial como Chico Buarque de Holanda admite tratarse de um processo trabalhoso — vide sua longa correspondência com Vinicius de Moraes discutindo a letra e o conceito de "Valsinha" [1], apesar do exemplo enveredar mais para o dilema da criação coletiva. Chico considera-se um compositor bissexto, pouco confiável, mesmo trabalhando muitas vezes por encomenda. Bob Dylan recebeu um merecido [2] prêmio Nobel de literatura por suas canções, e talvez (provavelmente) eu não tenha conhecimento de causa suficiente para afirmar isso, mas me parece que geralmente a produção mais interessante dos letristas anglófonos consiste de crônicas — o próprio Dylan, um Lou Reed ou mesmo um lírico Paul Simon, por exemplo —, nem tanto de outros mecanismos rítmicos, trocadilhos, aliterações e malabarismos poéticos como num simples Caetano: "gil engendra em gil rouxinol", que em uma frase desconstrói toda a língua, vira a palavra do avesso e cria uma construção fonética de fazer embasbacar os americanos. A tradição de grandes letristas — aqueles que desenvolvem exclusivamente essa parte da canção — está muito presente na música brasileira, vide Paulo César Pinheiro, Aldir Blanc, o próprio Vinicius ou o Clube da Esquina, com todo um time (Márcio Borges, Fernando Brant, Ronaldo Bastos, para citar alguns) de poetas e excelentes compositores de letras. E dizemos compositores pois uma letra de canção é coisa diferente de um texto, de um poema, até. A própria riqueza da língua portuguesa, com suas paroxítonas e proparoxítonas salientes, suas sílabas intrincadas, vogais nasais e consoantes oclusivas, gera um desafio e tanto ao sujeitar-se às cadências musicais mais comuns (leia-se colonizadas). Daí a música brasileira ter criado os seus próprios ritmos, uma levada própria para acomodar a fina flor do lácio de Camões sem perder a malemolência que lhe é característica. Talvez a maior inventividade americana nesse aspecto se encontre na verborragia rítmica do hip-hop [3], mas divagamos.
É claro que um idioma não é melhor ou pior do que o outro, mas permitem possibilidades criativas diferentes. Seja como for, iremos nos ater, neste texto, a uma breve (e embaraçosa) exibição de alguns exemplos pessoais, a título de ilustração do processo criativo em si. Não será possível analisar a fundo o material, por questão de espaço, mas para mim tem sido assim: fazer letra em cima de música pronta é ter que abrir mão da palavra ideal pela que encaixa melhor, pela que soa melhor no contexto. A primeira (ou melhor, a principal) questão a ser resolvida é descobrir o que a música quer dizer, ou ao menos o que ela permite dizer sem que tudo pareça forçado — e isso já pode ser um longo processo. Por vezes ela não quererá dizer simplesmente NADA além do seu conteúdo musical, e é preciso aceitar esse fato. Depois de descobrir os discursos possíveis, torna-se uma questão de preencher os espaços vazios. Já se parte de uma restrição na arquitetura rítmica que dirá onde a melodia pode existir, do quebra-cabeça que permitirá certas entonações e fonemas e outros não, por questões às vezes puramente empíricas, sensoriais e do gosto do autor. É preciso, sobretudo, tornar o texto natural dentro daquele contexto, soar como se ambos tivessem nascido juntos e fossem indissociáveis — além de lembrar-se de que ele não será lido, mas ouvido, falado. Daí, por conta do próprio processo, pode se chegar a resultados inesperados ou curiosos (para não dizer medíocres, mas isso fica a critério da crítica especializada), que com o tempo podem revelar certos temas recorrentes ao longo da obra do autor. O velho Zappa chamava isso de "continuidade conceitual", faz tudo parte do mesmo universo. Dificilmente eu escreveria algo assim antes de pronta a música, mas para preencher as lacunas já definidas foi o que acabou saindo: nem tudo tem que ser /do jeito que você / espera que os outros vão fazer porque você / acha que sim / por exemplo aqui / dentro dessa canção / apesar de curta ela não tem nem um refrão (Cocada Preta: Chapa Mamba - Banda Forra, 2015) chato de galocha murcha / bruxa solta camisa de força bruta no telhado / guarda chuva canivete / maluco doidão (7x) / galho macaco velho não dá papo pra maluco não (Pára-Raio de Maluco: Chapa Mamba - Le Lab de Lux Sessions, 2014)
Inevitavelmente, alguns termos tornam a aparecer com certa frequência. Metalinguagens à parte, aos poucos os temas náuticos e pluviométricos começam a ficar evidentes: guarda chuva / escafandro de galocha / protetor solar e óculos escuro / bóia de braço, pé de pato / e touca pra nadar contra a maré (Bandeira 2. Chapa Mamba - Ipsilone, 2014)
ou a temática nuclear e espacial: pra não dizer / que tudo era melhor antes da invenção da maçaneta / vamos olhar / pra frente enquanto a gente ainda mora no mesmo planeta (Salve-se Quem Puder. Chapa Mamba - Remoto, 2016)
Você não faz ideia do trabalho que foi chegar em alguns desses versos tão simples. A palavra exata, a sílaba certa, as vogais corretas, o tamanho da frase, as possíveis interpretações; por vezes tudo é testado à exaustão, em infinitas combinações. Mas o processo contrário, de começar pela letra, ainda me parece mais satisfatório, embora raramente o utilize hoje em dia (Talvez por exigir um maior envolvimento emocional, do
qual estou me distanciando, talvez por falta de condições propícias de ambientação: silêncio, drogas, menos tarefas domésticas e contas pra pagar... Acabo dividindo o processo em etapas de produção objetivas, numa espécie de auto-fordismo um tanto frio, mas ainda com espaço para experimentação e epifanias). Seria mais lógico, intuitivo, musicar um texto do que o contrário? Tudo depende do que terá que se submeter a alguma restrição depois. Pode se tratar de uma questão de preferência, mas a ordem influencia o resultado de forma qualitativa? Realmente não sei. O que se adapta mais facilmente, a língua ou o som? Ou melhor, o texto ou a música? É certo que a palavra já traz um ritmo dentro de si, enquanto o contrário não é necessariamente verdadeiro. Em outros exemplos pessoais em que a letra veio, se não antes, junto com o resto, percebe-se uma maior fluidez, talvez um senso mínimo de narrativa, mais difícil de se obter com o espaço já engessado: A chuva ameaça / mas não cai se não fizer fumaça / e onde há fumaça há fogo / de artifício edifício / arranha-céu / antena de
tevê / sintonizando o escarcéu da tempestade / em copo d'água engarrafada no sinal / vermelho / nervoso / que avança fingido de verde e amarelo / atropela dez coitados camaradas que desavisados / atravessam // desafinam os pneus / orquestrando a fuga / já que a placa ninguém viu em pleno deusnos-acuda / a não ser o passarinho no fio
chega a ser significativa no resultado desse para o outro método, provavelmente devido às limitações e ao estilo próprios do pobre autor. Mas os caminhos certamente foram outros, e a forma musical ainda estava aberta a mudanças estruturais para acomodar o texto, quando necessário:
de alta tensão / sempre atento / dedo-duro / que cagüeta o pára-brisa do carro impor-
o pior / cego é / aquele, meu bem / que não
tado / da madame que atrasada pro cabe-
ama ninguém (2x) / o tempo mata a gente
leireiro esqueceu o lava-jato (Um Atropela-
mas a gente mata o tempo também // só
mento. Stvz - O Otorrinolaringologista, 2017)
quem é / pra valer / bom contorcionista / dá o braço a torcer (2x) / a gente mata o tempo
é porque às vezes / é preciso morrer / um
mas o tempo mata a gente também
pouquinho só / pra voltar / a viver com von-
(Terra de Cego. Chapa Mamba - S/T, 2014)
tade / sofrer um bocado pra lembrar / o que é felicidade / muitas vezes solidão / para
já não se fazem nostalgias / como antiga-
que / o amor seja bom de verdade
mente / se fazia / no tempo da vovó (No
(Samba Careta. Inédita, circa 2007)
Tempo da Vovó. Chapa Mamba - S/T, 2014)
o barulho da cidade grande não deixa a
a secretária eletrônica dela / é muito educa-
gente dormir / e quando dorme já hora de
da / receptiva e bem-humorada / é toda ou-
acordar / pra comprar o pão / pra fazer café
vidos para mim / chamei a secretária então /
/ e pegar o ônibus pra trabalhar // muito
pra ir no jogo do mengão / mas ela disse não
obrigado cobrador / não tenho um cigarro
(Interurbano Blues. Chapa Mamba - S/T, 2014)
não / mas tenho um sorriso / um sorriso / um sorriso pra espantar ladrão
pé de goiaba tem chulé / só não percebe
(Rio, Só. Inédita, 2008)
quem não quer / pé de chinelo, quem não
Em outros casos, a diferença não
é / pede penico se não der (Beleléu. Chapa Mamba - S/T, 2014)
Como disse no começo, para mim, a melhor parte de se fazer música ainda é o estágio da composição, em que tudo pode acontecer. Onde aparecem as pequenas epifanias e engenhosidades que ninguém nem se dará conta. As sombras que se formam para revelar outros lados da canção, dependendo de onde a luz bate (e por isso a necessidade de revisitá-las em diferentes horas do dia ou da noite, quando não vêm de uma vez só). Mesmo que determinada solução não seja algo revolucionário ou original historicamente, às vezes o é naquele momento solitário, quando toda a perspectiva muda e abremse outras possibilidades — e é isso o que me interessa: fugir do óbvio, inventar o novo possível; embora não haja nada de errado em repetir jargões e estilos pelo simples prazer da reafirmação do seu gosto musical ou do puro pastiche, etc. Segundo Tom Waits, se você partir uma canção ao meio vai encontrar os embriões de outras dezenas de canções. A coisa se desdobra em si mesma, e é um processo infindável, ainda bem. Por diversas vezes já tentaram decretar a
morte da canção, mas a forma não se esgota em doze notas, verso, refrão e três minutos de duração. Mesmo que ainda não se tenham realmente esgotado as combinações possíveis de ritmo, melodia e harmonia, hoje é preciso considerar o TIMBRE como fator fundamental da composição. (O ruído também pode ser domado à nossa vontade — e composição é vontade, revelia, mesmo que aberta a acasos, ao caos —, e sintetizado do zero, ainda por cima.) As notas e os ritmos até podem se esgotar, mas os timbres não. Sempre estarão por aí, pelo mundo, e são a matéria que de fato preenche os esqueletos da ordem imposta pelos outros elementos. Mas ainda há outra questão: o que soa VERDADEIRO na SUA voz, tanto em termos de discurso como de interpretação? Cada voz é, em si, um timbre único e inimitável, em determinado registro, e que pode servir para uma coisa mas não para outra. O compositor-cantor (meu caso, por necessidade, e embora não goste de admitir) compõe para a sua própria voz, que, mesmo que não seja a mais adequada terá — ou deveria ter — a
canção moldada exclusivamente para ela. Por mais que a métrica, as palavras e a melodia sejam meticulosa e harmonicamente criadas dentro do espaço da canção, ela ainda deve funcionar NAQUELA VOZ. No fim, a composição também depende da interpretação para funcionar ou não (e isso rima como uma letra ruim). Fugindo do estereótipo do singersongwriter, o genial David Bowie famosamente utilizou um software para criar combinações de palavras e expressões pré-definidas para suas letras, o que parece evocar técnicas dadaístas de cut-up, de poemas com recortes de jornais, embora com muito mais controle. Já outro David, o Byrne, conta, no livro How Music Works, um pouco do seu processo — que tem sido parecido com o meu método nos últimos tempos: cantar qualquer coisa que venha à cabeça, já sobre a gravação final da música, atentando mais a fonemas, entonação e métrica do que a palavras. Depois, buscar palavras que soem parecidas com os grunhidos e expressões gravados. Então, buscar um sentido
que se revele nas palavras aleatórias, decidir o "tema", e SÓ DEPOIS buscar o texto final adequado, que faça sentido. É antes uma busca funcional da sua própria voz dentro do espaço-canção do que uma construção tradicional literária, e algo que só se tornou possível com o advento da gravação multipista. Construir a letra sobre a canção já gravada, ou ainda, construir a própria canção enquanto se grava, tem se tornado prática comum já há algum tempo. Com a facilidade do computador, dos DAWs (digital audio workstation) de todos os tipos e estúdios caseiros, uma só pessoa pode assumir os papéis de compositor, produtor, instrumentista, engenheiro de som, letrista e intérprete. O único perigo de todo esse isolamento talvez esteja em completar a cadeia de produção e tornar-se, também, seu único ouvinte.
NOTAS [1] correioims.com.br/carta/valsinha-e-naovalsa-hippie-1/ [2] youtube.com/watch?v=In6gCrGeZfA [3] poly-graph.co/vocabulary.html
por stêvz
QUADRINHOS
ENTREGANDO O OURO
woof! moo! o rádio não morreu Embora o streaming tenha se tornado uma das principais formas de consumo musical, por sua praticidade, nem sempre é possível encontrar o que estamos procurando. Mais do que isso, às vezes não sabemos nem mesmo o que procurar. Mas, por mais que os algoritmos de sugestão tenham se desenvolvido de modo impressionante e consigam nos surpreender com a sua precisão, não podemos subestimar ou relegar ao passado a boa e velha curadoria humana. No caso das rádios comerciais, isso talvez nunca tenha sido realmente relevante, já que, mesmo antes das transmissões digitais, apenas as college ou freeform radios apresentavam uma alternativa ao repetitivo mainstream, com programações criativas e livres (ou quase) de influência econômica. O jabá mantém seu poder no meio digital, seja através de playlists pagas, anúncios, patrocínios ou robôs programados para alavancar conteúdo, mas, ainda bem, as rádios universitárias e
alternativas também migraram para o novo formato. É o caso da famosa WFMU, capitaneada pelo diretor musical Brian Turner em Hoboken, New Jersey. A estação — onde, por sinal, o disco de estreia da Chapa Mamba figurou entre os heavy-plays durante um mês — ainda é transmitida via ondas de rádio convencional, mas foi o seu aplicativo para aparelhos móveis que realmente nos surpreendeu. É um verdadeiro mundo para se descobrir uma tonelada de músicas incríveis, de novidades independentes a obscuridades, spoken word, canções folclóricas, grandes sucessos esquecidos, raridades e muito mais, totalmente gratuito. Com a opção de salvar suas músicas favoritas, para lembrar depois, e escolher entre áudio mono ou estéreo, o aplicativo traz, além da programação principal, outras excelentes opções como o autoexplicativo "Rock 'n' Soul Ichiban", o "Boredcast", a "UBUradio" — com material do arquivo histórico da UBUweb (procure saber) —, e
o nosso favorito "Give The Drummer Radio". A programação, imprevisível, conquistou lugar cativo nos nossos ouvidos. Você provavelmente não encontrará coisa parecida no Spotify, por mais que os algoritmos pensem fora da caixa. Falando na falta de variedade das rádios comerciais, basta dar uma fuçada no http://radio.garden — uma iniciativa impressionante que capta a programação, em tempo real, de milhares de rádios pelo mundo todo —, para, infelizmente comprovar isso. Outro site semelhante, o radiooooo. com — uma verdadeira máquina do tempo musical — permite buscar por década, incluindo a opção de alternar entre os climas "rápido", "lento" e "estranho". Só a interface deixa um pouco a desejar, com muitos gráficos mas pouca praticidade. A mais recente NTS Radio, fundada em 2011, também traz uma programação online interessante, embora
não tenhamos realmente nos aprofundado. Logo de cara, temos que recomendar o programa esporádico do infame Jimmy — ele mesmo, o dono daquele canal do YouTube onde você descobre todas as bandas mais recentes do DIY punk-devo-core obscuro, e que citamos no número de estréia deste zine —, indo para a sua sétima edição. Outro programa obrigatório é o do "Lounge Lizard" John Lurie, que acaba de lançar um segundo disco do seu alter ego Marvin Pontiac. Em pouco mais de uma hora, ele comenta um pouco sobre a sua discografia, conta sobre a doença que o manteve longe da música — e o fez descobrir a pintura! —, de quando conheceu David Bowie enquanto filmava com Martin Scorcese, e por aí vai. Vale o play. OUÇA nts.live/shows/jimmys-punk-show nts.live/shows/guests/episodes/ john-lurie-30th-november-2017 wfmu.org
livre como um tรกxi
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Chapa Mamba - Ipsilone (2014) CHUPA.V01
RESENHAS ALEATÓRIAS
banda de aluguel Dias desses apareceu um filme novo no Netflix sobre músicos de apoio de Los Angeles, chamado "Hired Gun". Ainda com a lembrança do essencial "The Wrecking Crew" — documentário sobre o qual falamos brevemente na última edição —, tratei logo de assistir. Mas, sinceramente, tudo o que os camaradas dos anos 1960 e 70 tinham de classe, os entrevistados do novo documentário têm de MAU GOSTO. A começar pelo visual (perdidos entre um estereótipo hard/glam de "roqueiros" tatuados da década de 90, cheios de piercings, cabelos coloridos compridos e jaquetas de couro, ou uma réplica de Tico Santa Cruz californiano em crise de meia idade, sei lá), e somando-se às subsequentes demonstrações de virtuosismo punheteiro nas sessões de estúdio, nada ali é muito promissor, apesar do óbvio profissionalismo dos sujeitos. Fora isso, traz histórias interessantes sobre o meio: de como os músicos contratados vivem em crise — de identidade, por não serem a estrela principal ou terem voz ativa dentro das bandas, e financeira, por não terem qualquer garantia de que serão escalados para a próxima turnê —, e alguns acabam arriscando tudo em projetos pessoais que nem sempre dão certo — com raras excessões, como Ray Parker Jr., que acabou compondo o tema de Ghostbusters —; ou de como tocar com uma cantora mirim genérica pode servir de vitrine para entrar na banda de Alice Cooper, como Billy Joel e Trent Reznor são uns tremendos cuzões, e como foi que Jason Newsted e Brad Gillis tiveram que substituir respectivamente os recémfalecidos Cliff Burton e Randy Rhoads no meio de turnês importantes. No fim, é mais uma amostra de como a indústria musical pode ser cruel e movida a egos gigantescos e dinheiro. Deu vontade, mesmo, foi de assistir uma versão brasileira disso. Já pensou?
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CHUPA MANGA RECORDS DISCOGRAFIA COMPLETA VOLUME #3 CHU PA M A NG A R E CO R DS
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