Machado - Edição Zero

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Brasil, abril de 2010

Nova York | Paris | Buenos Aires

Solidão na enchente fluminense O fim de David F. W. Economia de Mao a melhor O imperfeito Erotômano Mistérios arqueológicos O poder da Mandinga Making-of diabólico Ela ficou Puta


ILHAS FALKLAND Após o fim da Guerra das Malvinas, um outro perigo se faz presente no arquipélago disputado por Inglaterra e Argentina. É o desequilíbrio ambiental que afeta as ilhas. Nesta imagem, por exemplo, podemos ver dois pinguins imperadores, que normalmente fazem colônia apenas com os seus, misturados a outra espécie. Apesar de haver colônias de imperadores nas Falklands, seu habitat natural é a Antártida.


Alguns dos fatores que têm levado os pinguins a surgir fora de suas condições naturais de agrupamento são a escassez de alimentos e as variações cada vez mais erráticas do clima, o que interfere em seu ciclo migratório. No caso do grupo específico de pinguins registrado por Yunes Eiras Baptista em viagem àquela região, um outro perigo poderia ameaçar suas vidas: as minas terrestres. Ainda hoje, quase três décadas após o fim da guerra, existem campos minados espalhados nas ilhas. O que seria fatal para um combatente, no entanto, é seguro para os pinguins: os artefatos apenas são acionados quando lhes é imposta uma pressão equivalente a, no mínimo, 60 quilos.


Colonizada por croatas e espanhóis, a cidade chilena de Punta Arenas é a quinta mais austral do planeta. É a mais populosa das cinco, com quase duzentos mil habitantes. O que apenas permite a mais pessoas testemunhar a nova realidade que se firma diariamente na região.


Fotos: Yunes Baptista

Baseado em texto de C.H. Picolo

A cadeia de montanhas que se ergue por trás da cidade esteve coberta por neve no verão. Como diversas outras formações semelhantes no mundo, esse gelo permanente está recuando cada vez mais. Basta ver a nítida divisão entre a vegetação e a rocha outrora ocultada pela neve. É uma situação que teve início há poucas décadas e que preocupa por ser uma das regiões habitadas mais frias da América do Sul.

PUNTA ARENAS


A VOZ DO

CHAMADO

Há alguns meses foi disparado um e-mail misterioso para destinatários ecléticos. Pessoas que, em sua maioria, não se conheciam. Era o chamado. Aos que o responderam, uma segunda mensagem foi enviada. Basicamente, pedia respostas a uma pergunta: se você pudesse dizer o que quisesse, com total liberdade e de qualquer modo, o que diria? Começava aí o projeto. A revista Machado.

Falklands/Pta. Arenas C.H. Picolo 2 O erotômano imperfeito Mariel Reis 33 Primeiro estásimo Cadu Simões 37 Regras de Conduta Leandro Müller 41 Ornatorrincos Alzira Rofor 57 Ratoeira/Snap Trap Patrick Brock 91 Voos Guilherme Scalzilli 101 Jogo de Corpo Estevão Azevedo 114 O herege Fabio Riggi 117 Valadão Caco Belmonte 124 Preto no nada Hélio Lopes 132 Ela ficou puta Raphael Vidal 135 Era uma vez Barbão 138 Rastros Breno Kümmel 141 Perros Descarrilados Caco Ishak 144 Mandinga tem poder Tibor Moricz 151

II

58 O Rio será alguma cidade submersa

Ane Aguirre e Sérgio Fonseca foram para as ruas, mesmo contra os conselhos das autoridades, para mostrar uma outra visão do 6 de abril vivido pelos cariocas.

I2I O declínio da moeda americana

De Nova York, Patrick Brock analisa o enfraquecimento do dólar perante a última grande crise do sistema econômico mundial. E o crescimento chinês nesse período.

Uma banda do outro mundo

Jimi, Jim, James, todos estão lá para o show. Não é acaso quando o novo membro conhece a banda para uma apresentação especial. Uma história infernal contada por Octavio Aragão.


Dennis Anderson

Sem periodicidade, sem barreiras e sem reservas, Machado se propõe a ser um local onde diferentes vozes se encontram e dialogam. Aqui, visões se complementam, significados se ampliam e experiências se misturam, gerando algo maior que a soma das partes. Imagem, palavra e som se aliam num evento único, pronto para ser explorado. Agora, é a sua vez.

A VEZ DE

MACHADO

Bonus Track: Desmorto, capítulo 4 Delfin 156 Galerias Joana Coccarelli 164 Eduardo Nasi 170 Cid Mesquita 174 Ilustrações Eduardo Nasi / Cid Mesquita / Joana Coccarelli / Lia Amancio / Dennis Anderson / Delfin / Lalita Fotografias Sérgio Fonseca / Yunes Eiras Baptista / Tibor Moricz Trilha Sonora Tiago Casagrande (AYGN) Capa Inspirada em foto de Virgil Ivan “Gus” Grisson, segundo homem no espaço e morto no acidente da Apollo 1, em 1967 Edição Delfin Revisão Viviane Oliveira (V.) Projeto editorial Studio DelRey • 23 de abril de 2010

I6 Um mistério arqueológico em Lisboa

André Leal conta sobre o importante achado que leva Fernanda Breta a uma inusitada aventura em Portugal. Mas quem deixa algumas coisas bem claras é a própria Fernanda.

47 Festim diabólico à brasileira

Resgatando um raro trabalho da década de 1990, S. Lobo e Caco trazem de volta a misteriosa história que cerca os bastidores de um dos mais famosos filmes de Hitchcock.

8I Os prazeres de uma vida dupla

A escritora Simone Paterman relata de Paris o dia incomum em que sua rotina foi compartilhada com outra Simone, intensa e guardiã de um importante segredo.

I09 Os últimos momentos de DFW

Aclamado pela geração contemporânea de escritores, David Foster Wallace suicidou-se em 2008. Um destes autores é Breno Kümmel, que apresenta sua versão dos fatos.

I47 As novas estações de Botafogo

Thiago Camelo expõe os sentimentos encondidos pelas estações em Botafogo, bairro antes considerado o mais nobre do Rio e que, hoje, abriga a todos, mesmo que só de passagem.



A ROSA BRANCA DE

STALINGRADO

Dos muitos heróis de guerra forjados no calor da batalha, poucos têm uma história tão efêmera e brilhante como Lydia Vladimirovna Litvyak, uma das únicas ases de combate do sexo feminino da União Soviética durante a Segunda Guerra Mundial. Nascida em Moscou a 18 de agosto de 1921, realizou seu primeiro voo aos 15 anos. Em seguida, foi promovida a instrutora. Voar era a sua paixão e seu propósito de vida. Mas a guerra já se espalhava pela Europa e, em 1941, logo após o ataque nazista à União Soviética, Lydia se alistou para servir às forças aéreas de seu país. Porém, um recrutador informou que ela não possuía as mil horas de voo mínimas para ser aceita.

Sem se fazer de rogada, agradeceu ao homem e, se dirigindo ao recrutador seguinte, preencheu os formulários, cravando no campo de horas de voo o número 1000. Dessa forma, uniu-se às tropas. Pilotando um Yak-1, em pouco tempo mostrou seu valor. Foi a primeira mulher da história a vencer um combate aéreo solo. Pouco tempo depois, foi transferida para o Regimento de Caças 586, exclusivamente feminino. Após diversas vitórias, foi abatida em agosto de 1943. Dada como capturada em combate, somente foi reconhecida como Heroína da União Soviética em 1990, após se constatar que, mesmo ferida, retornara à pátria-mãe.

Lydia Litvyak inspirou a trilha sonora da Machado, composta por Tiago Casagrande. Num dos e-mails de produção, ele explica a concepção da trilha, também o novo EP do All Your Gardening Needs (AYGN): “A primeira faixa me levou pra ARES, aéreo, pilotos, caças, um momento de calmaria antes de um ataque ao inimigo, ou talvez algum tipo de paz depois do ataque, sobrevoando montanhas geladas. Nesse caminho. fui encontrar uma moça chamada Lydia Litvyak. E veja se não é adequado, de algum jeito talvez meio maluco, à essa empreitada (sem guerra nem bomba, claro, mas no sentido de guerrear – pelas culturas)”.



KC

& THE

HELLFIRE BAND Empresário: Octavio Aragão Roadie: Delfin

Jimi arrancou do ouvido a minhoca que o incomodava e jogou longe. – É hoje? – É daqui a pouco, o que pode significar um segundo ou um século. O verme tentou escapar, mas foi esmagado pela bota de Jim, apenas para renascer mais adiante, procurando outra vitima. Jimi e Jim acompanharam a trajetória irregular da criatura. – Tá todo mundo avisado? – Tá tudo certinho. Já pensou que o nome dele não começa com J? É estranho. – Uai, Brian não começa com J. – O sobrenome do Brian é Jones, sua besta.


– É verdade. Mas o nome do Rei também não começa com J. – O apelido dele era Jojo. – Quê? Quem chamava o Rei de Jojo? Nunca ouvi falar nisso. – Um colega caminhoneiro o chamou assim uma vez. Basta para marcar a vida de um sujeito. – John, Joe, John, James... Keith! O Keith não... – Keith John Moon. – Não é possível. – É sim. Deve ser um pré-requisito. Veja, Buddy foi direto para o outro lugar. Por quê? Charles Hardin Holley. Nenhum apelido. Nada. E o cara virou crente no fim da vida. O Buddy é holy. – Como assim? Antes de entrar naquele avião foi comer hóstia? Só se for, porque o Ritchie, que por sinal embarcou no mesmo voo, está por aqui também. Encontrei com ele outro dia. Ou noite, sei lá. – Está falando de Ritchie Valens? – É. Richard Steven Valenzuela, o cara de La Bamba. – Pois é. Juanito. – Ah, que Juanito o cacete. Ninguém chamava o sujeito de Juanito. – Foi o guarda que prendeu o irmão dele. Falou: “sai, Juanito, ou meto você em cana também”. – Você está de sacanagem. – Então tá, Jimi, estou de sacanagem e não estamos aqui batendo papo e esmagando minhocas imortais que saem do teu ouvido. Agora cala a boca e presta atenção que o sujeito chegou. *** Kurt esperava mais. Para começo de conversa, todos estavam vestidos e a temperatura não devia passar de 25 graus. Parecia até que tinha algum tipo de ar condicionado central. – É aqui? – perguntou. O gordo que estava ao lado do negro descarnado respondeu. – É. Pode nos acompanhar. Não ligue para o buraco em sua cabeça, você se acostuma. Kurt, que não tinha levado em conta o resultado superficial de seu suicídio, levou a mão à têmpora direita. Deu com o que parecia um prenúncio de ninho de vespas e retirou o núcleo, recebendo algumas ferroadas nos dedos. Limpou os pedaços de cérebro na calça jeans e sorriu. – Ei – disse Jimi –, não está nos reconhecendo? – Tem alguma coisa familiar em vocês, mas não dá pra definir – Kurt respondeu.


– Mas você é muito mal acostumado, Jimi. Por acaso acredita que alguém lembra da tua cara real? Eles lembram do que querem lembrar, de um negão canhoto com tranças cherokee, que tocava guitarra com a canhota e gritava purple haze is in my brain. O você de verdade, o que você era por dentro, isso ninguém jamais viu. Infelizmente, é assim que aparentamos aqui. Kurt arregalou os olhos (ou o olho, já que o direito estava meio fora de órbita). – Peraí, você é o Jimi? O Jimi? – Ninguém lembra mais, né? – disse Jimi – Sou eu mesmo. Dá licença enquanto eu beijo o céu. – E você é o Jim, não é? Light my Fire? – Essa porra de jingle não é meu, é do Robbie – respondeu o gordo. Mas valeu a intenção. – Então aquela piada a respeito da Grande Banda de Rock no Além é verdadeira? – Claro – disse Jimi. O que esperava, que parássemos na terra de São Pedro? Apenas uma coisa condena um sujeito irremediavelmente: atentar contra a própria vida. E vamos combinar que esse é o único ponto que todos temos em comum. – Isso e a letra J. – Ai, meu cacete... Tá, isso e a letra J, apesar de não fazer o menor sentido. – Claro que faz sentido. É por isso que estamos aqui dando atenção especial ao Kurt, quer apostar? – Gente, por favor, não estou entendendo nada. Que papo é esse? Jimi sacudiu a cabeça e uma larva caiu do ouvido. – Nada não. Vamos levar um som. Vem aqui pegar o contrabaixo e... – Contrabaixo? Mas eu toco guitarra. – Todo mundo vem com essa conversa, disse Jim. Sabe quem é o nosso guitarrista? Ele, o Jimi. Claro que você pode desafiá-lo para um duelo, mas devo avisar que o castigo para o perdedor é passar uma semana lavando o banheiro desta espelunca. Como o tempo aqui é relativo, não recomendo. – Tudo bem, me dá o baixo – Jim bateu nas costas de Kurt. – Olha, se não for muito exigente, acaba por se acostumar. A gente, no fundo, só faz o que gosta. Jimi e Jim gargalharam. Kurt não achou muita graça, mas tentou levantar o astral enquanto andavam pelas ruas de Selêucia, capital da Babilônia. – Caras, é uma honra tocar com vocês. Quem mais está na banda?


– Somos quase uma orquestra. Temos Jerry Lee no piano, Janis e eu nos backing vocals, John e Brian Jones fazendo guitarra base, fora John Bonzo e Keith na percussão. – Bateria, foi o que você quis dizer, não é? – Não, percussão mesmo – disse Jimi –, a bateria e os leading vocals estão reservados. Kurt não acrditava no que ouvia. Quem poderia ser um baterista de rock maior que John Bonham e Keith Moon? E a quem estaria reservado o papel de vocalista principal? Forçou a memória, mas foi incapaz de definir alguém a altura dos cargos. – Já sei! O vocalista tem de ser o Elvis. – Não, o caso do Rei é um pouco diferente do resto de nós. Assinou contrato de exclusividade e passa a eternidade representando a mesma cena de O Seresteiro de Acapulco, aquela do mergulho do penhasco. Ele já se acostumou com a queda, só reclama na hora de subir a escarpa. O Rei é um cara de sorte. Chegaram a um prédio, versão art déco do Madison Square Garden. Podia se ouvir instrumentos sendo afinados. O trio desceu até o backstage e logo Kurt estava com um contrabaixo Rickenbacker nas mãos. – Fucking heavy. Nem sei se consigo tocar direito. – Você vai descobrir que não precisa se preocupar com isso. Nem o Sid Vicious consegue atrapalhar a banda, e olha que ele só tem pose, não toca nada. Foram recebidos por um grito de boas vindas. Kurt, com certa dificuldade, foi reconhecendo os colegas. Freddie Mercury, Tommy Bolin e Michael Jackson. – Mas Michael Jackson está vivo. – É o que você pensa. Kurt achou melhor não perguntar. – Qual o setlist? O que vocês vêm ensaiando? Jim sacou um papel amarrotado do bolso do jeans e passou para Kurt. – Hm. We’ve Only Just Begun? The End of The World? Tem certeza que são essas mesmo? – Deixa isso para depois – disse Jimi –, venha conhecer a banda. Pessoal, este é Kurt Cobain. Kurt, conheça a Hellfire Band! – Diga o nome todo – interveio Jim. KC and The Hellfire Band! Pela primeira vez na morte, Kurt ficou emocionado. O olho bom deixou cair uma lágrima. – Será possível que vocês estivessem esperando por mim para completar a banda? O posto de vocalista principal é meu? O grupo leva meu nome?


– Olha, Kurt, não é bem isso – disse Jim. Sim, esperávamos por você, mas a banda já estava completa. É que recebemos ordens expressas de incluí-lo antes da apresentação de amanhã. Agora que você está aqui, os cargos de baterista e vocalista já podem ser ocupados. – Mas não por você – completou Jimi. – Tudo bem, eu me deixei levar pelo entusiasmo e não toco bateria. O único batera-vocal que conheço é o Phil Collins. Ele também já morreu? – Não, mas está escalado para o próximo show. Amanhã será uma apresentação especial. – Certo. Mas se KC não são as minhas iniciais, então... Um alvoroço tomou conta do recinto e a constelação de músicos mortos mal continha sua excitação. Um poço se abriu e a criatura foi içada ao palco por roldanas de ferro. O corpo mesclado a um set de bateria com cinco bumbos e cinquenta ton-tons, pratos de corte fechando um círculo em torno de sua cabeca diminuta, a boca, que parecia uma ruga dilatada, trinou a capella. Kurt tampou os ouvidos, horrorizado. – Meu Deus, Karen Carpenter! – É, compadre – disse Jimi –, ela começou como baterista. E Deus não tem nada a ver com isso. Enquanto a Hellfire Band atacava uma versão açucarada de Hurting Each Other, Kurt procurava a nota certa em seu Rickenbacker e concluiu que, naquele lugar, a velha máxima ganhava outra conotação. The show must go on. And on. And on.

O Seresteiro de Acapulco

Filme de 1963 estrelado por Elvis Presley e Ursula Andress. Todas as cenas com Elvis foram filmadas em estúdio. Presley nunca esteve em Acapulco.

O dia em que a música morreu

Em 3 de fevereiro de 1959, um avião de pequeno porte caiu em Iowa, EUA, matando os músicos Buddy Holly, Ritchie Valens e J. P. Richardson. Em sua música American Pie, Don McLean chama este dia de “o dia em que a música morreu”.

KC and the Sunshine Band

Banda liderada por Harry Wayne Casey, teve seu auge na época das discotecas, sendo um dos principais expoentes do movimento. KC é uma corruptela do sobrenome de Harry. A banda é do estado da Flórida, conhecido por ser o “sunshine state”.

The Carpenters

Duo formado pelos irmãos Karen e Richard Carpenter no final dos anos 1960. Durante a década seguinte, foram os principais expoentes da música popular norteamericana. Foram os recordistas em vendas de discos na America nos anos 1970. Karen, que sofria de anorexia, morreu subitamente em 1983, devido a complicações em seu quadro clínico.


FERNANDA BRETA POR ANDRÉ LEAL É notório que foi por causa de André Leal que a veterinária Fernanda Breta se tornou conhecida pelos antenados da internet brasileira. Em seu site, ela optou pela privacidade ao evitar câmeras e filmes, permitindo mostrar sua vida apenas pelo traço deste artista baiano, em momentos nunca clicados. Tanto que, por anos, cogitou-se que Fernanda Breta era apenas mais uma farsa bem elaborada da internet.

André só fez alimentar esse sentimento público, ao começar a retratar Fernanda como personagem de quadrinhos, vivendo histórias supostamente biográficas. Ela quase nunca desmentiu os fatos relatados nos contos de Leal. Então, ao ser chamado para a Machado, André Leal não teve alternativa senão contar a mais fantástica aventura de Fernanda até hoje. Porém, desta vez, ela reagiu. E decidiu se revelar.
















FERNANDA BRETA POR ELA MESMA Quando André Leal mandou a história que vocês acabaram de ler, o editor de Machado fez questão de contatar Fernanda Breta para que ela se manifestasse. Ao contrário do que muita gente acredita, Fernanda existe e hoje passa boa parte de sua vida na capital paulista. Boa amiga, deixou de lado suas reservas, autorizou o uso de sua imagem e enviou uma resposta sobre a história de André. Agora, fica a impressão de que é Leal uma inspirada criação da sardenta.

A resposta de Fernanda Breta: “Estive em Portugal em 1997, mas não fui ao Convento do Carmo e nem salvei a vida de um centauro naquela ocasião. Quisera eu! Ganhei a HQ como uma forma de elogio, não se trata de registro de uma parte da minha vida. Adorei a participação de vários amigos artistas na página 8 e das presenças da Lalai, da Camila, da Natasha e do Fernando Pessoa em outras páginas. Bjs da Fê!”

Homenagens

André Leal homenageia, nessa história, diversos nomes relacionados aos quadrinhos e às artes. Em especial, a página 24 de Machado está repleta de homenagens. Você consegue identificá-las?



O EROTÔMANO

IMPERFEITO Texto: Mariel Reis Arte: Eduardo Nasi

As revistinhas de sacanagem não estavam mais na estante do armário. Isso era um bom sinal, se era. Decidi naquela manhã pelo meu bom-mocismo. Eu não castigaria mais as imagens de homens e mulheres trepando para valer. Eu não assistiria mais aos vídeos eróticos enfileirados que formavam toda minha coleção de obras erotômanas. Minha mãe não largava do meu pé, dizendo para eu arrumar uma garota, acabar com as reuniões que se estendiam até altas horas da noite, com a presença daquelas mulheres de papel, de dois amigos que traziam também as suas e de uma menininha safada do quarteirão fronteiro da casa – que às vezes facilitava para que minha mão tocasse seus peitinhos, coxas e bunda. Não era lá grande coisa, mas para um moleque não poderia passar em branco. Eu me sentia como Napoleão teria se sentido se pudesse atravessar o Arco do Triunfo após suas vitórias. Isso tudo um dia foi perdendo o sentido. Talvez, com o passar do tempo, a adolescência – sendo deixada em um compartimento escuro, repleto de privações e frustrações –, indicasse que o meu caminho seria melhor dali para frente. Eu só conhecia a carne, seguia o ensinamento sagrado: comer carne, cavalgar carne, pôr carne dentro da carne. Mesmo que em minha imaginação. Porque a parada era dura com as meninas e elas só tinham uma coisa em mente: casar. Um pirralho como eu, casar? Estavam loucas. Nas brincadeiras de médicos eram generosas: ofertando para consulta suas partes ocultas para injeção, curavam-se do mal que as afligia. Ali tirava o meu sarrinho, sempre de leve, porque naquele tempo não tinha condições de associar que o meu piu-piu caberia em um espaço tão estreito quanto o do sexo de uma menina.


Eu tinha curiosidades. Algumas curiosidades eu procurei satisfazer – como colocá-lo, o pinto, no aspirador para saber se seria sugado ou não. Ou alojá-lo no macio e quente monte das bundinhas tenras das moçoilas que se atreviam a me dar confiança. Na brincadeira ensaiavam-se os desejos adultos sem que tivéssemos consciência – se existia mesmo alguma não era proposital, era algo puro como naquele filme, A Lagoa Azul, só que com um pouco mais de safadeza. O tal polimorfo perverso. Freud me destruiu a pureza quando cunhou esse termo, porque define bem certos tipos. Então, a sacaninha que me encantou pela primeira vez, porque essa história tem a ver com a primeira vez e a maneira inesperada como encontrei o meu amor, mesmo sendo o primeiro. Será que há um número limitado de amores para se encontrar? Ou tudo não passa de um engano, porque temos os olhos ocupados para percebê-lo quando se apresenta? É uma resposta difícil, mas a vida é ensaio para inúmeras respostas que não se concretizam, como a própria existência é um ensaio inacabado. Aquela safadinha – prefiro chamá-la pelo apelido carinhoso, Valentina – isso não é de maneira alguma seu nome real, porque hoje é mulher direita, casada, situada nessa cidade, nigérrima e triste. Triste como uma noite que não se orgulhasse de suas estrelas, nem de sua luz emitida por constelações distantes, por planetas quem sabe até mortos. Valentina era amiga de minha irmã – sempre tinham o que conversar. Mulheres arrancam assuntos dos motivos mais inesperados – quando menores, parecem vir de algum lugar escondido, como aquele jardim secreto que só elas visitam. Nós, os homens, bobões, admirados apenas por pedaços de coxa, peitinho ou a cor da calcinha, não temos a metade da metafísica da alma feminina, nem a entendemos. Mas para que, também? Seria um trabalho inútil. Porque a natureza assim quis. Mesmo o carinha que se forma em Oxford continuará preso a essa carga de indiferença genética que o guiará ao caminho da reprodução, dominação e exploração do universo feminino, ainda que apele para artimanhas mais sofisticadas – porque isto as mulheres exigem: que dominemos, mas que sejamos inteligentes, bonitos (porque é barato ser bonito hoje em dia: é só ter um limite de cartão de crédito muito alto e o conhecimento de um bom cirurgião), humorados etc. Nesse quesito, não posso me queixar, ganhava aquele “simpático” quando era avaliado pelas colegas de minha irmã. Valentina era a minha preferida. A pele de ébano, os lábios carnudos, olhos expressivos, corpo – se posso chamá-lo


dessa maneira – atraente; acho que até um cabo de vassoura bem vestido me atrairia porque meus hormônios se manifestavam com frequência sobre minhas preferências sexuais. Valentina não deixava por menos, sabia de minha fraqueza, da minha queda por ela e não me poupava tomando banho de mangueira na calçada de casa, com camisa branca, sem nada por baixo. Viam-se aqueles carocinhos apontarem, nem seios eram, mas já o suficiente para me enlouquecer. As bermudas curtinhas, deixando a polpinha do bumbum a mostra, sorridentes. Talvez fosse amor – os animais, quando estão no cio, se amam em algum grau? Estava apaixonado pela inesperada Valentina, porque a todo instante quedava as mãos para perto do meu peruzinho, cochichava-me indecências – hoje, quando relembro, eram de uma pureza ímpar. Mas o momento singular que me despertou para o amor de Valentina não tem o inesperado que as cartas das leitoras se apressarão em mostrar, porque não tinha teor erótico. Um dia cheguei à casa de Valentina. Ela chorava desconsolada. Tentei me aproximar para sondar o motivo das lágrimas. Conversava com as palavras que eu encontrava e que tentavam mostrar maturidade e se embaralhando quando julgavam ter achado. Valentina me mostrou o caixãozinho do passarinho de estimação, me abraçou de uma maneira que não recordo como reagi. De alguma forma aquilo era o tal amor, porque o meu pinto não endureceu com a demonstração de afeto, havia algo calmo insinuado em meu peito, não tinha aquela aflição em lamber, meter as mãos entra as pernas dela. Nada disso me passava pela cabeça. Só queria mesmo ampará-la, tê-la quieta como o passarinho que enterramos na praça perto de casa. Quando acabou o enterro, ela me beijou – sem aquela pressa de se lamber como tínhamos quando brincávamos de médico. Talvez fosse mesmo o amor, seguido sinistramente pela morte, rastreado no peito de um sacana como era eu, naquele dia mal iluminado da minha pré-adolescência. Depois do beijo, fiquei passando a língua nos lábios para renová-lo. Meus irmãos riam muito do meu gesto, me acusando de estar maluco. Aquela era a única forma de recordar a maciez dos lábios, a impressão do corpo que já ganhava outro significado na minha memória afetiva. Talvez fosse o amor inesperado. Não, porque estava ali ao lado, bem perto. Quando Valentina anunciou que sua família se mudaria, entrei em depressão profunda: não quis mais saber de nada, abandonei os estudos, parei de tomar banho durante seis meses, vestindo a mesma roupa ensebada do meu primeiro encontro com ela.


Minha irmã me apresentou a outras amigas, mas nada resolvia o impasse instalado em meu espírito. O tempo passou. Eu fiquei mais gordo e feio. Metido a intelectual, assistindo aos mesmos vídeos pornôs, mas em motéis baratos ao lado de companhias agradáveis, sempre com a desculpa de apimentar a relação, dar um barato ao sexo naquela noite e outras invenções para que a consciência do adulto se justificasse plenamente diante daquela de quando moleque. A carne é triste, disse um poeta francês, não me recordo agora o seu nome. Mas um dia cruzei com Valentina em uma das ruas do centro – já mulher e com filhos. Tinha cicatrizes pelo corpo, estava morando em uma dos bairros mais distantes, casada com um sujeito ciumento, que toda vez que cismava que a sua preta estava dando mole para alguém, a marcava com a brasa de cigarro. Os olhos apagados, o sofrimento entorpecendo o corpo sem alegria, sem o meneio de quadris tão característico do seu andar em outro tempo. A carne é triste, pensei, quando em mim surgiu ainda algum desejo por ela, Valentina.


PRIMEIRO ESTÁSIMO DE UMA …


…COSMOGONIA QUÂNTICA HESIÓDICA PLATÔNICA OVIDIANA Texto: Cadu Simões Arte: Lia Amancio


No princípio era o Kaos. Massa de informação discorde e disforme. Pacotes de bits fragmentados. E o Nous do divino Progamador-Aedo vagava pela face do ruidoso abismo, e ao contínuo Kaos decidiu por termo. Ele convergiu os dados kaóticos em um ponto subatômico. Era a partícula Kernel-Mnemosine, no qual a divindade instalou seu primeiro programa, Moros. Em Moros estava o código-fonte do sistema. A linguagem da criação. A narrativa do cosmos vinda da Alta Natureza. Pois o verbo era o Programador-Aedo. E as cordas quânticas da partícula Kernel começaram a vibrar, criando frequências musicais que foram acompanhadas pelo canto cósmico das Musas. Dentre as Musas, funções-programa numinosas, estava Calíope, a belíssima voz que brilha no negror da eterna noite, carregando em si a configuração do sistema multiuniversal, formatando o não ser em ser. Então ocorreu o Big Reboot e o universo começou a se expandir. O espaço livre do universo expandido o Programador-Aedo em partições primárias separou. A primeira partição chamou de Gaia. A segunda, extraída da primeira, chamou de Uranus. E viu que era bom. No seio de Gaia uma terceira partição foi criada. Era o Tártaro nevoento para onde os programas corrompidos seriam enviados. Para gerir o novo cosmos, a divindade criadora instalou programas autônomos a que chamou de Titãs. Mas possuíam os Titãs um curvo pensar e foram eles tomados pelo vírus da hýbris. Pela Alta Natureza Criadora foram no cosmos novos programas instalados. Eram os Olimpianos sempiternos, que pelo programa Z comandados, aprisionaram os Titãs infectados no Tártaro e o controle do sistema assumiram. Com a ordem enfim estabelecida, o sistema palco-universo estava pronto para receber seus programas-atores. E o Programador-Aedo criou o Homem a sua imagem e semelhança. O Homem carregava em si o código-fonte de Moros. Um roteiro escrito em seu DNA com o mythós a ser protagonizado. Mas era um script aberto, e nessa narrativa logo o Homem estaria improvisando. Mas se sua peça seria uma tragédia ou uma comédia o Programador-Aedo não sabia. Por uma tragicomédia decidiu então. E finalizado estava o palco-universo. Configurados e em suas posições estavam os programas-atores. Então o sistema-cósmico foi ligado. E a narrativa da vida (e da morte) começou.



REGRAS DE CONDUTA DE

GACHET-GASTON Texto: Leandro Müller Arte: Joana Coccarelli

“Sou contra tudo que oprime o homem, inclusive a gravata” Nelson Rodrigues

Quando o primeiro bonde repleto de turistas desceu de Santa Teresa no sábado de manhã, cometeu um equívoco. Habituado a guiar-se pelos trilhos, pouco antes de chegar ao largo dos Guimarães, ele tomou a liberdade de seguir seu caminho pelos paralelepípedos. Uma decisão imprópria e desaconselhável a quaisquer tipos de transportes ferroviários, inclusive, como no presente caso, aos bondes, pois tal situação transcende à natureza imanente de um trem. Esta transcendência de natureza causou a morte de muitas pessoas naquele dia tão comum. Porém, para felicidade dos teóricos do conhecimento, os objetos não são capazes de alterar sua própria natureza, papel permitido apenas aos sujeitos e, preferencialmente, humanos. Foi um desses sujeitos que alterou a natureza do bonde naquela ocasião. Morador antigo do bairro, Vicente observava sempre a retidão sinuosa com que os bondes iam e vinham, todos os dias, pelas ruas. Na madrugada de sábado, enquanto voltava para casa, aproveitou‑se do descuido dos três peões que usavam asfalto para tapar algumas falhas no calçamento de pedra e levou consigo uma lata do material. Sem desviar do caminho de casa, em uma curva, ele encheu os trilhos do bonde e foi dormir o sono dos justos. Não foi uma brincadeira de mau gosto.


Ao acordar, Vicente se assustou com a agitação do bairro e com o trágico acidente. Ele sabia que era responsável por tudo aquilo, até pensou nas pessoas que morreram, mas, no fundo, sentiu-se muito bem. À tarde, Antônio lia um livro do Rubem Fonseca e comentava, em casa, com Vicente sobre um conto chamado “O Cobrador”. Dizia que o cara se emputeceu com a vida e saiu matando todo mundo dizendo que tava cobrando o que a sociedade devia para ele. Vicente falava que o cara era babaca enquanto Antônio continuava contando que a personagem conhece uma mulher chamada Ana que se apaixona por ele e resolve colocar ordem naquela matança. Terrorismo. Falta um pouco disso no Brasil, completou Antônio. Ao que Vicente respondeu que começara hoje. E assim, os dois continuaram noite afora. Discutiram sobre política, sociedade e responsabilidade. Concluíram, ao fim da noite, que a imprensa deveria receber uma carta explicando os motivos e as exigências dos terroristas responsáveis pelo atentado no Rio de Janeiro. Tudo transcorreu conforme o previsto, não deixando tempo para que a polícia levantasse a hipótese de acidente. Melhor explicando, a hipótese foi levantada sim, mas logo afastada. Os dois jovens envolvidos no fato se lamentaram pela demora de suas resoluções que as informações enviadas à imprensa fossem veiculadas nos jornais dominicais, embora a televisão tenha dado um destaque honesto à dimensão da tragédia. Todavia, ainda era cedo para se acreditar que este não teria sido apenas um episódio isolado e seria bastante razoável questionar a capacidade bélica de um grupo totalmente desconhecido até então. A nota que os jovens enviaram foi muito bem escrita. O tom do discurso não era de jovens revolucionários nem tampouco de terroristas cruéis lutando por causas impossíveis. Foi adotado o rigor formal das cartas oficiais, tudo dourado por muita polidez e educação. Uma espécie de carta de apresentação. Informava que o grupo era consciente de seu descrédito por ser novidade e tal, mas eles já tinham toda uma série de atentados planejados para garantir o respeito de que necessitavam. Como todo bom grupo terrorista, a carta afirmava que eles não eram bandidos comuns, mas pessoas com fortes ideais e dispostos a renunciar às suas vidas para cumprir seus propósitos. As pessoas pareciam preocupadas, contudo. O que sentiam era curiosidade, principalmente pelo fato de a única exigência que os terroristas faziam era que a sociedade civil se organizasse para combater a criminalidade e a irresponsabilidade política. Quantos risos!


Em seu apartamento, Vicente realmente gostou da ideia da tal da Ana que Antônio contara e até leu a história. Ficou triste pelo fato da moça não ter tido um motivo legal, nem ter sabido aproveitar o conceito, mas valeu o gesto. Como realmente eles ainda não tinham muito com o que aterrorizar a sociedade começaram com ideias simples. Por exemplo, o dia em que queimaram mais de dez carros estacionados na Lapa. Vicente e Antônio pertenciam à chamada classe média. Ao contrário do que a maioria poderia supor, nunca foram delinquentes, não usavam drogas e bebiam com moderação. Os delitos que cometiam eram aqueles normais, violações de trânsito, música alta no apartamento etc. Tiveram acesso à boa educação, ambos já estavam formados – um em História e outro em Ciências Sociais – e se sustentavam conforme mandava o figurino. Praticamente qualquer mãe que conversasse com eles por uns quinze minutos diria se tratar de pessoas bem sucedidas e, caso tivesse uma filha, até os aceitaria como genros. Porém, ser de boa família não é o bastante. Alguém, por acaso, perguntou para um dos dois se este é o modelo de sucesso que eles queriam para si? Sendo assim, aproveitaram seus conhecimentos para continuar com o novo empreendimento. Enquanto Antônio quebrava os vidros dos carros com uma grande pedra enrolada em um tecido, Vicente vinha atrás com uma sacola de garrafas de vidro cheias de gasolina com estopa na ponta. Ele as acendia, inclinava-se próximo à janela quebrada e arremessava no outro vidro a bomba que se espatifava e incendiava o carro. A ideia de usar o fordismo no ato daquela noite foi deles mesmos, mas os coquetéis molotov aprenderam a fazer na internet. Obviamente houve muito pânico no momento, mas as pessoas da área já estão acostumadas à delinquência. De imediato, a maioria atribuiu o ato a qualquer um daqueles menores de rua que ficam vadiando e extorquindo quem estaciona pelos arredores dos Arcos. Só mesmo no dia seguinte é que a autoria do vandalismo foi associada ao grupo terrorista do bonde. Mesmo assim ainda tinha uma velha ou outra atribuindo a culpa àqueles meninos de rua. A nova carta foi recebida de maneira diferente pelas autoridades, que nada podiam fazer. Mas a população continuou na mesma, com exceção daqueles que perderam o carro no incêndio – excluindo os oito que tinham seguro total. Antônio e Vicente questionavam se teriam enlouquecido. Concordaram que estavam fazendo algo errado agindo como justiceiros. Discutiram então sobre ética, moral e História.


Concluíram que não são eles os grandes ditadores que irão governar a humanidade com sabedoria. A partir do dia seguinte buscariam em vão um lugar no qual eles pudessem viver segundo sua própria moral e perceberiam que o mundo era um lugar ruim. Sendo parte da sociedade, também eram responsáveis e decidiram, então, continuar com seu sistema de cobrança. Como nós, eles também preferiam que a justiça divina tivesse planos, mas não seria sensato esperar que, de repente, Deus se tornasse um bom legislador. Embeberam por uma semana centenas de pacotes de milho de pipoca em veneno, destes comuns vendidos em lojas de produtos agropecuários. Passaram uma sexta-feira inteira, da manhã até o fim da tarde, alimentando pombos pela cidade. Começaram pela Carioca, seguiram para Cinelândia, rumaram para Copacabana, Ipanema e Leblon. O interessante é que a morte das aves não acontecia instantaneamente, permitindo aos bichos um último voo desesperado para despencar lá de cima. Um caos! Pessoas sendo alvejadas na cabeça por pombos, motoristas assustados com a chuva de pássaros causaram diversos acidentes de trânsito e, há quem diga, uma rolinha fez um ônibus capotar no Aterro do Flamengo. Finalmente a população começava a ser atingida de fato, mas se mobilizar mesmo... hum-hum. A real vontade de Antônio era usar uma metralhadora para silenciar aqueles adolescentes barulhentos, recém saídos da escola, dentro do metrô. Porém, isso seria uma vingança pessoal e o transformaria em um monstro. Talvez Vicente tivesse a mesma vontade, mas sabia que o terrorismo é coisa séria. Aproveitando-se de algumas garrafas de veneno que ainda restavam em casa e após uma visita não muito longa a um hortifrúti próximo, eles cozinharam uma suculenta sopa de legumes muito própria para o friozinho que fazia no inverno carioca, exceto pela adição do veneno que, em geral, é desnecessário nesses tipos de caldos. Já era noitinha quando eles foram praticar sua caridade, não propriamente com os mendigos, mas para a sociedade toda. Consideravam praticamente um favor. E, no dia seguinte, houve realmente muita dona de casa e outras espécies de pequenos burgueses – burocratas e autônomos em sua maioria – que aplaudiram os responsáveis por aquela “limpeza urbana”. Até às quinze horas, constataram-se quase quarenta mendigos finados espalhados pela cidade. Alguns diziam que foi uma ação de um grupo de extermínio de policiais, mas as autoridades imaginavam corretamente aquilo ser obra dos terroristas do bonde. Vicente e Antônio se recriminaram pela atitude tipicamente nazista – o primeiro deles até falou horas


sobre os hediondos ideais do führer –, embora se desculpassem intimamente por não atacar somente minorias, mas qualquer um que fosse socialmente parasita. O passo seguinte consistia em prejudicar diretamente a classe média. Compraram pistolas de dardos tranquilizantes para animais e cápsulas com doses muito fortes que tiveram seu conteúdo modificado mais tarde. Existe diferença entre criar terror e se tornar um homicida. Os jovens terroristas não iriam matar pessoas assim, a sangue frio. Explodir uma bomba é uma coisa, atirar em alguém desarmado é outra. Acontecia da seguinte forma: com a pistola disfarçada sob um casaco no braço, ambos seguiam pelas ruas da Barra da Tijuca e São Conrado – mais tarde Leblon e Ipanema –, principalmente pela orla e ao cruzar com a vítima disparava em seu animalzinho de estimação. Normalmente cães que, dependendo do porte, demoravam-se mais ou menos para morrer. Os donos ficavam desconsolados quando encontravam um pequeno dardo no cachorro, se perguntando quem seria capaz de uma crueldade dessas. Teve até um rapaz que passeava com os cachorros dos outros, coitado, ficou em prantos pensando como iria explicar a situação ao seu contratante. Em contrapartida, sem querer, a sociedade reagia vingativamente. Vicente fora assaltado por três sujeitos, logo ali na Riachuelo, quase no mesmo instante que Antônio era atingido por um cone de trânsito – pasmem! – arremessado por um jovem de um Golf prata em Copacabana. Esta cidade é um perigo! Antônio disse a Vicente que era preciso bombas, pois nosso povo não é lá muito inteligente e só aprende o que passa na TV e, para eles, terrorismo reduz-se a explosões. O fato é que nunca tivemos uma cultura de terror formal, o que dificultava realmente a compreensão por parte da grande população já acostumada com a guerra civil informal. Arthur, irmão de Vicente, era médico. Ao contrário do que parecia, ele usava drogas e até conhecia algumas pessoas do movimento. Foi através dele que Antônio conseguiu se aproximar dos assim chamados criminosos de verdade. O chefe falou que bomba até dava para conseguir, mas era muito caro, valendo mais a pena usar umas granadas bacanas à beça, coisa de profissa. E realmente para a população dava no mesmo. Em praças de alimentação lotadas nos shoppings, começaram a explodir granadas aleatoriamente. Muitos feridos, um número razoável de mortos e bastantes destaques na imprensa. Mas será que ninguém descobriria quem eram os terroristas do bonde?


Eles expandiram a ideia das granadas para as partidas de futebol, mas aí o circo pegou fogo. Futebol é coisa séria e nem com estalinhos tornou-se possível assistir a uma outra partida após a primeira investida dos terroristas do bonde. Vicente desanimava achando que tudo aquilo era em vão. Ele sentia aquela mesma sensação de quando nossos méritos não são reconhecidos no trabalho. Porém, Antônio acreditava naquele princípio evolucionista apresentado no início do filme dos X-Men: “Mutação é a chave para nossa evolução. Ela nos permitiu evoluir de um organismo de uma única célula à espécie dominante no planeta. Este processo é lento e normalmente leva milhares e milhares de anos. Mas a cada centena de milênios a evolução dá um salto”. Ele acreditava que a cada centena de lustros as sociedades davam um salto, cabendo às revoluções o papel principal pela mutação dos regimes de governo. Na maior parte do tempo, todos os revolucionários eram silenciados, executados e derrotados, mas esporadicamente uma revolução era bem sucedida e, talvez, já estivesse chegando novamente a hora. Vicente pensou que talvez, e disse: – Mas eles são muitos. Antônio sorriu triste e colocou a gravata. – São.


O MAKING-OF Roteiro: S. Lobo Arte: Caco

DO FESTIM DIABÓLICO

Nota do Editor

O letreiramento original foi substituído para otimizar a legibilidade no meio digital.

Esta sequência de tiras guarda um dos grandes encontros perdidos da HQ nacional. Conheça a história, pelas palavras de S. Lobo: “As aventuras de Pato Branco, o Repórter era um tira diária que o Caco mantinha em um jornal de Bauru, no interior de São Paulo, e em mais alguns jornalecos do País. O Pato Branco era um repórter investigativo que se metia num monte de histórias, algumas fantásticas, outras policiais. Um dia o Caco me convidou pra escrever um mês de tiras. Fiquei honrado, pois, quando o conheci, ele já era um grande desenhista de quadrinhos, vencedor de dezenas de salões, e eu era um moleque. E como havia morado dez anos em Botucatu, muitos dos meus amigos moravam em Bauru e iriam ler no jornal o meu “sucesso” no Rio de Janeiro.”


com

White Duck ator especialmente convidado:

Wilson Grey

nao sei como as pessoas preferem esses filmecos de terror vagabundos aos filmes do grande mestre do suspense! uma. e!

Shiu!

legal! vai passar o festim diabolico na estacao botafogo!

1a. MEIA HORA DE FILME Foi o primeiro filme colorido de Hitch...

Festim Diabólico foi filmado em 1948.

eu estou na decada de 40!

o que esta acontecendo?

que bom que voce aceitou meu convite para assistir as filmagens! o-oi, hitch!

ei, duck! venha ca!

white duck

ha? O que torna esse filme interessante é que seu tempo de duração corresponde ao tempo real.

fique de olhos bem abertos, duck! as coisas por aqui nao andam boas. hoje de manha dick hogan recebeu mais uma carta anonima ameacando-o de morte caso participe do filme...

ei, voce nao e white duck, famoso detetive particular?

somente dick e eu sabemos das ameacas. fique de olhos bem abertos, duck!

sera que o senhor poderia me dar o seu autografo?

c-claro!

O filme se passa entre a sala de jantar e a sala de estar de uma casa, como se fosse uma peça em ato único.

Festim Diabólico foi filmado em 8 sequências de 10 minutos cada (apenas para trocar o rolo do filme), com uma câmera seguindo os atores por todo o cenário.

quer dizer que sou amigo de hitchcock e o que detetive sera que sam particular. spade faria numa situacao dessas?

Sam Spade é o estereotipado detetive de Relíquia Macabra, interpretado por Humphrey Bogart.

para james stewart, um abracao do amigo puxa, obrigado.

White Duck


nos so estavamos esperando voce chegar para comecar, duck.

e um prazer conhece-lo, senhor duck!

dick hogan, ator do filme

todos em posicao!

atencao! silencio! ok!

pode tirar o senhor.

camera?

O filme conta a histĂłria de dois jovens estudantes, Brandon e Philip, que numa belĂ­ssima tarde resolveram dar uma festa!

como voce teve esta ideia de esconder o corpo dentro de um bau?

assistindo ao silvio santos aos domingos.

o bau

Mataram um dos seus amigos, esconderam-no num baĂş e deram a festa em torno dele. Nessa festa estariam seus amigos e parentes.

para alguns, matar e apenas assassinato, mas para nos, seres superiores, matar o que faz voce e um privilegio! e, alem do mais, david pensar que david era um ser inferior. e os davids desse nao fara falta, brandon? mundo nao fazem falta.

agora acalme-se, philip! daqui a pouco os convidados estarao chegando.

vejamos o que miss wilson preparou para a festa.

ora, philip, voce ja viu quantos davids existem numa lista telefonica?

o, bem adequado: presunto!


ja pode sair agora, dick!

dick! mas ele esta

morto!

que ator {snif} dedicado!

Só que nossa história começa bem aqui, quando o ator Dick Hogan deveria sair de dentro do baú.

ele foi morto com uma facada no peito.

teiquirise, beibe.

humm.

John Dall...

...é Brandon, amigo de David. mentor intelectual do crime, psicótico, sendo de humor macabro, suspeito de manter um caso homossexual com seu amigo de infância, Philip.

Douglas Dick...

...é Kenneth, outro amigo de David. era o melhor amigo do falecido, para quem perdeu sua noiva Janet. figura apagada.

Farley Granger...

...é Philip, também amigo de David. ele é um sensível pianista totalmente dominado por Brandon.

Sir Cedric Hardwicke...

...é Mr. Kentley, pai de David, um humanista, homem apreciador de bons livros.

e agora que esta tira vai pegar fogo!

Joan Chandler...

...é Janet, noiva de David. ela é uma menina fútil, mimada e volúvel. já foi noiva de Brandon (por incrível que pareça), e de Kenneth, até onde se sabe.

Constance Collier...

...é Mrs. Atwater, tia de David. uma velha chata, falastrona e fútil. um dos possíveis futuros para Janet.


James Stewart...

Wilson Grey...

...é Rupert Cadell, antigo professor de David, Brandon, Philip e Kenneth. Nutre um profundo desprezo aos aspectos morais da sociedade. é um homem pouco convencional, talvez, por isso, o único ídolo de Brandon.

...é Miss Wilson, a diarista que trabalha para Brandon e Philip. É uma dessas velhas simpáticas e fofoqueiras. o seu papel foi criado por exigência das grandes companhias cinematgráficas brasileiras co-produtoras do filme.

muito bem, john.

ei, psiu!

voce esta filmando tudo?

quem e voce?

ha? quem e voce?

ok! psit psit psit

onde estava voce quando dick hogan foi morto?

sim?

cochichos

fale baixo! meu nome e grey, wlson grey. sou um agente secreto das comapnhias brasileiras que investiram nesse filme... disfarce!

ei, duck! voce ja interrogou james stewart? me parece estranho um grande astro como ele aceitar um papel secundario.

enforcando david!

eu estou aqui para ajuda-lo. o meu trabalho era supervisionar mas tudo as filmagens e cuidar aqui e muito para que nada estranho! desse errado.

voce acha que...?

tudo e possivel! voce sabe como esses atores ficam quando comecam a interpretar papeis estranhos.


mr. stewart, o seu personagem e muito estranho, pelo que pude notar, nao concorda?

assim como rupert cadell, o senhor acredita em individuos superiores, purificacao da raca ou outros ideiais nazistas que

por favor!

nha!

nao sei nao, mas a atitude dela me parece um pouco suspeita!

dick era namorado de farley, um romance entre nos seria impossivel! mas john nao entendia isso e comecou a dizer a ele que se afastasse de mim, do contrario, john, como brandon, tentaria conquistar farley e ai...

E simples, como eu disse: david me amava como janet e comeCou a me amar como dick, que amava farley, que, como philip, amava brandon...

voce esta brincando comigo?

acalme-se, baby, eu sei que esse e um momento duro para todos. mas preciso saber ate onde voce estava envolvida com dick.

ele so me deu algumas caronas, nada de mais! as vezes ele insistia, pois queria conhecer um pouco mais meu personagem, mas era tudo profissional, entende?

joan, querida, eu preciso de mais emocao nesta cena. ok.

...que como john me amava e que conquistaria farley se david nao se afastasse de mim, que ele ficasse com janet, que tambem o amava!

mas depois que eu deixei meu ex-noivo, douglas, que no filme tambem e meu ex-noivo, kenneth, eu so tenho olhos para john, meu noivo, no filme meu ex-exnoivo, brandon. mas john comecou a ficar com ciumes de dick, meu noivo no filme, e...

e tudo o que eu queria era uma carona!

agora {puf} as coisas comecam a {puf} ficar {} claras! {puf} {puf}


quem teria motivos para me parece que matar dick hogan? essa investigacao esta andando em circulos.

tem algo errado em tudo isso, mas o que?

eu... hmmm... esqueci de por filme na camera!

vamos ter de fazer essa cena de novo... he he.

eee, mr. duck.

ja sei o que nao estava encaixando!

voce nao notou? dick foi morto com uma facada no peito e, quando nos o encontramos, nao havia nenhuma faca cravada no corpo!

entao isso significa que a faca ainda esta no set de filmagem, ou com o assassino! a faca nos ajudara a solucionar o caso!

vamos comecar uma busca!

tentando colocar um pouco de acao nessa tira.

tentando estalar os dedos tentando raciocinar

making-of, cena da... ah, ta escrito aqui.

e entao, wilson? achou a faca?

nada! isso e muito estranho!

se ela nao esta em lugar nenhim so pode estar...

ponta tipica hitchcockiana

ta fazendo cosquinha!

duck, todos os atores ja foram revistados.

hi! hi! hi!

achou? epa nao.

agora so falta...

com o assassino!

mas por que o assassino continuaria com a arma do crime?


damn!

parado ai, gorducho!

e ai?

damn!

aqui esta a arma do crime, buck!

parabens, rapazes, voces estavam perfeitos! pareciam verdadeiros atores!

damn!

tarcisio e cuoco, figurantes

eu gostaria de fazer uma ultima pergunta, hitch...

claro!

por que voce matou dick?

os jornais e tvs de todo o mundo comentarao o assassinato, transformando o meu filme em um megassucesso de bilheteria! os jornais pagarao fortunas por entrevistas comigo! tvs de todo o planeta pagarao MilhOes para exibir ESTE making-of!

eu ficarei rico!

depois disso, o filme sera um sucesso de bilheteria!

publicidade!

tudo isso so pra ficar rico?

mas... voce nao terminou o filme!

e o que todos pensam! mas ele foi gravado durante o ensaio de ontem! absolu足 ta足mente perfeito!

voce nao sabe o que e ter que depender da industria cinematografica brasileira para fazer filmes! ter que se curvar diante da ditadura estetica imposta pelo J. B. Tanko! quando eu sair da cadeia, estarei rico o suficiente para produzir meus proprios filmes, como um corpo que cai, psicose e os passaros.


pobre homem, se deixou levar por seus proprios filmes!

corta! corta! corta!

humphrey bogart??

quem diabos e voce, afinal?

o que e que voce esta fazendo aqui, cara preta?

agora que tudo acabou podemos ir pra casa.

quem e voce realmente, senhor grey?

tudo, nao! ainda falta uma coisa.

nao.

ca-ca-ca... falai, buck!

voce achou que eu iria deixa-lo sozinho nessa? eu adoro hitchcock!

mas... como voce conseguiu entrar no meu sonho?

duck!

segredinho profissional, buck.

duck!

ha!?

o que e isso?



ORNATORRINCOS Texto: Alzira Rofor Pattern: Delfin

De uma hora para outra o Palhácio Renal foi invadido pelos ornatorrincos, que manchavam com seus padrões simétricos todas as paredes do lugar. A flamília leal ficou consternada com a repercussão adquirida ao longo dos vinte minutos que a reprensa vazou o assunto. Os ornatorrincos eram definitivamente uma praga e precisavam ser detidos. Chamou-se então a Guerda Bosteira para dar cabo na insanidade padronal que, a esta altura, já tomava conta de todo o piso inferior. Invadiram, os incontinentes, por volta do meio do dia. Chegaram adiantados por conta do hovário de verão, o que fez com que irrompessem em um palhácio ainda engraçado, mas vazio. Sete minutos depois, no entanto, pontualizavam os ornatorrincos, que estavam em outro fuso, deveras independente. As mevês estavam todas ligadas,

assistindo aos patéticos seres a tentar conter o inenarrável. Os cônjuges natais, no entanto, eram mantidos alheios a tudo aquilo e trindavam espumantes ao som gravado das aves mortas canoras do Lago Paranoé. E havia um retrato do discurso do presidente na parede ao leste, autocriticado por um papagaio de dupla asa direita. Ele voou de lado, assustado, quando os doze buracos se abriram nas paredes, trazendo a turba dos ornatorrincos laranjas, em formação de antraques. Chacoalharam sua química enquanto espalhavam o terror nos olhos da esposa, que ficou cega, é claro. Já o marido, de capracete, era protegido pela felicidade, que já se compra. Foi assim que ele conseguiu raciocinar e ligar a looz, o que fez com que os ensandecidos animais se perdessem. As consequências deste ato nunca lhe serão reveladas.



O FIM DO

CAMINHO Os dias 5 e 6 de abril de 2010 serão de triste memória para os fluminenses, em especial os moradores do Rio de Janeiro e Niterói. Em menos de 24 horas, choveu o equivalente a 288 milímetros, ou seja, a chuva prevista para o mês inteiro. Até o fechamento desta edição de Machado, 251 mortos foram contabilizados pelas autoridades. Novamente vieram à tona os problemas de infraestrutura da capital fluminense, como a arcaica rede de esgotos e a ocupação desordenada dos morros – que, há cinquenta anos, era glorificada pelo meio cultural da cidade, através de famosos sambas e de opiniões de artistas que, hoje, soariam anacrônicas.

Texto: Ane Aguirre

Mesmo com recomendações expressas do governador do Estado e do prefeito, Ane Aguirre e Sérgio Fonseca resolveram enfrentar o tempo instável e encontraram uma cidade praticamente deserta, com o comércio fechado e sem qualquer glória ou maravilha. Uma jornada melancólica pelas ruas da famosa Zona Sul, onde a sensação era de que o Rio, futura sede das principais competições esportivas do planeta, está abandonado à própria sorte. Por isso, é válido perguntar se há motivo para comemorar. Pois, se nada for feito, pode estar chegando o dia em que a cidade protegida por São Jorge sucumbirá aos dragões da maldade.

Ensaio Fotográfico: Sérgio Fonseca

Padroeiro

Lançada no dia 23 de abril, Machado tem também como padroeiro São Jorge, o santo guerreiro.


Chuva faz música no Rio e minha alma canta. Deve ser música para dormir, pensamos. Ou para não fechar os olhos a noite inteira, down em mim. Chuva por essas ruas produz cantos complexos nas esquinas. Bueiros batucando ensandecidos. Vai murmurando o som das águas no asfalto e logo aumenta o volume. E aumenta tanto que de repente é Rock & Roll sobre o Arpoador.


Rolam as pedras e da Gávea não se sorri atrás das nuvens. Deslizam os dedos das montanhas sobre as teclas desatentas dos telhados. Chuva carioca não é assim tão bossa nova. Não faz samba essa chuva das encostas, não tem graça cantarolar que chove na roseira num Rio assim, do lado sem beira. Percebemos, existe aquele litoral de um vento cantando solidões. Pedras rolando, chorando pelo campo, no meio do temporal. Pelo morro, pelo asfalto, pela beira da praia, pelo subúrbio, pela janela que se sacode inconsolável. Memórias de um vendaval.


Chuva faz música de chorar nesta cidade cheia de risos. E ainda há quem insista em cantar: quero sol. Sim! Eles chegam pelos aeroportos, os nossos turistas, cantarolando quero S quero O quero L quero sol  e, num minuto, querem apenas um táxi.


Esse lugar é pura invenção, descobrem enquanto os motoristas pedem um lance aos passageiros: “quanto você dá?”. Para sair do Santos Dumont quanto você dá? Erga as mãos para o céu e agradeça se não estiver no Tom Jobim: lá a nota seria muito mais alta. Não há mais quem atenda ao toque do telefone nas cooperativas de táxis nesta noite de segunda-feira encharcada, mas a gravação agradece.


– Moço, quero ir para o Flamengo, diz a incauta cidadã que desembarcou tão perto. Mas não vamos para o Flamengo, não, isso é impossível. E para o Leblon?, pergunta o outro. A funcionária administra a fila parada de carros e é categórica. Zona Sul, meu amorrr, nem pensar! Então como saímos deste aeroporto? São dez da noite e como eu chego no Flamengo? Depende, pisca o olho o moreno. Do quê, depende? Você quer pagar quanto?


Queremos pagar o justo. Mas o que é justo em noite de chuva carioca? Para o Flamengo pode ser quarenta reais. Quarenta?! Ou cinquenta, complementa o esperto. Fechado. É justo que a chuva derrube os barracos das encostas? É justo que a música não seja a que você escolheu? É justo esse monte de bueiros sambando no lixo que jogamos na rua enquanto cantamos? Está fechado. O preço. O sinal. O tempo. O caminho.


Fecha o comércio, dia seguinte. Está justo e bem de acordo essa nova melodia sobre as ruas do Rio de Janeiro. Fecha a porta do ônibus. Temos que diminuir a circulação de uma frota – que nunca foi santa. Ruas praticamente vazias. Cariocas são bacanas. Mas não se trata mais de inverno no Leblon. Estamos fechando o tempo. Fechando acordos insensatos. Fechando a janela para não ouvir mais nada. Mesmo assim, tem surfista no mar. Tem bicicleta, debaixo e sobre a água, no deslizar das canções das ruas de alma encantada há tanto tempo contadas por João do Rio.



Cabrochas do samba dos bueiros, as baratas apresentam seus melhores números sobre calçadas, escadas, portarias e botequins.


Fechamos a cara e pagamos quarenta pela corrida enquanto pensamos que Cazuza tinha razão: o céu faz tudo ficar infinito. Está fechado o tempo no Rio e faz tempo. Mas não tem problema, carioca espera o sol – sim porque ele vai aparecer! – e logo corremos todos para o lugar cantado pela Fernandinha. Fechamos os guarda-chuvas, abrimos os sorrisos, esquecemos as baratas, as encostas, os bueiros, a contagem dos mortos nos jornais.


Claro que há um lugar para ser feliz, não é? Com ou sem chuva, este outono vai prometendo uma batida diferente. Quando ela chega é na porta da frente. Se a nota estiver certa, não nos faltará aquele taxista boa gente. Basta não errar o tom para que o Rio de Janeiro continue lindo.


Fones nos ouvidos, caminhando sobre as poças d’água, ainda nos é permitido questionar esse falso milagre do amor que nos ocorre especialmente em dias ensolarados. Sim, mas por que num Rio assim tão de Janeiro o que era febril a chuva vem molhar?


Uma nova letra para o som da chuva no jornal avisa sobre outro deslizar de dedos nas encostas. Ora, ora, se o Dedo de Deus estรก firme ali adiante, logo tudo estarรก bem.


Logo.


Assim que esta cidade parar de chorar e contar suas dores.


Breve.


Quando a chuva esquecer de cantar tantas esquinas e tantas praias que nunca tĂ­nhamos visto mais feias.



Daqui a pouco.


Se a chuva parar de dedilhar verdades absurdas sobre nossos atos – nem sempre secretos – praticados à luz do sol. A chuva de hoje tem a alma que canta o Rio de Janeiro.



LUZ NEGRA Texto: Simone Paterman, de Paris Arte: Joana Coccarelli

Um dia como todos os outros, esse que eu havia tido. Cheio. O que eu fiz, não sei, foi tragado pelo sumidouro da memória, desimportante que foi, como todos os outros: na mesma cidade em que sempre morei, nas ruas de sempre e a urgência de terminá‑lo o quanto antes. É como se a noite me livrasse para sempre das obrigações repetitivas e quotidianas que se repetiriam no dia seguinte, o mesmo dia seria o dia seguinte, um dia qualquer, como todos os outros, e depois a noite, que tanto ansiava que chegasse, a pequena morte do dia, os momentos antes de adormecer em que as horas anteriores perdem o seu sentido, indiferenciam-se de todos os outros dias, afirmam o seu desperdício, escorrem, enfim, pelo sumidouro, e deixam de existir. O que fiz neste dia eu não sei, como não sei o que fiz em todos os outros, se um dia eu precisar contá‑los em detalhes, o que não creio que vá acontecer.


Mas neste dia havia sido me dado um duplo, quer dizer, havia uma outra de mim que havia nascido neste dia, eu a vi no começo da manhã, morena e sorridente, exultante, e logo tivemos de nos separar, devido aos meus diversos afazeres, embora agora acredite que o plano devia ser mesmo que ficássemos separadas, quero dizer, o plano de quem havia me dado o meu duplo. Conto isto de uma maneira natural pois foi assim como aconteceu. Durante todo o dia, ter-me visto, de um sorriso um tanto contido, mas um sorriso que não tinha pudor de se mostrar em público, um sorriso não muito largo, mas suficiente para deformar todo o rosto, os olhos nem tão pequenos como eu pensava que fossem, mas ainda assim, estavam de acordo com o sorriso, não posso dizer que sorriam também, mas olhavam sem ver, como se olhassem para dentro, deleitosos, úmidos, e no entanto, penso eu, mesmo sem ver, percebiam mais daquela rua do que os demais transeuntes. Foi tudo isso que eu vi naquele instante, e quem sorri em público certamente não tem consciência dos humores que este sorriso pode causar, dos espantos e dos rancores que ele cria, pois eu, se não soubesse que estava a olhar para o meu duplo e que era meu aquele sorriso, certamente acharia aquela placidez toda acintosa, ou no mínimo, imbecil. Durante todo o meu dia igual a todos os outros esta imagem esteve comigo, o que não foi suficiente para o diferenciar de todos os outros dias, pois é extremamente comum, para mim, passar um dia inteiro com apenas uma imagem na mente, o que não me incomoda, uma vez que ela termina sempre subtraída pelos meus pensamentos e pelas preocupações crescentes. Durante todo o meu dia, aquele instante do rosto moreno que era o meu se prolongou em minha memória, na tela obscura da mente, no vácuo que liga a pupila a algum nervo do cérebro, minha imagem estampada, mas aquela não era eu, era o meu duplo, aquele que me havia sido oferecido neste dia. Como disse, tudo isso se deu de uma maneira natural e não é a minha intenção escrever um relato místico ou de ficção científica, tudo se passou na realidade mesma desse mundo, na cidade em que sempre morei e pela qual me desloco todos os dias, no dia que tanto fazia qual fosse, dado que todos os meus são todos exatamente iguais, como já disse tantas vezes, mas esta é uma informação importante, já que mostra que um evento desses, o da aparição, não foi suficiente para mudar a minha rotina, embora na manhã seguinte, esta em que acordei de um susto, enrolei‑me na manta e apressei-me em vos escrever esse relato. Este dia, este dia de hoje, foi certamente um dia diferente de todos os outros, o dia posterior ao dia em que me vi acintosamente


sorridente, de um sorriso comovente e fútil, ou comovente porque fútil, a andar na mesma rua em que passo todos os dias, e que nunca me deu motivo para rir e nem para me dragar em meus pensamentos quaisquer que fossem, simplesmente por ser uma rua constantemente invadida pelo barro do rio que está sempre em cheia, e quem olha demais para dentro de si corre o risco de escorregar e cair na lama, o que pode ser motivo de sorriso, ou mesmo de riso, para muitos. Mas não há razão nenhuma para fazer este comentário, para invocar esta imagem de rio barrento, de rua molhada ou do deslize pastelão, na verdade trágico, punição divina para um sorriso despropositado, ainda mais em público, ainda mais em uma rua precária, e feia, ainda mais. Não há razão nenhuma para desviar‑me do que me interessa agora, embora não possa dizer que eu não tenha controle sobre o que eu estou escrevendo, pois é claro que eu o tenho, eu já havia começado este texto antes, só para dar um exemplo, em outra língua, mas deixei-o de lado, e recomecei-o em português há poucos minutos – como é de se notar, pois já introduzi a minha história mas ainda não contei o principal. O principal é o que está implícito naquele sorriso, a imagem que me perseguiu durante todo o dia, mas não na forma ou na beleza ou no despropósito do sorriso: eu sabia por que o meu duplo sorria, e era porque esse dia, que para mim era o mesmo dia repetido, não de toda uma vida, pois seria exagero, mas dos últimos anos, era porque esse dia era, para ela, o dia de sua vida, não por ele ser o seu dia mais importante, mas porque essa seria a duração de sua vida. Isso eu não descobri; contaram-me. Embora, no inicio da tarde, eu a tenha visto novamente, o meu duplo, eu poderia supor que ela estava apenas cansada demais, afinal, era o seu primeiro dia, mas, disseram-me, pouco depois, não me lembro mais quem, que ela, o meu duplo, teria a mesma duração de vida que eu, mas com outros parâmetros, embora esta palavra não tenha sido usada. Escrevo-a agora porque quero dizer que, apesar da física einsteiniana ser já moeda corrente, pensar na relatividade do espaço e do tempo não é ainda coisa muito natural, quando falamos sobre isso (pois falamos, muito mais do que refletimos) há sempre um certo tom de piada, ou então uma gravidade filosófica, uma prova do conhecimento para a insignificância não apenas dos nossos sentidos, esta, há muito tempo já incansavelmente contestada, mas de todo esse pequeno mundo que construímos, desse tempo que baseamos no nascer e no deitar do sol, e a partir daí construímos as grades de horários dos ônibus e dos trens, traçamos as fronteiras do fuso,


reivindicamos as nossas oito horas de trabalho diárias, salvo os domingos e os incontáveis feriados, como se o tempo tivesse as mesmas características do espaço, como se o tempo fosse passível de delimitação. Não quero dizer aqui que o tempo não exista, ou que ele seja somente interior, como disse, não é minha intenção fazer deste texto um relato místico. Quero apenas dizer, neste esforço intelectual de botequim, que é o mais confortável para todos nós, que o fato de saber que ela, o meu duplo, teria uma vida tão rica quanto a minha, mas da mesma duração de um inútil dia meu, pareceu-me naquele momento a coisa mais natural. Pois uma vez que eu havia aceitado o meu duplo como parte integrante do meu destino, a ponto de ele sequer abalar a minha rotina, a duração esta de um dia estando inserida na lógica do duplo, e estando eu de acordo com esta lógica, é de se supor que eu não a contestaria. E não a contestei. Há muito, apesar de ter citado com um certo respeito a figura de Einstein, que eu não acredito em qualquer manifestação de conhecimento científico, que, se nunca foi a maneira predominante de se entender e perscrutar o mundo, muito menos o deve ser agora. E a oposição para a ciência não deveria ser o misticismo, que já foi associado ao obscurantismo, como o conhecimento à luz, associação pertinente mas um tanto injusta. Pois a luz do conhecimento intelectual ofusca a dos outros conhecimentos, a voz intelectual eclipsa todas as outras inúmeras vozes que, quando ouvidas, dão-nos a exata sensação da inexistência do tempo, e portanto, da existência possível de milhões de camadas de vida terrestre superpostas, as vidas de outrora e as vidas que estão por vir, as vidas que não houve, as quase vidas, as vidas imaginadas, as vidas de cada uma das inúmeras vozes, em confusão tremenda, a ponto de uma vida se duplicar e ninguém dar por isso, de não ser novidade a ser registrada, e se a registro aqui, não é por causa do espanto de ter um duplo, mas pelo espanto de não ter espanto algum com isso, e, sobretudo, o espanto do sorriso de quem só vai durar um inútil dia, um dia como todos os outros, ainda mais nesta cidade, onde nada pode acontecer, já que aqui sempre morei e aqui nunca nada aconteceu. Bem, o meu dia correu assim, como de costume, eu havia a visto novamente e poderia apenas achar que ela estava apenas muito cansada, afinal, era este o seu primeiro dia, mas alguém veio me dizer – acho eu – que, ao fato de ela durar somente um dia estava atrelado à degradação do seu corpo no decorrer deste tempo, e o cansaço que eu vi, embora houvesse muito de cansaço ali, era, na realidade, o meu próprio rosto, dez anos mais tarde.



O frescor do sorriso juvenil havia desaparecido, mas havia ainda o olhar de curiosidade incansável, embora estivesse voltado para dentro, olhar que não via e no entanto via mais do que qualquer outro. O sorriso, que no começo da manhã deformava as maçãs do rosto, era ele agora o deformado, as maçãs, tingidas do humor sanguíneo, desbotaram-se em um amarelo fleumático, a pele ainda morena, empalideceu; os cabelos castanhos, desgrenharam-se; o olhar, que antes era de uma espontaneidade óbvia, já que era o seu primeiro olhar, já havia passado a ser um olhar consciente de si, quero dizer, consciente de que era um olhar, pois sei que consciência de que era o meu duplo ela sempre teve, do que não parecia ter ciúmes – afinal, ela era o meu duplo perfeito, e deve ser assim que eu sou, penso eu, embora às vezes eu tenda a me considerar mais maléfica do que sou realmente. O sorriso novo, invadido pelas maçãs desbotadas, o olhar desviado pelas têmporas, esta descrição um tanto cruel pode levar a crer que o seu envelhecimento lhe subtraía a beleza, mas esta é uma delimitação da linguagem impossível de ultrapassar. Pois a beleza era a beleza de quem vivia consciente da riqueza de uma vida que havia lhe sido dada, um detalhe, que, ao longo dos nossos dias desperdiçados, e do apagar constante dos minutos pelo esquecimento, é facilmente ignorado. E que beleza surpreendente a beleza desta jovem cansada, que não é mais jovem, mas que não teme o desaparecimento ao final do dia, consciente que está da densidade de vida em que está imersa! Vida densa, dada a espessura da duração, e do desdobramento da vida interior, capaz de multiplicar em anos cada minuto – e quantos anos, e quantos minutos? E o dia passou, e ela passou, e eu passei por ela, enquanto voltava para casa, depois de mais um dia nulo, e eu a vi no início da ladeira que vai dar na minha rua, a quatro pistas de carros a alta velocidade que não respeitam sinal nem faixas de pedestres. Lembro-me que havia passado o dia inteiro, até este momento, ansiosa de reencontrar-me com ela, mas não por motivos de curiosidade egoísta ou metafísica: pensava apenas que eu, apesar de tão cansada, estava certamente menos cansada do que ela, e então somente eu poderia tratá-la da maneira que ela merecia, fazer-lhe um chá e obedecê-la em absolutamente tudo o que pedisse, pois somente eu, cansada que estava, poderia imaginar como ela devia estar exausta de um corpo que estava a se degradar tão rapidamente, e só eu, egoísta que sou, seria capaz de ser a companhia disponível mais generosa para o meu duplo, não por achar que ela fosse eu, ou senão não a trataria em terceira pessoa,


embora deva confessar que desconfiei, no momento em que a vi nos seus quarenta e poucos anos, que esta seria eu nesta idade, e não falo somente do aspecto físico, mas de toda a experiência acumulada, salvo aquela que se esvaiu no sumidouro da memória, a espessa maioria da minha vida de dias todos iguais, prestes a serem esquecidos, a minha vida de uma duração tão diferente da que deveria ser a daquela mulher em que cada segundo afirmava‑se na mente em plena potência, marcava-se firme, como deve ser o nosso segundo da quase morte, do longo filme que se passa na nossa cabeça durante o quase segundo da total falta de ar, o coração que se esqueceu de bater, e não falo isso por beleza literária, mas pela lembrança de meia dúzia de desmaios e de pelo menos um afogamento. Cada segundo seu era este meu quase segundo, e ainda assim, penso eu, ela teria do que se esquecer, ainda sim, sua vida condensada em um dia lhe reservaria momentos que poderiam ser deleitosamente esquecidos, posso dizer sem ironia, inesquecivelmente esquecidos. E ainda que imersa em esquecimento, ela, na plena potência de suas vinte e quatro horas, teria acumulado a riqueza de uma vida inteira, ou toda a riqueza que eu irei acumular, incontestavelmente rica, a despeito da vida em uma cidade em que todos os dias parecem ser iguais. E então eu a vi do outro lado da rua, estática, em pé, já devia ter sessenta anos, mas os cabelos ainda não eram totalmente grisalhos, e ela, ainda imersa do interior de si, a expressão ainda contente, embora mais branda, o corpo ainda ereto, mas não como o que costumava ser, e esta imagem cortada continuamente pelos carros, e pergunto-me quem se arriscaria a atravessar ali além de mim, e eu, antes de a chamar, pensei na estranheza de gritar o meu próprio nome, embora deva haver no mundo tantas simones, e eu mesma já conheci algumas delas, mas que estranho seria para mim gritar o seu nome sabendo que este era de fato o seu nome, sendo que nós nunca havíamos sido de fato apresentadas. E então eu gritei, e ela mudou de expressão como se tivesse ouvido mas não olhou para mim, a voz não havia sido suficiente para chegar até lá, havia os carros, todo o trânsito caótico, e súbito o trânsito fez-se abençoadamente caótico quando o rio encheu e invadiu a pista, um carro derrapou, e, no mesmo momento em que os outros carros das outras pistas ainda não haviam decidido que direção tomar, neste momento mesmo eu atravessei, sem gritar nome algum, eu agora tinha o mesmo sorriso que havia visto pela manhã, o mesmo sorriso que devia ser acintoso para alguns motoristas, imbecil para outros, o mesmo olhar perdido num interior que não é o interior dos meus pensamentos,


é a consciência da ordem do mundo naquele caos de trânsito, o mundo que se fez parar somente para que eu encontrasse o meu duplo, o mundo que fez tomar tudo isso de uma maneira não apenas natural mas naquele momento enormemente abençoada, a minha felicidade rompia as delimitações do meu corpo e se estendia no sorriso, que não era largo mas me deformava todo o rosto, no olhar que como havia suposto realmente não via, e eu não via nada além da ordenação misteriosa do universo naquele caos do trânsito, e toda esta intensidade magnífica era eu naqueles poucos segundos em que cruzei a avenida, antes que qualquer buzina, antes que qualquer motorista me visse e ainda menos visse o meu sorriso imbecil ou acintoso que fosse, ela estava lá, eu andava em sua direção sem ansiedade alguma, sem pensar em nada, sem pensar em que diria ou faria a partir do exato instante em que chegaria ao seu encontro. Foi uma senhora que vi, o meu duplo, uma senhora de seus 80 anos, mais altiva que aquela de 60 que eu havia visto segundos antes, mais ereta. Ela tinha frio e havia tirado da bolsa um casaco que punha sobre os ombros, sem vestir as mangas, o que lhe dava um aspecto de senhora respeitável. Os cabelos, de um branco platinado, não eram mais desgrenhados, eram cabelos brancos finos e lisos como os das senhoras que já estão prestes a perder os cabelos, minha tendência genética, dizem, aliás. Ela não era em nada parecida comigo, não era uma versão minha mais cansada ou menos sanguínea ou menos cuidada, e eu mesma poderia supor que aquela não era mais o meu duplo, embora pela lógica da narrativa, da narrativa do meu texto de agora e também pela narrativa universal que, sempre trágica, fez que um carro derrapasse para que eu pudesse vir ao seu encontro, pela lógica que tornava a existência de um duplo e de sua duração de somente um dia uma coisa tão rotineira, tão sem surpresa, ela era mesmo o meu duplo, as maçãs novamente rosadas e suspensas no rosto, a pele de um branco que parecia ter esquecido de que um dia – neste mesmo dia – havia sido morena, um nariz mais aquilino, um olhar que não era mais voltado para dentro, certamente via mais do que os demais, que devia ver todas as camadas de vidas sobrepostas em cada vida que ele contemplava, mas eu não pensava em nada disso, sequer eu cogitei se ela era mesmo o meu duplo, isto eu falo agora, no momento em que escrevo, segundo o universo da palavra escrita, da tentativa vã de persuadir o meu leitor de que não há ficção alguma nisto que eu escrevo, no esforço de fazê-lo se aproximar de mim e dos meus possíveis pensamentos, neste caso, apenas possíveis, pois não estava pensando em nada quando eu a vi.


Como eu também não pensava em nada quando comentei, essas frases que nos deslizam da boca, com uma ternura incomparável, talvez a única vez que eu tenha sido realmente terna, “que vida enorme você teve, hein, Simone?”, sem qualquer ironia, pois aquela mulher só poderia mesmo ter tido uma vida enorme, somente com uma vida enorme se conquista aquela expressão no rosto, e ela então respondeu, “muito obrigada pela vida maravilhosa que você me deu hoje”, e que enorme apreciação aquela senhora demostrava, e que alegria enorme, de uma vitalidade consciente da morte, mas que não a temia. E então, neste dia que decorreu tão sem surpresa, eu tive, pela primeira vez, um espanto terrível, um segundo em que os órgãos concordaram em parar de funcionar, espantados que eles também deveriam estar, e em que o ar invadiu-me o corpo pelas narinas a ponto de sufocarme em seu excesso, e não havia filme nenhum da minha vida naquele momento, e nada se passou além de um silêncio absoluto, virei-me para dentro de mim a ponto de ver apenas o vácuo entre o vazio da pupila e o nervo do cérebro, e esse vácuo não projetava imagem alguma, ele era apenas negrume, o escuro que a luz do conhecimento sempre eclipsou, e que a partir daquele momento eu passaria a ter acesso.



RATOEIRA Texto: Patrick Text: Brock

Arte: Cid Art: Mesquita

SNAP TRAP


Eu gostaria muito que você estivesse aqui, mas talvez isso não importe mais. Tudo começou depois que você partiu para sua grande viagem de negócios. Cheguei em casa naquela noite e percebi algo correndo no chão para se esconder na sombria fresta entre o fogão e o armário. Peguei uma lanterna e dei uma boa olhada. Não achei nada. Depois de uns vinte minutos daquilo fiquei cansado e fui dormir. No dia seguinte, deixei a casa sem tomar café e não pensei no assunto até voltar, de noite. Quando abri a porta, senti logo um cheiro estranho, como se alguém tivesse acabado de transar na casa. Apurei os ouvidos para tentar captar movimentos. O lugar estava morto. Entrei, tirei a roupa e peguei um copo no escorredor para tomar um pouco de suco. Após um bom gole, olhei de novo para o escorredor e foi aí que vi algo parecendo grãos de arroz negros espalhados em cima das louças. Parei de beber e dei uma segunda olhada no copo.

I really wish you were here, but maybe it doesn’t matter anymore. Everything started just after you left for the big business trip. I came home that night and saw something scurrying through the floor into the dark recess where oven and cabinet meet. I got a flashlight and gave it a good look. Found nothing. After twenty minutes of scrutiny I grew tired and went to sleep. Next day I skipped breakfast at home and didn’t give it a second thought until I got home again that night. I opened the door and immediately felt a strange smell, like someone had just finished having sex in the place. I listened closely, trying to figure out if anything was moving. The place was dead quiet. I went in, undressed and grabbed a glass from the stale dish dryer to drink some juice. I took a good swig while shooting a second look at the dish dryer and that’s when I saw something like black rice grains spread over the dishes. I stopped drinking and took a second look at the glass.


Liguei na mesma hora para Iakonis e ele mandou um de seus capangas. Depois de mais ou menos uma hora apareceu o russo. Você o conhece. Cara baixo e forte, com tatuagens em cirílico nos antebraços, pisca muito. Ele trabalha como motorista para Iakonis, dono de nosso prédio e mais cinco na vizinhança, e de uma rede de lavanderias de autosserviço. Bom, o russo entendeu tudo quando mostrei as coisinhas pretas no escorredor. “Eles vêm das fábricas velhas no Canal Newtown. Tem muito prédio vazio, sabe, e eles se alimentam do que aparece com a maré. “Tá brincando? Eles estão em todo lugar; não fazem toca só no canal.” “Escute. Não estou falando dos normais. Tou falando dos grandes, como gatos. Tão grandes que é difícil escapar despercebido, entendeu? Eles geralmente morrem perto do canal. Mas pode ser que um dê sorte. Encontre um caminho seguro para cima, cruze os trilhos e explore os esgotos. Hoje em dia, até o lixo anda fraco. Então eles são forçados a subir cada vez mais e acabam em lugares como este”, disse o russo, acenando e piscando muito, com um fraco sorriso. “Eles encontram os menorzinhos e os escravizam. Eles são espertos, controlam os outros. Uma vez vi eles devorarem um cara em Utah. Só deixaram o crânio.” I immediately called Iakonis and he sent one of his henchmen. After an hour or so the Russian came up. You know him. Short, bulky guy with Cyrillic stuff tattooed on his forearms, blinks a lot. He works as driver for Iakonis, the owner of our building and some five others in the vicinity, plus a chain of coin laundries. Anyway, the Russian understood everything when I showed him the black stuff on the cabinet. “They come from the old factories in Newtown Canal. Lots of empty buildings, you know, and feeding on the shit that washes over.” “You’re kidding? They’re everywhere; they don’t breed only in the canal”. “Listen. I’m not talking about the normal ones. I’m talking big, like cats. They’re really big, so it’s hard to go unnoticed, you see? They get killed near the canal. But one of them might get lucky. Find a safe way up, cross the tracks, explore the sewers. These days, even the trash is slow. So they are forced to go further up, into places like this”, and waved his hand around, squinting and half-smiling. “They find the small ones and make them their slaves. They’re smarter, so they control them all. I saw them eat an entire man in Utah. They left only his skull.”


“Então vamos botar veneno. Você acha que essas armadilhas vão pegar um bicho desse tamanho? Até parece...” “Escute o que eu digo. Se alguma coisa morrer dentro dessa parede, vai feder tudo. E se for um dos grandes, vai feder o prédio inteiro. Nada de veneno. Ratoeiras”. Ele arrastou o fogão e a geladeira e colocou ratoeiras com macadâmias, cercadas de outro tipo com cola. Até aquele momento eu não estava preocupado, porque a cabeça andava cheia de problemas muito mais sérios. Tivemos uma semana infernal no trabalho. Querem que a gente calcule todos os números antes da teleconferência dos resultados do terceiro trimestre, mas não param de demitir para aumentar a produtividade. Andava trabalhando umas 16 horas por dia e raramente comia em casa. Todos os dias eu chegava para dormir e acordava correndo para não perder o metrô. Acabei fazendo merda, comentei o problema com Steve, Jonah ouviu e, na mesma hora, começou a encher o meu saco, falando que esse tipo de coisa só acontece com gente que não limpa direito. Eu queria desaparecer na massa de números do faturamento internacional. Então relaxei a cabeça com a ideia de que o russo cuidaria de tudo. “Let’s put some poison then. Do you think these traps are going to catch something like that? Come on...” “I’m telling you. If anything dies inside that wall it’s going to stink up the whole place. If it’s one of the big ones, stink up the building! No poison. Traps.” He moved the oven and the fridge and set snap traps with macadamia nuts, surrounded by some more of the glue type. I wasn’t concerned at that point, because there was a lot of more serious stuff running around my mind. We had a hellish week at work. We’re supposed to crunch all the numbers before third quarter earnings call, but they keep firing people left and right to increase productivity. I was working 16 hour days and already ate at home rarely. Day after day I just arrived late to crash and woke up hurriedly to catch the train. I blew it, talking about the problem with Steve and letting Jonah overhear us, because he started right away yapping about how that kind of stuff only happens where people don’t clean up. I wanted to disappear completely into the mass of numbers about foreign earnings. So I rested with the knowledge that the Russian was going to take care of these things. I’m really sorry now that I didn’t tell you about all this. You know we’ve been in crisis mode ever since you took the new


Agora, me arrependo muito de não ter te contado. Você sabe que vivemos em crise desde que você aceitou o novo emprego. O tempo todo gritando um com o outro. Você é minha esposa e tem o direito de saber. Mas eu sentia tanto a sua falta. Nossos telefonemas tranquilos foram os momentos mais íntimos que compartilhamos em muito tempo. Como é que você reagiria a uma situação como esta? Cinco dias depois, fiquei de folga na sexta-feira e resolvi investir um tempo na inspeção da casa e das ratoeiras. Primeiro chequei as paredes do quarto, sem encontrar buracos ou frestas por onde eles pudessem entrar no apartamento. Também não havia nada na sala. Quando me estiquei sobre o fogão para conferir as ratoeiras, recuei rapido demais e bati a cabeça no armário de cima, assustado pelos fragmentos mastigados das ratoeiras, salpicados com umas fezes do tamanho de feijões. Não apenas tinham comido as iscas, como também destruído as ratoeiras num festim orgiástico. Liguei para o russo. Ele prometeu aparecer em uma hora, mas após duas horas esperando ansiosamento eu telefonei de novo e deu caixa de voz. Passei as próximas horas limpando a cozinha furioso e já pensando em mudar no dia seguinte. Eles descobriram um caminho para dentro do armário e mastigaram as colheres de pau, cagando em job. We’ve been screaming at each other all the time. You’re my wife and you have the right to know. But I missed you terribly. These quiet conversations over the phone, they were the most placid moments we shared in a long time. How would you react to something like that? After five days I got Friday off and decided to take same time to inspect the house and the traps. First I searched the bedroom walls and found no holes or cracks where they could sneak into the apartment. They where also absent from the living room. When I pulled myself over the oven to check the traps, I drew back too quick and hit the upper cabinet, startled at the appearance of gnawed shards of traps, smeared with what seemed like shinny black beans. Not only they had eaten the baits, but also had destroyed the traps in an orgiastic feast. I called the Russian. He promised to come over in an hour, but after two hours waiting wearily I called him and got voicemail. For the next several hours I cleaned the kitchen, furious at this and already planning to move the next day. They found a way into the cabinet drawers and chewed on all the wooden spoons, crapping everywhere. I had to boil all the utensils. When I finished, it was four in the morning and it took several Tylenols to fall asleep.


tudo. Tive de ferver os talheres. Quando finalmente terminei, passava das quatro da manhã e tive de tomar vários Tylenóis para cair no sono. Acordei umas onze e liguei novamente para o russo. Ele atendeu com uma voz sonolenta, mandou eu me foder e desligou o telefone. Liguei mais uma vez e ele foi mais civilizado, prometendo passar aqui em uma hora. O lugar estava uma beleza; eu tinha passado a noite limpando tudo. O russo finalmente apareceu umas duas horas depois. Pedi que checasse atrás dos armários e tapasse todos os cantos apodrecidos, e fui comprar um café na loja da esquina. Antes de fechar a porta, dei mais uma olhada e senti alívio de ver o russo desmontando o ralo da pia. Quando voltei, só conseguia enxergar suas pernas imóveis embaixo do armário, que parecia ter sido empurrado para fora violentamente. O apartamento fedia a podridão. Do outro lado do armário, o russo desmaiado tinha um corte enorme na cabeça. Na parede havia um buraco grande o suficiente para passar um gato, e eu podia enxergar claramente o outro lado. O prédio do lado era um outlet que estava fechado há vários meses, desde o início da recessão. Puxei o corpo do russo e tentei conferir se estava respirando. Claro que esse acontecimento me assustou I woke up at about eleven and called the Russian again. He answered with a sleepy voice, told me to fuck off and hanged up. I called him again and he was more civilized, promising to show up in an hour. The place was pristine; I had slaved over it all night. The russian finally showed up after two hours. I told him to check behind the counters and plug all the rotten corners of the walls, and went for a coffee from the bodega. Before closing the door I took a last look and felt relieved to see him unplugging the kitchen plumbing. When I returned, all I could see were his static legs under the kitchen counter. The whole counter cabinet seemed like it had been pulled back violently. The apartment was filled with a putrid smell. I jumped over the counter to find the Russian passed out with a huge gash in his head. On the wall, there was a hole big enough for a cat, and I could see clearly the other side. The next building was an outlet that had been closed for several months, ever since the recession started. I pulled the Russian’s body from the wall and tried to listen to him breathing. Of course this turn of events completely freaked me out and I called the police. An ambulance came and they even brought a worker from the department of sanitation to check the other building. Iakonis even apologized in


muito, então chamei a polícia. Veio uma ambulância e apareceu até um funcionário do departamento de saneamento para checar o prédio. Iakonis pediu desculpas pessoalmente e trouxe dois equatorianos para consertar a parede. Desanimado, desabei numa cadeira e tentei decidir o que fazer. Os equatorianos começaram a comentar a grande tempestade prevista para mais tarde, que iria destruir um monte de telhados. Enquanto contavam alegremente a grana que poderiam ganhar com a futura calamidade, colocaram o isolamento térmico de volta na parede e instalaram um placa de metal em cima do buraco. A parede foi selada com cimento. Limparam até o sangue do russo. Tudo isso aconteceu hoje de manhã. De tarde, depois que a tempestade começou, as comunicações ficaram estranhas. Lembra que conversamos algumas horas atrás no Skype e o sinal ficava caindo e perdendo força? Depois que deu erro no programa e conversamos pelo telefone, a internet também caiu e a TV começou a transmitir mensagens de emergência do governo. A chuva balançava as janelas. O prédio inteiro parecia tremer. Tomei uns Tylenóis para tentar dormir, mas não funcionou. Tomei mais. Sentia uma presença, como se algo estivesse furioso comigo. person, bringing with him two Ecuadorian guys who immediately started to mend the wall. I sat sullen, trying to figure out my next move. The Ecuadorians started to talk about the big Northeastern that was coming up to rip up a lot of roofing. While joyously counting the riches they were going to make after this future calamity, they stuffed the fallen insulation into the wall and installed a metal plate running the full length of the hole. Everything was sealed with plaster. They even wiped the Russian’s blood. That was this morning. In the afternoon, after the storm started, all the communications became fuzzy. Do you remember how we talked a couple of hours ago on Skype and the signal was being cut off and losing power? After I crashed and we talked on the phone, the internet went down and the TV was only receiving emergency messages. The rain was shaking the windows. The whole building seemed to be rattling. I took a couple of Tylenols to try to sleep, but it didn’t work. I took more. I kept feeling a presence around, like something was angry with me. Then I heard a faint scratching on the wall near the fridge. The scratching suddenly became louder. I was on the bedroom trying the sleep when I first heard it. It lasted fifteen minutes.


Comecei a ouvir um leve arranhar na parede perto da geladeira. O barulho subitamente aumentou. Estava no quarto tentando dormir quando o percebi. Durou uns quinze minutos. Foi substituído pelo som de algo balançando tão forte a geladeira que as garrafas de água tilintaram. Corri para a sala e liguei as luzes. Tudo parou. Uma garrafa velha de Coca caiu do alto da geladeira. Entre a parede e o lado da geladeira, estava algo com um olho do tamanho de uma cereja, brilhante e pulsante. Empurrei o refrigerador contra a parade, que soltou um barulho oco. Horrorizado, ouvi o barulho de unhas se arrastando pela parede e passeando de um lado para outro da parede; a coisa então parou na parte da cozinha que tinha acabado de ser consertada e o som dos arranhões começou a aumentar cada vez mais. Disquei 190 e gritei que era uma porra de uma emergência, mas o cara respondeu que eles estavam muito ocupados com uma porrada de emergências e infestações de qualquer tipo não eram prioridade. Tentei descrever a seriedade da situação mas ele não ouvia. Acabei conversando com alguém que prometeu mandar um inspetor na segunda-feira de manhã. Enquanto falava com a pessoa, a parte de cima da parede da cozinha desmoronou e as luzes se apagaram. Corri para a porta. No corredor, o tapete bordô parecia It was replaced by the sound of something shaking the fridge so violently that the water bottles inside it were rattling. I ran to the living room and turned all the lights. Everything stopped. An old Coke bottle fell from the top of the fridge. Between the left side of the fridge and the wall, there was something with an eye as big as a cherry, bright and pulsing in the dark. I pushed the refrigerator against the wall, which made a hollow thump. Horrified, I heard scurrying inside the wall and followed the sound as it traveled from one side of the apartment to the other. It stopped above the recently mended kitchen wall and the scratching sound became increasingly louder. I called 311 screaming it was a fucking emergency, but the guy said that they were very busy with a lot of other fucking emergencies and infestations of any sort were not priority. I tried to describe the seriousness of the monster but he wouldn’t listen. I ended up talking to someone who promised to send an inspector Monday morning. While I was talking to her, the upper wall of the kitchen gave away and the lights went out. I made to door. On the corridor, the burgundy carpet was alive with dark shadows busily devouring the corpse of what looked like a dog, but I wasn’t sure. It could be a kid. I shut the door and retreated to the room, barricading the door.


vivo com centenas de sombras devorando o corpo de um cachorro. Não deu para ter certeza, podia ser uma criança. Bati a porta e recuei para o quarto, onde fiz uma barricada. Lembra que perdemos a chave da grade de segurança da janela? Pois é. Acho que começou agora um incêndio no prédio, porque tem um cheiro de fumaça molhada vindo dos apartamentos de baixo e a temperatura parece que está aumentando. Ao longe, sirenes; finalmente resolveram me levar a sério. Na sala, parecia que alguém estava mastigando a mobília e as paredes. Eu poderia ter quebrado a janela do banheiro e pulado, três andares, provavelmente sobreviveria. O problema é que não consigo me mover por causa das pílulas. Não sei quantas tomei, talvez 15, 20 ou 25. Estou ficando com sono. Espera aí! Acho que eles derrubaram a barricada. Está escuro, mas tem algo se movendo nas sombras. Deu uma farejada ao redor e pulou na cama. Ah, se você pudesse ver! Sua pele é horrenda, com retalhos de pelo e pus. Afiados dentes acinzentados salivam sobre o meu corpo. Embaixo do torso deformado, dá para ver algo fálico crescendo.

Remember how we lost the key to the window’s safety lock? Yeah. Now I think there’s a fire starting somewhere in the building, because I can smell some wet smoke from the apartments below and the temperature seems to be rising. I can also hear the sirens; I think now they’re taking me seriously. From the living room come the sounds of something gnawing at the furniture and the walls. I could break the bathroom window and jump down, three stories, probably would survive. The problem is I can’t move because of all the pills I took. I don’t know how many, maybe 15, 20 or 25. I’m getting kind of sleepy now. Wait! I think they broke through the barricade. It’s dark, but there’s something moving in the shadows. It sniffed around and jumped on the bed. If you could see it! Its skin is hideous, with patches of fur and suppurated spots. Sharp gray teeth salivate over me. Under its misshaped torso, I can see something phallic is growing.



VOOS DE

GUILHERME SCALZILLI Arte: Lalita

Hotel Royal, duzentos e quatro Ora, se o Quintana queria ter nascido num cachorro sentado (escreveu-o naquele quartinho, penteadeira, criado-mudo com moringa), eu queria ter rompido amanhã bem cedinho com sol na minha cara feia. Hoje sei que li um trecho desses do Quintana (velhote traquinas, chapéu e bengala, atropelado), corri pra gaveta pesada puxei o revólver e dei um tiro de vida no ouvido.

Setembro de 1994


Tempos Onzes de janeiro de dois mil e dois haverá aos bilhões. Agora é daqui a pouco. Dez minutos sequer têm tempo para esses seiscentos segundos que os recheiam. As hélices dos ponteiros, as sombras girassóis, a areia que esvazia, enquanto anunciam, sonham perenidades ínfimas, prenhes de acasos remotos, nanoabismos de augúrios que orbitam num infinito de culpas, anseios e júbilos. Agora, o agora já era: brilho cansado, expira no olhar do bebê – a mesma luz anciã que sorriu nas pupilas fundas do seu avô quando nasceu. Seiscentos mil milésimos de tempo: memórias de letras que terminam nunca; nódoas que não vemos num fotograma negativo daquele ímpeto que viria se. Tempo é, faz tempo. Minutos, segundos, milênios (é?) são momentos. Mas o tempo – esse dá medo.


Marienplatz Um cão de pulôver. Crianças insones. O suficiente etéreo. Ganhar tempo aumenta a espera. Galanteio inútil sobre cenho intenso: precisa de férias, diz. Abre a cerveja num esgar, colhe as moedas do balcão, perde a conta (perde?) e ri. Errará alguma soma (ou, em vernáculo: erra ela algo)? Muito ar a entorna. Toda sua, pouco ou nada doutrem. Impossível tangê-la, tampouco esperá-los, que se tardam, como previsto. Enigmas demais? Não é da sua conta. Afrontá-la-íamos – ela assobia – se lhe devolvêssemos o que pensa. Povo louco. Parece até fácil ser por si.

Sorri, de fato? Quem nela sorri? O que deseja nela? Como saber se algo entre nossos anseios se confunde (se é que há desejo algures)? Este fim é que tudo corrompe: a sensação de já ter havido e amado toda ela, todas elas. Esta felicidade, espécie de certeza, que (ela principalmente) afloram. Feito em casa, a sós, ou a esmo. Ótica básica: no espelho, o que te vê, vês – procuras, nativa? Tenho piores. Queres tudo? Embora falto de buscas, sigo tentando perdê-las, como essas contas tuas. És, a teu modo, perfeita? Sou, ao meu, mártir. Munique, 18 de agosto de 2004


Monogamia Nel mezzo del cammin di nostra vita mi ritrovai per una selva oscura, ché la diritta via era smarrita (Dante Alighieri, Inferno) Torrão de corretos meneios, ares convexos, cava conduta, ele suma o caramelo insosso que o irmana a chãos e colinas. Contido por veios profundos, derrama-se em porosa lisura, fluindo ao descanso viscoso; porém, decomposto ao meio (ou um tanto antes, como anseia), esperta livre de arrimos. Submerso no assomo do flerte, engulha turbas de estios, delira pesadelos forros – e mais anela as delícias do abismo à medida que desliza nos sustos prazerosos da malícia. Não conhece, entretanto, as perfídias viris do galanteio, a náusea das carícias iminentes, o apuro reticente da mentira; sonhara-os pasmo, em segredo, e o mero vir-a-ser fora enleio, durou centúrias de transeada nostalgia. Afeito à armadilha, no âmago morno do encanto, um salobro mortiço o devora: soçobra em promessas ignotas, vácuos de vivências inauditas, prestes a impregná-lo, qual tela crua, a nódoas de tintas antigas. Mesura quão duras e hirsutas as tramas do seu tecido intacto, quão tesas as suturas, a apupos cosidas, que lhe selam os furos da epiderme árida. Lembra as masmorras dos zelos sonâmbulos, das angústias tolas, dos arroubos escravos. Roto de assaltos, amálgama ambíguo, denso de lapsos, engasga os desígnios que o moldaram dado ao fracasso, os muros de afagos amigos,


guardando seus humores gratuitos, e as puas do gênio relapso que o talharam cínico, raso profeta dos planos baldados. Recua, no instinto da luta, ladeando precipícios de estigmas. Esquece que é grânulo tosco, mísera poeira verossímil, e tenta assimilar-se ao lodo, ao ranço que o tinha compacto. Quisera não ter cobiçado. Caído acima, pensa subir da asfixia, mas a tona revira-se em leito e ao fundo oscila o céu luzidio. Nada em vazios natimortos, numa azia de eternos prelúdios, no orgulho contrito dos triunfos súbitos e lauréis imerecidos. Falto da calma enxovia (sina aceita, mais que convicta, paga sem pena, em revés de alento) e ébrio de quimeras, supõe que só a cela o fez cárcere, que apenas trevas externas ninaram-lhe o sono longevo e secaram suas febres honestas. Parvo de incertezas, timorato e obtuso, açula o reposto apetite, instiga a volúpia cortês, os ímpetos novos, a audácia liberta: sim, purgou a velha pureza, está isento dos lustros decentes, limpo da índole de argila. Mas ainda veste o doméstico cimento, crivado de pactos benignos, que é fardo, sepulcro e esteio. Feito, por troça inclemente da sorte, monólito que outra deseja, fadado ao limo do asseio, ao exílio do silêncio, à perpétrea vigília, explode num frêmito ocluso: íntegro, destrói-se para esquecê-la.


(*) ERRATA: depois de 18/07/97, onde lê-se “e se usássemos também o poema imediato para lucubrações fantásticas”, leia-se: “faz bem a morena em correr para casa com essa maresia fria dando arrepio na sua pele exposta, à mostra, tão tarde da noite”. Doravante assim. Ressureição Sê. Invade a tua luta covarde e te soca logo a nocaute, conquanto na boca sem dentes o riso exitoso perpetue as chagas que te exibem oco. Força a porta da tua tumba e levanta desse conforto. Nada existe nos corpos que se extinga? Pois solta o remorso obtuso que te afunda. Susta o repouso que a angústia fadiga, franze a paz da tua lápide atenta, goza a sutil expiração das penas, sorve o viço do brio decantado e engole-te à tona sem falsas piedades. Quando, sob teus passos exatos, sucumbir o cambaleio das pedras, nota como a rua celebra a apoteose de um êxtase insepulto.


Piva e o ovo Viemos devolver-lhe, chocas, as velhas novilínguas - é certo que, desferidas (ou expostas ao porvir), sejam mais lástimas e menos labor; mas ainda resistem, cá fora, rameiras na pudicícia atônita, com seus rebocos à vista, sua rudeza bucólica, as corcovas das paisagens. Dessas carecas vetustas despreze-se, porém, as alvas tezes: são memórias de pérolas íntegras. Nossas pipas suburbanas jazem, estilhaços de crostas multicores, taças de efêmero transe, que os arranha-céus trincaram e as unhas dos bueiros descascam. Só o é, sozinho, nos suplanta. Fora da cloaca mundana, cupidos prenhes de vertigens troçam dos nossos destinos: pedras tênues sem arestas, cúpidos projetos de pintos, abortos sempiternos que nutrem. Só a demência nos suplanta: só a liberdade, essa forma orgulhosa de violência. Vimo-lo envolvê-los em novo, mas o novo, sangue e júbilo (novelo nodoso, sítio no morro, índio com dor de cotovelo), sereno, penado, anoso, independe de nós. De novo, em nosso novo há nada. Agosto de 2001



SOBRE OS ÚLTIMOS MOMENTOS DE

DAVID F. W.

E O QUE ELE ENCONTROU NA ENCRUZILHADA FINAL Texto: Breno Kümmel Arte: Joana Coccarelli

David Wallace enfim desiste. E não pode negar que havia um tipo de alívio escondido no fim da luta. Sabe bem demais que a indecisão pode ser tortura mais terrível que a pior das alternativas. Decide, e sente o peso dilacerante da encruzilhada se afastar de dentro de si. Afasta, não sem uma certa lerdeza, mas afasta. Por escolher dessa vez o outro caminho, sabe que não encontrará de novo essa velha conhecida encruzilhada, e isto é parte considerável do alívio. Um dos piores aspectos de resistir. Sentir (saber) que no futuro aquilo se repetiria. Não mais. Até sabe o que vai utilizar de forca. Não é uma decisão automática.


Surpreende-se. As coisas do mundo não tomam nenhuma aura mágica com aquela decisão. Não saboreia o café com um gosto renovado. Não acha o sol mais forte ou mais quente ou mais brilhoso. O ar não carrega cheiros inesperados. O sorriso de sua esposa é exatamente tão lindo quanto antes. A voz dela tem a mesma dor e doçura de sempre. É a última vez que faz e sente e vê tudo isso que faz e sente e vê e tudo isso continua como era antes. Sinal talvez que deva continuar com sua decisão. Talvez. Mesmo assim ele se força a perambular pela casa vazia. Olhar tudo uma última vez. Não que queira mudar de ideia. Não aguenta mais. Mais de um ano inteiro assim. Um ano consecutivo, praticamente, sem tréguas. Não tinha como. Perambulando, ele só não quer se privar de alguma última coisa, mesmo não sabendo o que pode ser. Claro que esta não era a primeira vez que. Mas sabe que desta vez é a última, definitiva. Sente isso dentro de si, simplesmente sente, como numa ficção simplória. Aquela velha novidade, que sentimentos de ficções simplórias também são sentimentos. Também acontecem. E tinha uma certeza amarga de que iria até o fim. Tudo lamentavelmente convergia. Não vê nada novo. Os móveis nos mesmos lugares. Tudo estático. Como que esperando. Na sala onde escrevia, os papéis, ainda parados. O romance parado. The Pale King. Sua reinvenção, parada. Um romance sobre o tédio. Sua possível autossuperação, tentativa de se libertar. Libertar-se, de alguma forma, de alguma coisa. Ele tenta não pensar (ha!) no seu bloqueio de escritor como principal razão de sua situação presente. Escrever pode ser às vezes um alívio, mas há muitos (muitos) anos sabia que não era remédio, muito menos cura. David senta e olha para o papel. Escrever nunca tinha sido fácil. Não seria dessa vez que seria diferente, mesmo que para olhos e mentes específicas. Mesmo sabendo (ou, no mínimo, conhecendo pelo convívio) como funciona a mente de quem vai ler aquele bilhete. Sabe bem que o leitor, sendo um total desconhecido, é uma figura quase que aleatória na tentativa de dar sentido ao que se escreve. Mas parece que mesmo eliminando esta incógnita, a coisa mesmo assim continua como que impossível. Ernest Hemingway. Virginia Woolf. Sylvia Plath. Primo Levi, Sandor Marai, Yukio Mishima, Stefan Zweig. Hunter Thompson. John Kennedy Toole. Anne Sexton. Mas é diferente. Não é apenas mais um texto, um ensaio sob encomenda ou uma ideia que tivera. É verdade que sempre tentara que seus textos não fossem apenas mais um texto (já que não


há no mundo necessidade de mais uns textos), mas mesmo no mundo de sua enorme autoexigência, aquele não era apenas mais um texto. David não deixa de achar terrível como seus pensamentos iam para sua obra nesse momento. Não deveriam estar com sua família? Sua esposa, sua mãe, sua irmã, seu pai? Era tão egoísta assim? Conseguia não imaginar as manchetes de Autor PósModernista Se Enforca antes de imaginar a tristeza que seu ato causaria naqueles que o amam? O velho problema da inutilidade do esforço em não pensar em um assunto. Talvez evitasse pensar na sua família para que pudesse continuar. Bem, ao menos não tinha filhos, não cometera essa irresponsabilidade. Talvez soubesse que mesmo nos momentos de maior alegria e realização sempre sobraria uma brecha. E, agora, escorregaria por ela por definitivo. Ele olha os papéis. Organizados em pilhas por assunto, ou melhor, por ideia individual. Lixo. Não muito longe de boas promessas, mas ainda lixo. Quase tudo inacabado, sequer apresentável como fragmento. Não chegavam nem ao status de “prévia”. E ficaria assim. Não sente mais angústia da improdutividade. Pelo menos não tão imediatamente. Problemas mais sérios há tempos o afligem mais fortemente. E, naquele momento, uma improdutividade mais específica é o que o incomoda. David olha para o papel diante de si. A pausa com a caneta parada no ar é enorme. Não é o tipo de coisa que simplesmente se começa e se continua. Não terá como voltar atrás, mudar qualquer coisa que fosse. Seria definitivo. Escritura sem direito à revisão: acabou, está acabado. Já cogitou, claro, ir sem dizer nada, depois de tanto tentar dizer, mas se o ato lhe parecia tão egoísta (e como não haveria de ser?), pelo menos este último esforço tenta manter como dívida. Desce a caneta no papel e escreve a primeira palavra. As palavras, depois da primeira, fluíram com inesperada rapidez. Eram as palavras certas na ordem certa, as coisas todas estabelecendo uma continuidade coerente que de fato expressava o que buscava expressar naquele momento. Conseguiu até manter alguma concisão. Não chegou sequer no fim da segunda página quando descobriu que já havia terminado. Espantou-se com o surto produtivo. Mas talvez estivesse completamente enganado, talvez era só a impressão que tirava daquele momento específico; coisas do contato da caneta no papel. Ergueu o bilhete da mesa. Andou pela casa enquanto lia de novo o que escrevera.


Sim, era exatamente aquilo. Estava tudo ali. Na leitura e releitura, tudo parecia ainda mais límpido do que parecera durante a escrita. Estava perfeito. Aquela realização final, inescapável, paralisou seu corpo inteiro, em pé no meio do corredor, com o papel na mão e a cabeça virada para frente, boquiaberta. Há meses sua escrita não avançava daquela forma, não comunicava com tanta eficiência e eficácia. Antes, sentia-se travado, entupido, esgotado. Ridículo. Nada que saía parecia digno do dinheiro que gastara com a tinta, que dizer das árvores que uma tiragem comercial consome? Que dizer do tempo de estranhos que lhe confiam para dizer alguma coisa que valha a pena ser dita? Mas o bloqueio não estava naquele bilhete, não operou naqueles poucos minutos em que estivera sentado, naquela mesma cadeira de sempre, na mesma mesa. O bilhete estava ali, na sua mão, prova concreta, palpável (na medida em que um texto pode ser palpável, claro). Voltou para o quarto onde escrevia. Olhou para a pilha de papéis, os rascunhos. O romance inacabado. Os contos, pedaços de contos. Resgatou mentalmente todos os pontos em que interrompera seus escritos, todos os impasses não superados, procurando algum caminho para continuar, pensando talvez que pudesse contagiar sua recente competência expressiva para lidar com os obstáculos que o empacaram nos últimos anos. Olhou então para os porta-retratos nas estantes, seus amigos, sua esposa, seus pais, sua irmã. Todos aqueles abraços de retrato, sorrisos de retrato, estáticos e eternizados, todos olharam de volta para ele, nas mesmas poses, dos mesmos locais e datas. Passado. Presente. Leu o bilhete mais uma vez. Como já havia intuído meio segundo antes de baixar os olhos, aquilo só tinha tamanha expressividade como bilhete de um acontecimento real, não como exercício criativo/imaginativo. Sabia, claro, que a beleza das palavras não se restringe a um tipo de texto ou outro, mas, ainda que intangível, havia sim uma diferença fundamental entre o ensaio e o conto, entre o livro-texto e o romance, entre o relato e o inventado. Passar um pelo outro era, no melhor dos casos, burrice ou ingenuidade; no pior, desonesto. Aquele texto só conseguiria tão excelente expressividade se David de fato se matasse. Sem o ato, não era nada, não tinha aquela pequena independência quase invisível que a ficção precisa para existir, que tem mesmo que não perguntem. Fictício, seria apenas mais alguns rabiscos vazios numa busca cega e estúpida. Apenas mais lixo.


E voltava exatamente para onde estava. Onde nĂŁo queria ficar. Exasperado, amassou o bilhete e jogou fora, remexendo os outros conteĂşdos da lixeira para que o papel se perdesse pra sempre no fundo. Estava realmente cansado daquilo tudo. Chega.


JOGO DE

CORPO Quando Bobô, com toque sutil de perna esquerda, passa pelo primeiro adversário, o locutor da rádio, esticando até o limite do fôlego a primeira vogal, chama-o de “bom de bola”. O apelido, que surgiu ainda criança, quando o filho José Bonifácio se mudava para a capital e o pai, na véspera, dissera “Vai, Bobô, ser ponta-esquerda na vida”, havia caído nas graças dos cronistas. Agora é um astro, cuja perna esquerda escreve no papel do gramado uma história de amor pelo jogo que faz até mesmo marmanjos, dos que batem no pai se ele torcer por outra equipe, suspirarem. No jogo contra o inimigo carioca, ele é a esperança. Todos os anos o confronto se repete no campeonato nacional. Aplica uma meia-lua no lateral-direito e o burburinho crescente na arquibancada é presságio de gol. Conduzindo a bola sem mirá-la, ele vê, antes do goleiro, um conhecido que há anos o faz perder o passo. O beque Montanha era assim: de uma regularidade que o faria ser esquecido no dia seguinte ao fim da carreira, em jogo festivo do qual o mais célebre participante não era convidado para mesas-redondas havia mais de dois anos. Bobô balança o corpo – dança que ensaia com o zagueiro inimigo na intenção de que ele nunca a aprenda e caia –, esperando superar Montanha. Seus olhos, porém, fixam-se um instante a mais no rosto do beque e eles trombam. A bola segue solitária. Levantam-se sem ajudar um ao outro, os dois jogadores que haviam se conhecido nos juniores, ambos recém-chegados do interior. Foram melhores amigos: dupla no treinamento físico, parceiros no tático. Montanha dá um chutão que vai morrer no pé de Bobô, quase como um presente. O atacante parte, flecha acostumada a cravar‑se


Técnico: Estevão Azevedo

no centro da rede e, quando dele se espera a ginga que levará a coluna do beque ao ortopedista, pisa na bola, espera a chegada do outro atacante, que vem pela direita, e retarda a jogada. Os amigos, no ambiente competitivo do vestiário, ajudavam‑se: Bobô carregava a bola sobre o peito do pé, como quem carrega um coração frágil, para lá e para cá, sem deixá-lo cair, tentando ensinar um pouco de leveza às juntas do outro; Montanha, ríspido, convence Bobô de que na marcação é preciso certa violência, canela contra canela, braço no pescoço. A partida se aproxima do final, a zaga marca mal e Bobô sabe que, no homem a homem, é capaz de com um drible resolver o impasse. Mas, na sobra, sempre quem há é Montanha. O que fazer? Iria humilhá-lo: no meio de suas pernas, fazê-lo cair de quatro, isso lhe faria bem. A bola na canhota, na cachola o sentimento. Montanha em sua direção, trajetória que anuncia o grande encontro. Bobô acelera e pensa ver nos olhos do amigo alguma ternura. No próximo tapa, um quê a mais de força, o que faz parecer que a culpa da fuga da bola é de um desnível no gramado perfeito, e Montanha a chuta para a torcida. Os dois chocam-se e caem, misturados. Montanha tira a camisa, entrega-a a Bobô e recebe outra em troca. Bobô, nas mãos o suor quente do amigo, foge das entrevistas e desce ao vestiário, perguntando-se até quando suportará ver Montanha apenas uma vez por ano, no clássico, isso se um dos dois não estiver contundido ou suspenso, o que adiará o encontro, enquanto o beque, questionado pelos repórteres sobre como parou o atacante, fica longos segundos em silêncio e dirige-se ao túnel.



O

HEREGE Texto: Fabio Riggi Arte: Lalita

Por ocasião do falecimento do pai, o filho resolveu aproveitar a situação para expor aos conterrâneos saudosistas certas vontades que o falecido deixara em carta póstuma. Tal carta, para espanto dos demais parentes do morto, havia sido mantida em segredo durante anos pelo filho e trazia instruções para a realização do funeral de seu autor que pouco influíram no andamento padrão da cerimônia, mas que deixavam ao pródigo a responsabilidade pela foto e pelo epitáfio que ilustrariam a lápide. Não por vontade do rapaz, pouco confiável por causa de suas habilidades em manter o nome da família sujo na praça e nas mesas de conhecidos menos amistosos, nem por vontade do morto, dedicado que fora a ilusões mercantis que sempre estimularam a carência de produtos básicos para a alimentação e higiene mensal da família; na verdade, somente os parentes próximos foram ao enterro, e houve até quem dissesse que a viúva sequer chorou por detrás das lentes escuras, mas, enfim, consta que, não por vontade deles, mas por respeito à entidade celebrada na ocasião, enterraram o morto segundo as especificações contidas na carta.


E não foi sem alguma relutância, embora silenciosa, da consciência coletiva que, no dia seguinte, o filho apresentou a lápide, a foto e o epitáfio juntamente com a carta que comprovava a fidelidade do trabalho realizado. E não foi sem protesto, embora discreto, que todos os parentes se encontraram diante de um imenso espaço em branco que tomava toda a área destinada à gravura do rosto do falecido. Entretanto, alcançando o limite de tolerância dos mais exaltados, o epitáfio contava com a seguinte inscrição: “Não me acendam velas, à noite a própria morte me revela.” Seja o último favor, seja o mau gosto da rima óbvia, o desgraçado insistia, mesmo morto, em fazer pilhéria da honra que a muitas custas aquela família fantasiava. Pois não tivera ele a devida austeridade, abriram-se as portas ao desabafo. Não ganhava bem, não tinha amigos ricos, vinha da família pobre, traía a mulher indiscretamente, insistia em fazer a caçula aprender futebol, não incentivava a leitura da pequena, não impunha bons modos ao filho e tinha um rosto desproporcional, com um olho e uma orelha mais baixos que os do lado oposto, que esfarelava em caspa. Posto em júri popular, convenhamos que a feiúra justificaria a indisposição constante da esposa toda noite que ele deixava de inventar compromissos noturnos. Mas não era apenas isso, mulher que se preze, convenhamos novamente, precisa de joias, empregadas, amantes, e um marido com o qual ela pudesse se orgulhar de andar braço dado pelas quermesses do padre Luiz; coisas que não se pode comprar com crediário. Tardou, o filho da puta. E pior, demorou a viúva a ceder, mas confessou: brochava sempre, o ingrato. Coisa que justificaria até um processo de indenização por danos morais contra a família do presunto, especialmente a mãe por ter dado à luz a tamanha ameaça social. E eis que se poupou a burocracia, mas não a justiça que levou a esposa a se colocar em ataque verbal contra a sogra diante de todo o resto de ambas as famílias. E, acima de tudo, diante da foto em branco na lápide. Óbvio, era tamanha a vergonha, que o monstro se escondia das mãos vingativas da derradeira. Pois ela haveria de encontrá-lo nas profundezas mesmo sem um retrato de referência: bastava procurar por alguma fonte nova de desordem no além. Posto que até no mundo dos vivos aquele pérfido ainda causava problemas. O mais imediato: certamente as visitas amorosas que a esposa concedia passariam a ser remuneradas. O que era pouco perto do escândalo de um marido que não dera a ela a vida que lhe havia prometido. Pouco perto das cobranças da funerária que


insistia em duplicar os valores pelo fato do túmulo se encontrar rigorosamente no centro no cemitério, bem em conformidade com o ego do fétido. Enterrassem-no no lixo! Mas a vaga havia sido encomendada pelo próprio morto muitos anos antes. Provavelmente na mesma época em que escrevera a carta. Pela madrugada, uma luz forte vinda do poste de iluminação central do cemitério criava uma sombra imponente da capela mais antiga do lugar que cobria quase a totalidade da lápide daquele morto. A sombra terminava como termina uma capela, com uma cruz, exatamente no espaço destinado à foto do morto. Tal figura se apagava apenas com a chama da vela que a viúva pessoalmente acendia toda noite no túmulo, tornando ao branco o espaço antes desenhado pela sombra. Acendia, senão por amor, por compaixão ou por culpa, pelo temor de ser acusada de cúmplice da blasfêmia daquele herege. Com o tempo, mudaram os postes de lugar e trocaram as lâmpadas por outras, mais claras e econômicas.



O DECLÍNIO

DO DÓLAR E O SORRISO DE MAO Texto: Patrick Brock, de Nova York Arte: Delfin

Um dos filmes exibidos no último trimestre de 2009 nos EUA foi Atividade Paranormal. Produzido em 2007, conta a história de um casal que se muda para uma casa no subúrbio de San Diego, na Califórnia, um dos Estados que mais simbolizou o sonho americano. A esposa se diz perseguida desde pequena por uma entidade e, logo depois da mudança, coisas estranhas começam a acontecer. O marido faz pouco do terror dela, mas os dois acabam chamando um especialista em demônios para estudar a casa. Há um espírito maligno assombrando a residência e ele se alimenta de energia negativa, diz o demonólogo. No estilo falso-documentário de A Bruxa de Blair, o filme custou apenas US$ 15.000 e já rendeu mais de US$ 60 milhões à Paramount, subsidiária do conglomerado americano Viacom, também dono da rede de televisão CBS.

Mao Tse-Tung,

líder comunista chinês, governou a República Popular da China desde sua criação até 1976, ano de sua morte. Sua contribuição teórica à doutrina marxista‑leninista é conhecida como maoísmo.


Além da conveniente proximidade com o Halloween, festival de origem pagã em que os americanos tentam exorcizar seus inúmeros medos, o sucesso do filme parece ecoar também o trauma nacional da recente crise imobiliária. Estimulado por incentivos tributários para os interessados na compra da primeira casa própria, e também pela magnitude do declínio no próprio valor dos imóveis, o mercado imobiliário voltou a dar sinais de vida no fim do ano passado, com leve alta no valor médio das residências. Em vez de enfrentar o terror em suas próprias casas, os americanos podem se dar ao luxo de ver seus medos refletidos metaforicamente no casal cujo sonho de prosperidade é transformado em pesadelo. Enquanto isso, já se avizinha uma nova crise, desta vez com os imóveis comerciais, muitos deles vitimados pelas falências de empresas e surgimento de shoppings fantasmagoricamente vazios no país inteiro. Desde a Grande Depressão, nos anos 30, os americanos viveram um grande período de expansão econômica irregular impressionante. Mesmo com as esporádicas recessões, o padrão de vida da população continua refletindo sua renda per capita de US$ 40.000, a sexta maior do mundo. Homens como Warren Buffett, o presidente do conglomerado Berkshire Hathaway, fizeram fortunas fabulosas durante esse período. Para o americano médio, essa pujança se traduziu em baixo desemprego, fácil acesso a crédito, carros e casas espantosamente grandes. Mas agora a situação mudou e o desemprego está perto de 10%. Se estudarem os efeitos negativos da globalização na economia americana, os manifestantes que costumam inundar as ruas contra o imperialismo ianque talvez aplaudissem seus efeitos niveladores sobre a economia mundial. Cada vez menos industrializados, os EUA cedem à China o papel de fábrica do mundo e se transformam numa economia predominantemente de serviços; nesse meio tempo, os salários foram pressionados pela concorrência em nível mundial, tornando difícil sobreviver com os empregos que antes permitiam um padrão de vida confortável. Os pais estão assistindo ao mundo em que cresceram desmoronar com o desemprego dos filhos recém‑formados nas faculdades, que cobraram preços exorbitantes mas não servem mais para garantir um trabalho. Antes forte, a moeda nacional cada vez mais é corroída pela inflação. Sessenta e quatro anos atrás, os EUA emergiram vitoriosos do maior conflito militar da humanidade. Na cidadezinha de Bretton Woods, no Estado de New Hampshire, ditaram o modelo econômico do pós-guerra. Desde então, o combalido dólar ainda


reina absoluto. É a moeda número um dos mercados de câmbio de Mogadício a Londres. O governo americano sabe disso e tem aproveitado o peso das verdinhas para operar no vermelho em cerca de US$ 13 trilhões e sem qualquer lastro físico desde os anos 70, quando Richard Nixon acabou com o padrão ouro. Diferentemente do império britânico, a “paz americana” usou o poder do capital, das armas e principalmente da moeda para se manter por cima da carne seca. Não se sabe até quando, mas bélicas cidades flutuantes como o porta-aviões Nimitz é que tem servido de lastro para a moeda americana. No fim do século 19, se popularizavam no Reino Unido os romances de invasão, como Drácula (1897), do irlandês Bram Stoker, em que uma estrangeiro sinistro se dirige a Londres para sugar na fonte o sangue da civilização mais próspera de então. Esse e outros livros refletiam o temor dos britânicos de que se avizinhava a decadência de sua dominância. Cinquenta anos depois, com o império dissolvido e o país devastado pela Segunda Guerra, o Reino Unido teve que pedir um empréstimo camarada de US$ 45 bilhões da ex-colônia americana para se reconstruir. Só terminou de pagálo em 2006. Hoje em dia a China é que assumiu o papel dos EUA nessa equação – segundo o Departamento do Tesouro dos EUA, a República Popular da China é maior detentora de títulos do Tesouro e tinha US$ 877 bilhões em fevereiro. E o Brasil também participa dessa ciranda: é o quinto maior detentor de Treasuries no mundo depois dos países da Opep, e tinha US$ 170 bilhões em fevereiro. Continuam as reuniões, mas, diferentemente de Bretton Woods, não surgem soluções; no máximo algum líder mundial pede a fundação de uma nova ordem. Mas esta ainda não apareceu em definitivo; o sistema de bancos centrais iniciado após a Grande Depressão parece ter freado o ímpeto devastador da crise. Talvez a solução surja de um camponês da China que abandona a fome do povoado e, tal qual retirante nordestino, vai buscar um emprego nas fábricas do litoral. Ou talvez de uma vila africana, como Wangari Maathai, queniana ganhadora do Nobel da Paz de 2004 que inspirou um movimento responsável por plantar mais de 20 milhões de árvores. O total de reservas chinesas em Treasuries diminuiu US$ 62,4 bilhões desde julho do ano passado, quando atingiu o auge de US$ 939,9 bilhões. O FMI prevê que a China vai crescer 10% este ano, puxando consigo países como o Brasil. Os EUA deve expandir 3,1% neste ano do Tigre, comparado a um 2009 em que encolheram 2,4% e se endividaram até os tubos. Na nota de 100 iuanes, Mao até parece sorrir.

O Sistema Bretton Woods

é um acordo de 1944 envolvendo 45 países aliados durante a Segunda Guerra. O acordo oficializou que as moedas dos países-membros passariam a estar ligadas ao dólar e o dólar ao ouro numa tentativa de reger a política econômica mundial.


CRテ年ICAS DE

VALADテグ Texto: Caco Belmonte


Penitenciária Estadual do Jacuí Ligação não identificada no celular. Valadão abomina esse tipo de chamada. Pode ser operadora de telemarketing, do outro lado alguém que negocia dívida ou vende qualquer coisa. Ressabiado, atende ao telefone. Reconhece a voz. Puta que o pariu! É o Palito. Disfarça. Trata-se de um amigo que não gostaria de reencontrar tão cedo. Foram parceiros em várias caminhadas, mas faz alguns anos que não têm contato. Por força das circunstâncias, o interlocutor fala de uma cela na Penitenciária Estadual do Jacuí. Valadão aposentou-se. Não quer envolvimento com ilícitos. Nada de atividade perigosa ou que possa dar errado por descontrole. Pagou a dívida com a sociedade. Dois anos em regime fechado e o resto cumpriu no semiaberto. Hoje tem carteira assinada, residência fixa. Também vai à igreja e atua numa ONG que reintegra ex-detentos por meio de oficinas profissionalizantes. Atualmente, além de uns baseados, seu único contato com a contravenção é quando frequenta salas secretas em botecos, padarias e agências lotéricas que exploram máquinas clandestinas de bingo e caça-níqueis. Receoso, ouve o que o outro tem a dizer. Para seu alívio, apenas um pedido simples. Por causa da descoberta de um suposto plano de fuga, cuja autoria lhe fora falsamente imputada, Palito perdera por tempo indeterminado o direito às visitas íntimas. Daí pediu o celular emprestado a um companheiro. Outro lhe forneceu o chip. Ligou, e agora explica a situação. Precisa de alguém confiável para, um dia por semana ou a cada dez dias, verificar como andam as coisas em sua casa. Nada mais. Valadão reconhece sinceridade no relato. Comove-se com o tom de desabafo. Chegou a pensar no pior, mas favor de amigo é sinal de que ainda o consideram. A última coisa que deseja é entrar de otário em roubada, transporte de droga ou coisa pior, mas agora tudo bem. Não foi preciso negar um favor. Temia que lhe pedisse para ir contra o que acredita hoje em dia. Até missa dominical na paróquia do bairro ele tem assistido. Às vezes não consegue entender o sermão do padre, mas o simples fato de entrar na igreja já lhe causa uma sensação de alívio. Para ele o sacramento da eucaristia equivale a uma troca. O padre escuta durante a semana, no domingo o biscoito desmancha debaixo da língua e segunda-feira começa outra vez. Ciclo interminável. Reservatório atinge o limite, daí vem o sacerdote, a confissão, uma bolachinha consagrada e o pecado novamente.


ATITUDES EXTREMAS Três dias após o telefonema, Valadão visita a casa do detento. O endereço ainda é o mesmo. zona nobre de uma cidade vizinha a Porto Alegre. Vai de moto, apesar da chuva iminente. No caminho, recorda os tempos de amanhã incerto, sempre pronto ao revide ou a fuga. Percorre o trajeto entre as cidades e lembra-se de como antigamente as coisas eram efêmeras. Dinheiro vinha com facilidade e era gasto de forma irresponsável, rapidamente. Ainda bem que conseguiu abandonar aquela vida. Palito, franzino desde a infância, casara-se com uma mulher alta e larga. Loreci, mais conhecida como Shamu, pesava quase cem quilos. O apelido, alusão à baleia Orca de um parque aquático em Orlando, foi ele mesmo quem inventou na década de 80. Com parte do dinheiro logrado em assalto a uma agência do Banco do Brasil no interior do estado, fizeram o passeio à Flórida, onde também visitaram as lojas de Miami, o complexo Disney, montanhas-russas e parques de animais em Tampa. Apesar do tamanho e de ser um sacana por vocação, fora do convívio com os amigos, Palito era homem violento, intempestivo, capaz de atitudes extremas. Matara mais de uma vez a sangue frio. Da mulher, por ironia, apanhava sem reagir. Porrada na cara, de mão aberta e fechada, na frente de qualquer um, onde quer que fosse e a qualquer hora do dia ou da noite. Acontecia com frequência, sempre que Shamu flagrava uma de suas putarias. SURPRESA Valadão chega à residência de Palito. Estaciona a moto em frente ao portão. Desliga o motor, desce do veículo, retira o capacete e deixa em cima do banco. Caminha em direção a uma mulher que lava a calçada com mangueira e água. Ela para o que está fazendo e vem lhe atender. – Pois não? – Boa tarde! Gostaria de falar com a Shamu. Ela está? – Quem? Valadão, confuso, repete a pergunta. – Gostaria de falar com a Shamu. Ela está? – Deve haver algum engano. – Talvez eu tenha errado a casa, faz tempo que não venho, mas era nesta rua com certeza. Por acaso a senhora conhece Loreci, mulher do Palito?


– Quem? – Lo-re-ci. Ela começa a rir, ele não entende. Em seguida a mulher atira a mangueira por cima do gradil, dirige-se ao portão, abre e fez sinal para entrar. Ele retorna, pega a moto e empurra para dentro da casa. Ela o espera passar, fecha o portão e caminha pela grama do pátio interno para desligar a torneira. Valadão empurra a moto e estaciona no puxadinho de Brasilit ao lado da casa. Retira a chave da ignição, guarda no bolso da calça, larga o capacete em cima do banco e vai cumprimentar a desconhecida. Aperto de mãos, beijinhos no rosto, apresentações. Ainda sem entender o que acontece, segue a mulher pela lateral da casa em direção à parte dos fundos. Ao vê-la de costas, faz a avaliação. Baixota e gordinha, mas até que jeitosa. Calça suplex atolada, calcinha minúscula, passo rebolado. AGULHA DE TRICÔ Sentado à mesa da sala, Valadão bebe café solúvel batido com açúcar. E atualiza-se a respeito da vida conjugal de Palito. Loreci morreu. Na tentativa de emagrecer, submeteu-se ao procedimento do balão intragástrico. Não tendo conseguido suportar a fome, introduziu na barriga uma agulha de tricô. Por azar, além de romper a bolsa inflável de silicone, ela também perfurou uma artéria. Soraia veio morar com Palito seis meses após a morte da outra. Trouxe duas filhas e um aquário. Presente do pai das crianças, morto pela polícia. E ela também chegou a cumprir temporada no cárcere. Formação de quadrilha e assalto a mão armada. Pilotava um carro de fuga, pneu estourou e o resto não lembra. Quando acordou já estava na ambulância a caminho do HPS, algemada à maca. Valadão ouve atento. Várias histórias, enquanto experimenta bolo de milho, belisca salgadinhos Elma Chips e bebe Coca-Cola. Escuta o que ela tem a dizer. Observa, analisa. Sinais, movimentos do corpo. Leitura de entrelinha nas palavras. Apesar de aposentado, não perdeu o tino do malandro, como ele mesmo define o que considera uma de suas qualidades, que é a capacidade de identificar seus pares. E se os indícios não confirmarem a suposição, para ele o maior argumento favorável à desconfiança é a falta de lógica entre o discurso do amigo Palito e a prática constatada logo nos primeiros minutos de convivência com Soraia.


SOLIDARIEDADE Para justificar o que pretende fazer, mentalmente Valadão apresenta argumentos. O primeiro é que o amigo teve vergonha de revelar o verdadeiro motivo da ligação. Mulher de ficha corrida não precisa ser protegida por ninguém. Se bobear, salvaguarda precisa quem estiver a sua volta. O segundo argumento é que Palito conhece a mulher, deve estar ciente de suas necessidades. E o argumento definitivo é que, para um presidiário, e isso ele sabe por experiência própria, é mais fácil dividir um problema com amigos do que contar com a solidariedade de vizinhos ou desconhecidos. Valadão agora pensa no domingo. O encontro semanal com o padre é na quinta-feira anterior à missa. Hoje é terça-feira, melhor omitir os acontecimentos desta data. Pensando bem, raciocina, entre o castigo divino e uma represália por negar solidariedade ao ex-companheiro, mil vezes a primeira opção. Além do mais, com essa gente não se brinca. Afinal, quem garante que Shamu, ao invés da versão contada por esta tal Soraia, não foi assassinada e seu corpo talvez esteja enterrado aqui mesmo, no pátio desta casa, cortado aos pedaços?


Detetive Valadão perdeu um irmão em desastre de automóvel. Foi na estrada que liga Porto Alegre ao litoral Norte. Ataque cardíaco, logo após o segundo pedágio, antes do acesso aos municípios de Osório e Tramandaí. Chegou a ser atendido pelos socorristas da concessionária responsável por aquele trecho da rodovia, mas não resistiu e morreu na ambulância a caminho do hospital. Era sargento da Brigada Militar, cedido à Assembleia Legislativa a pedido de um deputado. O acidente aconteceu durante uma campanha eleitoral, a caminho de comícios do governador candidato à reeleição. Foi o brigadiano quem incentivou Valadão a se profissionalizar como detetive particular. Apesar de praça, era segundo sargento, o irmão cultivava boas relações com oficiais e comandantes da corporação. Ganhara fama como motorista de viaturas do Batalhão de Operações Especiais, acostumado a guiar em alta velocidade. Foi essa qualidade, inclusive, que o aproximou do tal deputado, para quem dirigia sempre com o pé colado. Cento e cinquenta, cento e sessenta por hora, às vezes até mais, em carros turbinados, equipados com antirradar contrabandeado da Argentina. O PRIMEIRO CASO Valadão cumpriu todas as exigências legais, a começar pelo curso de formação à distância. Foi à Delegacia Regional do Trabalho e registrou-se na categoria profissional de Detetive Particular. Contribui para o INSS, tem empresa registrada na Junta Comercial e paga impostos à prefeitura. E o melhor de tudo, segundo constatou na prática: a profissão é livre de qualquer embaraço fiscalizador por órgão ou conselho. Indicado pelo irmão aceitou o primeiro caso. O cliente era um desembargador aposentado, amigo do deputado estadual. Desconfiava que a mulher, trinta e cinco anos mais jovem, o traía com um amante da mesma idade. Foi à casa do homem, tiveram longa reunião a portas fechadas. Depois de ouvir perguntas e fornecer explicações sobre seus métodos de trabalho, informou o valor da empreitada. Dez mil reais, metade na hora e o resto ao final do trabalho. Estipulou prazo de trinta dias, ao término do qual apresentaria provas para condenar ou absolver a suposta adúltera.


O primeiro impulso de Valadão foi dar o golpe. Já estava com a grana no bolso. Em trinta dias, independente do que dissesse, iria faturar mais uma bolada. O velho era otário mesmo, deduziu, no dia em que foi apresentado à suspeita. Não precisava de investigação para compreender a natureza daquela pessoa. Pela linguagem e a maneira de vestir e se comportar, era óbvio que tratava-se de mulher de vida fácil, talvez ex-prostituta de boate de luxo. Chegou a perguntar para o cliente sobre a vida pregressa da esposa, mas ele desconversou e apenas disse que dava aulas em academia de dança. Inclusive, pensava em montar um estúdio para ela, possivelmente contíguo à academia que abrira para o filho, recém-chegado da Europa. VIRA-LATAS SE RECONHECEM PELO CU Filho? E o homem explicou, constrangido. Júnior era personal trainer. Morava na Espanha, onde dava aulas de Jiu Jitsu e Muai Thai. Vivia clandestinamente, envolveu-se numa briga de bar com travestis, foi preso, cumpriu alguns meses e o deportaram para o Brasil. Malandro por vocação, tem uma qualidade que o destaca. Ao contrário das pessoas normais, suscetíveis aos achaques de escroques e aproveitadores, o malandro identifica de cara quem é embusteiro, talvez por tratar-se de dois iguais. É como os cachorros de rua, que se identificam e reconhecem quando cheiram a bunda uns dos outros. Valadão abandona a ideia do golpe. Plano b. O caso era barbada. Com a ajuda do irmão brigadiano, grampeou de forma clandestina os telefones da casa do desembargador, além dos celulares da mulher e do filho. Em poucos dias reuniu provas. Fotos e gravações que comprometiam Júnior e a madrasta. Astuto, em vez de apresentar o dossiê, pediu mais trinta dias de prazo, sem ônus para o cliente, que também prorrogaria o pagamento da quantia pendente. A proposta foi aceita, e com ela surgiram duas novas frentes de trabalho. Primeiro visitou a academia de Júnior. O playboy tentou botar banca, fez que ia sair no soco, mas em seguida já estava manso, falando miúdo, apavorado com a ideia de perder regalias. O pior pode ser evitado, explicou Valadão, acenando com a possibilidade de manter tudo em segredo. Poderia dizer ao velho que nada descobrira. Era simples, bastava apenas um comando para que a coisa fosse esquecida. Proposta semelhante fez à madrasta, também


interessada em colocar panos quentes no escândalo familiar. Ao final das negociações, ambos aceitaram as cláusulas de Valadão. Júnior entregou de papel passado uma moto Honda 750, recém adquirida. E a mulher do cliente, ao longo de trinta dias, foi sodomizada em motéis de luxo. Terminado o prazo, por questão de ética profissional, entregou o dossiê prometido e recebeu cinco mil reais. O velho, apesar de decepcionado com a dupla traição, agiu com sabedoria. Magnânimo. Júnior foi enviado aos Estados Unidos para aperfeiçoar suas técnicas de combate no solo, e a mulher finalmente realizou o sonho da academia de dança. Caso encerrado.



PRETO NO NADA Um argumento para quadrinhos de Hélio Lopes Um espaço vazio. Na verdade, espaços. Páginas esperando um sentido. E vida. Não sabia que existia um ponto de fuga fora de mim. Mas é lá que me protejo. De tudo. Não importa o tamanho. O que nos cerca – e muitas vezes aperta – é a sensação de que não existe um lugar confortável onde possamos ficar. Ver a imensidão e se sentir dentro de um pequeno retângulo. Uma aliança, um emprego sem paixão, uma mordaça, mesmo invisível. Uma página em branco é o não saber lidar com a própria vida. Não há como sentir beleza se só se vê o vazio. Queria poder ter um desenho pra te dar. Mas as mais simples gaivotas, mesmo aquelas rabiscadas num V, há muito deixaram esta mão sem traços. Só me restam as palavras, numa vida sem roteiro. Morte e vida. Será uma simples troca de página? Cores. Cada uma compreende diferentes estados. O que meu branco representa: preguiça ou ausência?

Durante tantas aspirações e respirações não sei se consegui preencher com algum sentido os meus próprios espaços. Por isso olhas para o vazio. O que fazer da tua inspiração hoje? Estamos a quatro mãos. Inspire. Inspire-se. E com quais elementos pretendes dar um novo sentido às minhas palavras? Quais cores? E técnicas? Não há arte sem interação, nem legado sem propósito. Estamos aqui. Eu e você. Quadrinizando. Para que não haja vazio. Faça com que palavras não fiquem soltas, sem cores, sujeitos, sorrisos ou escárnios. Não me pergunte. Se não começou, volte à primeira página e desenhe o que quiser. O meu preto no nada precisa do gosto da tua intervenção. Mas faça agora. Não existe retrato sem esboço, nem sangramento sem motivo. A cada dia são necessários traços marcantes. Para que exista uma arte-final. Para que as palavras tomem vida. Para que uma história exista.



ELA FICOU

PUTA!

(PORQUE CRIEI UM BLOG)

Posts: Raphael Vidal Arte: Joana Coccarelli

Domingo Hoje ela inventou que o almoço seria árabe. Em pleno domingo, um sol dos infernos, saí para comprar os ingredientes. Na volta, já cansado, tive que cuidar do bebê enquanto ela cozinhava o charuto de repolho e o tabule com pepino! Bem, estava lá eu e o bebê quando a Jurubeba me aparece com um ramo de palmeira na boca (sim, hoje é Domingo de Ramos) arrumado sabe-se lá como. No que me distraí olhando pra cachorra, o bebê se desequilibra e bate com o coco no chão (acalmem-se, estava tudo com almofadas e edredom). Mas foi o suficiente para ele abrir o berreiro. Ela, desesperada, começou a esbravejar. Eu, desesperado, pedi para ela ficar calada. Foi o meu erro. Ah, o bebê nem aí, em segundos já estava todo serelepe. E o almoço foi, ó, uma delícia. Eu Agora toda vez que ela fica puta eu pergunto se ela ficou puta. Carnaval Ela ficou puta quando saí de pastor no carnaval. Mas depois até deu umas risadinhas com as fotos.


Roupa Minhas calças sempre ficam com as barras encardidas. Mas a digníssima tem uma técnica ninja de tirá-las na pré-lavagem e sempre fez isso numa boa. Ontem eu fui pedir para ela fazer isso. Acho que o problema foi pedir. PS: Ah, agorinha mesmo ela ia gritar lá da cozinha para eu nunca mais fazer suco dentro da garrafa de água, mas parou no meio do grito. Parece que ficou puta mas tentou se controlar, veio aqui no quarto e me pagou uma chamada! Disse que está cansada de falar sempre as mesmas coisas. Cachorro-quente Hoje ela dorme na casa dos pais para ir amanhã cedo ao doutorado. Jorginho fica com a vovó. Tive uma reunião de um freela e depois fui beber umas cervejinhas com a rapaziada. Liguei pra ela pra dizer que a amo e ela disse que esqueceu de colocar a comida pra Jurubeba, pediu também para eu chegar cedo para cumprir com a missão. Eram 22h. Escrevo esse post às 02:28. Jurubeba dividiu comigo o cachorro-quente. Churrasco Domingo retrasado ela chamou todas as amigas que jogam capoeira e são naturebas para aparecerem lá em casa. Encontrei uma dessas amigas dias antes na rua e disse que ia fazer um churrasco para elas. Roupa Em dezembro ela separou um monte de roupas, minhas, para doar. Alegou que eram roupas que eu nunca usava. Colocou tudo num saco enorme e disse para eu olhar o que tinha ali antes de eu levar para alguém. Sim, a ideia foi dela de doar, mas eu é que tinha que conferir e despachar a mercadoria de casa. Estamos no final de março e hoje pela manhã eu estava caçando uma camisa para ir trabalhar e não achava. Nas idas e voltas pelos quartos, dei de cara com o saco de roupas para doação e achei lá dentro o blusão azul, novinho. Passei e coloquei. Fui então mostrar pra ela. Perguntei antes se minha camisa estava pequena, tinha alguma mancha, furo, mofo, enfim, se era feia! Ela negou tudo.


Então perguntei qual era o motivo deste blusão estar no saco de roupas para doar. Foi a deixa para ela lembrar que “Em dezembro ela separou…” Gato Meia-noite. Este é o nome que dei ao gato que aparece nas madrugadas em nossa cozinha. Todo preto com olhos amarelos, figura sinistra que vem pela varanda e assombra as panelas lá de casa. Hoje, sua última aparição, estava em cima da pia da cozinha, futucando a lixeira. Pelo visto, quando eu cheguei, já tinha comido berinjela frita e coxas de frango. O gatuno, malandro da noite, foge na hora que eu chego, prevendo seu futuro caso ele dê mole. Imagina só, um gato de rua entrando toda madrugada na sua cozinha para futucar as panelas, andar em cima da pia, pela louça, folgadaço. Se eu pego vai pro espeto. O caso é que, quando eu falo que vou pegar o Meia-noite de porrada, o que ela diz? Antena Atrasei um mês a conta da TV por assinatura e no mês seguinte ninguém da empresa me atendeu para me enviar novo boleto. Isso já tem 5 meses. Hoje de noite a antena quebra galho, para vermos pelo menos a Globo, estava em cima de um banquinho, direção para a porta do quarto do bebê; o sinal – que nunca fica bom – perfeito. O caso é que gosto de jantar com o prato em cima do banquinho e eu no chão, vendo o Jornal Nacional. Nem me liguei quando tirei a antena para colocar o prato no lugar. Só percebi quando olhei para a TV. Tensão. Quando ela chegou na sala, pedi, carinhosamente para colocar a antena do jeito que só ela sabe. Jurubeba Acordei com ela gritando: – Eu não aguento maaaaais! Jurubeba – nossa vira-lata – estava ao meu lado na cama, focinho dentro de um saco de lixo com o resto do churrasco do domingo.


Abro os olhos. Ao redor, a cegueira causada pelo excesso de escuridão. Sento na cama, procuro as luzes que poderiam guiar meus olhares. Escapulindo das minhas mãos, as lâmpadas escorrem pelo lado do criado mudo. Espera, lâmpadas não podem escapulir, não podem se movimentar! Ao longe vejo uma luz, como se fosse um holofote, a iluminar um ponto distante. Não consigo ver nada, a distância é muito grande. De repente, a luz se apaga. Escuridão total. Sem aviso, a mesma luz passa a iluminar minha cabeça, o mesmo holofote, como se fosse o início de um espetáculo. De pé, tento caminhar. A luz me persegue, mas não ilumina mais do que dois passos de distância. De qualquer lado. Procuro a parede, mas o espaço é aberto. Ando, ando, ando sem encontrar o fim. Ouço barulhos de gente, risinhos, cof-cofs, mas não consigo localizar a direção do som. Será realmente que estou no meio de um espetáculo? Como poderia? Sou um escritor, não sou um personagem! Lembro-me vagamente de ter escrito uma peça nunca encenada, parecida com esta minha situação. Serei eu o personagem de minha própria peça? Ou terei entrado com tanto gosto no processo de criação da peça que estarei vivendo minhas ideias? Personagem ou autor? Nenhum dos dois. Acho que sou o leitor de uma peça que, de tão bem construída, com um enredo tão inquietante e profundo, faz com que eu me confunda com o personagem. Mas, como posso ser somente um leitor, se estou interferindo na peça? Por exemplo, vou agora voltar para a cama e pular em cima até quebrá-la. Isso não pode estar no roteiro original da peça, porque é algo que eu estou criando somente agora. Então, meu papel aqui não pode ser o de leitor da peça. Devo ser o autor, mas esse cof-cof está sempre aqui, a me lembrar de que alguém, que eu não consigo ver, é meu espectador. Sou o espectador de uma peça teatral onde a luz serve para esconder seus atores? Sento no chão, esperando que algo aconteça, que o autor, personagem, leitor, espectador apareça. Sento no chão, esperando que o espetáculo comece. Não sei o que fazer, nada acontece. É preciso entreter a plateia, é preciso contar uma história. Terei sido escolhido, então, como o narrador de uma obra que um autor escreveu e um personagem encenaria, se algum personagem aparecesse aqui nesse círculo (eu já citei que é um círculo?) de luz que me ilumina? Se não há nenhum personagem é porque eu, o narrador da trama,


ERA UMA

VEZ

Texto: Barbão, de Buenos Aires

não comecei a contar nenhuma história. Ou os personagens existem antes de a história começar. Alguns poderão dizer que os personagens já existem na cabeça do autor, antes de a história iniciar. Mas um personagem na cabeça do autor, na verdade, não existe. Então, como narrador dessa história, também só posso existir depois que a história realmente começou. E eu não narrei nada, ainda! Então, não posso ser o narrador, devo ser o espectador, é claro que sou o espectador de um espetáculo que ainda está por começar, talvez ainda esteja por ser escrito e apresentado. De repente, o holofote se apaga. A escuridão é total. Me dá uma vontade insuportável de tossir. O holofote se acende ao longe, muito longe. Só consigo ver um pequeno ponto. Parece uma pessoa perto de uma cama.



ORASTROS

HEREGE

Texto: Breno Kümmel Arte: Cid Mesquita

Meu pai morreu há mais de dois anos e ainda tem gente

Texto: Fabio Riggi querendo falar com ele. Volta e meia, no ritmo de mais ou menos

Arte: Lalita uma vez por semana, alguém liga lá em casa com uma oferta imperdível para uma pessoa com um nome parecido com o do meu pai. – Olá, bom dia, boa tarde, eu poderia de falar com o Senhor _______? Por ocasião do falecimento do pai, o filho resolveu aproveitar a situação (Ainda para emexpor vida era aos fácil conterrâneos de identificar saudosistas este tipocertas de chamada, vontades que o nome o falecido do meudeixara pai é um empouco carta póstuma. incomum,Tal mas carta, basta para ouvir espanto a dos pronúncia demaisuma parentes vez que do não morto, se erra havia mais... sido mantida se bem que, em hoje segredo em dia, durante não teríamos anos pelo dificuldades filho e trazia qualquer instruções nome que parafosse) a realização do funeral – Não, de seu nãoautor poderia, que apouco não ser influíram que você notenha andamento algum poder padrão da cerimônia, sobrenatural. mas que deixavam ao pródigo a responsabilidade pela fotoCartões e pelo epitáfio de crédito quecom ilustrariam parcelasa mínimas, lápide. empréstimos com juros Não baixíssimos, por vontade contas do rapaz, bancárias pouco com confiável vantagens porimpressionantes, causa de suas oportunidades habilidades emde manter doar para o nome uma(s) da família caridade(s) sujo na que praça realmente e nas faz(em) mesas dea conhecidos diferença namenos luta contra amistosos, o/a... nem por vontade do morto, dedicado (Anosque atrás, fora ainda a ilusões vivo, mercantis ele fez umaque doação sempre parecida estimularam ea a carência organização de produtos teve problemas básicoscom paraa ajustiça. alimentação Ele precisou e higiene ir até mensal a Receita da família; Federal na verdade, esperar somente cinco horas os parentes para ser próximos atendido para foram prestar ao enterro, esclarecimentos e houve aaté respeito quem dissesse de uma doação que a viúva que fizera. sequerAcho chorou quepor foi detrás no seu das último lentes anoescuras, de vida,mas, masenfim, não lembro constacom que,exatidão.) não por vontade deles, – mas Olha,por eurespeito tambémàgostaria entidadedecelebrada falar comnaele, ocasião, mas lamento enterraram dizer o morto quesegundo realmente as não especificações tem como.contidas na carta.


Claro que nem sempre respondemos nesse tom jocoso. Em dias mais cansativos, ou de humor menos leve, falamos secamente que ele morreu há mais de dois anos e desligamos antes do vendedor poder dizer qualquer outra coisa (o que poderia ter a dizer?). Muito obrigado, tchau. A coisa não se restringe ao meio telefônico, embora seja este realmente o que nos agrava, pela exigência de uma resposta de nossa parte. A correspondência dirigida a ele também não parou de chegar. Folhetos de todos os tipos, imobiliárias, esquemas de investimento, bancos (de novo), jornais locais. Salvo engano, a conta de água da nossa casa até hoje está no nome dele. Como não interfere no pagamento e no fornecimento, não houve mudança. Não posso nem reclamar de não terem trocado o nome do meu pai pelo meu na hora de fazer as ofertas, pra tentar continuar vendendo para alguém que de fato possa comprar. A verdade é que a renda que meu pai tinha difere substancialmente da renda que tenho, e, portanto, não estamos dentro do mesmo rol de consumidores em potencial. Quem sabe eu devesse sentir gratidão por me disponibilizarem oportunidades que de outra forma eu não teria. No entanto, acho improvável que nesses casos continuariam a oferta para outra pessoa, só porque esta atendeu o telefone e a que deveria ter atendido já morreu. A morte do meu pai foi bastante triste, como mortes de fato são e devem ser, mas é improvável que tenha sido encarada por muitos como uma surpresa. Ela se deu ao fim de uma longa doença, tão longa e grave que não seria de todo absurdo pensar todo o tempo de vida que ele teve depois do diagnóstico como uma espécie de benção. Ele decerto pensava desta maneira. Durante a crise que foi sua última, seu companheiro de viagem para o melhor hospital do país sofria de uma condição parecida, e no caso dele tinha sido uma questão de semanas, meses no máximo. Meu pai viveu o suficiente para ter vários sustos daquele, assim como várias recuperações. (Esse colega de viagem morreu poucos meses depois. O enterro foi no mesmo cemitério, mas fomos apenas à missa.) Creio até na possibilidade de alguns terem encarado a notícia de sua morte com uma espécie de surpresa inversa, a de terem imaginado já terem ouvido aquela notícia antes, de suas crises anteriores, ou até mesmo da atual, uma distinta impressão de alguns dias antes ter recebido um telefonema avisando. Tais confusões seriam talvez o cansaço do excesso de trabalho, juntando indevidamente o que é imaginado e previsto com o que de fato ocorreu, um tipo de desconforto incomunicável, além dos inevitáveis pensamentos egoístas a respeito da própria morte.


De qualquer forma, meu pai gozava de um amplo círculo de amigos e colegas de trabalho, era um homem bastante social. O enterro estava até bastante cheio, mas correu de forma rápida. Felizmente não é costume por aqui (diferente do que vemos em filmes) proferir discursos diante do caixão ou cova; então ficaram todos calados, as conversas de forma geral resumidas a apenas um “oi” em voz baixa (até mesmo o bom-dia parece sequestrado dos diálogos). Já há quem faça esses funerais em vida, isto é, reunir todos os amigos antes da pessoa de fato morrer, quando a doença (já que não teria como fazer isto em casos de atropelamento, claro) já avançou irreversivelmente. A pessoa então tem a chance de presenciar estes discursos todos, fazer uma última despedida. Da minha parte, não sei se acho isto mórbido ou bonito. Mesmo amplamente noticiado nos círculos sociais em que meus pais circulavam, não se trata de um caso notoriamente público, e de vez em quando alguém que conheço há menos tempo se espanta com um silêncio constrangido quando digo que meu pai já morreu. Portanto, talvez eu não deva me incomodar com os vendedores não terem esse conhecimento, já que gente que não quer me vender nada às vezes não sabe também. Esta postura talvez fosse mais fácil de adotar se apagassem o nome dele do banco de dados, da lista de números, depois de ouvirem de nós o aviso, se não voltassem a ligar alguns poucos meses (ou semanas) depois querendo (ainda) falar com ele, como se dessa vez fosse dar certo. Se fossem parentes ou amigos, sem dúvida seriam os que mais teriam sofrido com sua morte, de tantas vezes que demos a inédita notícia a eles. Para a sorte deles, não é o caso. E eles continuam ligando.


Preview

Este é um excerto do novo livro de Caco Ishak, Não precisa dizer eu também, no prelo.

PERROS DESCARRILADOS Texto: Caco Ishak


waleska não tem sobrancelhas e se masturba com a escova de dentes elétrica pela manhã antes de sair pro trabalho com um pedaço do cadáver que guarda embaixo de sua cama enfiado na bolsa e que no caminho deixará cair por acidente após se esbarrar no metrô .com wallace se esconde por trás de seus cabelos e espeta sua glande com alfinetes todas as noites antes de dormir agarrado ao terrier que lhe lambe as bolas enquanto toma banho sentado no box com as fotos de sua ex-namorada que estará lhe aguardando ao encontrar .com waldete é adventista do sétimo dia e pede perdão a deus quando cai em tentação e se deixa levar pela conversa do irmão que lhe entrega pedras das mesmas que fumavam e que deverão ser repassadas pro senhor com um cachorro acinzentado depois que se indispuser .com walter nasceu com problemas neurológicos por conta de seus pais serem parentes e obriga o filho de seis anos da vizinha a lhe enfiar girinos recolhidos na vala rabo adentro onde guarda os trocados que lhe darão de esmola quando se pendurar nas pernas dos outros até se ter .com wilma cuida bem dos sovacos e se vangloria por trepar com um diferente a cada dia em que ainda vem lhe buscar o ex sem se preocupar com os bolores do corpo colecionados ao longo do mês e que decidirá serem dispensáveis ao se atracar tão logo aviste seu enamorado .com william é castrado e tem como único amigo seu cão que lhe encrava nas costas seus dentes empapuçados de instinto que há séculos faz com que carnívoros desconfiem de si e que o fará desaparecer num vagão com o pedaço de um fêmur na boca rumo a próxima estação



VERÃO E OUTONO EM

BOTAFOGO

Texto: Thiago Camelo Arte: Eduardo Nasi

Deslocamento num lugar muito frio não precisaria de amor só teria que me cuidar pra não congelar livro algum ensinaria seria sem sonho ou ilusão a felicidade de sobreviver Terra (II) já sabem de tudo mas sinto dos joelhos que doem à postura que me entrega Olhar Miúdo desejo de nada medo de tudo não combinam

Contudo, tento o que falo é menor do que eu palavras são peso só quero tirar o peso dizer com o olhar o que se força com o olhar tudo é força deus, você – e eu sabemos que não existe verdade por que culpar por tentar ser? deus, você e eu ainda sem respostas Juntos dobra o horizonte pra mim


Deus

Caixas a maioria dos risos dela é imaginação mas lembro de verdade dos dias em que ela riu quando eu disse quê? é coisa que só eu vou entender Terra meus pés encontram o chão e [faz sentido eu, porto seu você, porto meu a vida não é uma abstração se estamos perdidos e juntos Vizinho esse velhinho japonês olhando pela janela manda avisar que já tem gente fazendo isso por mim

prefiro me jogar juntar na lama a julgar quem está por lá Fevereiro em Botafogo se você não existisse mesmo assim seria ainda que no vazio teria qualquer sinal seu: um aviso de que a vida é feliz mesmo supondo você num sonho ou no caminho de volta pra casa pensar acolhe Reza-tempo atravesso rua planejo sonhos Aqui (II) não se matou tem saudade


Madrugada não julga rede luz de poste quase bege pós-chuva

Reza-sol

sem fome, com sono

calma ao olhar pra ver no não o que já tem

saber que amor todo mundo sente

Amor

hoje, sem apesar e, sim porque sim com fé

entre espaços que se unem infinito aproxima

Reza-sal

na volta milhões de estrelas enchem o céu de solidão

esqueci o jeito da tua voz faço moinho venta mais seca

Lua que não há

Reza-mar

a tristeza da praia de botafogo cuida de todas as lágrimas

sou estranho a mim quando tento julgar o mundo pra poder me perdoar

dá na mesma sorte ser o que não quis

debruço onde saudade nem dói olho no fundo e o tempo como tudo apenas é

ouvi sobre compaixão melhor é seguir em paz supor que o destino traz tudo e sempre e também o dia em que não vou precisar mais me desculpar



MANDINGA

TEM PODER Texto e imagem: Tibor Moricz

“Que merda. Vai chover!” Ele olhou para o céu carrancudo, as nuvens atropelando umas às outras. Tão escuro. Tão escuro. A lua escondida atrás daquele caos todo. Um monte de árvores balançando. O vento arrastando um punhado de folhas e papéis em redemoinhos agitados. As pessoas caminhando apressadas, mãos agarrando as coisas, olhos espreitando o céu, querendo antecipar o desastre. Se afastou da janela irritado e voltou a deitar. Tentou relaxar e olhou para o teto. Quase igual ao céu que acabara de observar. Manchas escuras aqui e ali. Cocôs de mosca em todos os lugares. Teias de aranha dependuradas com vítimas e sem. A casa estava uma bagunça! Tralhas espalhadas por todos os lugares, ossos, coleiras, revistas, sacos de ração, bolas de diversos tamanhos. Em meio a tudo isso, havia móveis. Um sofá, duas poltronas, mesa e cadeiras, TV sobre um rack marrom, todo mordido como quase todos os móveis da casa. A porta da cozinha bateu. Provavelmente o vento. Seria melhor fechá-la, mas a preguiça atrapalhou. Só esticou os olhos na direção. A última tempestade fez cair goteiras pela casa inteira. O telhado precisava de remendos. Com os cobertores todos molhados, teve que dormir no sofá.


Um tap-tap-tap começou lá fora. Ergueu uma das orelhas e identificou gotas batendo no chão. Das grandes. Grandes e grossas. Fez um esforço gigantesco e ergueu seus muitos quilos do chão. Ficou nas quatro patas, caminhou indolente até a janela, afastou a cortina com o focinho e olhou para fora. Deus! Escurecera tanto que mal dava para discernir as pessoas que corriam assustadas. O vento se aproximava da tormenta. As árvores se encurvavam tanto que davam a impressão de estar prestes a arrebentar. Um uivo intenso e lamentoso percorria as ruas. Ele não era o único a realizá-lo: o vento sabia fazê-lo muito bem. Lembrou da porta da cozinha. Já estava de pé mesmo, aproveitou. Virou o corpanzil, derrubou uma lata cheia de fotos, passou por cima dando uma olhada de esguelha para algumas delas e seguiu adiante. Fotos, fotos, fotos. Um monte delas, antigas, tiradas ainda em máquinas analógicas, filmes revelados em câmaras escuras. Ele se lembrava de estar num punhado. Todo comportado, exibindo os melhores ternos. Bigode cheio e cabelo escovinha. Corpo alto e ligeiramente encurvado para frente. Lordose. Sapatos sempre muito bem engraxados. Ao seu lado a Lurdinha. Sempre ela. Cabelos longos e lisos, vestidos coloridos, semblante animado. Faziam um casal bem apessoado, cheios de amigos e familiares os rodeando. Promoviam festas e encontros divertidos. Pretendiam se casar na época. Eram bons tempos. Passou pelo corredor e entrou na cozinha. O vento derrubara a toalha da mesa, alguns copos plásticos, toalhas de papel, pano de louça. Os pelos se eriçaram ao choque do vendaval. Irritado, arreganhou os dentes. Ele o enfrentou, vencendo-o, até que chegou à porta. Empurrou com o corpo até fechá-la. Estava livre da tempestade. A não ser pelo gotejar que logo começaria. Voltou para a sala, mas não se deitou. Ficou rodando como um cão nervoso que sabe que tem o que fazer, mas não pode. Sair. Suas entranhas pediam desesperadas para que saísse. Mas estava chovendo..Droga! Uma gota caiu bem sobre a cabeça. Escorreu por detrás da orelha esquerda e se perdeu entre os pelos do pescoço. Ele olhou para o teto riscado por inúmeros regatos que iam se formando e rosnou. Mudou de posição. Os trovões começaram a explodir fazendo tremer os vidros da janela. A noite se transformava em ainda mais escura e sepulcral com aquela tempestade. Bordoadas de água se chocavam contra a


casa, fustigando as paredes. Galhos se retorciam de tal forma nas árvores que não raro se ouvia estalidos assustadores. Ninguém em sã consciência estaria fora numa noite daquelas. Ele era um cara em sã consciência. Portanto, era melhor ficar ao abrigo do lar. Mesmo que os instintos e os hormônios o instassem ao contrário. Rodeou algumas vezes, amassando o chão, procurando posição confortável para deitar. Apoiou a cabeça sobre as patas. O corpo todo ocupava dois terços da sala. Ao deitar cobriu alguns ossos de borracha, bolas de plástico e trastes indefinidos. A TV estava do outro lado, desligada. Bem que podia ligá-la, mas a ideia de meter os caninos na tomada não o animava. Então voltou a pensar em Lurdinha. Nos seios pequenos e durinhos. Nas ancas generosas. No bumbum firme e arrebitado. Nas pernas bem delineadas. Nos pés de dedinhos batatinha. Nos lábios finos e sorridentes. No nariz bem formado. Nos olhos claros e cheios de curiosidade. Nas vezes em que transaram. Soltou um ganido lamentoso. Uma lamúria irrefreável. Se viu daquele jeito: peludo, cheio de garras e dentes. Ótimo para ir pegar um pedaço de pau atirado numa brincadeira, mas não para beijar Lurdinha. Nem para despi-la e... Maldita Lua. Malditos os lobos. Malditas as maldições que faziam lobos como ele. Uma gota caiu no focinho. Lambeu. Outra caiu e lambeu de novo. Na terceira se levantou. Se espreguiçou num esgar, estalando a língua por entre os dentes. Foi até a janela, afastou a cortina e olhou pra fora. A chuva era torrencial. Havia alguns galhos caídos na rua. Uma infinidade de folhas cobria o asfalto. Relâmpagos luziam ao longe. A tempestade não dava nenhuma trégua, nenhuma aparência de que ia amenizar. E ele estava odiando isso. Precisava sair. Mas detestava chacoalhar o corpo, espirrando água e pelos pra todos os lados. Então ficava. E aguardava. E torcia para melhorar. Saiu da janela e retornou à sala. Maldita sala. Mínima para o tamanho extra large que possuía. Pelo menos até o amanhecer, quando se transformaria no velho e amistoso Vicente. O do cabelo escovinha, bigodes fartos e lordose. Nu e estendido, com um ar apatetado de quem vivenciou mais uma aventura mágica extraordinária. E a Lurdinha? Lá na casa do Thiago, dando pra ele com a conivência da sociedade, já que se casaram. Ela de véu a perder de vista. Ele de meio fraque. Igreja cheia de gente sorridente. Famílias que se congraçavam sob a batuta do Senhor. E ele, Vicente, escondido do


lado de fora da igreja, ouvindo de longe a longa e chata cerimônia. Remoendo-se de ódio por não estar lá dentro. A dizer sim para Lurdinha. A beijá-la. Naquela noite encolheu o rabo por entre as pernas e disparou, se escondendo nas sombras para que ninguém visse seu desespero. E então prometeu a si mesmo que jamais voltaria a se aproximar de uma mulher. Que jamais se apaixonaria. Que jamais tocaria em uma. E cumpriu a promessa. Menos uma vez, quando uma tola garota se aproximou mais do que devia. Os instintos animais sob o controle da lua o impeliram contra ela, derrubando-a. Os olhos rutilantes e a boca sedenta se aproximaram daquele corpo jovem. Com os dentes rasgou a saia e a calcinha. Enfiou a língua lá dentre as pernas da moça fazendo-a estremecer e delirar. Sentiu o gosto da fêmea. Lambeu o que não lambia há tempos, desde que se dera todo peludo, correndo pela mata, as bolas balançando ao ar livre. Quando descobriu, abandonou Lurdinha. Já no dia seguinte, apavorado, em pânico, temente que ela viesse a se dar conta de que ele se tornava num bicho de quatro patas sob a influência da Lua. Desde que se dera conta que mandinga tinha poder. E amaldiçoou a Lua mais uma vez. E os lobos, todos eles. E amaldiçoou a família de Thiago, o amigo Thiago, cujos pais tinham interesse nas terras da família de Lurdinha. Nas pedras que se garimpavam por ali. Ignorara sempre o perigo que o “amigo” oferecia. Imaginava-o um coitado, um infeliz que não possuía metade dos seus atributos de macho. Um pequeno polegar ridículo. Um oponente desprezível. Enganara-se. Um punhado de cabelos, pedaços de tecido, saliva e outras coisas conseguidas sabem-se lá como. Promessas feitas ao demônio. Fogueira, danças e batuques. E então se deu a primeira Lua cheia e com ela a transformação. Eram lembranças dolorosas. Mudara de cidade. Mudaria de país se pudesse. Ficava pipocando por aí; ora lobo, ora homem. Seus documentos tinham que ter um “Vicente Lobo da Silva”. No começo: lua cheia. Depois, na nova também. Algumas vezes na crescente. Uma loucura! Era cair a noite e dar piripaque. Se esconder onde desse, rezando ao bom Pai para que nada acontecesse. Acabara se alimentando quase praticamente de ração. De noite ou de dia. Aquelas boas com espinafre, ossos triturados e proteínas diversas. Os pelos ficavam mais brilhantes e sedosos, o cocô mais durinho. Com esses pensamentos na mente, esticou o pescoço levando a cabeça para o quarto traseiro. A chuva ainda batendo feroz do


lado de fora. Lambeu o pinto e as bolas. Mastigou nervoso atrás de algumas pulgas. Lambeu os pelos molhados pelo pinga-pinga constante do qual não conseguia fugir. Recostou-se sentindo o estômago reclamar de mais uma bola de pelos. Outra e outra. Algumas delas espalhadas pela casa. E a chuva despencando lá fora. O tamborilar furioso contra o solo. A água descendo a rua numa enxurrada enlouquecida. Ele lá. Deitado sob uma infinidade de gotas que iam caindo do teto mofado. Sentindo o frisson de quem precisa sair, mas não pode. De quem tem um compromisso, mas vai ter que adiá-lo. Nas suas andanças conhecera Shaska. Menina carinhosa e safada. De pelos longos e dourados. Rabo inquieto, agitado. Uma Golden Retriever saidinha e que adorava lobões tarados. E combinara um encontro naquela noite. Atrás da Igreja, ocultos por sebes. Local já aprovado e provado anteriormente. Ambos gritando Glória ao Senhor enquanto se embolavam em frenesi sexual. A Lurdinha de lábios finos e que casara com o Thiago? Que fosse à merda. O único temor era no que diria a Shaska quando ela descobrisse da maldição que o transformava em homem durante o dia (porque naquele momento seus conceitos sobre o assunto haviam mudado). Se ela ainda abanaria o rabo daquele jeito tão sedutor, se ergueria as ancas ansiosa quando voltasse a vê-lo, se latiria feliz ao reencontrá-lo. Tinha que se adequar a dois mundos muito diferentes. Uma gota caiu sobre sua barriga. Outra nas pernas. Outra na cabeça. Ganiu aborrecido e ergueu uma das orelhas. Só para ter certeza, agoniado, de que a tempestade parecia piorar. Que merda de chuva. Que merda de vida.



BONUS TRACK:

DESMORTO CAPÍTULO QUATRO Texto e arte: Delfin

– Como você achou que ia ser, Monde? Domenico matou, sem que o cartunista precisasse dizer qualquer palavra. – Acho que estou um pouco frustrado. – Sei bem o que você pensou, eu sei. Pensou que um militarzinho almoçaria conosco, faria uns rodeios preliminares, partiria para as perguntas capciosas, depois iria começar a nos acusar formalmente de alguma coisa, para então poder nos intimidar e nos forçar a uma retratação. – Quase isso. – Ah, então, na sua cabeça, você já pulou direto para a parte em que você sairia de lá arrastado para a caçamba de uma camioneta e, em seguida, seria preso ou torturado. Acertei? Na mosca, pensou Monde. – Nemo é um homem muito razoável. Sei que ele sabe ser duro quando quer, mas também sei que é um homem justo. Ele não fica exercendo o papel de censor burro. Isso é coisa de republiquetas, de outros tempos. – Admito que eu esperava um pouco mais de emoção. – Não se deixe levar pelas aparências. Nemo pode ser tudo, menos descuidado. Tenha a certeza de que, no meio de todo o papo agradável que tivemos, ele guardou cada palavra que você disse. E convenhamos, Monde, você o provocou diversas vezes.


Era verdade. Atila queria ter esse momento, queria que algo que tivesse feito causasse alguma reação nas pessoas. Desta vez ele sentia algum propósito. Por algum motivo, não queria se desapegar desta sensação. E foi com esse espírito que ele e seu editor tinham ido ao encontro de Nemo Nìl, num dos restaurantes mais reservados da capital. Para Atila, Nìl era a imagem do burocrata: alinhado em preto e branco, com ênfase no preto. Tinha um rosto circunspecto, típico de quem mais ouve do que fala. Ao mesmo tempo, de olhar muito curioso, com movimentos rápidos, como se reparasse em tudo à sua volta. Ficou, porém, muito surpreso quando ouviu o funcionário da SAI falar. A voz era jovial e o tom, convidativo e nada intimidador. Apesar de seu sorriso parecer milimetricamente estudado. Durante a primeira meia hora, além da escolha dos pratos, Domenico e Nìl conversavam sobre amenidades, política e o meio editorial. Monde teve a certeza de que não só não era a primeira vez que os dois conversavam, mas que pareciam gostar dessas ocasiões sociais. Nesse meio tempo, o desenhista foi tomado pelos pensamentos mais diversos. O mais interessante deles era que, de algum modo, isso de ignorá-lo parecia proposital. Quase um equivalente verbal da tortura chinesa, em que o prisioneiro é colocado embaixo de uma irritante goteira, até que resolve explodir. Monde também parecia ir para este caminho, mas Nemo encontrou uma brecha na conversa e disse a Monde, sem nenhum rodeio: – Sabe, senhor Monde, percebi que não o entendo. – Como disse? – Eu não o entendo. Veja, eu estava conversando com o Domenico sobre as novas variantes políticas da União, esses grupos radicais que começam a pipocar pelo país, e lembrei de seus cartuns. Sabia que tenho uma coleção deles? Todos reproduções do que saiu na imprensa, claro. Seus originais são muito difíceis de se obter. – Pois é, eu não faço nem exposições, sabe? Guardo tudo numa pasta lá em casa. Acho que nem o Domenico tem um original. – Tenho um – lembra o editor –, mas ele é logo de quando nos conhecemos. Parece até que foi em outra vida. De fato, Atila sequer se lembra de como conheceu Domenico. Nunca parou para pensar nisso. Para ele, hoje, é como se o conhecesse desde sempre. – Mas você dizia que não me entende. Não entende o meu trabalho, não é? – O seu trabalho, senhor Monde, certamente o reflete. Por isso mesmo eu olho tudo aquilo, principalmente o que saiu publicado em Luz, e me dá a impressão de que é muito difuso.


– Sou uma pessoa em construção, Nemo. E larga mão de senhor, pode me chamar de Atila. – Tudo bem, Atila. Mas eu posso não ter me expressado bem. Quis dizer que você parece desenhar para outras pessoas, não aquelas que veem o seu trabalho. Porque, me corrija se eu estiver errado, o senhor é um cartunista, correto? – Correto. – Tudo bem. Não é a função de um cartunista tentar refletir aspectos da sociedade, com determinados filtros críticos, por meio de uma ilustração provocativa? – É um modo de ver a coisa. – A sua obra não reflete nada para mim. Não me diz nada. E, sinceramente, não creio que diga algo às pessoas. Perceba: isso não é uma crítica gratuita. Ela se fundamenta por causa da ilustração desta semana. – Que é o motivo de estarmos aqui. – Que é o motivo de estarmos aqui. De tudo o que passou pela sua cabeça, Monde imaginou neste momento que poderia se tornar um mártir do traço. Não havia muitos ultimamente. – Porque essa, Atila, diz alguma coisa para mim. Sabe o quê? – Não. – Diz que o momento de conflitos talvez tenha que chegar ao fim. É claro que quem tem um mínimo de inteligência vai perceber que, apesar de parecer que estão lutando, Tabaris e Duch estão também se envolvendo. O que é uma metáfora. E então Atila começou a realmente prestar atenção. – É! Precisamente isso! – Pois mostra do que esse país precisa agora: entendimento entre as duas partes conflitantes. Foi muito inteligente de sua parte produzir este cartum na semana anterior ao debate eleitoral. – Por isso o publiquei sem pensar. Fiz cair um do Glaerli, Atila. Sabia disso? Glaerli é um idiota, pensou Monde. Domina o mercado há anos com uma visão de mesmice corroborativa. Não sei mesmo por que ainda o publicam. Atila, no entanto, sequer sabia que iria acontecer um debate. – Mas há uma coisa que me intriga, Atila. Por que agora? – Como? – Por que a mudança de postura? Pois você há de concordar comigo que, em comparação com a sua obra, esse cartum é uma aberração. Acredite, eu fui analisar cada um deles para ter certeza de que eu não falaria uma bobagem.


– Bobagem é viver no país que a gente vive, Nemo. – Como assim? – Ninguém reclama de nada. Tudo está sempre muito perfeito. E não que não esteja, me entenda bem. Mas há tão pouca gente questionando. Sabe? – Questionando o quê, Atila? – Tudo. Não são coisas com as quais eu me preocupe, mas concorda que é preocupante? – Os antis questionam até a irracionalidade, Atila. Você deve saber disso. – Antis? – Os antitabaristas. Os tais radicais de que falei. Ninguém fala muito deles, mas o fato é que existem. Ainda são poucos, mas arranjam muita confusão. Você deve acompanhar isso nos jornais e revistas. – Confesso que não leio muito jornais nem assisto a telenoticiários. – Informe-se mais. Minha função é estar a par de tudo o que acontece, e por isso eu digo: um cartum como o seu, publicado num semanário respeitável como Luz, pode ser um marco. Ele abre uma porta, em minha opinião, para um entendimento que muitos creem ser impossível. – Acredita mesmo nisso, Nemo? – interpela Domenico. – Não só acredito como acho fundamental. – Tão fundamental como uma secretaria de análises ideológicas? – Não se deixe levar pelo nome pomposo, Atila. Tudo o que fazemos é acompanhar de perto o que acontece em nosso país. – Que é um bom país. – Você se diria tabarista, Atila? – Eu não me fio em política, Nemo. Eu apenas procuro viver. Tudo o que eu quero, aliás, é viver. Se estou conseguindo fazer isso, não tenho do que me queixar. – Entendo. – Mas tem uma coisa que você precisa saber, Nemo, e você também, Dome. A análise de vocês sobre meu desenho é impressionante e positiva. Mas eu não estava mesmo pensando nisso que vocês estão dizendo. Ficaria mesmo feliz se essa fosse a percepção geral. – E o que exatamente você pretendia dizer? – Nemo, o ruim das interpretações é que nem sempre as metáforas são compreendidas. Todo o meu trabalho é metafórico, peço para que repare nisso. Mas o que eu quis dizer, com esse desenho, é que Amir Tabaris e Regina Duch são i...


E Domenico o interrompeu, pois naquele exato instante o almoço finalmente havia chegado. – Sei que a gente adora falar e se empolga muito quando o assunto é interessante, mas podemos retomar após a refeição. Certo, Nemo? – Decerto, Domenico, decerto. O resto do almoço correu bem suave a partir daí. No fim das contas, o assunto desviou para algumas amenidades mais afins ao ambiente pouco hostil do Les Apôtres. O encontro ainda durou mais uma hora, tempo para uma sobremesa frugal e, ao fim, um cafezinho tipicamente nacional. Os compromissos da tarde já estavam à porta quando Domenico pediu a conta e foi ao banheiro. Nemo fez questão de pagar o almoço. – Esta é por conta da União. – Isso é bom. Geralmente quem paga à União sou eu. Ambos riem comedidamente. – Você já reparou naquela imagem, Atila? – disse Nemo, apontando para uma grande reprodução da Santa Ceia, mas numa interpretação pouco clássica. – Nunca vim aqui antes, Nemo. – Então repare: percebe quantos apóstolos estão à mesa com o Salvador? – Não. Mas devem ser os doze de sempre. – Conte melhor. São treze. Monde se deu ao trabalho, e viu que Nìl tinha razão. – Quem é o outro? – São Matias e Paulo de Tarso. Os dois apóstolos mais novos. – Mas então são quatorze. – São treze. Repare, também está faltando um. – Quem? Judas? – Sim. Judas Iscariotes. E é uma interpretação interessante. – O que tem de interessante? Pelo pouco que eu sei, isso é só um tipo de revisionismo. – Ah, sim, você está muito certo quanto a isso. Mas o contexto leva a um subtexto muito interessante. – Que seria? – Não há espaço para traidores, Atila. O destino deles, aos poucos, é serem apagados da história. – Há algo que você queira me dizer? – Só o que eu já disse, Atila. Não há espaço para traidores. E sorriu, novamente, com dentes perfeitos fazendo um belo conjunto com seu terno preto. Domenico chegou em seguida, a conta foi paga e, então, cada um foi para seu canto.


Lembrando disso tudo ao chegar em casa, Atila percebeu, sim, que Nemo era menos sutil do que deixou transparecer. Preferiu nĂŁo contar a Domenico sobre a conversa reservada que teve com o senhor NĂŹl. Mas ele agora tinha a certeza de que nĂŁo estava mais sendo ignorado por completo. Pela primeira vez em muito tempo, Atila Monde ficou genuinamente preocupado.


GALERIAS


JOANA COCCARELLI


Série Zodíaco

1) Virgem 2) Touro 3) Leão 4) Câncer


JOANA COCCARELLI


Série Zodíaco

1) Escorpião 2) Áries 3) Capricórnio 4) Peixes


JOANA COCCARELLI


Série Zodíaco

1) Sagitário 2) Libra 3) Gêmeos 4) Aquário


EDUARDO NASI


SĂŠrie Corpos Nus em Nova York

1) Cena 009 2) Cena 019 3) Cena 021


EDUARDO NASI


SĂŠrie Corpos Nus em Nova York

1) Cena 012 2) Cena 018 3) Cena 020


CID MESQUITA


Série Paint Art

1) Astrobalada 2) Espaçofuga 3) Corujão


CID MESQUITA


Série Paint Art

1) Cibersó 2) Trabalho é Saúde


Delfin é editor, ilustrador e escritor. Atualmente dirige o Studio DelRey de produção editorial.

Autor de Má Reputação (7letras) e editor do blog ¡c¡ao!¡cret¡n¡!, Caco Ishak é paragoiano, de 81.

www.studiodelrey.com.br Twitter DelReyDelfin

www.verbeatblogs.org/ishak

Tibor Moricz é escritor, publicitário e organizador de coletâneas. Autor de Síndrome de Cérbero e Fome. http://esooutroblogue.wordpress.com tmoricz@hotmail.com Twitter tmoricz

Raphael Vidal é escritor e editor.

Fabio Riggi é jornalista, mestre em Teoria Literária e Literatura Comparada pela USP e escreve periodicamente para a SIBILA.

Dennis Anderson é pai, marido, professor de inglês, músico católico, leitor ávido e dublê de quadrinhista.

http://elaficouputa.blog.com raphaelvidal@gmail.com Twitter ElaFicouPuta

Twitter FabioRiggi

xdennisanderson@hotmail.com Twitter xDennisAnderson

Leandro Müller é jornalista, editor e livreiro. Estreou em 2006 com o romance O código Aleijadinho.

Joana Coccarelli (aka narghee-la) é carioca, jornalista e artista plástica com foco em colagens manuais.

www.leandromuller.blogspot.com leandrolima@gmail.com

www.flickr.com/narghee-la jcoccarelli@hotmail.com

André Leal fez Filosofia na UFBA mas trabalha com quadrinhos e ilustração. Nas horas vagas faz mais desenhos.

Hélio Lopes, 38 anos, carioca, roteirista da graphic novel O Grande Livro Branco. Atua em marketing para HQs. www.grandelivrobranco.com.br helio1972@gmail.com Twitter helio1972

http://andreleal.deviantart.com/gallery

Barbão mora em Buenos Aires. Lê, escreve e traduz, nem sempre nessa ordem. Publicou a novela Acaricia meu Sonho em 2007.

tdscamelo@gmail.com Twitter tdscamelo

Patrick Brock é jornalista e estudante de Literatura na City University of New York.

Sérgio Fonseca é carioca. Apaixonado pelo Rio. Fotografa para ouvir e contar histórias. www.sergiofonseca.com.br foto@sergiofonseca.com.br Twitter sergiofonseca

palavrascruzadas.blogspot.com brock.patrick@gmail.com

Octavio Aragão é doutor em Artes Visuais pela EBA/UFRJ e professor Adjunto da ECO/UFRJ. Autor de A Mão que Cria e editor de Intempol.

Alzira Rofor é estudante de jornalismo e está escrevendo seu primeiro romance, A Extinção dos Ornatorrincos.

Thiago Camelo, jornalista. Overmundo e CH On-line.

http://cadernodeescritura.wordpress.com

barbao@gmail.com

Simone Paterman nasceu em Petrópolis, morou em muitas outras cidades, e hoje vive em Paris, onde prepara uma tese em Filosofia e Literatura.

MINI


Caco Xavier é jornalista, editor, filósofo, artista gráfico, mas acima de tudo um apaixonado por quadrinhos.

Tiago Casagrande fez um curso de selenografia por correspondência. verbeat.org/aygn bereteando@gmail.com Twitter bereteando

Fernanda Breta nasceu no Canadá e mora no Brasil desde criança. Veterinária sardenta, ressuscita um leão por dia. Twitter FernandaBreta

Estevão Azevedo publicou O som de nada acontecendo (contos, Edições K) e Nunca o nome do menino (romance, Terceiro Nome).

S. Lobo foi editor da extinta MOSH!, da Ed. Desiderata, roteirista de Copacabana e agora embarca na Ed. Barba Negra.

estevao.a@gmail.com

Twitter LoboBarbaNegra

Mariel Reis, carioca, participou de diversas antologias. Publicou o livro John Fante Trabalha no Esquimó, Ed. Cáliban.

Ane Aguirre veio do sul trocando o nome e os passos tênis 36; ombros fora pesa 54, rabiscou Walkwoman, parou frente ao mar, no Rio. aneaguirre@recorte.org www.flickr.com/photos/aneaguirre

Yunes Eiras Baptista é funcionário público federal e entre os seus hobbies estão viajar e fotografar.

Retrô e, ao mesmo tempo, adepta de tecnologias convergentes, Lia Amancio era criança criativa. Hoje escreve, desenha e articula. http://www.netvibes.com/liaamancio Twitter LiaAmancio

Guilherme Scalzilli é escritor e colaborador da revista Caros Amigos. Publicou em 2007 o romance Crisálida.

Lalita é ilustrador e comediante. Tem duas filhas, um papagaio e torce para que seu time, o XV de Jaú, volte logo para a primeira divisão.

C.H. Picolo é audiófilo, jogador de ioiô, trekker, especialista em mídias e suporte em duas das maiores empresas de TI do planeta. chpicolo@yahoo.com.br http://picolo.blogspot.com

Eduardo Nasi é jornalista.

Olá eu me chamo Cid Mesquita, sou baterista, desenho um pouquinho e estou tentando desesperadamente aprender a tocar violino.

Caco Belmonte, 37, escritor e jornalista. Nasceu e mora em Porto Alegre.

blackspidermesquita.blogspot.com

www.exuliterato.blogspot.com

Breno Kümmel (diz-se Químel) publicou um livro de contos em 2006, chamado Estrada de Espelhos, e um conto em 2008 pela Mojo Books. breno_k@yahoo.com Twitter brenokummel

Cadu Simões é um historiador helenista em busca da questão fundamental sobre a vida, o universo e tudo mais. http://cadusimoes.com Twitter cadusimoes

BIOS

www.yunes.com

Twitter EduardoNasi


www.studiodelrey.com.br


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