ALCíLIA afonso org.
MODERNIDADE NO NORTE NORDESTE BRASILEIRO O DIÁLOGO ENTRE ARQUITETURA, TECTÔNICA E LUGAR.
FICHA TÉCNICA 6º SEMINÁRIO DOCOMOMO NORTE NORDESTE Coordenação editorial: Alcilia Afonso de Albuquerque e Melo (Kaki) Criação da capa: Igor Dantas Diagramação e arte final: Igor Dantas Revisão dos textos: Os artigos publicados foram revisados por seus respectivos autores. Colaboradores: Alcilia Afonso de Albuquerque e Melo, Beker Aldino Santos Fortes de Sousa, Bruno Braga, Camilla Meneses, Cinthya Sobreira, Celma Chaves, Grete Soares Pflueger, Juliana Cardoso Nery, Lúcia Moreira do Nascimento, Luiza Santos, Marcelo Chiquitelli Marques, Márcia Gadelha Cavalcante, Marcos Ceretto, Rafael Teles de Menezes Luz Corongiu, Samir Santos da Conceição, Susanna Carrozzo Cohim Moreira, Ricardo Alexandre Paiva, Rômulo Marques, Vasilka Espinosa, Wilnne Pinheiro. COMISSÃO CIENTÍFICA Alcília Afonso de Albuquerque e Melo Ana Carolina de Souza Bierrenbach Ana Lúcia Silveira Celma Chaves Clóvis Ramiro Jucá Neto Fernando Diniz Moreira George Alexandre Ferreira Dantas José Clewton do Nascimento Márcio Cotrim Margarida Julia Farias Maria de Bethania Uchoa Cavalcanti Brendle Nivaldo Andrade Ricardo Paiva
ALCíLIA afonso org.
MODERNIDADE NO NORTE NORDESTE BRASILEIRO O DIÁLOGO ENTRE ARQUITETURA, TECTÔNICA E LUGAR.
M689
Modernidade no Norte Nordeste Brasileiro : o diálogo entre arquitetura, tectônica e lugar / organização, Alcília Afonso. Teresina : EDUFPI, 2017. 325 p. ISBN 978-85-509-0164-0 1. Arquitetura. 2. Lugar. 3. Patrimônio Moderno. I. Afonso, Alcília. I. Título. CDD 720
O 6º Seminário do Docomomo Norte Nordeste foi realizado entre os dias 10 a 13 de agosto de 2016, na cidade de Teresina, capital do estado do Piauí, nordeste brasileiro, utilizando o espaço do Centro de Tecnologia da Universidade Federal do Piauí/ UFPI. O desafio para realização do seminário, foi pensar em uma proposta que conseguisse atrair o público alvo, composto por pesquisadores, arquitetos, estudantes, para uma cidade que não possuía tradição acadêmica em eventos na área de arquitetura, artes, urbanismo, além de não fazer parte da rota turística regional, podendo o participante, unir o “útil ao agradável”! Além desse fator, muitos viram com certa desconfiança, a capacidade de um grupo ainda pequeno, e pouco (re) conhecido no cenário acadêmico, dominado pelo eixo sudeste brasileiro, e por alguns estados nordestinos que possuem programas de pós graduação na área, em realizar o seminário. Mesmo com tais dificuldades, o desafio foi aceito e o compromisso assumido em Fortaleza, durante o encerramento do 5º Seminário Docomomo Norte Nordeste, em 2014, foi assumido e prontamente, foi dado início aos trabalhos, naquele mesmo ano. Como realizar uma discussão sobre modernidade regional, enfocando e dando prioridade às pesquisas e trabalhos desenvolvidos em lugares tão esquecidos da “rota acadêmica”? Como fazer chegar a notícia sobre a realização do evento, aos estados da região norte brasileira, que antes participavam tão pouco desses encontros? Sim, porque o objetivo principal era trazer à tona, um material novo, inédito, pouco difundido, e por isso, desconhecido, e que necessita também de valorização, e de (re)conhecimento.
APRESENTAÇÃO
O diálogo entre a arquitetura, tectônica e modernidade.
Para tal, a equipe montada de organização do 6º Seminário do Docomomo Norte Nordeste, era jovem, dinâmica, integrada às novas formas de comunicação via redes sociais- e por isso, utilizou-se de tais ferramentas, para divulgar, convidar, compartilhar, interagir, de todas as informações que se almejavam alcançar, na mais distante universidade, faculdade de arquitetura e urbanismo que houvesse norte e nordeste afora. Como forma de se aproximar de tais estados, como o Pará, Amazônia, Maranhão, anteriormente pouco presentes- foram convidados professores e pesquisadores “bandeirantes” que atuam em tais lugares, realizando a formação de grupos de pesquisas, fortalecendo a prática investigativa, principalmente junto a alunos de graduação, considerando-se que em muitos desses estados, ainda inexistem programas de pós graduação na área. O trabalho desenvolvido pela equipe organizadora, conseguiu que recebêssemos, aproximadamente, trezentos resumos, que foram selecionados, por uma competente comissão científica, que se prontificou a colaborar com o processo seletivo dos trabalhos a serem aceitos para apresentação oral, e pôster digital. Foi gratificante receber centenas de resumos oriundos dos mais distintos estados brasileiros, dessas regiões, entre eles, Amazônia, Pará, Maranhão, Piauí, Ceará, Rio Grande do Norte, Paraíba, Pernambuco, Sergipe, Bahia. Melhor ainda, foi constatar que muitos desses trabalhos foram enviados por pesquisadores jovens, estudantes de graduação, que participaram de maneira incisiva de nosso seminário. Esta participação discente nos fez criar por primeira vez, o DocoJovem- um espaço destinado à apresentações dessas pesquisas realizadas por uma geração que será a responsável futura pela difusão do trabalho feito, atualmente, por docentes vinculados a programas de pós graduação no Brasil. Os trabalhos enviados poderiam se enquadrar em cinco grandes eixos temáticos: Eixo temático 1. Arquitetura e Modernidade; Eixo temático 2. Tectônica e Modernidade; Eixo temático 3. Lugar e Modernidade; Eixo temático 4. Arquitetura x tectônica x lugar: interdisciplinaridade; Eixo temático 5. Manifestações artísticas e culturais na modernidade.
A proposta do seminário era suscitar reflexões referentes, principalmente, à relação arquitetura moderna e lugar (norte nordeste brasileiro), sem almejar ser regionalista, mas consciente de que também, precisa-se pensar e analisar criticamente o que foi produzido e o estado da arte do acervo na nossa região, que possui características culturais, geográficas, construtivas, materiais, tão específicas. O objetivo principal foi conhecer e divulgar a produção, a tectônica, a materialidade, as soluções projetuais, os autores conhecidos ou ainda desconhecidos dos acervos modernos da região, enfim, o rico patrimônio cultural, especificamente, artístico, arquitetônico e urbanístico de cidades como Belém, Manaus, São Luís, Teresina, Fortaleza, Campina Grande, Currais Novos, Salvador, Natal, entre outras. Como resultado do seminário, foram selecionados alguns dos trabalhos enviados, que procuraram traçar um panorama embasado nos eixos temáticos propostos, expondo através das pesquisas realizadas, a diversidade do acervo, bem como, colaboraram para a construção de uma história, de uma reflexão sobre a modernidade produzida na região do norte e nordeste brasileiro. Os trabalhos foram acompanhados durante as suas apresentações de debates ricos e olhares multi e interdisciplinares, que embasados nas palestras proferidas por Hugo Segawa, Ruth Verde Zein, Leonardo Castriotta, Nivaldo Andrade, Ricardo Paiva, Fernando Diniz, Marcos Ceretto, entre outros- procuraram um diálogo, entre os conceitos do que é arquitetura, tectônica, paisagem, patrimônio, lugar, memória- em suas respectivas cidades, e que através da circulação de ideias e conhecimentos, construíram seus acervos culturais. Dessa forma, esse livro serve como um pequeno e breve registro de memória, do que foi realizado naqueles calorosos e enriquecedores dias de Teresina- que serviram para comprovar que com compromisso, criatividade, vontade, determinação e apoio de uma equipe engajada, e de instituições de ensino como a Universidade Federal do Piauí, o Instituto Camillo Filho, a UNINOVAFAPI; associações de classe como o CAU PI, OAB PI - é possível se realizar um encontro rico e produtivo.
O grave cenário da preservação cultural brasileiro nesses últimos anos, vem preocupando todos os ativistas patrimoniais, no sentido de procurar caminhos alternativos para se preservar os acervos- e sabe-se que, infelizmente, o patrimônio moderno, vem sendo alvo constante de demolições, descaracterizações, descaso público das instituições preservacionistas. A necessidade em documentar, conservar, divulgar, valorizar e se apropriar é cada vez mais evidente. A leitura dos trabalhos apresentados comprovará tal afirmativa. Boa leitura a todos. Alcilia Afonso (Kaki) Coordenadora do 6º Docomomo Norte Nordeste
Ăndice
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43
69
93
capítulo 01
capítulo 02
capítulo 03
capítulo 04
BASA: Um “Palácio de Cristal” na Amazônia.
Trajetórias da modernidade em Belém; Construção, expansão e destruição
A memória da arquitetura moderna na cidade de São Luís no Maranhão (Brasil) no período de 1930 a 1960
O Urbanismo Moderno Interrompido: análise da proposta não executada de Lúcio Costa para o Novo Polo Urbano em São Luís- MA, anos 70
LÚCIA NASCIMENTO GRETE PFLUEGER
MARCELO CHIQUITELLI
MARCOS CERETO LUIZA SANTOS VASILKA ESPINOSA
CELMA CHAVES
115
145
171
195
capítulo 05
capítulo 06
capítulo 07
capítulo 08
Patrimônio recente: intervenções no TJ do Piauí.
Modernidade (arqui)tectônica: A arte de construir
RÔMULO MARQUES WILNNE PINHEIRO ALCÍLIA AFONSO
RICARDO PAIVA
Centros administrativos como tipologia urbana moderna: o caso do Cambeba em Fortaleza.
O edifício residencial em Fortaleza (1960-1972): a atuação dos arquitetos pioneiros na incorporação dos conceitos modernos.
BRUNO MELO BRAGA RICARDO PAIVA
MÁRCIA CAVALCANTE BEKER SOUSA
219
245
271
297
capítulo 09
capítulo 10
capítulo 11
capítulo 12
A contribuição de Geraldino Duda para a consolidação da modernidade arquitetônica em Campina Grande, na década de 60.
A permanência dos critérios modernos na obra de Glauco Campello. Estação Rodoviária Argemiro de Figueiredo. Campina Grande. PB
Patrimônio moderno industrial no nordeste brasileiro.
Perdas, danos ou ganho? Sobre as intervenções do antigo RU da UFBA.
CAMILA MENESES ALCÍLIA AFONSO
CINTHYA SOBREIRA ALCÍLIA AFONSO
ALCÍLIA AFONSO
JULIANA NERY SUSANNA MOREIRA SAMIR CONCEIÇÃO RAFAEL CORONGIU
capĂtulo
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01
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BASA: Um “Palácio de Cristal” na Amazônia MARCOS CERETO LUIZA SANTOS VASILKA ESPINOSA
resumo
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O ensaio é um recorte do projeto de pesquisa em andamento do curso de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal do Amazonas, que investiga a arquitetura moderna na Amazônia e a obra de Severiano Porto. Mineiro de nascimento, carioca por formação e amazonense de coração, esse peregrino concluiu o curso na Faculdade Nacional de Arquitetura no Rio de Janeiro na turma de 1954. Foi Diretor Técnico da Construtora Ary C.R. de Britto no Rio de Janeiro onde realizou alguns projetos e em 1965 iniciou a sua jornada na cidade de Manaus. Na Amazônia, o arquiteto desenvolveu mais de 300 projetos impulsionado pelo ambiente favorável e ao impulso econômico proporcionado pela implantação da Zona Franca de Manaus. Alcançou o reconhecimento nacional e internacional através das obras na Região Norte com uma modernidade periférica ao eixo Rio - São Paulo. O Banco de Crédito da Borracha foi fundado em 1942 durante o governo de Getúlio Vargas na Segunda Guerra Mundial para financiar investidores na produção da borracha para os países aliados. Em 1966, já como Banco da Amazônia, tornou-se agente financeiro da política de desenvolvimento da Amazônia Legal e após a implantação dos incentivos fiscais da Zona Franca de Manaus, em 1967, depositário dos recursos provenientes dos incentivos fiscais. Severiano Porto fez os projetos para agências do BASA em Manaus (1970 e 1974), Rio de Janeiro (1975) e São Paulo (1976) onde podemos analisar a sua modernidade em diferentes tonalidades. O redesenho, a modelagem e a análise do edifício-sede do BASA em Manaus, um “Palácio de Cristal”, único construído dos três projetos, são necessários para conhecer e reconhecer o edifício como um importante capítulo da arquitetura moderna na Amazônia com o diálogo entre a tradição e a modernidade. Palavras-chave: arquitetura moderna, severiano porto, amazônia.
Keywords: Modern architecture, Severiano Porto, Amazon rainforest
abstract
This paper is a part of research of Architecture at UFAM – Universidade Federal do Amazonas, which investigates modern architecture in Amazon rainforest and the Severiano Porto work´s. Severiano was born in 1930 in Uberlândia. In 1936, he moves with your parents to Rio de Janeiro. He was graduated in architecture at FNA - Faculdade Nacional de Arquitectura in Rio de Janeiro in 1954. He was Director of the Ary C.R de Britto Company in Rio de. In 1965, began his work in Manaus. In the Amazon rainforest, the architect developed more than 300 projects driven by the the economic growth provided by the implementation of Free Trade Zone. It achieved national and international awards with a peripheral modernity to the Rio - São Paulo axis. The Banco de Crédito da Borracha was founded in 1942 by Getúlio Vargas in II World War to finance investors in rubber production for the allied countries. In 1966, Brazilian government renames as BASA – Banco da Amazônia and becames financial agency of the development policy of the Amazônia Legal and after the implementation of tax incentives in the Manaus Free Zone in 1967, depositary of the resources derived from tax incentives. Severiano Porto made the projects for BASA agencies in Manaus (1970 and 1974), Rio de Janeiro (1975) and São Paulo (1976) where applies modernity in different places. The redesign, modeling and analysis of BASA’s headquarters building in Manaus, only built from the three projects, is necessary to know and recognize the historiography as an important chapter of modern architecture in the Amazon rainforest with dialogue between tradition and modernity.
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SEVERIANO PORTO Mario Magalhães Porto foi um importante educador pernambucano contra o “coronelato” em Uberlândia e Uberabinha no estado das Minas Gerais. Foi o fundador do Liceu em Uberlândia em 1928 e ocupou diversos postos importantes como o cargo de Reitor do Colégio Estadual em 1929. Por ter ideias modernas foi taxado de comunista e sofreu perseguições, que resultaram na mudança para o Rio de Janeiro com a sua família em 1935. Severiano Mário Vieira de Magalhães Porto, nascido em 1930 em Uberlândia, tinha cinco anos e junto com a irmã Carlota e a mãe Maria de Lourdes Vieira Porto, acompanharam o pai que assumiu a direção do tradicional Ginásio Anglo-Americano no bairro do Botafogo. Em Uberlândia, permaneceram os irmãos1 de Mario Porto com atividades ligadas a Educação.2 Severiano Porto concluiu a Faculdade Nacional de Arquitetura da Universidade do Brasil na turma de 1954 e colou grau em 03 de janeiro de 1955. Iniciou a sua atividade profissional na construtora Ary C.R. de Britto S.A. e chegou a ocupar o cargo de Diretor Técnico nessa empresa.3 Nesse período, participou ativamente do desenvolvimento de projetos e principalmente na coordenação de obras com destaque para um edifício residencial com 16 pavimentos na Rua Gastão Bahiana no bairro de Copacabana e o Colégio e Escola Normal Santa Dorotéia em Pouso Alegre nas Minas Gerais.4 Estruturou um escritório de arquitetura no edifício Marques do Herval na Avenida Rio Branco no Rio de Janeiro em sociedade com o seu colega de formatura Mário Emílio Ribeiro, gaúcho de Porto Alegre, nascido em 1930. Mário Emílio trabalhou nos escritórios de Henrique Mindlin e Sérgio Bernardes.5 A sociedade de Severiano Porto e Mário Emílio Ribeiro foi oportuna pela sintonia e cumplicidade dos dois arquitetos. Severiano Porto era o arquiteto frontside com a experiência no gerenciamento de obras e projetos e o captador dos Nelson Porto e Milton Porto. Informações sobre Mario Porto coletadas na Dissertação de Mestrado “História e Memória sobre o Liceu de Uberlândia, MG: 1928-42” http://repositorio.ufu.br/bitstream/123456789/884/4/HistoriaMemoriaLiceu_parte%201.pdf 3 Revista Arquitetura 44, 1965. 4 Revista Arquitetura 44, 1965. 5 Revista Arquitetura 44, 1965. 1 2
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Figura 01 – Diploma de Arquiteto pela Universidade do Brasil. Fonte: Acervo Severiano Porto NPD/UFRJ.
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novos clientes. Mário Emílio Ribeiro tinha o temperamento mais introvertido6 e um exímio conhecedor dos detalhes construtivos, fruto da sua passagem pelos importantes escritórios de arquitetura no Rio de Janeiro. Em 1965, Severiano foi convidado pelo seu então vizinho Artur Cesar Ferreira Reis, que havia sido nomeado pelo presidente Castelo Branco como interventor do estado do Amazonas no ano anterior, para desenvolver alguns projetos arquitetônicos em Manaus7. Nesse primeiro momento, realizou os projetos da reforma do Palácio Rio Negro8, o Estádio Vivaldo Lima, a ampliação da sede da Assembleia Legislativa, o Mercado do Produtor e escolas pré-fabricadas em madeira para serem implantadas em diversos municípios do estado. Em 1966, o Governo do Estado do Amazonas confirmou que iniciaria a construção do estádio Vivaldo Lima9 e diante dos projetos que já haviam sido realizados, seria a primeira obra a ser construída. Severiano Porto, com a esposa Gilda e o filho Mario, mudaram para a cidade de Manaus, onde concluiu o projeto e também fiscalizou a execução da obra do estádio.10 Manteve a sociedade e o escritório na Avenida Rio Branco no centro do Rio de Janeiro, para desenvolvimento dos projetos e para o contato com os fornecedores. A oportunidade de realizar importantes obras em um estado marginal e periférico do centro formador de arquitetos do Brasil era motivadora para o arquiteto. O momento de efervescência econômica e social com a implantação dos incentivos fiscais para a Zona Franca de Manaus em 1967, impulsionou a economia local para um novo ciclo econômico. A monocultura extrativista da borracha abandonada pelos ingleses no início do século XX, levou a economia local a um processo de falência e decadência por quatro décadas.
Segundo relato da professora Dra. Beatriz Santos Oliveira da UFRJ, em entrevista realizada em 2015. Informação revelada pelo arquiteto Severiano Porto ao autor em entrevista em 2002. 8 Iniciada a construção em 1903 e concluída em 1911, o Palacete Scholz foi encomendado por Waldemar Scholz, conhecido como Barão da Borracha. Concluído em 1911, no período da decadência da borracha amazônica, o Barão teve que hipotecar o Palacete que foi adquirido pelo Governo do Estado do Amazonas em 1917, para se tornar sede do Governo Estadual e Residência do Governador. 9 Primeira grande obra do arquiteto na Amazônia. Demolido em 2010 para a construção da Arena da Amazônia. 10 Em razão da mudança para a cidade de Manaus, realizou o projeto da Rua Recife, 1762: a Casa do Cafundó em 1966. 6 7
A implantação do modelo econômico da Zona Franca de Manaus e o progresso econômico e social impulsionou a “nova arquitetura” nesse momento de recuperação e desenvolvimento da região. Assim como ocorreu no início da década de 30 no Rio de Janeiro, o ambiente político, econômico e cultural fomentado pelo estado impulsionou a produção com excelência. O novo ciclo econômico necessitava expressar através da arquitetura uma nova imagem da Amazônia. O reconhecimento ao trabalho desenvolvido pelo escritório iniciou nas premiações do IAB - Instituto de Arquitetos do Brasil, que reconheceram o labor e o valor dos projetos e obras desenvolvidas a partir da segunda metade dos anos sessenta na Região Norte do Brasil. Em 1965, o projeto do Estádio Vivaldo Lima foi premiado com uma menção honrosa pelo IAB/GB na categoria para edifícios com fins esportivos e recreativos. Em 1967, recebeu o prêmio na categoria edifício para fins recreativos do IAB/GB com o Restaurante Chapéu de Palha. Em 1971, ganhou na categoria habitação unifamiliar com sua Residência na Rua Recife,1435. Recebeu o prêmio na categoria edifício para fins de abastecimento em 1972 com os Reservatórios Elevados da COSAMA. Em 1974, ganhou o primeiro prêmio na categoria edifício para fins institucionais e administrativos com a sede da SUFRAMA. Em 1978, recebeu o prêmio na categoria habitação unifamiliar com a residência de Robert Schuster em Manaus e menção honrosa com a Residência João Luiz Osório em Cabo Frio, não construída, no Rio de Janeiro. Em 1982, recebeu o prêmio na categoria Arquitetura com a pousada em Silves. Em 1985 foi homenageado com o prêmio Universidad de Buenos Aires na Bienal de Buenos Aires. Recebeu o prêmio de personalidade do ano em 1986 pelo IAB/ RJ e menção honrosa pelo projeto do Centro de Proteção Ambiental em Balbina e também pelo projeto do campus da Universidade do Amazonas em 1987. Em 1987 foi escolhido pela L´Architecture D’Aujourd´Hui como o “Homem do ano”11. Em 2002 retornou para o Rio de Janeiro e no ano seguinte recebeu o título de Professor Honoris Causa pela UFRJ.12
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L´Architecture d´Aujourd´hui, n.251, Paris, juin 1987, p.10. Dados obtidos junto Curriculum Vitae produzido por Severiano Porto em 2002.
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UM BANCO NA AMAZÔNIA A grande extensão territorial da Amazônia somada ao ostracismo das principais cidades da região com o término do ciclo da borracha, fez com que a opulência urbana e arquitetônica do período da Belle Époque entrasse em decadência em 1911 quando os ingleses levaram mudas da seringueira e plantaram na Malásia. Enquanto emergia uma nova arquitetura para um “novo país” no início do Governo Vargas, a região amazônica não fornecia mais o látex que representara no início da República 40% das exportações na balança comercial brasileira. A visita do presidente à Manaus e o famoso “Discurso do Rio Amazonas” proclamado no grande salão do Ideal Clube em 09 de outubro de 1940 indicava os novos rumos para a região. Com o ingresso dos Estados Unidos na Segunda Guerra Mundial e o bom relacionamento de Getúlio Vargas com os países do Eixo, motivaram o presidente americano Franklin Roosevelt a propor os Acordos de Washington em 1942, que mudariam o cenário melancólico na Amazônia. Para contar com o ingresso brasileiro na Segunda Guerra Mundial ao lado dos Aliados foram oferecidas ao Governo Brasileiro uma série de benefícios e investimentos. Diante da impossibilidade de contar com a borracha do Pacífico Sul controlada pelo Japoneses, propuseram a retomada da produção em larga escala dos seringais amazônicos para suprir a demanda dos Aliados. Em 1943, foi criado um fundo para gerenciar esses acordos: o Rubber Development Corporation e pelo governo brasileiro o Banco de Crédito da Borracha, com sede em Belém.13 Dos Acordos de Washington uma série de oportunidades para um novo momento econômico na Amazônia e o surgimento de um ambiente propício para a discussão da modernidade. No catálogo da exposição Brazil Builds – Architecture New and Old 16521942 14 no MOMA em Nova York em 1943, o ápice da divulgação da nova arquitetura brasileira, o Teatro Amazonas representava a arquitetura da borracha. Com os seringais abandonados desde a década de 10, a falta de trabalhadores disponíveis e necessários para atender a nova demanda e a grande seca de 1942/43 no Ceará, o Governo Brasileiro criou a SEMTA – Serviço Especial de Mobilização de Trabalhadores para a Amazônia, para Segundo Luiza Bastos, 2010. p. 76. Vale destacar o registro ao Teatro Amazonas na página 24 realizado pelo fotógrafo Peter Scheir, um imigrante alemão radicado em São Paulo, como símbolo dos áureos tempos da borracha. 13 14
a migração dos nordestinos aos seringais. Álvaro Vital Brazil foi convidado para chefiar o Departamento de Engenharia do SEMTA15 e propôs pousos para abrigar os “Soldados da Borracha” nos deslocamentos terrestres de Fortaleza para Belém a fim de evitar o bloqueio marítimo alemão. Para motivar a adesão dos nordestinos ao SEMTA foi contratado o cartunista Jean-Pierre Chabloz, suíço formado na Accademia Belle Arti di Brera em Milão, criador das cartilhas com desenhos sobre as oportunidades da floresta16. Além dos pousos para o deslocamento dos “Soldados da Borracha”, que deveriam ser construídas em tempo curto e utilizar os recursos humanos e materiais disponíveis do lugar, Álvaro Vital Brazil projetou a Base Aérea de Manaus (1944) e o Aeroporto de Belém (1945) que permitiram escoar a borracha por aviões. Dessas conexões, surgiu a necessidade de um hotel com padrão internacional em Manaus e Paulo Antunes Ribeiro foi convidado para desenvolver o projeto do Hotel Amazonas em 1947 e inaugurado em 1951. Com o término da Segunda Guerra Mundial e o desbloqueio das vias marítimas, a borracha amazônica novamente foi abandonada e o Banco de Crédito da Borracha perdeu a sua função. Em 195017 , o Governo Federal mudou o nome para Banco de Crédito da Amazônia S.A. e ampliou o financiamento para outras atividades produtivas. Com a implantação do Primeiro Plano de Valorização Econômica da Amazônia, o Banco financiaria a construção da estrada Belém-Brasília. Em 1960, o Banco comprou um terreno na esquina da Avenida Presidente Vargas com Aristides Lobo em Belém para construir a sede do Banco. A concorrência foi vencida pelo escritório de arquitetura Marinho & Konder do Rio de Janeiro.18 O projeto foi abandonado e em 1969 em terreno adjacente à Praça da República foi iniciada a construção, agora com o projeto dos arquitetos Leopoldo José Teixeira Leite e Julio Catelli Filho19. Em 1966, o Banco de Crédito da Amazônia passou a ser chamado de BASA – Banco da Amazônia e tornou-se agente financeiro da política de desenvolvimento da Amazônia Legal e após a implantação dos incentivos fiscais da Zona Franca de Manaus, em 1967, depositário dos recursos provenientes dos incentivos fiscais.
Segundo Roberto Conduru, 2000. p.76. Segundo Luiza Bastos, 2010. p. 71. 17 Segundo Luiza Bastos, 2010. p. 92. 18 Segundo Luiza Bastos, 2010. p.112. 19 Segundo Luiza Bastos, 2010. p. 114. 15 16
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Figura 02 – Cartazes de Jean-Pierre Chabloz para campanha para os Soldados da Borracha em 1943. Fonte: Bastos, Luiza [et all], 2012. Adaptado pelo autor.
A primeira agência do BASA em Manaus, funcionou na Rua 7 de setembro, no centro de Manaus, na antiga “Casa Panhola” demolida em 1980 20. Com o novo ciclo econômico provocado pela Zona Franca de Manaus e a necessidade do financiamento do BASA para as indústrias se instalarem no Distrito Industrial, havia a necessidade da construção de um novo edifício para atender as novas necessidades e que representasse o novo momento do Banco, antes o agente da exportação da borracha, agora o financiador da Zona Franca de Manaus. O PIN - Plano de Integração Nacional possibilitava uma série de investimentos em infraestrutura na região amazônica que seriam financiadas pelo BASA. Com o início da construção do edifício-sede em Belém em 1969, o BASA contratou o escritório Severiano Mario Porto Arquitetos Associados para desenvolver o projeto da nova agência em Manaus. O escritório ainda desenvolveu no mesmo ano o projeto da agência do BANESPA – Banco do Estado de São Paulo em Manaus. O terreno escolhido para a nova agência do banco, ficava na mesma rua do anterior, em local nobre, em frente à Câmara de Vereadores e próximo à Praça Dom Pedro II. Na praça funcionavam os prédios da Prefeitura Municipal (Paço Municipal), Comando Militar, Assembleia Legislativa (Palácio Rio Branco) e o edifício do I.A.P.E.T.E.C.21 – Instituto de Aposentadorias e Pensões dos Empregados em Transporte e Cargas.
Segundo o Instituto Geográfico e Histórico do Amazonas, em publicação “Manaus: memória fotográfica” de 1985. 21 Com dez pavimentos, foi o primeiro skyscraper de Manaus e marcou o início da modernidade na cidade. Inaugurado em 1947, é atribuído a autoria a Álvaro Vital Brazil, porém não foram encontrados documentos que comprovem. É importante lembrar que a Base Aérea de Manaus foi inaugurada em 1942, também projetada por Vital Brazil, porém distante do centro da cidade. Álvaro Vital Brazil projetou o terminal, porém foi construído em seu lugar um casarão em madeira. Em 1950, com a transformação da Base Aérea em Aeroporto, foi construído um novo terminal de autor desconhecido. 20
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Figura 03 – Projeto para Agência de Manaus para o BASA,1970. Arquiteto Severiano Porto. Fonte: Acervo Severiano Porto NPD/UFRJ.
Diante do entorno representativo, o terreno é definido por uma poligonal irregular com medidas aproximadas de 60 x 40 metros com frente para o sul na rua 7 de setembro. No leste e oeste são lindeiras as construções de tecido urbano, com gabarito regular e bem caracterizadas pelo caráter historicista do centro. O prédio do I.A.P.E.T.E.C. iniciou a verticalização na cidade de Manaus e outros “IAPETEC´s 22” seriam construídos pelo centro23 da cidade como o edifício Cidade de Manaus do Arquiteto Ary Macedo, Manaus Shopping Center do Arquiteto Arnaldo Furquim Paoliello e o Palácio do Comércio do Arquiteto Israel Galman. Severiano Porto projetou a primeira versão do projeto da nova agência do BASA com 8 pavimentos e um subsolo. O projeto em estrutura em concreto armado foi distribuído em cinco módulos no sentido longitudinal e por dois módulos transversais. Na fachada sul, balanços para os pequenos balcões. O acesso ocorria ao longo da fachada e ao leste para o acesso vertical aos demais pavimentos. As atividades de atendimento público da agência ficavam no subsolo, térreo e sobreloja com destaque para os vazios entre eles. Nos demais pavimentos, atividades de expediente. Destaques para o caixa-forte no subsolo, uma biblioteca no quarto pavimento, um andar com planta livre no quinto pavimento e um auditório de pé-direito triplo no quinto pavimento. Na cobertura, um terraço coberto e uma pérgula voltada para o Rio Negro. fragmento ao paralelogramo a noroeste, incorporado como um anexo ao volume do bloco com o cuidado de garantir uma geometria regular28. Nesse polígono praticamente retangular, definido pelo ajuste entre a geometria do terreno e a volumetria proposta, o espaço nobre para atendimento ao público da agência com o térreo e a sobreloja.
A sigla do Instituto, tornou-se um sinônimo de arranha-céu na década de 60 em Manaus do edifício concluído em 1951. 23 Os três edifícios foram construídos na década de 70 na Avenida Eduardo Ribeiro, no centro de Manaus. 28 Essa ferramenta de arranjo e distribuição foram utilizadas por Sebastiano Serlio nos ajustes dos desenhos das plantas renascentistas em Florença com a geometria do terreno. 22
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A nova de 5,00 poligonal segundo,
modulação dividiu no sentido longitudinal o espaço em 7 módulos metros. O último módulo a oeste variava em função da flexão da do terreno. No sentido transversal, três módulos com o primeiro e o próximos a fachada sul com 5,00 metros e o posterior com 4,70m.
Na fachada sul, peças verticais de madeira de 0.15m x 0.25 m com painéis de vidro temperado vedam o “Palácio”. Os muxarabis de madeira afastados dos painéis de vidro temperado, proporcionam o filtro da luz para o verão amazônico e a privacidade adequada ao uso. A utilização do muxarabis faz uma referência a arquitetura colonial brasileira no diálogo entre a tradição e a modernidade. A legibilidade do acesso foi definida pela utilização de grandes troncos cortados de forma longitudinal que marcam a entrada na edificação. Apesar do primeiro plano induzir a imagem de uma edificação em madeira, o edifício é estruturado em concreto armado. Segundo Severiano Porto, “ A característica do banco, voltado para o desenvolvimento regional, foram expressos pelo projeto através do emprego de madeiras da região, em seus troncos, em sua textura e formas originais colocados nas entradas principais, e internamente nas formas e finalidades mais diversas, em madeiras de tipo e seção variáveis. (PORTO, 1986). As partes do programa foram organizadas conforme o ajuste à geometria do terreno e também com a analogia ao espaço servido e espaço servente: o grande salão com a sobreloja para o atendimento ao público e o triangulo resultante derivado do ajuste e acomodação a geometria do terreno para o caixa-forte, sanitários, circulação vertical e arquivos. Na cobertura, a torre arrefecimento e a proteção do salão com telhas tipo “calhetão”. Um descolamento do volume principal, que definiu o volume da caixa de vidro e permitiu uma ventilação cruzada da cobertura, com a utilização do muxarabis. Assim como ocorreu na primeira casa do arquiteto, Recife, 1762 – a casa do Cafundó, a persistência de trabalhar com o espaço servido em madeira29 e o espaço servidor em concreto armado. Como fez na residência, a valorização das técnicas construtivas e materiais primitivos na parte nobre da edificação. O edifício foi inaugurado no dia 09 de março de 1979.
Quando assumimos o termo madeira no grande salão, indicamos o revestimento dos pilares de concreto como estratégia para valorizar a utilização da madeira como material nobre. 29
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Figura 05 – Redesenho tridimensional para o BASA - Agência Manaus, 1974. Arquiteto Severiano Porto. Fonte: Elaborado pelos autores
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Além do BASA em Manaus, Severiano Porto foi convidado para projetar outras duas agências nas cidades do Rio de Janeiro (1975) e em São Paulo (1976). Não foram encontrados registros sobre os projetos no Rio de Janeiro. O projeto de São Paulo ficava situado na rua José Bonifácio, 192 no centro da cidade e permite uma leitura sobre o perfil do arquiteto que seria comprovada posteriormente na Premiação Anual do IAB – Instituto de Arquitetos do Brasil em 1978, com os projetos da Residência Robert Schuster em Manaus e da Residência João Luiz Osório em Cabo Frio. É possível adotar soluções universais em geografias distintas com matérias diferentes. Enquanto em Manaus a Residência Schuster explorava a expressão da madeira através da técnica do desbastamento com o enxó com uma construção sem vidros para potencializar a ventilação, em Cabo Frio a utilização do telhado verde inserido na paisagem e na topografia para controlar a ventilação excessiva do litoral. A modernidade é um estado de espírito e não está condicionada a materiais ou técnicas construtivas. No pequeno terreno com aproximadamente 260 m² no centro de São Paulo, o projeto foi organizado com dois pavimentos. Na cobertura foram locadas a torre de arrefecimento, o reservatório superior e a casa de máquinas. O projeto foi estruturado em concreto armado e apresenta, assim como em Manaus, as linhas verticais definidas pela modulação estrutural da fachada. Enquanto em Manaus, utilizou peças robustas de madeira para estruturar o vidro temperado, em São Paulo utilizou perfis delgados em alumínio anodizado. Madeira somente com pequenas peças balizadoras e por segurança na primeira linha de vidros temperados. A viga de borda da laje ficaria saliente na fachada e indicaria no concreto aparente a identificação do Banco. Na platibanda, no mesmo plano do vidro temperado, granito Juparanã. Em dois módulos o granito substituiria o vidro temperado até o térreo.
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Figura 06 – Projeto para o BASA - Agência São Paulo, 1975. Arquiteto Severiano Porto. Fonte: Acervo Severiano Porto. NPD/UFRJ
considerações finais
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Esse ensaio sobre os projetos para o Banco da Amazônia é parte do estudo “Severiano Porto e a arquitetura moderna na Amazônia” realizado na UFAM – Universidade Federal do Amazonas, que pretende resgatar, estudar, preservar e divulgar os projetos realizados na Amazônia, em especial ao trabalho desenvolvido por Severiano Porto e outros peregrinos no “Brasil de dentro”. Este projeto contribui para a tese de doutoramento do Autor em curso no PROPAR/UFRGS sob orientação de Carlos Eduardo Dias Comas. Existe um desconhecimento do trabalho do escritório Severiano Mario Porto Arquitetos Associados que produziu mais de 300 projetos em 12 estados brasileiros, e também pode-se afirmar um certo ostracismo. O desconhecimento é provocado pelas poucas publicações recentes sobre a sua obra. Os artigos sobre a sua produção datam em grande parte da década de 80, no auge da sua carreira, quando teve grande destaque nas publicações da Revista Projeto. Infelizmente o arquiteto não publicou livros, fato que poderia auxiliar a divulgação das obras para as futuras gerações. O ostracismo, é fruto do desconhecimento das novas gerações, sejam arquitetos, professores ou estudantes. Pela falta de publicações recentes30, não há informações adequadas sobre as obras para auxiliar aulas ou pesquisas. A redução da demanda pelos seus projetos nos anos 90 afastou o seu nome das publicações e provocou uma certa ignorância coletiva sobre a sua importância no cenário latino-americano na continuidade da arquitetura moderna no Brasil. A visão de um arquiteto regionalista e local é pejorativa, conforme demonstramos nos projetos para o BASA. Muito além do material, a modernidade está relacionada a uma postura moderna diante das necessidades. Se a modernidade é um estado de espírito esse ponto estaria superado. Portanto, Severiano Porto é moderno. O debate intenso entre a regionalidade e a universalidade proposto pelo escritório em suas obras desafia alguns paradigmas. É necessário um estudo rigoroso e criterioso sobre os projetos desenvolvidos para possibilitar reflexões sobre a Vale ressaltar a publicação o esforço de Roger Abrahim em “O poeta da floresta: a obra de Severiano Porto” publicado em 2015 com uma compilação das informações presentes no curriculum vitae de Severiano Porto. 30
importância do seu trabalho, não como um herói como de uma certa forma foi elevado nos anos 80, mas como um importante nome na arquitetura brasileira. Em fevereiro de 2016 ocorreu em Manaus o I SAMA – Seminário de Arquitetura Moderna na Amazônia31, um evento itinerante que ocorrerá anualmente e pretende unir pesquisadores, professores e arquitetos dos estados da Amazônia Legal para discutir a modernidade na região. Severiano Porto faz parte de um grupo de peregrinos32 que contribuíram como protagonistas no desenvolvimento da Região Amazônica e da unidade brasileira. Durante o primeiro seminário em 2016 foi divulgado o tombamento das 29 obras do escritório a nível estadual, realizados pela Assembleia Legislativa do Estado do Amazonas com apoio do CAU-AM33. Entre os projetos tombados está a agência do BASA, que permanece em bom estado de conservação sem significativas alterações no projeto original e resiste bem as adaptações necessárias que o uso exige. Em 2017, uma nova agência do banco será inaugurada no centro da cidade e o atual prédio será colocado para locação. O edifício será mais um patrimônio em risco. A análise dos projetos do BASA contesta alguns pontos utilizados no discurso arquitetônico do escritório. O primeiro projeto com oito pavimentos realizado para a agência do BASA em Manaus em 1970 não dialogava com lugar e provavelmente foi modificado em 1974 devido as imposições legislativas restritivas à altura das edificações no centro histórico. Por outro lado, observa-se um rigor projetual e racionalismo estrutural nas agências de Manaus e São Paulo com adaptações aos materiais e aos meios disponíveis, coerentes com o discurso utilizado pelo arquiteto. Vale ressaltar, que o escritório projetou outras 11 agências bancárias de diferentes bancos no Amazonas34. A utilização da madeira como elemento representativo do imaginário amazônico, para um banco que trataria do desenvolvimento regional, marcou um novo momento na trajetória do escritório. A utilização das peças serradas passam a ser gradativamente substituídas por peças robustas in natura.
Ver o site do I SAMA www.arquiteturamodernanaamazonia.weebly.com Conforme denominou Hugo Segawa no ensaio “Arquitetos peregrinos, nômades e migrantes” publicado em 1988. 33 Ver as obras tombadas em http://www.vitruvius.com.br/revistas/read/drops/17.102/5951 34 Conforme a relação de projetos disponíveis no Acervo Severiano Porto no NPD/UFRJ - Núcleo de Pesquisa e Documentação da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal do Rio de Janeiro. 31 32
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Em entrevista do Autor com o arquiteto Sylvio de Podestá35 (que junto com Éolo Maia, Jô Vasconcellos e Severiano Porto representavam uma corrente paralela a arquitetura do concreto armado vigente da escola paulista e carioca no início da “década perdida”), informou que Sylvio e Éolo manifestaram a Severiano um inconformismo com a utilização de peças superdimensionadas de madeira na agência do BASA em Manaus, uma vez que havia um discurso ecológico vigente na época e também nos projetos realizados por Severiano Porto. A retórica dos troncos que marcam o acesso para a agência, coerente com uma visão historicistaa agência, coerente com uma visão historicista vigente assim como as peças robustas em madeira que sustentam o vidro temperado estabelecem um contraste com os delicados muxarabis de madeira, que flutuam na fachada. A brutalidade da natureza em contraste com a sutileza da arquitetura moderna demonstram o caráter pretendido pela “nova arquitetura” que seria imagem do novo ciclo econômico e do novo momento da Amazônia através da obra do escritório Severiano Mario Porto Arquitetos Associados. Em São Paulo, as robustas peças em madeira foram substituídas por delicados perfis de alumínio anodizado sustentando ora os vidros temperados, ora os painéis em granito Juparanã. Severiano Porto não é mineiro, carioca ou amazonense. É um brasileiro: um arquiteto brasileiro36.
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Entrevista realizada em Belo Horizonte, 2015. Conforme definiu Ruth Verde Zein em 2003.
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Figura 07 – Marcação do acesso e muxarabis - Agência Manaus, 1974. Arquiteto Severiano Porto. Fonte: Autor, 2016.
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capĂtulo
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Trajetórias da modernidade em Belém; Construção, expansão e destruição CELMA CHAVES
resumo
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Apresentam-se as transformações ocorridas na cultura arquitetônica na cidade de Belém que expressam as ideias e processos da modernidade nessa região do país. Tais arquiteturas são representativas de uma fase posterior às atividades econômicas de exploração da borracha, e, portanto, embora carregue o signo da falta de recursos para a construção, deixa entrever a firme vontade de se revisitar uma cidade modernizada, como foi a Belém do início do século XX. Apresentam-se, desde a década de 1930 impulsionadas pelas políticas implementadas na chamada “Era Vargas”, e a partir de 1950, associam-se às políticas do desenvolvimentismo e às novas demandas de moradias por um grupo social emergente na cidade. Constata-se que essa arquitetura apresenta interessante diversidade tipológica – clubes, residências, escolas e edifícios institucionais – gerando um conjunto representativo de obras cujas formas foram resultantes de um modo de produção local, que merecem atenção e estudo, dadas as perdas e ameaças que desaparição a que estão expostas. Palavras chave: Belém, Amazônia, modernidade, arquitetura moderna
Keywords: Belém, Amazon, modernity, modern architecture.
abstract
The transformations occurring in the architectural culture in the city of Belém are presented, which express the ideas and processes of modernity in this region of the country. These architectures are representative of a later stage of the economic activities of rubber exploitation, and therefore, although it carries the sign of the lack of resources for the construction, it shows the firm will to revisit a modernized city, as it was to Belém from the beginning of the 20th century. Since the 1930s, they have been driven by the policies implemented in the so-called “Era Vargas”, and since 1950, they have been associated with developmental policies and new housing demands by an high social class in the city. It can be seen that this architecture presents interesting typological diversity - clubs, residences, schools and institutional buildings generating a representative set of works whose forms were the result of a local mode of production, which deserve attention and study, among other reasons for losses and threats what disappearance they are exposed to.
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INTRODUÇÃO Este artigo é resultado parcial de pesquisa que se desenvolve desde 2011 na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal do Pará. Trata-se de análise da arquitetura privada e pública realizada no período de 1940 a 1970 em Belém. Apresenta-se aqui, parte dos resultados empíricos e reflexões conceituais sobre essa arquitetura, que se estrutura a partir do registro fotográfico dos exemplares remanescentes, do levantamento arquitetônico dos edifícios (privados e institucionais), dos redesenhos, sejam dos projetos originais ou do material levantado. Essas arquiteturas se apresentam em dois níveis e dois espaços diferenciados: na área central da cidade, com propostas dos primeiros edifícios modernizados da década de 1940; e no espaço urbano em expansão ao longo de vias centrais e suas adjacentes, onde erguem-se casas, edifícios, escolas, e sedes de instituições públicas seguindo um conceito de modernidade que se associa, a partir da década de 1930, às políticas implementadas na chamada “Era Vargas”, e na década de 1950, às políticas do desenvolvimentismo e às novas demandas de moradias por um grupo social emergente. A cidade de Belém cresce em direção aos dois eixos de modernização – bairros nobres visados pelo poder público, e às áreas onde os terrenos apresentavam generosas dimensões, e que tinham sido adquiridos por empresários, comerciantes, advogados e grupos imobiliários que ali construíram os primeiros condomínios da cidade a partir da década de 1940. Nas áreas do entorno das avenidas Presidentes Vargas e Nazaré, as residências de referências modernas confrontavam e incrementavam a antiga estética residencial do ecletismo. Destaca-se nesse período, a figura do engenheiro-arquiteto Camilo Porto de Oliveira, formado pela escola de engenharia do Pará em 1956, e um dos responsáveis por introduzir as inovações da arquitetura moderna brasileira em Belém. Porto de Oliveira e outros engenheiros começam sua carreira construindo casas de estilismo eclético e referências ao neocolonial. A aproximação às ideias e processos expressivos das vanguardas europeias este mediada por uma filiação às vanguardas do eixo centro-sul, para só então serem incorporadas aos projetos dos arquitetos-engenheiros locais.
Elementos como paredes de vidro, brise soleil, telhado “mariposa”, marquises, pilotis e cobogós, exemplificam essas interconexões. As frequentes viagens de Camilo Porto ao Rio de Janeiro e São Paulo e o contato com revistas e catálogos de arquitetura proporcionaram ferramentas de projeto que, a partir dos anos cinquenta se constituíram em repertório, o qual seria utilizado em várias propostas de residências (CHAVES, 2004). Renovação de hábitos urbanos e ascensão de novos grupos econômicos, foram pouco a pouco substituindo os bangalôs ecléticos por novas formas de moradia, mais compatíveis àquelas novas necessidades funcionais e simbólicas. Nesse sentido, é interessante retomar o que Gorélik nos traz quando adverte da necessidade de “pôr em questão a naturalidade das series em que a ideia de modernidade – mais especificamente de arquitetura moderna - costumam vir inscrita”, e aqui enumeramos duas que correspondem, a nosso ver, com a realidade aqui considerada: a “(...) que mostra a arquitetura moderna como epifenômeno estrutural da sociedade e da economia (...)” e “aquela que atribui a representação da arquitetura moderna uma expressão ideológica determinada: progressista, internacionalista, radical” (GORÉLIK, 2011, págs. 10 e 11). A discussão sobre fenômenos formais regionais ainda é pouco difundida, iniciada somente a partir da década de 90, acarretando na contínua transmissão de valores arquitetônicos que valorizam a modernidade dos centros em detrimento da expressiva produção moderna do hemisfério sul. Como consequência, nota-se uma escassa consciência do valor patrimonial desses edifícios, com a descaracterização formal crescente desses exemplares.
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MODERNISMOS DE OUTROS TEMPOS E OUTROS LUGARES A questão da circulação de ideias e modelos tem sido recorrente nos debates sobre a arquitetura moderna1, e sugere temas como a identidade da modernidade da arquitetura latino-americana, a necessidade de interpretações que confiram ao produzido na América Latina a legitimidade de distintos tempos, os processos e o caráter dessa arquitetura; o limite cronológico do uso do termo “moderno” para classificar a produção latino-americana, entre outras questões que já foram abordadas por vários autores.2 Embora desde meados da década de 1960, tem-se reconhecido a diversidade das “poéticas e posturas” (COMAS, 2006) na prática e na cultura disciplinar da arquitetura moderna internacional (TAFURI, 1976; JENCKS, 1985; FRAMPTON, 1980). Na historiografia brasileira, somente na década de 1990 apresenta-se uma interpretação que postule o reconhecimento de outras manifestação da arquitetura moderna no Brasil, com a inclusão de produções desconhecidas de outros “processos” ocorridos no país e o intercâmbio dos arquitetos peregrinos que colaboraram para sua difusão3 (SEGAWA, 1999). Apesar da abordagem ampliada, é válido ressaltar que: “Esta visão não fica de todo imune à discussão da genealogia. Ela consegue, no entanto, pela metodologia do acréscimo, combinar a genealogia tradicionalmente indicada pela historiografia tradicional com outras fontes, outros “processos”. Mas a estratégia de acréscimo está longe de desfazer-se de uma hierarquização e de um juízo de valor para os quais a adjetivação utilizada pelo autor, para a distinção dos diversos processos, nos antecipa algumas pistas.4”
Especialmente os encontros do Docomomo e do SAL. Naslavsky (2011); Comas (2009); Waisman (1995) 3 Apesar de incluir os inícios da modernização em capitais brasileiras durante a década de 1930, a narrativa de Segawa deixou de fora, entretanto, os engenheiros tratados neste artigo, que produziram durante a década de 1950. 4 MARQUES, Sonia; NASLAVSKY, Guilah (2001). Estilo ou causa? Como, quando e onde? Os conceitos e limites da historiografia nacional sobre o Movimento Moderno. São Paulo: Vitruvius, 2001. Disponível em www.vitruvius.com.br 1 2
Especificamente no caso da Amazônia Oriental Brasileira, onde o desenvolvimento da arquitetura e da cidade sofreu o influxo de seus ciclos econômicos e de suas particularidades em relação aos outros centros urbanos do Brasil, esta questão adquire novo significado. Durante a década de 1940 e 1950, grupos sociais em ascensão na capital do Pará, passam a demandar um estilo de vida condizente com sua nova posição de comerciantes e empresários bem sucedidos, encomendando suas residências para engenheiros e construtores - já que não existiam arquitetos locais titulados. Essas demandas também passa bem como o poder público, que viam nas construções modernizadas, símbolos de sua representatividade e legitimidade. O esforço conjunto entre individualidade e institucionalidade gerará então um desejo comum pelo “novo e moderno”, no qual figuratividade e funcionalidade, localização privilegiada e novas espacialidades, comporão o cenário do padrão de modernidade da “Belém modernista”. Considera-se pertinente entender essa arquitetura a partir da ideia de recepção, no sentido que COHEN (2014) confere a esse termo, a partir de Hans Jauss como “fatos que frequentemente redefiniram a identidade profissional de arquitetos, mesmo daqueles que trabalhavam a uma distância considerável dos edifícios que estavam interpretando, e, por vezes, imitando” (p. 14). A recepção admite trocas e interações diversas entre fonte e receptor, contestando a ideia de que somente há irradiação de um movimento artístico de um centro maior para um menor, e por fim, viabiliza uma produção mais crítica por parte do receptor (MARQUES & NASLAVSKY, 2011, p. 4 apud CHAVES & DIAS, 2015). Estrutura-se na cidade um novo campo de recepção para essas demandas de moradia e sedes de instituições públicas. Os novos espaços produzidos são a representação desse moderno que vai se constituindo no público e no privado, moldando o espaço social e o espaço físico, no sentido que confere Bourdieu (1999, p. 160) a essas duas categorias, definindo as áreas onde se localizavam as novas residências modernas e os novos edifícios públicos. No caso das residências, à medida que novos hábitos sociais vão sendo assimilados, “espaços de distinção” (BOURDIEU, 1999) iam sendo demandados por esses grupos. As residências do engenheiro Camilo Porto de Oliveira5 se tornam modelos a serem seguidos nos círculos sociais da nova burguesia desde a construção da que é considerada a primeira
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com essas características, a Moura Ribeiro de 1949. Assim, a recepção dessas obras e das muitas outras construídas por ele, passam a alimentar o imaginário moderno local. CULTURA ARQUITETÔNICA EM BELÉM NO PERÍODO 1940-1960 Durante a década de 1930, enquanto a frágil economia amazônica forçava a redução dos investimentos públicos, a prática nacionalista do Presidente Getúlio Vargas impulsionava a construção de edifícios que vinculassem um caráter modernizador às principais capitais brasileiras, através de um programa de construções públicas: escolas, agência de correios, hospitais mercados. Estes edifícios despontavam em um cenário marcado por expressões do ecletismo, onde se mesclavam moradias do período colonial, edifícios com fachadas de ornatos e elementos classicizantes, edificações de expressão neocolonial, e algumas expressões de um estilismo art déco, símbolo das classes em ascensão social. Em cidades como Belém, as ideias de modernidade e modernização já haviam se introduzido na estrutura cultural desde as iniciativas do intendente Antônio Lemos no início do século XX. É, no entanto, em outro momento histórico, que aqui denomina-se de “segunda modernização”, caracterizado por uma frágil estrutura econômica em que os interesses individuais, intenções tecnicistas, vontade de integrar-se à nova modernidade (CHAVES, 2011) se associavam, que a arquitetura produzida em Belém assumiu, em sua produção, os estilismos modernos, em soluções arquetípicas de partido arquitetônico, em elementos e detalhes formais e de suporte estrutural. Estas soluções perseguem certas constantes compositivas: a adequação das soluções espaciais às funções exigidas, e o uso de uma geometria tipificada que está presente tanto em espaços interiores como nas superfícies exteriores. Estes procedimentos também são processos que definem uma imagem a essa arquitetura, instrumentos que uniformizam certas soluções e que estava em processo de aceitação entre o meio burguês da cidade. Estas expressões
Camilo Porto foi posteriormente titulado arquiteto no curso de adaptação de dois anos, instalado logo depois da criação do curso de Arquitetura na Universidade do Pará em 1964. 5
seriam assimiladas nas arquiteturas anônimas dos anos setenta, apontando para a disseminação dessas ideias para além dos limites do gosto erudito. Contudo, será entre a classe de maior poder aquisitivo que as obras que apresentam as referências modernas irão se estender durante os anos cinquenta, correspondendo ao fenômeno que Tafuri já havia observado: “(...) frente à atualização das técnicas a produção, e frente à expansão e a nacionalização do mercado (...) não se trata de dar formas a elementos singulares na malha urbana, nem no limite, a singelos protótipos. Uma vez identificada na cidade, a unidade real do ciclo de produção, o único trabalho do arquiteto é aquela de organizador do ciclo”6 (TAFURI, 1978)
Esse processo inicia-se com a arquitetura do engenheiro Camilo Porto de Oliveira graduado em 1946 pela Escola de Engenharia de Pará e como arquiteto em 19667, no curso de Arquitetura inaugurado em 1964, do qual foi um dos artífices. Entre o ano de 1946 até a década de 1970, projetará várias residências, aproveitando-se da febre dos bangalôs, símbolo e expressão do grupo social de maior poder aquisitivo. A cidade de Belém crescia em direção às áreas suburbanas, onde os terrenos apresentavam generosas dimensões, e que tinham sido adquiridos por empresários, comerciantes, advogados de famílias tradicionais ou grupos imobiliários que ali construíram os primeiros condomínios da cidade. Suas frequentes viagens ao Rio do Janeiro e a São Paulo lhe proporcionariam o repertório arquitetônico que a partir da década de 1950 serão utilizadas em variadas propostas residenciais. Nestes projetos, se identificam volumetrias e suportes estruturais, que assimilam e se convertem em princípios modeladores de atualização de sua arquitetura.
TAFURI, Manfredo. Por uma crítica da ideologia arquitetônica. Em: TAFURI, Manfredo; DAL CO, Francesco; CACCIARI, Máximo. 7 A implantação do curso de Arquitetura em Belém foi viabilizada, entre outros fatores, por interesse de um grupo de engenheiros que já exerciam suas atividades em na cidade, porém não podiam projetar obras de “grande porte”, pois para isso se exigiam naquele momento, o diploma de arquiteto. Esses engenheiros cursaram então uma “adaptação” de dois anos para adquirir o título de Arquiteto. 6
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No início dos anos cinquenta, o projeto da “Maison Errazuris” de Le Corbusier já havia completado duas décadas e o grande salão com cobertura de dupla inclinação – “cobertura mariposa” – havia deixado seus traços em numerosas produções da arquitetura moderna no Brasil e em outros países. Certamente, Porto do Oliveira não conhecia ou pelo menos não tinha referências claras do projeto da casa Errazuris, mas estava familiarizado com as obras de Niemeyer, seja por meio das publicações ou das viagens que empreendia para conhecer as experiências da arquitetura, assim que recebia algum encargo de projeto. Como nos afirmou o próprio engenheiro Porto: “os professores aconselhavam a não imitar a arquitetura do Niemeyer”, mas sua perspicaz observação de que na cidade não se fazia uma “autêntica” arquitetura moderna, foi segundo ele, o que lhe motivou a projetar sua primeira residência moderna: a “Moura Ribeiro” em 1949. A “Casa Bittencourt” (1955) construída na então Avenida Tito Franco, hoje Almirante Barroso, novo corredor de expansão da cidade, apresenta os mesmos elementos figurativos, utilizando a cobertura em dois planos inclinados como uma fina casca que tem função estrutural. A marquise, que Niemeyer introduz pela primeira vez no “Cassino da Pampulha” em 1942, converte-se em um apoio, que é como uma extensão do espaço interior. Nesta casa, Porto do Oliveira toma como modelo os elementos, as formas, as soluções, mas os integra dentro de outra topología e outra situação de projeto. O jogo plástico das vigas em curvatura, combinados com a marquise inclinada, penetra no espaço interior, se prolonga e emoldura as duas fachadas8. Elementos vazados, brise soleil vertical, rampas, são recursos formais e funcionais, que o engenheiro incorpora também em outras obras como o edifício “Dom Carlos” também dos anos cinquenta.
Esse preciosismo formal do engenheiro teve como consequência, segundo estudos realizados em algumas de suas residências, um comprometimento no desempenho das funções de conforto térmico, embora segundo ele, tenha adotado e adaptado dispositivos de adequação climática. 8
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Figura 01 – Casa Moura Ribeiro (1949), Camilo Porto de Oliveira. Fonte: Acervo LAHCA-UFPA (do arquivo cedido por Antônio Couceiro).
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Se a arquitetura de Porto do Oliveira interpretava os desejos de um grupo e traduzia materialmente uma vontade comum de produzir algo próprio, evidencia-se ai um desejo de incorporar em sua arquitetura elementos regionalizados, como por exemplo, os dispositivos que potencializassem a ventilação, do recurso utilizado para elevar a edificação do chão para evitar possíveis umidades, ou o uso de pedras e tijolos locais mais adequados ao clima. Por sua capacidade de relacionar-se com a precariedade de um meio tecnológico e material, ou fazer de sua obra um elemento criador de uma nova realidade para parte da sociedade, e uma referência de modernização para os que não podiam pagar por seus projetos, este profissional contribuiu com uma maneira própria e regional de produzir a arquitetura nesta parte da Amazônia brasileira. Outros engenheiros se inspirariam nas formas arquitetônicas deste repertório moderno, entre eles o engenheiro português Laurindo Amorim. A “Casa Gabbay” inaugurada em 1954 se localiza em uma área de crescimento predominantemente verticalizada, nos bairros adjacentes à Avenida 15 de Agosto, o principal eixo de modernização do centro da cidade. Nesta casa, apresenta as particularidades das obras feitas com uma visão pragmática que buscava adequar o programa a um terreno de dimensões reduzidas, sem deixar de introduzir os ícones mais utilizados no período. Amorim também se mostra um fiel tributário do ideário formal da arquitetura moderna brasileira nas soluções que incorpora à sede do clube Tuna Luso Brasileira dos anos 1950. Outros projetos de sede de clubes em Belém como a “Assembleia Paraense” (1955) e “Bancrévea” (1956), na área de expansão da cidade, do arquiteto e engenheiro Camilo Porto, também promoviam e expressavam a imagem que o grupo social usuário de suas instalações ansiavam, “uma necessidade há muito reclamada”9, comenta um jornal local. O engenheiro Judah Levy formado pela Escola de Engenharia, de onde sairia em 1941, também foi um dos personagens fundamentais no processo de modernização nas áreas centrais da cidade. Seus edifícios Piedade (1949) e Renascença (1951) expressam sua formação técnica, mas assimilam também as arquiteturas conhecidas
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“Folha do Norte”, 14 de outubro de 1956.
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Figura 02 – Redesenhos de algumas residências de autoria de Camilo Porto de Oliveira. 1 - Casa Bittencourt (década de 50); 2 - Casa Chamié (década de 50); 3 - Casa Bendahan (1957) – projeto original (acima), projeto modificado (abaixo). Fonte: Laboratório de Historiografia da Arquitetura e Cultura Arquitetônica – LAHCA/UFPA.
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Figura 03 – Plantas baixas das Casas Moura Ribeiro (1949) e Belisario Dias (1954). Fonte: Laboratório de Historiografia da Arquitetura e Cultura Arquitetônica – LAHCA/UFPA.
em sua viagem ao Rio, que ele soube traduzir para atender as aspirações de modernização de parte da sociedade: “Eu gostava dos edifícios modernos e práticos, sem adornos e com simplicidade. Em todos, queria que tivessem um bom acabamento.” 10 O engenheiro e arquiteto Feliciano Seixas, autor do projeto do edifício Manoel Pinto da Silva (1951-1960) cultivava sua admiração pelas propostas de funcionalidade da arquitetura moderna. “a forma, nada mais é que o fruto da necessidade de uma época, do espírito dominante da mesma, traduzida com as possibilidades dos materiais e do progresso técnico”11, declarava o arquiteto. Em sua concepção, a forma arquitetônica era a consequência de um uso acertado e atualizado das técnicas e dos materiais. O conceito inerente a essa construção, relacionava a prática arquitetônica principalmente a seus aspectos funcionais. Como afirma Seixas: “a forma terá que ser modificada em função da primitiva utilidade da construção e será sempre dependente desta (...) a forma em arquitetura, em qualquer época, sempre esteve em razão da função”. Feliciano Seixas declarava sua admiração à arquitetura e a “filosofia” de Le Corbusier e Oscar Niemeyer, este último seu contemporâneo na Escola de Nacional de Belas Artes em Rio do Janeiro. Destes, assimilou as lições mais relacionadas às questões da economia e da funcionalidade. No entanto, a forma surge como um elemento significativo da aparência exterior de seu edifício. Seixas concebe as fachadas deste edifício dinamizadas plasticamente por suas sacadas sinuosas, potencializando a forma construída em uma área desprovida de grandes construções. O edifício podia ser contemplado sem problema de um generoso ângulo de visão, ao mesmo tempo em que de suas sacadas, podia-se contemplar as vistas da cidade. A produção dos anos 1970, pelo menos até a metade desta década, caracteriza-se por realizações, que, por um lado pretende retomar um modo próprio de fazer a arquitetura por meio da incorporação das práticas vernáculas aos elementos modernizados. Por outro lado, há uma atitude de marcada continuidade da arquitetura de Camilo Porto em
Entrevista do engenheiro Judah Levy a “O Liberal” em 03 de dezembro de 2000. Reportagem do Jornal Folha do Norte de 09 de janeiro de 1954. 12 Idem. 10 11
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Figura 04 – Da esquerda para direita: Ed. Manoel Pinto da Silva (1960), Ed. Renascença (1949), Ed. Dias Paes (1945) e Ed. Piedade (1950).
moradias construídas a partir de 1970 até 1978, aproximadamente. Destas experiências, algumas provêm do grupo dos engenheiros-arquitetos, graduados entre 1967 e 1969. Portanto, a arquitetura produzida nesse período em Belém do Pará, principalmente nas realizações de Camilo Porto de Oliveira identifica-se mais que uma influência, um processo no qual se evidencia a seleção dos elementos formais-construtivos, que estão de acordo com as expectativas de seus clientes e com sua vontade de integrá-los ao contexto regional, o que se nota em variadas produções da arquitetura moderna que se apresentavam em realidades diversas no contexto do pós segunda guerra e especialmente nos anos 1950 e 1960. Nos vários projetos que realiza entre as décadas de 1940 a 1960, Camilo Porto responde aos propósitos construtivos e tipológicos de converter o espaço doméstico em uma expressão dos novos modos de vida de grupos sociais em ascensão no espaço social de Belém. Atualizando as formas, constrói um grupo significativo de casas, normalmente em implantação aberta, sem obstáculos de visão. A casa adquire assim uma dimensão pública, expondo-se como um objeto moderno na cidade, quase uma escultura (CHAVES, 2008, p.160), aliando a isso a intenção de se manter fiel às pautas locais, amenizando o calor e protegendo o espaço das altas umidades por meio de elevações do piso, de inclusão do brise soleil, do uso dos cobogós, das marquises para proteger da insolação. Os estudos sobre as transformações morfológicas e espaciais realizados nessas casas e apartamentos modernos (CHAVES & SILVA, 2013; CHAVES & MACHADO, 2013; CHAVES & DIAS, 2015), indicam, por outro lado, que os amplos terrenos onde se ergueram, permitiram o desenvolvimento de formas mais livres e ousadas, assim como no ecletismo, as casas que se implantavam soltas no lote, permitiam soluções mais inventivas. Observou-se também que a estratificação social continuava refletindo-se na hierarquia e organização espacial, demarcando no território doméstico, em organização espacial similares às casas do ecletismo, como na casa Belisário Dias e na Moura Ribeiro. A casa “Presidente Pernambuco” do final da década de 1960, materializa um moderno mais contido nas formas, e ao contrário das obras anteriores, revela uma simplicidade e regularidade em sua composição formal, sem a usual repetição de elementos
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de referências modernas, mas expressando principalmente em sua espacialidade e composição volumétrica, de inclinações e acabamentos nobres. Um delicado painel e amplas janelas envidraçadas oferecem a transparência, que se contrapõe à materialidade densa das pedras e do concreto. Nas residências desse período, em especial nas de Camilo Porto, havia quase um determinismo tipológico, que se enfatizava tanto no aspecto formal como na funcionalidade. Deste modo, as repetições formais de suas obras se relacionavam à racionalidade, viabilizando uma economia de tempo e material, devido ao grande número de projetos que lhe eram encomendados. A pertinência dessas soluções como estandartes da nova arquitetura, implicou um risco de utilização inconsciente de tais elementos, sem o devido entendimento de seus papeis como parte de uma composição significativa e aberta. Com relação às casas da arquitetura moderna, ainda que a concepção seja distinta de acordo com cada obra e arquiteto, pode-se afirmar que esta é potencialmente aberta e “não figurativa” (NORBERG-SCHULZ, 2005, p.92).
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Figura 05 – Casa “Presidente Pernambuco” (final da década de 50). Fonte: Revista Belém 350 anos. Governo do Estado do Pará, 1965.
considerações finais
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A análise da produção arquitetônica belenense de 1940 a 1970, nos permitiu, entender, por meio das relações entre suas formas expressivas, o grupo demandante e o contexto sócio econômico local, esse fluxo de relações, pensamentos, e procedimentos que explicam as particularidades locais, dos cruzamentos, que articulam a arquitetura na trama das condições econômica, social e cultural, de proprietários, de arquitetos, e do seus “poderes simbólicos” (BOURDIEU, 1999) no intento de formação de uma sociedade modernizada. O inexistente debate teórico local sobre essa atualização formal da arquitetura, vinculada às referências modernas, não foi obstáculo para essas realizações. Entre os grupos destinatários das obras, a experiência precedente, ou seja, a construção dos primeiros bangalôs modernizados, as incursões de Camilo Porto em atualizar a arquitetura residencial com o projeto da casa “Moura Ribeiro”, e as edificações públicas e privadas que iniciam a modernização da principal avenida da cidade na década de 1930, são os referenciais que ampliam as expectativas de um futuro moderno. O tempo histórico, evocado aqui é aquele de quase quatro décadas atrás, da modernidade da belle époque, mas as ideias são renovadas pela presença de novos modos de circulação e difusão das ideias: os catálogos, as revistas e as experiências precedentes. Assim, articulam-se nesse momento essas expectativas sociais, culturais e políticas, com a busca por recuperar uma experiência de modernidade passada, já perdida, no que Koselleck (2006) denomina de tempo histórico, situado entre as categorias da expectativa e da experiência. Nos anos cinquenta, o compromisso dos engenheiros com a construção de edifícios que expressassem as normativas da técnica, embora ainda precária, delineiam em uma região ainda ruralizada, as condições similares de incipiente industrialização que ocorrera nos
centros do país durante os anos trinta. No contexto local, de limitados recursos econômicos, as mesmas aspirações modernizadoras que haviam impulsionado as ações do inicio do século XX, aparecem agora nos novos processos construtivos, embora de limitados meio técnicos, materiais e humanos. Estabelece-se um impasse similar àquele ocorrido na arquitetura moderna brasileira, fenômeno não compreendido por Giedion, que Martins (2010), refere entre as “condições sociais e econômicas que suportam a atividade construtiva como um todo e a expressão cultural alcançada pela arquitetura erudita”. Recepção e desejo de modernização, articulam-se em episódios - embora em abrangência menor do que se verifica na arquitetura moderna brasileira - sob condições aparentemente desfavoráveis ao desenvolvimento de qualquer inovação, apontando particularidades que se apresentam como resistência e persistência, face às restritas interações com outros estados brasileiros e, mais ainda, com outros países. Diante do processo de concepção e materialização dessas expressões arquitetônicas, evidencia-se que a circulação de ideias no período aqui analisado ocorreu, menos com uma transposição direta do ideário moderno europeu, e mais com as realizações brasileiras, porém, matizada por aspirações de certa modernidade que aqui já havia sido experienciada. As particularidades socioeconômicas, políticas e culturais que anunciaram a implantação de uma modernidade arquitetônica a partir da década de 1940 em Belém, são conseqüência da ruptura que se estabelece com o fim da economia da borracha, mas ao mesmo tempo essa situação particular só foi possível porque houve uma continuidade cultural da mentalidade, que nutria o desejo do retorno de uma modernidade.
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A constatação de que essa arquitetura apresenta interessante diversidade tipológica – clubes, residências, escolas e edifícios institucionais – gerando um conjunto representativo de obras cujas formas foram resultantes de um modo de produção local, não isento de contradições. Essas contradições ficam claras quando se verificam quais os limites dessa arquitetura na cultura local. Sinalizam esses limites a restrição imposta por um período economicamente frágil que impossibilitou iniciativas públicas que impulsionassem a dimensão social12 da arquitetura e da cidade, e a restringe quase que inteiramente às residências da elite. Com exceção do conjunto habitacional do IAP, construído nos anos 50, e da escola que servia aos seus moradores “Escola Benvinda de França Messias”, uma pequena notável construção, não há outro exemplo de arquitetura social. E como epílogo sobre um tema que está longe de ser concluído, podemos abordar os limites dessa arquitetura na perspectiva da sua abrangência temporal, ou seja, do recorte cronológico adotado para defini-la. Até quando se estende essa arquitetura moderna em Belém? Quais são os critérios formais, espaciais, programáticos, socias, técnicos, culturais e históricos para tal definição? Ou em último caso, qual a necessidade da classificação? Nas palavras de Tafuri: “[...] termos como “movimento moderno” ou “racionalismo” se empregarão apenas por antonomásia, porque estamos convencidos que escondem conceitos contraditórios com as histórias que pretendemos confrontar com eles.”13
Comas assinala o absurdo de se defender a instauração de uma arquitetura entendida primeiramten como serviço social, em um país cuja industrialização era incipiente, e acrescentaríamos, na Amazônia brasileira dos anos 1950, era ainda inexistente. 13 TAFURI, Manfredo & DAL CO, Francesco. Arquitectura Contemporánea. Aguilar, Madrid. 1989, pag. 05. 12
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capĂtulo
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A memória da arquitetura moderna na cidade de São Luís no Maranhão (Brasil) no período de 1930 a 1960 LÚCIA NASCIMENTO GRETE PFLUEGER
resumo
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São Luís, capital do Estado do Maranhão (Brasil), tem sua imagem ligada principalmente à herança colonial dos séculos XVIII e XIX. Na primeira metade do século XX, a cidade passa por intervenções, com o intuito de modernizar sua estrutura, pautadas em ideais de higienização, circulação e embelezamento, prevendo a criação de novas avenidas e a ampliação das estruturas do centro histórico, com a demolição de casario antigo, a exemplo do alargamento da Rua do Egito e a construção de novas avenidas, como a Avenida Magalhães de Almeida e a Avenida Getúlio Vargas, essa última serviu de eixo de crescimento da cidade. Nos vazios deixados pelos imóveis demolidos surgiram novas linguagens arquitetônicas que mudaram a imagem da cidade. Estas novas linguagens compreendem o art decó, passando pelo ecletismo historicista em fim de linha, até as chamadas manifestações românticas ligadas à estética do pitoresco e o movimento de cunho nacionalista, como neocolonial e a arquitetura modernista. Ressalta-se que estas edificações construídas na primeira metade do século XX já apresentavam uma série de inovações técnicas construtivas na sua composição formal, além de apresentarem sistema de redes mecanizado de abastecimento de água e de coleta de esgoto que incorporava o caráter de modernidade nessas arquiteturas. Algumas dessas edificações romperam com a implantação colonial predominante na época, quando esses prédios se afastaram dos limites dos lotes, resultado das ideias higienistas que dominavam o país naquela ocasião. O presente trabalho tem por objetivo apresentar a construção da produção moderna na cidade de São Luís, no período 1930 a 1960, em especial a arquitetura da Rua do Egito, das Avenidas Magalhães de Almeida e Avenida Getúlio Vargas, eixos viários que fizeram parte do plano urbano de modernização da capital maranhense. Palavras-chave: Produção arquitetônica; arquitetura moderna; São Luís.
Key words: Architectural production, modern architecture, São Luís.
abstract
São Luís, capital of the Brazilian state of Maranhão, has its image mainly related to the colonial heritage from the 18th and 19th centuries. In the first half of the 20th century, the city went through interventions aiming to update its structure, conducted by ideals of hygiene, circulation and beautification. These interventions predicted the construction of new avenues and the enlargement of the structures in the Historic Center by demolishing ancient houses, for example: the enlargement of Rua do Egito and the construction of Avenida Magalhães de Almeida and Avenida Getúlio Vargas (the latter was the growth axis of the city). The empty spaces left by the absence of the buildings brought new architectural languages that changed the image of the city. These news languages include the Art Déco, including the historicist eclecticism in its end and the romantic manifestations, connected to the aesthetic of the picturesque and to the nationalist movement, such as the neocolonial and modernist architecture. It should be noted that these constructions built in the first half of the 20th century, which already presented a number of technical and constructive innovations in their formal composition, and a system of mechanized nets of water supply and sewage collection that transferred the character of modernity to these architectures. Some of these constructions broke with the colonial implementation prevailing at the time, when these buildings moved away from the limits of the lots, a result of the hygienic ideas that ruled the country then. This paper aims to present the modern architectural production in the city of São Luís between the years 1930 and 1960, especially in Rua do Egito, Avenida Magalhães de Almeida and Avenida Getúlio Vargas, road axes that took part in the urban plan of modernization of Maranhão’s capital.
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INTRODUÇÃO O objetivo deste artigo foi analisar o surgimento da linguagem da arquitetura moderna em São Luís (MA), de forma a identificar a produção arquitetônica implantada na cidade, no período de 1930 a 1960, em especial, na Rua do Egito e nas Avenidas Magalhães de Almeida e Getúlio Vargas. Para tal, foi realizada uma pesquisa histórica e iconográfica da evolução da cidade. A cidade de São Luís, capital do Estado do Maranhão (Brasil), fundada por franceses (1612)1, invadida por Holandeses (1641-1644) e colonizada por portugueses, nasceu planejada. O plano tinha por objetivo formalizar o domínio e a posse dos portugueses no território. Para isso, foi contratado o Engenheiro Militar Francisco Frias de Mesquita para elaborar o primeiro plano urbano da cidade (1618)2. Este plano consistia num modelo de arruamento ortogonal, organizado de acordo com os pontos cardeais. As fachadas das edificações apresentavam regularidade em toda a extensão da rua, ocupando toda testada do lote e não possuíam recuos frontais, marcando, assim, o modelo implantado pelos espanhóis em suas cidades coloniais3 (ANDRÈS, 1998). O século XVIII e XIX foi marcado pelo fortalecimento das atividades agroexportadoras, o que colocou a capital maranhense como a quarta cidade mais desenvolvida do país neste período. Mas, no fim do século XIX, com a abolição da escravatura (1888) e a desvalorização das propriedades rurais, inicia-se uma crise econômica que estagnou a economia e se estendeu até as primeiras três décadas do século XX. A cidade cresceu lentamente e chegou à terceira década do século XX apresentando, na maioria de suas edificações, o modelo de implantação do lote dos séculos passados. Nesse período, São Luís foi objeto de planos urbanos4 inspirados no discurso de modernização
Os franceses permaneceram em São Luís até 1615, quando foram expulsos pelos portugueses. Este plano foi registrado em 1640. 3 Neste período Portugal fazia parte da União Ibérica. 4 Planos de Remodelação dos Prefeitos Otacílio Saboya (1936) e Dr. Pedro Neiva de Santana (1937-1945) na gestão do Interventor Federal Paulo Martins Ramos, Governador do Estado do Maranhão. Plano de Ruy Mesquita em 1950 e 1958 e Haroldo Tavares em 1977. 1 2
vigente, e que estavam atrelados às ideias de progresso científico, tecnológico e das mudanças econômicas e sociais trazidas pelo capitalismo, mas, também, pelo abandono dos modelos de composição e distribuição funcional tradicional que estiveram em vigor por séculos. Esses planos eram pautados em ideais de higienização, circulação e embelezamento, e previram a criação de novas avenidas e ampliação das estruturas da cidade, com a demolição de casario antigo, a exemplo do alargamento da Rua do Egito e a construção de novas avenidas, como a Magalhães de Almeida e a Getúlio Vargas, essa última serviu de eixo de expansão da cidade. Essas intervenções contribuíram para a renovação da paisagem urbana da cidade, o que ocasionou o surgimento da arquitetura moderna em São Luís. Definiremos como Arquitetura Moderna o conjunto de movimentos e escolas arquitetônicas e contribuições individuais que surgiram com as inovações técnicas construtivas provenientes da Revolução Industrial, e que primavam pela ruptura com o passado, por meio da criação de algo novo. Compreende a arquitetura produzida durante grande parte do século XX e engloba as linguagens que designamos como Art Déco, passando pelo ecletismo historicista em fim de linha, até as chamadas manifestações românticas ligadas à estética do pitoresco e o movimento de cunho nacionalista, como neocolonial e a arquitetura modernista, para alguns autores, o moderno. A CONSTRUÇÃO DO MODERNO EM SÃO LUÍS As principais transformações urbanas modernizadoras em São Luís tiveram lugar na segunda metade do século XIX, por meio da implantação de serviços públicos na cidade, como a instalação de iluminação a gás (1861) nas vias públicas, e a introdução do serviço de transporte público por meio de bondes (1871), a princípio movidos por tração animal, e a implantação de água canalizada pela Companhia de Águas do Rio Anil (1874). Foi nesse período, também, que surgiram as primeiras intervenções urbanas de caráter sanitarista, que na capital maranhense se limitaram aos projetos de espaços públicos, e foi uma tentativa de criar uma imagem moderna para a cidade, mas com forte influência europeia em pleno nordeste; mas não consistiram, de fato, em aplicações do urbanismo moderno então nascente.
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A preocupação em modernizar a cidade de São Luís, caracterizada pela arquitetura colonial, inicia-se a partir da década de 1930. Até esse momento, a forma urbana herdada do século XVIII e XIX se mantinha, mesmo com as ações pontuais de remodelações ou melhoramentos urbanos. Isso ocorreu, de certa maneira, devido à crise econômica e política que o Estado atravessava. As propostas de remodelação e melhoramentos urbanos implantados se apresentaram fragmentadas, no sentido de que não foram integradas a nenhum plano maior, que englobasse a cidade como um todo. Em 1936, o então Governador e Interventor Federal do Estado Novo no Maranhão, Paulo Martins de Sousa Ramos4, nomeou o engenheiro José Otacílio de Saboya Ribeiro5 para administração mun icipal, com o intuito de elaborar um plano de remodelação da cidade, inspirado no discurso da modernização, e tinha como cenário inspirador as mudanças estruturais bem diversificadas, como as resultantes de Paris de Haussmann, e de algumas cidades brasileiras, a exemplo das propostas de Alfred Agache para o Rio de Janeiro, na gestão do prefeito Pereira Passos (1902-1906), e o Plano de Saneamento e expansão de Santos, São Paulo, de Saturnino de Brito. O Plano de Remodelação de Otacílio Saboya visava transformar a velha capital colonial em uma cidade com feição moderna, através de ações de melhoria da circulação de veículos, saneamento e embelezamento urbano. Uma das prioridades deste plano foi a ampliação de ruas e a abertura de avenidas no tecido urbano, totalizando cinco, para melhorar a circulação de veículos. Essas novas avenidas ligariam os principais espaços públicos da cidade, existentes ou a construir (Praça João Lisboa, Praça Pedro II e a Praça do Mercado), a equipamentos urbanos (estação ferroviária, mercado central). Esses espaços seriam ligados por ruas que seriam alargadas, aproveitando o leito carroçável existente, ou por avenidas que cortariam o tecido urbano em diagonal, que exigiu a demolição de prédios com valor histórico e
Paulo Ramos (1896-1969) nasceu em Caxias (MA) e foi o interventor Federal no Maranhão no período de 1930 a 1945, nomeado por Getúlio Vargas. 6 Otacílio de Saboya Ribeiro (1899-1967) nasceu no Rio de Janeiro e foi nomeado Prefeito de São Luís nos anos de 1936 e 1937. 5
a implantação de uma nova linguagem arquitetônica, diferente da usual. Foi prevista, também, uma avenida que ligaria a cidade velha à cidade nova, a Avenida Getúlio Vargas, em homenagem ao Presidente da República na época. Mas as ideias modernizantes de Otacílio Saboya não foram bem recebidas pela população, principalmente no que tange à demolição de edificações com valores históricos e artísticos, gerando um debate político sobre a preservação do patrimônio histórico. Outro ponto que gerou desconforto na época foi a cobrança de taxas para obras nas diferentes zonas da cidade, e para os melhoramentos e benefícios urbanos, como taxa de limpeza urbana, jardins, iluminação pública, conservação das vias públicas, taxas para melhoramentos urbanos e taxas para cortiços, casas de habitação coletiva, por ambiente ou compartimento (LOPES, 2004). Essa insatisfação teve como consequência a exoneração, em 1937, de Otacílio Saboya, por parte do Interventor Federal Paulo Ramos. Dr. de da do
Pedro Neiva de Santana7 foi o sucessor de Otacílio Saboya e ficou encarregado executar algumas obras do Plano de Remodelamento da Cidade, a exemplo construção do novo mercado central, da Avenida Magalhães de Almeida, alargamento da Rua do Egito e a construção da Avenida Getúlio Vargas.
Com o alargamento da Rua do Egito, vários casarões coloniais e ecléticos foram demolidos, e houve uma quebra na morfologia urbana tradicional, principalmente no que tange à implantação da edificação no lote, o que acarretou na ruptura da relação do edificado com o espaço público. As edificações se libertam dos limites dos lotes, ou seja, apareceram os afastamentos (recuos) laterais, posterior e frontal, mas as fachadas ainda conservaram o alinhamento (paralelismo) com a via pública. Com isso, desaparece a noção de unidade e homogeneidade do conjunto arquitetônico, característica típica do quarteirão e lote tradicional.
Dr. Pedro Neiva de Santana (1907-1984) nasceu em Nova Iorque (MA) e foi prefeito de São Luís, nomeado por Paulo Ramos, no período de 1938 a 1945. Foi governador do Estado do Maranhão entre 1971-1975. 7
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Neste período também, foi prevista a abertura da Avenida Magalhães de Almeida (19401942) permitindo-nos reconhecer com clareza uma sobreposição de uma diagonal sobre o tecido preexistente, o que acarretou a demolição de vários prédios coloniais. Essa avenida partiu de aspirações dos gestores de dar uma aparência moderna à cidade. Outra intervenção de grande impacto na cidade foi a construção da Avenida Getúlio Vargas, em 1942, que seguiu o eixo determinado pelo antigo Caminho Grande, pois devido a delimitação geográfica imposta pelos Rios Anil e Bacanga, a expansão da cidade deveria seguir esse eixo. Essa avenida avançava para o subúrbio da cidade, e foi palco de várias construções modernas e chalés ecléticos, o que acarretou a migração da população de média e alta renda, antes instalada na Praia Grande, para essa avenida ou em seus arredores. Estas famílias vislumbravam um novo modo de viver e morar, contribuindo assim para o início do processo de abandono e desvalorização da área central. As iniciativas do interventor Federal Paulo Ramos inseriram em São Luís a ideia de modernidade que já era realidade em outras capitais brasileiras, e isso se refletiu em algumas edificações modernistas residenciais e institucionais, que dividiam o espaço com a arquitetura colonial. Em 1950, a cidade precisava se adequar tanto ao tecido urbano tradicional como às novas exigências funcionais de equipamentos de serviço e circulação viária. Desta forma, o então diretor do Departamento de Estradas e Rodagem, Engenheiro Ruy Mesquita8, elaborou o “Plano Rodoviário de São Luís”, no qual vislumbrava a cidade para além do centro antigo, com outras vias, de forma a alcançar áreas ainda não exploradas a contento. Esse plano continha um teor de modernidade, como os planos anteriores, e tinha a intenção de descentralizar a cidade antiga, designando novas centralidades, de forma a criar uma cidade nova do outro lado dos rios Anil e Bacanga.
Ruy Ribeiro Mesquita (1919-1979) nasceu em Sergipe e se formou engenheiro pela Escola Politécnica da Universidade Federal da Bahia. Veio para o Maranhão na Gestão do Governador Sebastião Archer (19471951), a convite do então diretor do Departamento de Estradas e Rodagem, Emiliano Marcieira. 8
Oito anos depois, o próprio Ruy Mesquita elabora o “Plano de Expansão da Cidade de São Luís” (1958), que mantém o caráter dos vetores rodoviários do plano anterior e propõe a separação de funções e a segregação residencial, sendo o primeiro documento técnico que trata sobre o crescimento da cidade (BARROS, 2001). Esse plano tinha como ponto principal a construção de pontes, uma sobre o rio Anil outra sobre o Rio Bacanga. A construção da primeira ponte sobre o Rio Anil estava prevista para acontecer em 1957, e deveria interligar a Rua do Egito ao bairro do São Francisco, porém, isso só aconteceu em 1970 (Figura 1). Outra ponte sobre o Rio Anil foi construída em 1968, a ponte do Caratatiua, que visava diminuir a distância do centro da cidade à Praia do Olho d’ água. Com essa ponte, cresceu o número de casas residenciais para o norte da cidade, devido à facilidade de circulação (BARROS, 2001). Já a ponte sobre o Rio Bacanga facilitou o acesso com a ponta do Itaqui, que no futuro receberia o porto principal de entrada e saída de produtos do Estado, via mar. Em 1975, na Gestão do Prefeito Haroldo Tavares (1971-1975), foi lançado o 1º Plano Diretor de São Luís, que propôs um Anel Viário que tinha por objetivo melhorar o tráfego de veículos da cidade e serviu como uma barreira de proteção para o atual centro histórico. Ressalta-se que todos os planos urbanos foram instrumentos que buscavam transformar a cidade de São Luís numa cidade moderna, como foi possível observar através do Código de Posturas (1936), que indicava a obrigatoriedade de afastamentos entre as construções, bem como a necessidade de janelas em todos os ambientes, com ligação para área externa, o que mostrava uma preocupação com a higiene e a salubridade, contribuindo assim para o surgimento de novas linguagens nas áreas previstas nos referidos planos, e em outros pontos da cidade de forma mais reduzida.
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Figura 01 – Vista aérea do centro histórico da cidade de São Luís, com as áreas de expansão da cidade. Fonte: Lúcia Nascimento (2015), sobre base do Google Earth. 1. Rua do Egito. 2. Praça João Lisboa. 3. Avenida Magalhães de Almeida. 4. Avenida Getúlio Vargas (eixo de crescimento da cidade em direção ao leste). 5. Ponte do Caratatiua: primeira ponte sobre o Rio Anil, continuação do eixo de crescimento em direção
à praia. 6. Ponte do São Francisco: segunda ponte sobre o Rio Anil: alterou o eixo de crescimento da cidade. 7. Ponte sobre o Rio Bacanga: interligou o centro da cidade à futura zona industrial. 8. Delimitação do Anel Viário (azul).
A ARQUITETURA MODERNA DO SÉCULO XX EM SÃO LUÍS O século XX, em São Luís, foi marcado pelo aparecimento de novas linguagens arquitetônicas que diferenciavam da tradicional pela utilização de novos materiais, provenientes da revolução da indústria da construção civil, tais como: concreto armado, instalações hidráulicas, elétricas, o ferro e o vidro; e, também, por não se enquadrarem em nenhuma linguagem surgida anteriormente. Essas edificações antecedem no tempo ou acontecem simultaneamente com ao movimento moderno no Brasil, e compreendem edifícios Art Déco, passando pelo ecletismo historicista em fim de linha, até as chamadas manifestações românticas ligadas à estética do pitoresco e o movimento de cunho nacionalista, como neocolonial e a arquitetura modernista (QUEIROZ, 2011). A linguagem eclética corresponde à utilização de elementos de diferentes linguagens na edificação, com o intuito de produzir uma arquitetura fora de seu tempo histórico. Essa arquitetura surgiu no final do século XIX, chegando até as primeiras décadas do século XX. Em São Luís, esse estilo se apresenta por meio de platibandas ornamentadas, pelo uso de pináculos e pinhais na parte superior da edificação e pela busca pela simetria. É interessante ressaltar que o eclético, em muitos casos, restringiu-se somente às fachadas (Figuras 2). Outra linguagem que buscou transformar São Luís numa cidade moderna foi o neocolonial. Esta linguagem era baseada no passado colonial, mas adaptada às necessidades do presente, e teve seu auge, no Brasil, na década de 1920. Segundo Bruand (2002 [1981]), o neocolonial foi a primeira expressão artística dirigida explicitamente pela procura de uma identidade nacional. Apesar da construção dessa linguagem, em São Luís, ser um pouco tardia em relação ao restante do país, quase vinte anos depois, percebemos que os construtores maranhenses buscaram inspiração em construções dessa linguagem nas grandes cidades, como Rio de Janeiro e São Paulo. O neocolonial esteve presente principalmente em residências unifamiliares. Em São Luís, podemos encontrá-las em moradas térreas e na tipologia bangalôs (Figura 3).
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Figura 02 – Vista de edificações ecléticas na Avenida Magalhães de Almeida (a) e na Avenida Getúlio Vargas (b). Fonte: Acervo da Autora (2015).
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Figura 03 – Vista de um bangalô Neocolonial na Rua do Egito (a) e na Avenida Magalhães de Almeida (b) Fonte: Lúcia Nascimento (2015) e Marcio Vasconcelos (2011).
Os bangalôs surgiram, em São Luís e no Brasil, influenciados pelo cinema e por revistas femininas e de variedades, que mostravam a última moda arquitetônica e decorativa das casas dos astros de Hollywood. Esse tipo de edificação teve sua origem na colônia inglesa na Índia, como uma casa térrea avarandada; mas aqui em São Luís, essa tipologia foi representada por uma edificação de dois pavimentos (LOPES, 2008). Os bangalôs apresentaram uma implantação diferenciada da tradicional, na qual o imóvel se desprende dos limites do lote, surgindo assim os afastamentos frontais, laterais e posterior, típicos das tipologias modernas que tinham por objetivo iluminar e ventilar todos os cômodos da casa, dando salubridade a esses ambientes. Nesse momento, rompe-se com o padrão das edificações coloniais geminadas sem, no entanto, comprometer a conformação da rua corredor. Houve uma quebra na relação do espaço público com o privado, que antes era realizado por meio das fachadas; nesta nova edificação, o recuo é o elemento de ligação público e privado, o que contribuiu para uma nova relação morfológica, onde as fachadas laterais passam a fazer parte da imagem da cidade, e o volume e amassa edificada vão absorver o estímulo da comunicação estética entre o edifício e o espaço urbano (LAMAS, 2011). Acompanhando esse modelo de implantação temos os Chalés, uma manifestação da arquitetura romântica em São Luís. Essa linguagem arquitetônica tem sua imagem relacionada à Avenida Getúlio Vargas, um dos principais eixos de expansão da cidade, a partir da terceira década do século XX. O chalé era uma construção que surgiu como uma habitação temporária ou camponesa, no século XVII. O chalé se tornou uma opção de moradia permanente para as classes média e alta em São Luís, que abandonaram o centro antigo, considerado insalubre no momento. Esse tipo de edificação buscou trazer a sensação da vida no campo, mas, por outro lado, também remetia à modernização técnica advinda da industrialização, por meio de seus elementos construtivos (Figura 4). Já o Art Déco foi um conjunto de manifestações artísticas que envolvia vários campos disciplinares, como a arte, a decoração, a arquitetura, o cinema e o mobiliário, originado na Europa e que se disseminou pelas Américas do Norte e do Sul, chegando ao Brasil na década de 1920. Seu lançamento e divulgação mundiais ocorreram em 1925,
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Figura 04 – Vistas dos Chalés na Avenida Getúlio Vargas. Fonte: Lúcia Nascimento (2015).
na Exposition Internationalle des Arts Décoratives et Industrielles Modernes, em Paris (CZAJKOWSKI, 2000). O Art Déco foi a primeira expressão da modernidade, e teve sua consolidação e apogeu nas décadas de 1930 e 1940. São Luís acompanhou essa tendência mundial. A introdução desta linguagem, inicialmente esteve atrelada a edifícios institucionais, a lojas de departamentos, que introduziam um novo conceito de comércio, de cinemas, clubes e emissoras de rádio que difundiam novas formas de lazer e cultura. O primeiro prédio com essa linguagem, em São Luís, foi a Sede da Empresa de Correios e Telégrafos (1935), construída a partir da demolição de uma casa colonial térrea, de uso comercial. Essa instituição foi responsável pela divulgação da linguagem Art Déco no Brasil, com a construção de novas sedes nas capitais. O projeto foi elaborado em 1930, pelo arquiteto carioca Raphael Galvão (1894-1965), que projetou diversos edifícios nesta linguagem pelo Brasil. O projeto foi considerado arrojado, pois apresentou influências do cubismo, causando impacto na cidade; além de sua destacada implantação de esquina no coração do Centro histórico de São Luís (Figura 5a). A fachada principal é caracterizada pelas linhas verticais dos vãos das janelas, as quais são interrompidas pela horizontalidade da marquise que marca a entrada principal (LOPES, 2008). Também encontramos em São Luís edificações com fins culturais e comerciais nessa linguagem, a exemplo do Cine Roxy (1939), hoje o Cine Teatro da Cidade de São Luís (Figura 5b) e o Mercado Central (1941). Essas edificações, como todas as demais da cidade, conciliavam aspectos inovadores do moderno com vínculos com o passado, a exemplo da composição de matriz clássica, que recupera o viés decorativo, expresso na volumetria e pela utilização da simetria, axialidade e hierarquia na organização da planta. O acesso à edificação é centralizado ou, em alguns casos, valorizando a esquina; as fachadas são divididas em três partes, a base, o corpo e o coroamento (CZAJKOWSKI, 2000).
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Figura 05 – Vista de Edificações Art Déco em São Luís: Sede dos Correios (a); Cine Teatro da Cidade de São Luís (b); Edificações de uso misto, no térreo, lojas; e nos pavimentos superiores habitações (c, d). Fonte: Lúcia Nascimento (2017) e www.kamaleão.com (b).
Foi possível, também, identificar o Art Decó em vários exemplares de habitação multifamiliar na Avenida Magalhães de Almeida (Figuras 5c e 5d). Essas edificações apresentavam marquises, varandas semiembutidas, platibandas com linhas em alto relevo horizontais. Infelizmente, boa parte desse acervo arquitetônico vem sofrendo um processo constante de descaracterização. Apesar de ser uma linguagem que buscou a renovação da arquitetura da cidade, percebemos que em muitas edificações as alterações se deram somente na aparência externa, sendo que a sua implantação seguia ainda o modelo tradicional, onde o edifício se insere paralelo e fronteiriço aos limites do lote, sem apresentar recuos frontais e/ou laterais, ou com afastamentos, mas posicionado paralelamente às divisas. Infelizmente, esse conjunto arquitetônico que engloba boa parte do Art Decó implantado na Cidade de São Luís vem sofrendo constantes descaracterizações, pela ausência de políticas públicas voltadas para sua preservação. A década de 1950 foi marcada pela legitimação e reconhecimento mundial da arquitetura modernista do Brasil. Fato que se deu pela Exposição Brazil Builds (1943), de Philip Goodwin, em Nova Iorque; pela publicação do Livro “Arquitetura Moderna do Brasil” (1956), de Henrique Mindlin; e pela publicação de vários periódicos especializados sobre essa linguagem no Brasil, a exemplo de Acrópole (19411971) e Arquitetura e Engenharia (1946-1965). Essa arquitetura modernista seguia os princípios da corrente funcionalista que teve como grande divulgador o arquiteto suíço Le Corbusier. Mas essa arquitetura surgiu de forma embrionária, em 1925, com Gregori Warchavchik, que projetou a primeira casa com os preceitos modernos. Mas foi a construção da sede do Ministério da Educação e Saúde (1945) que marcou o ponto inicial de uma arquitetura própria brasileira (SEGAWA, 2014; MINDLIN, 2001). Seguindo essa tendência nacional, a arquitetura modernista em São Luís surgiu na década de 1950 e foi implantada através de arquitetos provenientes de outros estados do Brasil que aqui chegaram, principalmente das cidades do Rio de Janeiro e de São Paulo, dos quais destacamos os arquitetos paulistas Cleon Furtado e Braga Diniz, que divulgaram a arquitetura moderna em São Luís, através de inúmeros projetos residenciais modernistas.
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Podemos encontrar na linguagem moderna em São Luís as seguintes características: o uso do concreto armado como sistema construtivo, jogos de formas e volumes nas fachadas, presença de pilotis, utilização de cobogós e janelas ao longo da fachada e da cobertura tipo borboleta (Figura 6a). Essa linguagem surgiu em habitações unifamiliares, posteriormente, mas especificamente na década de 1960 a paisagem da cidade é modificada pela construção de grandes edificações de escritórios e apartamentos, os primeiros arranha-céus do Maranhão, a exemplo do Edifício João Goulart (1957), do Edifício Sulacap (1950) e do prédio onde funcionou o antigo Banco do Estado do Maranhão, edifício com estrutura metálica, que possui sua fachada principal com grandes janelas horizontais de vidro e linhas simples e retas. A fachada lateral esquerda é revestida por um grande painel de azulejo decorativo de autoria de Antônio Almeida, artista maranhense, com desenhos que representam figuras da cultura popular maranhense, mescladas com imagens religiosas. Esse painel azulejado foi inspirado no prédio do Ministério da Educação e Saúde (MES), no Rio de Janeiro (Figuras 6b e 6c).
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Figura 6 – Vista de uma casa modernista na Avenida Getúlio Vargas (a); Edifício João Goulart na Avenida Pedro II (b) e vista da antiga Sede do Banco do Estado do Maranhão (c). Fonte: Lúcia Nascimento (2015).
considerações finais
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O processo de modernização de São Luís esteve ligado a três fatores. O primeiro, as intervenções urbanas que marcaram a primeira metade do século XX e estavam respaldadas em melhorar a circulação de veículos na capital, mas também com as ideias de higienização, de maneira a solucionar os problemas de insalubridade que contribuíam para propagação de doenças. Era preciso construir uma imagem moderna de uma cidade higienizada e organizada, como forma de reverter o processo de decadência econômica que se encontrava a cidade e a região. O segundo fator está relacionado à implantação de instituições públicas (Correios e INSS) e privadas (Sulacap); e o terceiro foram as construções projetadas por arquitetos provenientes de outros estados, a exemplo de Cleon Furtado e Braga Diniz. Todas essas intervenções urbanas e arquitetônicas contribuíram para o surgimento de novas linguagens arquitetônicas que deram um ar moderno à cidade, pelo fato de modificarem a implantação das edificações nos lotes, com o surgimento dos afastamentos frontais e laterais, como forma de melhorar a qualidade dos ambientes dessas construções, e que foram respaldadas pelo Código de Posturas de 1936, implantado na gestão de Otacílio Saboya. Atualmente, essa arquitetura vem sofrendo constantes descaraterizações e, em alguns casos, seu total desaparecimento. Muito pela falta de consciência da população da importância desse acervo para a cidade, mas, também, pela ausência de políticas públicas voltadas para sua preservação e conservação. A arquitetura do século XX tem sido pouco estudada e explorada, em decorrência da força do conjunto colonial arquitetônico luso-brasileiro inscrito na lista de Patrimônio Mundial da Unesco (1997), que concentrou os esforços na preservação do conjunto colonial tombado, deixando o século XX à margem das investigações e de ações voltadas para sua preservação. E para que essa arquitetura não se perca com o tempo, é necessário conhecê-la e divulgá-la para que esse patrimônio, ainda não valorizado, seja preservado e conservado.
BARROS, Valdenira. Imagens do Moderno em São Luís. São Luís: Unigraf, 2001. BRUAND, Yves. Arquitetura Contemporânea no Brasil. 5. ed. São Paulo: Perspectiva, 2002 [1981]. CUNHA, Gaudêncio. Maranhão 1908: Álbum Fotográfico de Gaudêncio Cunha. São Luís: Tipogravura Texeira, 1908. CZAJKOWSKI, Jorge (Org). Guia da Arquitetura Art Déco no Rio de Janeiro. 3. ed. Rio de Janeiro: Casa da Palavra : Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro, 2000. JORGE, Miércio de Miranda. Álbum do Maranhão - 1950. São Luís: [s.n.], 1950. LAMAS, José Maria Resano Garcia. Morfologia Urbana e Desenho da Cidade. 6. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2011 [1995]. LOPES, José Antonio Viana. Capital Moderna e Cidade Colonial: O pensamento Preservacionista na História do Urbanismo Ludovicense. Dissertação (Mestrado) Recife: UFPE, 2004. LOPES, José Antonio Viana. São Luís Ilha do Maranhão: Guia de Arquitetura e Paisagem. Servilla: Consejería de Obras Públicas y Transportes, Direccíon General de Arquitectura y Vivienda, 2008. MINDLIN, Henrique. Arquitetura Moderna no Brasil. Rio de Janeiro: Aeroplano editora IPHAN, 2001 [1956].
bibliografia
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QUEIROZ, Marcos Vinicius Dantas de. O século 20 e a construção de algumas modernidades arquitetônicas: Campina Grande (PB) 1930-1950. Revista CPC, n. 11, USP, p. 103-135, abr. 2011. SEGAWA, Hugo. Arquiteturas no Brasil 1900-1990. São Paulo: EDUSP, 2014 [1998].
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capĂtulo
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O Urbanismo Moderno Interrompido: análise da proposta não executada de Lúcio Costa para o Novo Polo Urbano em São Luís- MA, anos 70 MARCELO CHIQUITELLI
resumo
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No quarto Congresso Internacional de Arquitetura Moderna (CIAM), em 1933, na cidade de Atenas, foram analisadas 33 cidades, a partir das quais foram produzidos documentos sobre diagnósticos urbanísticos dos casos estudados. Os documentos são compostos por códigos e princípios gerais que preveem a extinção do traçado das cidades baseado em ruas e quadras e propõe a implantação do zoneamento seletivo, uma divisão de áreas que seguiria quatro funções: habitar, trabalhar, circular e recrear, o que definiria a Cidade Funcional. Da reunião dos elementos teóricos produzidos surgiu A Carta de Athenas, tida como uma das principais fontes de embasamento conceitual para A Arquitetura Moderna Internacional. A releitura dos fundamentos do Urbanismo Moderno Internacional em território brasileiro deu origem ao Plano Piloto para a cidade Brasília desenvolvido por Lúcio Costa e que acabaria influenciando outras cidades brasileiras. A representatividade da capital federal tornou este modelo urbanístico algo consagrado e desejado por diversas populações e gestores municipais. Na cidade de São Luís a breve passagem do arquiteto deixou um legado documental que registrou a inserção dos princípios do urbanismo moderno no território da cidade, onde a partir do ano de 1970, com a inauguração da Ponte do São Francisco, direcionou seu sentido de crescimento para a Orla Norte, em direção às praias. Os textos e desenhos de Lúcio Costa para o projeto não executado reafirmaram um novo contexto de expansões urbanas que se estruturava na cidade, registrando os princípios reconhecidos do Urbanismo Moderno. Propôs-se uma ocupação racionalista, dotada de uma hierarquia viária, setorização funcional, aspectos presentes na Cidade-Jardim, bem como outros fundamentos já presentes na cidade de Brasília. Este trabalho tem como objetivo reunir informações documentais e bibliográficas sobre a proposta não executada de Lúcio Costa para o Novo Polo Urbano em São Luís (NPU) nos anos 70 e, através de análise morfológica e funcional de seus desenhos, identificar como os princípios do Urbanismo Moderno são adequados às condicionantes locais. Palavras-chave: Urbanismo Moderno, Lúcio Costa, São Luís.
Keywords: Modern Urban Design, Lúcio Costa, São Luís.
abstract
In the fourth International Congress of Modern Architecture (CIAM) in 1933 in the city of Athens, it was examined 33 cities, from which were produced documents on urban diagnoses of the studied cases. The documents are codes and principles that predict the extinction of the layout of the cities based on streets and blocks and propose the implementation of selective zoning that is an area of division that followed four functions: live, work, move and recreate, which define the Functional City. The meeting of the theoretical elements produced The Charter of Athens, considered one of the main sources of conceptual basis for the International Modern Architecture. Rereading the grounds of the International Modern Urbanism in Brazil led to the Pilot Plan for Brasilia city developed by Lúcio Costa and would influence other Brazilian cities. The representativeness of the federal capital made this urban model something sacred and desired by diverse populations and municipal managers. In the city of Sao Luis the architect’s brief sojour made a documentary legacy that records the integration of modern urban planning principles within the city, where from the year 1970 with the opening of the San Francisco Bridge directs its growth direction for the North Rim, towards the beaches. The texts and Costa’s designs for the not run project reaffirm a new context of urban expansion that was structured in the city and recorded the recognized principles of modern urbanism, proposing a rationalist occupation, endowed with a road hierarchy, functional compartmentalization, aspects in Garden city, as well as other grounds already present in the city of Brasilia. This work aims to bring together documentary and bibliographic information on the proposal which was not performed by Lucio Costa to the New Pole Urban in São Luís (NPU) in the 70s, and through morphological and functional analysis of their designs identify how the principles of modern urbanism are suitable to local conditions.
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INTRODUÇÃO O legado produzido pelo quarto Congresso Internacional de Arquitetura Moderna (CIAM), realizado no ano de 1933, na cidade de Atenas, na Grécia, existiu durante muito tempo como um subsídio conceitual e referência para propostas de construção ou expansões de diversas cidades, o que passaria a ser classificada pela literatura especializada como Urbanismo Moderno. A Carta de Athenas, como foi designada, registrou o conjunto de discussões sobre problemas e sugestões para a cidade, estabelecendo diretrizes gerais de ordenamento, uso e ocupação do solo urbano. Estre estas, a setorização funcional do espaço entre habitação, trabalho, circulação e lazer que podem ser definidos como ponto principal do foi definido como a Cidade Funcional. A disseminação dos princípios do Urbanismo Moderno para além das fronteiras europeias e, especificamente, pelo território brasileiro, se deve de modo geral a diversas publicações sobre o tema que são bem recebidas pelos profissionais e pelo ambiente acadêmico das Faculdades de Arquitetura e Urbanismo, recém-criadas no país. A este fato se soma a presença decisiva Le Corbusier no país, nos anos de 1929 e 1935, seu contato direto com os principais arquitetos locais no desenvolvimento do projeto do Ministério da Educação e Saúde (MÊS) e, em especial, com Lúcio Costa que exercia na ocasião uma espécie de liderança informal sobre o grupo que viria a ser conhecido como Escola Carioca. A experiência da construção da capital federal, entre 1955 a 1960 proporcionou a Lúcio Costa a oportunidade de materializar os princípios do Movimento Moderno Internacional e, de certo modo, usálos como pedra angular na construção de uma identidade da Nova Arquitetura Brasileira. A partir de então, o modelo urbano, em que se transformou Brasília, passou a ser idealizado por outras cidades brasileiras e gestores locais. A cidade de São Luís manifestou o interesse pelo ideário Moderno quando, no ano de 1979, Lúcio Costa, a convite da prefeitura local, desenvolveu uma proposta para a instalação de um Novo Polo Urbano, respondendo aos anseios de crescimento da cidade em direção à orla marítima, a partir do ano de 1970 com a construção da Ponte do São Francisco e transposição do Rio Anil. A pesquisa divide seu conteúdo em duas partes onde, em um primeiro momento, faz-
se uma contextualização histórica e urbanística com a descrição dos processos de expansão urbana ocorridos em São Luís ao longo do século XX dentro os quais se insere a proposta urbanística em questão. Em um segundo momento a análise da proposta de Lúcio Costa concilia os fundamentos do Urbanismo Moderno e condicionantes locais. Este trabalho consiste na reunião documental e revisão de Literatura sobre a proposta não executada de Lúcio Costa para o Novo Polo Urbano em São Luís nos anos 70 e análise morfológica de seus desenhos, a fim de identificar como os princípios do Urbanismo Moderno são adequados às condicionantes locais. O referencial teórico utilizado pela pesquisa parte de autores e publicações locais para a reconstituição histórica do ambiente em que os fatos ocorrem e de registros documentais sobre o projeto urbanístico desenvolvido por Lúcio com na ocasião de sua estada na cidade. O trabalho de investigação pretende servir de material bibliográfico na construção de um acervo histórico que possa contribuir na documentação do Urbanismo Moderno Brasileiro e de obras que, embora não executadas, correspondem a um legado importante para futuros estudos, produções científicas e formação profissional. CONTEXTUALIZAÇÃO HISTÓRICA E TRANSFORMAÇÕES URBANAS A organização cronológica dos processos de transformações urbanas ocorridos na cidade de São Luís está dividida pela literatura local em quatro fases distintas e historicamente bem definidas. A primeira fase, de 1615 a 1750, consistiu no início e consolidação da ocupação portuguesa através de urbanismo militar e arquitetura de ordens religiosas. A segunda fase, entre os anos de 1750 a 1820, foi marcada por uma expansão comercial marítima a partir da criação da Companhia Geral do Grão-Pará e Maranhão pelo Marquês de Pombal, momento que a cidade passou pelo seu primeiro período de expansão econômica e urbana. A terceira fase, entre os anos de 1820 a 1900, foi caracterizada pela expansão industrial e crescimento da malha urbana para o interior da ilha. A quarta e última fase, entre os anos de 1900 e 1965 classificada pelos autores locais como Urbanismo Moderno, e é caracterizado por grandes transformações dentro do traçado do centro histórico e longas áreas de crescimento urbano.
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O período foi marcado pelas aberturas de grandes avenidas as quais se transformarão em pontos de inserção de obras representativas da Arquitetura Moderna em São Luís. Como afirma Burnett (2008), “no plano arquitetônico,estas idéias vão se materializar nas linhas de inúmeras edificações Modernas de despojamento volumétrico que contrastam com o conjunto de feição colonial e eclética”. Ao longo da última fase são definidos pela pesquisa dois períodos de transformações urbanas que surgem alinhadas aos princípios do Urbanismo Moderno Internacional, com intervenções urbanas contundentes, abertura de grandes avenidas e extensas áreas para novas ocupações, conforme ilustrado pela figura 1. Em um primeiro momento, entre os anos de 1936 e 1970 identifica-se a denominada Expansão Centro-sul, onde os interesses imobiliários e políticos apontam seus olhares para o interior da ilha em direção à zona rural do município. Deste modo, no ano de 1936, sob o Governo de Paulo Ramos e do prefeito José Otacílio de Saboya Ribeiro, foi elaborado o Anteprojeto de Remodelação da Cidade de São Luís. Para Lopes (2013), “o anteprojeto de Saboya enfatiza a necessidade de melhorar o sistema viário, (...,) prevendo a criação de avenidas e alargamentos de algumas ruas do Centro Histórico”. Nos anos seguintes, Pedro Neiva de Santana executou as reformas urbanas previstas pelo documento e que partem do Centro Histórico através de vetores de crescimento em direção ao interior da ilha com a consolidação da Rua Grande (Oswaldo Cruz), a abertura da Avenida Magalhães de Almeida, o alargamento da Rua do Egito, a expansão da Estrada de Ferro São Luís-Teresina e Avenida Beira-Mar. Posteriormente, entre os anos de 1970 a 1990 o segundo período consistiu na Expansão Orla-Norte quando o sentido de crescimento da cidade se inverteu para a costa marítima da ilha através da transposição do leito do Rio Anil pelas pontes São Francisco, Caratatiua e Bandeira Tribuzzi. O redirecionamento dos vetores de expansão promove uma inversão no sentido de crescimento da cidade. Já no ano de 1958, o engenheiro Rui Mesquita, com base no Plano de Expansão da Cidade de São Luís, elaborou uma série de diretrizes para remodelar a estrutura urbana da cidade com previsão da construção de pontes e novas avenidas. Com estes surgem os planos de transposição do Rio Anil que proporcionaria a conexão
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Figura 01 – Fases de Expansão Urbana ao Longo do Século XX em São Luís Fonte: Adaptado de Jorge (1950)
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entre a cidade antiga e costa norte da ilha com uma longa extensão de praias e com potenciais balneabilidade, o que fez dessa área um novo foco de interesses imobiliários. A construção da Ponte do São Francisco, em 1970, tida como extensão da Rua do Egito materializou de forma eficiente os ideais de expansão da cidade e conexão do centro Histórico com a faixa litorânea. O processo de transposição do Rio Anil tornou os planos de expansão do Centro Histórico viáveis e consolidou as avenidas de acesso às praias da Orla Norte como os novos vetores de crescimento da cidade. Os interesses imobiliários pela nova área de expansão da cidade atraíram olhares de investidores privados e do poder público que no ano de 1979 convidou o arquiteto Lúcio Costa para desenvolver uma proposta para um Novo Polo Urbano para a cidade, localizada nos arredores da orla marítima. A ideia de criação de um novo centro de ocupação para a cidade foi ao encontro dos interesses particulares de investimento nas áreas de balneabilidade da cidade e, de certo modo, atendia à necessidade de expansão urbana determinada pelo crescimento populacional. A concretização das ideias proferidas pelo Plano de Expansão da Cidade, de 1958, reafirmadas pelo Plano do Prefeito Haroldo Tavares, 1973 e pelo Plano Diretor de 1974 de ordenamento da ocupação dos novos territórios de expansão da cidade se tornou viável pela transposição do Rio Anil com a construção das Pontes do São Francisco(1970) e Ponte Bandeira Tribuzzy (1980) e as ações que se seguiram apontaram para o atendimento desta demanda eminente de novos bairro e de preservação do Centro Histórico. Nesse sentido, a proposta não executada para o Novo Polo Urbano de São Luís, em 1979, desenvolvida por Lúcio Costa, se insere em um contexto de necessidades urbanísticas muito claras para a cidade anteriormente descritas pelo Plano de Haroldo Tavares através de suas três diretrizes fundamentais: preservação o Centro Histórico, expansão da cidade e suprimir o déficit habitacional já existente na época. Embora não tenha saído do papel, a proposta do arquiteto representa um rico material histórico que registra os conceitos urbanísticos modernos absorvidos pela produção nacional, além de conter um material iconográfico, entre croquis e mapas, desenvolvidos na ocasião. que fazem desta uma experiência projetual a ser preservada e que deve servir como objeto de estudos científicos.
ANÁLISE MORFOLÓGICA E PRINCÍPIOS URBANÍSTICOS MODERNOS Segundo Jobim.org, (2015), “em 1979, Lúcio Costa foi procurado pelo Prefeito de São Luís, Mauro Fecury que conhecera em 1974, quando fez parte do Governo Elmo Serejo Faria no Destrito Federal, ocasião em que os projetos de Lúcio Costa foram executados em Brasília”. O então prefeito relatou suas intenções de implantar um Novo Pólo Urbano nas áreas determinadas pelos novos vetores de expansão da cidade em direção à região das praias após a inauguração da Ponte São Francisco no ano de 1970. Em parceria com Maria Elisa Costa e Paulo Jobim, a proposta de Lúcio Costa se baseava nos princípios do Urbanismo Moderno estabelecidos pela Carta de Athenas, como a organização de Unidades de Vizinhança, setorização funcional e hierarquia viária. Os croquís desenvolvidos por Lúcio Costa, quando de sua estada na cidade de São Luís descrevem características muito claras de conexão do centro Histórico com a faixa litorânea, passando pelo Novo Pólo Urbano proposto pelo projeto. A proposta reforçava a tendência de redirecionamento dos vetores de crescimento da cidade no sentido Orla-Norte e de transposição do Rio Anil, “todas estas ligações possibilitaram novo rumos ao crescimento urbano e novas linguagens arquitetônicas nos bairros que surgiram”. Plfuger, (2011). No desenho feito por Lúcio Costa sobre a cartografia da cidade, ilustrado na figura 2, identifica-se o eixo de união entre os espaços urbanos, Centro Histórico e NPU definidos pela Avenida do Jaracaty e passando pela Ponte Bandeira Tribuzi. Na mesma imagem é possível perceber a ocupação rarefeita dos novos bairros ainda em formação e que se tornariam novas centralidades na cidade de São Luís. Uma correta leitura sobre o contexto urbano e interpretação do futuro da expansão da malha viária por parte da proposta. Como analisado na Implantação Geral do Projeto Urbanístico, ilustrado pela figura 03, existem três grandes linhas que conectam o núcleo de fundação da cidade à área do projeto. A primeira consiste na continuidade da Ponte São Francisco com as Avenida Castelo Branco e Avenida dos Holandeses, contornando a Lagoa da Jansen e toda Faixa Litorânea representada na cor preta e limitando a face superior do projeto. A segunda compreende a extensão da Avenida Colares Moreira e Avenida Jerônimo de Albuquerque representada
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Figura 02 – NPU 1; Croquí sobre Cartografia da Cidade de São Luís: Centro Histórico e NPU Conectados Fonte: Adaptado de www.jobim.org (2015)
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Figura 03 – NPU 1; Croquí sobre Cartografia da Cidade de São Luís: eixos viários Fonte: Adaptado de www.jobim.org (2015)
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na cor amarela, e limitando a face inferior da área de intervenção. Por fim, define-se uma nova conexão direta entre o Centro Histórico da cidade com o Setor Comercial localizado no centro do Novo Polo Urbano através da Ponte do Caratatiua e da consolidação da Avenida Daniel de la Touche, representado na cor vermelha. Notadamente, as linhas de conexão estabelecidas pelo arquiteto se tornariam de fato os principais corredores viários da cidade nas décadas que se seguiram. O projeto ainda está implantado de modo a unir os Corredores Primários existentes com eixos organizadores do Novo Pólo Urbano. Lúcio Costa trabalhou o conceito de unidade de vizinhança previsto na Carta de Athenas e praticado no Plano-Piloto de Brasília, estabelecendo uma relação de proximidade entre as diferentes funções e mantendo a integridade física do Pólo Urbano no momento que marca seus limites por vias de acesso. Do mesmo modo, viabiliza sua inserção dentro do contexto urbano existente através da junção das vias principais projetadas com os Corredores Principais existentes na cidade. Uma vez inserido de forma adequado na estrutura urbana da cidade a proposta de Lúcio Costa mantinha a hierarquia viária como elemento organizador do partido urbanístico. Dentro do Setor Comercial proposto como núcleo da área de intervenção se organizaria um Boulevar, tido como via primária, eixo organizador do plano urbanístico e que se conectaria com um corredor de expansão provindo da Ponte Bandeira Tribuzzi. As Arcadas Verdes, descritas como vias secundárias transversais ao Boulevard, dariam acesso aos espaços entre as quadras e lojas adjacentes às ruas. E, novamente, transversais às vias secundárias sendo distribuídas vias coletoras que uniriam as quadras residenciais circulares e, por fim, as quadras residenciais com formas circulares são organizadas através de vias locais e de fluxo reduzido. O projeto trabalha o conceito de setorização funcional dispondo o Setor Comercial e de serviços ao longo de vias principais e reservando as habitações aos interiores de quadras circulares, como ilustrado na figura 04. A presença de grandes áreas verdes também é um elemento marcante no projeto, tanto ao longo das Arcadas e Boulevares como nos espaços entre as quadras residenciais. Este aspecto o arquiteto fez questão de evidenciar em seus desenhos juntamente com a preservação dos cursos
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Figura 04 – NPU 1; Planta Geral de Urbanização em Lápis de Cor Fonte: Adaptado de www.jobim.org (2015)
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d´água como fatores importantes de composição da paisagem e de conservação dos recursos naturais locais. O aspecto de dispersão de blocos edificados de forma rarefeita sobre extensas áreas verdes remetem às referências tipológicas das Cidades Jardins tida uma das características mais evidentes do Urbanismo Moderno. A proposta para os núcleos circulares de habitação, distribuídos ao longo de extensas áreas verdes e conectados por uma malha viária, se assemelha morfologicamente à proposta dos Irmãos Roberto para o Plano-Piloto de Brasília. Com exceção de que, no caso de Brasília, os arquitetos utilizaram o conceito de Unidade de Habitação e de um urbanismo polinuclear, para o NPU em São Luís optou-se por criar um único setor comercial cercado por um aglomerado de grupos habitacionais circulares. Como ilustrado na figura 05, a seção transversal do Setor Comercial organiza-se em um eixo principal determinado Boulevard com duas pistas separadas por um grande canteiro central e com duas vias laterais de acesso às lojas, cinemas e teatros, as quais são dispostas em blocos alinhados junto ao passeio público mantendo um gabarito máximo de cinco pavimentos e teriam a livre distribuição de suas plantas internas. O baixo gabarito dos prédios e as grandes dimensões das pistas, canteiros centrais e afastamentos conferem ao lugar um caráter de uma grande esplanada. As diretrizes para o paisagismo do lugar também são representadas por massas arbóreas sempre presentes em seus desenhos. A implantação geral das funções no Setor Comercial possui uma gama de atividades bem diversificadas. No centro do Quarteirão Comercial, a leste do eixo principal, está implantado um supermercado que atenderia a maior demanda de produtos para a região e que contribuiria para a criação de uma nova centralidade para o Novo Polo Urbano.
Como ilustrado na figura 06, o Setor Comercial em uma implantação cruciforme distribui no eixo vertical, ou ao longo do Boulevard, usos mistos entre comércios, serviços e habitações em pequenos blocos com gabarito máximo de cinco pavimentos. Ao longo do eixo horizontal, ou Arcadas Verdes, Lúcio Costa organizou um centro de compras sombreados por marquises nas fachadas frontais das edificações e extensas áreas arborizadas, conforme ilustrado pela figura 07. Do cruzamento dos dois eixos são formados quatro quadrantes onde se alternam edifícios comerciais com gabaritos diferentes e um supermercado com uma ampla área de estacionamentos ao redor.
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Figura 05 – Seção Transversal do Boulevard Fonte: Adaptado de www.jobim.org (2015)
Figura 06 – NPU1; Setor Comercial Fonte: Adaptado de www.jobim.org (2015)
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Figura 07 – NPU1; Perspectiva da Arcadas Fonte: Adaptado de www.jobim.org (2015)
Figura 08 – NPU1; Seção Transversal dos Quardras Comerciais e Arcadas Fonte: Adaptado de www.jobim.org (2015)
Figura 09 – NPU1; Quadras Comerciais e Arcadas Verdes Fonte: Adaptado de www.jobim.org (2015)
Em uma visão mais ampliada com base na figura 8, é possível observar o contraste entre as diferentes escalas: das Arcadas com gabaritos baixos e massas arbóreas que promovem uma aproximação à escala do pedestre e da escala geral das quadras do Setor Comercial, com gabaritos elevados e grandes afastamentos entre as edificações promovendo ambiências urbanas diversificadas e uma complexidade enriquecedora da proposta. Como ilustrado na figura 09, os edifícios comerciais estariam inseridos em dois grupos de quatro Quarteirões Comerciais em ambos os lados do Boulevard as quais estariam separadas pelas Arcadas Verdes destinadas a usos comerciais que trazem uma escala menor ao nível do passeio de pedestres. Estes espaços são caracterizados pelos desenhos de Lúcio Costa como longas alamedas sombreadas por vegetação e marquises que atribuem ao espaço público um caráter contemplativo que vai além de sua função comercial. Os edifícios possuem gabaritos que variam entre 10 e 18 pavimentos alternadamente, dividindo os espações com bolsões de estacionamento e áreas ajardinadas, figura 08. Esses espaços e as empresas neles instalados seriam atendidas por inúmeros serviços oferecidos pelos Centros de Compras formados pelas Arcadas Verdes.
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considerações finais
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O presente trabalho trata dos princípios fundamentais do Urbanismo Moderno descritos pela Carta de Athenas em 1933 e de modo estes influenciam a produção nacional, particularmente, a obra de Lúcio Costa, sua proposta para o Novo Polo Urbano para São Luís e em que medida esta se adequa às condicionantes locais. A análise desenvolvida observa uma preocupação da proposta em estabelecer uma inserção urbana correspondente às intenções de planos municipais anteriores de criar novas áreas de expansão para a cidade que estivessem conectadas ao Centro Histórico preservando a integridade do sítio. A implantação geral do estudo reúne dois eixos de expansão viária que partem das pontes de transposição do Rio Anil em elementos organizadores do projeto. O primeiro, vindo da Ponte BandeiraTribuzzi, da origem ao eixo vertical onde se estrutura uma Via primária, o Boulevard e um segundo, vindo da Ponte São Francisco e da Avenida Colares Moreira, se transforma no eixo horizontal e da origem às Arcadas verdes ao longo de vias secundárias. A organização espacial do NPU está estruturado em dois elementos fundamentais, um Centro Comercial, no cruzamentos dos eixos e células circulares de habitação distribuídas ao longo de uma rede de vias locais. A pesquisa constata o caráter genuinamente Moderno e de inserção dentro dos princípios divulgados pela Carta de Athenas. A setorização funcional, a hierarquia viária e a implantação de blocos isolados dentro de quarteirões comerciais remontam à experiência do Plano Piloto de Brasília e de outros projetos desenvolvidos pelo arquiteto. As imagens obtidas e a análise morfológica desenvolvida registram um momento singular da passagem de Lúcio Costa pela cidade de São Luís e o registro dessa experiência é de grande importância para a história da cidade e para seu acervo documental e produção arquitetônica e urbanística.
Embora não tenha sido executada, os estudos para o Projeto Urbanístico do Novo Pólo Urbano se configuram como um legado para um conjunto de obras representativas do Movimento Moderno na capital Maranhense. Tão importante quando a documentação e conservação do Patrimônio Arquitetônico do Movimento no Brasil, o registro de experiências projetais não executadas contribui para a construção de um acervo fundamental para a memória artística e para o enriquecimento histórico do tema em questão.
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bibliografia
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capĂtulo
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Patrimônio recente: intervenções no TJ do Piauí RÔMULO MARQUES WILNNE PINHEIRO ALCÍLIA AFONSO
resumo
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Este artigo possui como objeto de estudo, o edifício sede do Tribunal de Justiça do Estado do Piauí, localizado no bairro Cabral, zona centro-norte de Teresina, PI, projetado em 1972 pelo arquiteto Acácio Gil Borsoi. Objetiva-se analisar uma proposta de intervenção nesta obra, referente à construção de um anexo situado entre o recuo da fachada sudoeste do edifício original e a rua Gov. Tibério Nunes. Este exemplar, em associação a outras produções modernas, constituem o patrimônio arquitetônico recente da cidade, sendo, ainda, considerada obra prima da produção arquitetônica de Borsoi, por consolidar um método projetual extremamente sensível ao lugar. Justifica-se a elaboração deste artigo pela necessidade de se averiguar, tecnicamente, a proposta deste anexo mediante a relevância da obra em questão para o patrimônio estadual. A metodologia empregada seguiu duas linhas de investigação: direcionou-se a primeira à análise do caso, desenvolvida através da coleta de dados referentes aos processos administrativos gerados para o licenciamento da obra. Ao passo que na segunda, buscou-se qualificar os impactos da proposta de intervenção através de simulações volumétricas e estudos das Cartas Patrimoniais. O valor arquitetônico da produção moderna piauiense é inquestionável, dessa forma, medidas preservacionistas devem ser tomadas urgentemente a fim de se proteger tal acervo, que a qualquer momento pode sofrer descaracterizações ou mesmo, demolições.
Palavras-chave: Teresina; patrimônio recente; intervenções.
Keywords: Teresina; recent patrimony; interventions.
abstract
This article has as object of study, the headquarters building of “Tribunal de Justiça” of the State of Piauí, located in the Cabral neighborhood, north-central zone of Teresina, PI, designed in 1972 by the architect Acácio Gil Borsoi. The objective of this work is to analyze a proposal for intervention in this work, related to the construction of an annex between the retreat of the southwest facade of the original building and the street Gov. Tiberio Nunes. This exemplary, in association with other modern productions, constitute the city’s recent architectural heritage, and is still considered the masterpiece of Borsoi’s architectural production, for consolidating a design method extremely sensitive to the place. The elaboration of this article is justified by the need to ascertain, technically, the proposal of this annex by the relevance of the work in question to the state patrimony. The methodology used followed two lines of investigation: the first one was directed to the analysis of the case, developed through the collection of data referring to the administrative processes generated for the licensing of the work. Whereas in the second, we tried to qualify the impacts of the intervention proposal through volumetric simulations and studies of the Patrimonial Letters. The value of the production of modern architecture in Piauí is unquestionable, so preservationist measures must be taken urgently in order to protect such a collection, which at any moment can suffer decharacterization or even demolitions.
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INTRODUÇÃO Constitui-se objeto desta pesquisa, a proposta mais recente de intervenção no Tribunal de Justiça do Piauí, obra brutalista de autoria do escritório Borsoi Arquitetos Associados. Justifica-se a elaboração do registro deste caso em virtude do caráter equivocado da solução empregada, que não se comporta como um caso isolado, local, fortuito, mas como um fato constantemente enfrentado no âmbito da preservação do patrimônio recente. É necessário esclarecer que as asserções aqui apresentadas acerca desta ocorrência, não se vinculam a uma análise crítica do projeto arquitetônico proposto para a ampliação, ou seja, não se fez juízo de valor para a qualidade da proposta, considerando-se suas soluções projetuais, estruturais, etc., mas sim a concepção da inserção desta ao espaço pré-existente. No que concerne à produção arquitetônica de Teresina nos dias atuais, é evidente que, a partir de práticas como esta em questão, há a necessidade de reflexão sobre o acervo que está se constituindo, porém este é um debate a ser travado em outro momento. As fontes utilizadas para coleta de dados sobre a proposta de ampliação foram: portal virtual do Tribunal de Justiça do Estado do Piauí, através da Central de Licitações e Contratos; autos do processo de licenciamento da obra junto aos órgãos competentes vinculados à Prefeitura Municipal de Teresina e à Secretaria de Estado da Cultura (SECULT); autos do processo administrativo aberto no Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN-PI), provocado pelo pedido detombamento da obra pelo Conselho de Arquitetura e Urbanismo do Piauí (CAU-PI); atas do Conselho de Desenvolvimento Urbano de Teresina (CDU); denúncia realizada pelos herdeiros dos direitos autorais do autor do Tribunal de Justiça ao CAU-PI e na Ação Civil Pública proposta pelo Ministério Público do Estado do Piauí e CAU-PI. Levantamentos bibliográficos em livros, artigos e dissertações sobre a obra também foram utilizados para fundamentação teórica das discussões, além de registros fotográficos e simulações da interferência da proposta de ampliação no Tribunal a partir de maquete eletrônica.
Estre trabalho faz parte das investigações desenvolvidas pelo grupo de pesquisa FORM-PI, registrado no Departamento de Construção Civil e Arquitetura do Centro de Tecnologia da Universidade Federal do Piauí (DCCA/CT/UFPI) e à Universidade Federal de Campina Grande (UFCG), cadastrado no CNPq, que tem atuado no estudo e divulgação do acervo moderno piauiense, de maneira a contribuir no processo de preservação deste. Observa-se que transcorrido pouco mais de um século do despertar das primeiras manifestações do movimento moderno, tais tradições de caráter vanguardista na época, constituem hoje parte de nosso patrimônio cultural, o qual vem, em decorrência da inexistência de uma política sistemática de preservação, sofrendo constantes ataques reclamados por intervenções contemporâneas. A discussão sobre intervenção em espaços e/ou lugares historicamente consolidados, ou seja, que possuam pré-existências ambientais com relevante interesse rememorativo, não mais deve ser considerada como uma novidade na prática projetual atual, visto que a mesma já foi deflagrada há mais de 60 anos, durante o processo de revisão do movimento moderno, não sendo justificável, portanto, seu desconhecimento. Todavia, em contracorrente à atuação dos primeiros mestres modernistas no Brasil (que embora responsáveis por romperem com a tradição neocolonial, nunca negaram a relevância dos valores nacionais, desenvolvendo uma postura minimamente sensível às questões preservacionistas), ao decorrer das últimas décadas as intervenções no acervo arquitetônico moderno brasileiro têm se constituído em verdadeiros atentados à conservação destes bens patrimoniais por não cumprimento das recomendações concernentes a este tema. Teresina, plano de fundo do objeto deste artigo, tem encontrado resistência em seguir o processo natural do tempo: é uma cidade que não se permite envelhecer. Fundada em meados do século XIX, momento no qual praticavam-se simultaneamente tradições ecléticas e neoclássicas, a capital piauiense tem visto, a cada nova solicitação contemporânea, seu patrimônio natural e edificado ser mutilado ou até mesmo extinto.
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O centro da cidade, ao longo dos anos, testemunhou um sem número de casas ecléticas serem vitimadas quer pela especulação imobiliária, quer pela simples necessidade de construção de estacionamentos. Esta visão equivocada de desenvolvimento, vinculado apenas ao progresso, chega agora ao patrimônio recente, tão relevante quanto os demais momentos históricos para a memória da cidade.
PATRIMÔNIO RECENTE: ALGUMAS OBSERVAÇÕES A preocupação com o patrimônio histórico das cidades se mostrou presente desde os primeiros Congressos Internacionais de Arquitetura Moderna (CIAMs), sendo a Carta de Atenas, publicada em 1933, o documento que melhor expressa os posicionamentos iniciais dos mestres modernos acerca deste debate. Em seguida, uma série de encontros que tiveram como resultado a elaboração de inúmeras Cartas Patrimoniais, criaram um banco de dados sobre conservação e metodologias de restauro do patrimônio cultural edificado, com ênfase à Carta de Veneza, de 1964, produto do II Congresso Internacional de Arquitetos e Técnicos dos Monumentos Históricos, organizado pelo Conselho Internacional de Monumentos e Sítios Escritório (ICOMOS), que estabeleceu princípios de intervenção em monumentos e sítios históricos. Com o avanço das discussões, a Organização das Nações Unidas para a educação, a ciência e a cultura (UNESCO) estabeleceu, em 1972, a Convenção do Patrimônio Mundial como mecanismo de incentivo à preservação de bens culturais e naturais de relevância à humanidade. Doravante, implementou-se, dentre outros, os conceitos de patrimônio e paisagem culturais, até então vigentes, incorporando o primeiro os monumentos, conjuntos e lugares, ao passo que o segundo, relacionou-se aos “bens culturais que representam as ‘obras conjuntas do homem e a natureza’ e ilustram a evolução da sociedade humana e seus assentamentos ao longo do tempo, condicionados pelas limitações e/ ou oportunidades físicas que apresentam seu entorno natural e pelas sucessivas forças sociais, econômicas e culturais, tanto externas como internas”. (IPHAN, 2008, p. 13).
O processo de reconhecimento das obras modernas como patrimônio cultural iniciou precocemente aqui no Brasil, ainda na primeira metade do século XX, como no caso do tombamento em 1947 da Igreja de São Francisco de Assis da Pampulha, em Belo Horizonte, MG. Embora este endossamento tenha perdido força com o passar dos anos, visto que, conforme sinalizam Andrade Junior; Andrade; Freire (2009), o número de obras modernas tombadas em território nacional é demasiadamente baixo em comparação a totalidade do acervo existente, este olhar à produção do movimento significou reconhecer sua relevância histórica, artística e memorial. (OSKMAN, 2011). Sob influência do movimento antropofágico, concretizado mormente na Semana de Arte Moderna de 1922, que abriu as portas para a entrada em solo brasileiro das manifestações de vanguarda, os primeiros arquitetos modernistas a atuarem no país bifurcaram o caminho da prática projetual em uma operação compromissada com o futuro, com a ruptura e transformação, mas atenta aos valores culturais formulados ao decorrer da história própria da nação. (ROSSETTI, 2007). No cenário internacional, de maneira sistemática, o reconhecimento da significação cultural do movimento moderno começou a protagonizar as discussões sobre preservação a partir da década de 1980, potencializado pela fundação da organização não governamental DOCOMOMO, na Holanda, em 1988, cuja atuação tem se desenvolvido em ações de documentação, valorização, conservação, restauro e disseminação das obras que constituem o acervo da arquitetura moderna mundial. (ROCHA; TINEM, 2013). No Brasil, as primeiras ações em prol do patrimônio cultural remetem à década de 1920, quando observa-se que os bens imóveis existentes fora dos museus começam, de igual forma, a serem considerados relevantes à memória. Contudo, é somente no ano de 1936 que o Poder Público, através do Governo Federal, ingressou de maneira efetiva nas questões preservacionistas, com a criação do Serviço de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (SPHAN), consolidado no ano de 1937 pelo Decreto-Lei nº 25. (TOMAZ, 2010).
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PRESERVAÇÃO PATRIMONIAL E LEGISLAÇÃO O ordenamento constitucional vigente confere relevância à abordagem científica relacionada ao sistema de proteção jurídica dos direitos culturais, dando especial tutela ao denominado patrimônio cultural. Inspira-se, em caráter supranacional, na Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948) da Organização das Nações Unidas (ONU), em seus artigos 22 e 27, que traz a previsão dos direitos culturais como objeto de proteção jurídica. Esse panorama resultou no advento do princípio da cidadania cultural e do direito ao “pluralismo cultural” e à “memória”, implicitamente previstos na Constituição da República Federativa do Brasil, através do qual permitiu-se à sociedade, em caráter indireto, e aos legitimados pela legislação (através de mecanismos jurídicos específicos), a reivindicação do acesso aos bens culturais como expressão maior da cidadania, redimensionando-se, assim, as possibilidades de seu exercício. Por sua vez, o Poder Público vinculou-se, em sua agenda política, à necessidade de formulação de políticas públicas e ações – também impostas à coletividade – que garantissem os direitos culturais a todos os brasileiros, insculpidos no teor dos artigos 215 e 216 da Constituição de 1988. Nesse contexto, discutiam-se valores relacionados ao nacionalismo e à construção da sensação, pelo povo, de “pertencimento” a essa condição– relacionados a práticas culturais locais, dentre outros símbolos – originado a partir de um sistema sociológico, antropológico, político e jurídico que propiciasse essa vivência. Por seu turno, a Declaração Internacional sobre os Direitos Econômicos, Sociais e Culturais adotada pela Assembleia Geral da ONU, em 16 de dezembro de 1966, assegura o desenvolvimento econômico, social e cultural aos povos, que, vigente desde 1976, assegura o direito a todos à participação da vida cultural. O Brasil passou a ser signatário da referida Declaração somente em 1992, através do
Decreto de nº 591. Ou seja, já sob a égide da Constituição da República Federativa do Brasil, que garante a todos o pleno exercício dos direitos culturais, em seus artigos 215 e 216. Conforme esclarece Rodrigues (2008), a participação de partidos de esquerda, de grupos de intelectuais e dos órgãos de cultura, durante o poder constituinte da atual Carta Constitucional, foi marcante na construção do conceito de patrimônio cultural de forma mais dinâmica e popular com o favorecimento do exercício da cidadania. Portanto, há diversos efeitos jurídicos derivados do procedimento administrativo que implica o tombamento de um bem em relação ao proprietário, mas principalmente em relação ao Estado. Este se vincula, no Brasil e em âmbito normativo federal, a fiscalizar a restrição exercício do direito de propriedade quando se trata de um imóvel tombado, inclusive público; a punir em caso de violação desse exercício, e subsidiariamente em relação ao responsável, proceder à reforma, reconstituição, ou ainda proceder a demolição de intervenções que violem as diretrizes do tombamento. Parte da doutrina reputa o patrimônio cultural como o conjunto de bens difusos de direito ambiental, levando em consideração a classificação doutrinária designada “meio ambiente cultural”, assim como levando em consideração o texto constitucional que previu que, “além do poder público, compete à comunidade a promoção e proteção do patrimônio cultural brasileiro”, deferindo a tutela do patrimônio cultural a ações integradas envolvendo a coletividade. O Decreto-Lei nº 25/1937 prevê medidas específicas de proteção ao patrimônio cultural material. Ressalta-se que não há óbice à previsão de medidas de mesmo cunho pelos Municípios, conforme interesse preservacionista peculiar à localidade em que se insere o bem cultural material a ser protegido juridicamente e à luz da competência legislativa de caráter comum, deduzida do texto constitucional em seu artigo 23.
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CONTEXTO As pesquisas acerca da produção moderna no Piauí iniciaram por volta de 1998, através do grupo de pesquisa FORM-PI. De acordo com Afonso e Marques (2014), os primeiros registros deste acervo e de temas inerentes a ele foram publicados em 2002 no livro “Arquitetura em Teresina: 150 anos. Da origem à contemporaneidade”, de autoria da Prof. ª Dr. ª Alcília Afonso, a qual propôs reflexões sobre aspectos arquitetônicos e urbanísticos da Capital, abordandose, em um dos capítulos, a atuação dos primeiros mestres da arquitetura moderna piauiense. No ano de 2009, com a editoração do livro “Arquitetura piauiense”, composto por uma série de croquis e textos analíticos de exemplares arquitetônicos relevantes do estado, coordenado por Afonso e Moraes (2009), traz-se novamente o olhar às obras modernas construídas na região. No entanto, foi somente no ano de 2010 que o patrimônio arquitetônico moderno do Piauí ganhou ampla divulgação, com a publicação do livro “Documentos de arquitetura moderna no Piauí”, de Afonso e Negreiros (2010). Neste volume, registrou-se através de fotos, textos e, principalmente, material de projeto (plantas baixas, cortes e fachadas), exemplares arquitetônicos dos primeiros arquitetos a praticarem a modernidade em solo piauiense. Em 2015, com o livro “Arquitetura Moderna em Teresina. Guia”, de autoria de Afonso e Veríssimo (2015), o grupo FORM-PI retratou grande parte do acervo moderno teresinense a partir de textos descritivos, mapas e registros fotográficos. Este trabalho consistiu na definição de “rotas’, elaboradas com base no período de concepção e/ou construção de cada exemplar arquitetônico, ilustradas com fotos de aspectos relevantes da obra. No decurso das pesquisas do grupo FORM-PI, identificou-se que a prática da arquitetura moderna em Teresina teve início por volta da década de 1950, com a produção individual do arquiteto Anísio Medeiros, cuja atuação limitou-se ao campo residencial e com a contribuição una de Maurício Sued através da concepção do primeiro prédio institucional de linguagem moderna na capital. Todavia, a consolidação do movimento somente ocorreu da década 1960 em diante, com a chegada de arquitetos de formação carioca, como Miguel Caddah e Antonio
Luiz. Em todos os casos, a arquitetura desenvolvida buscou expressar-se através do diálogo com o lugar, considerando todos os aspectos incidentes: o clima, a tecnologia e materiais disponíveis, a mão de obra, além de condicionantes econômicos. A atuação de Acácio Gil Borsoi em Teresina iniciou na década de 1970, através de intervenções em obras de significação cultural relevante para a cidade, como os restauros realizados no Teatro 4 de setembro, edifício eclético, e nos palácios de Karnak e da Cidade, obras que evocam a linguagem neoclássica. Outra contribuição do arquiteto ocorreu no campo urbanístico, no final dos anos de 1970, com o projeto do Complexo Habitacional José Francisco de Almeida Neto, conhecido popularmente como Conjunto Mocambinho, concebido à luz do urbanismo moderno. (FEITOSA, 2012). As obras primas da produção do arquiteto originaram-se a partir de sua atuação em projetos de edifícios de tipologia institucional para o estado do Piauí: o Tribunal de Justiça, em 1972, e a Assembleia Legislativa, em 1985, ambos exemplares máximos da arquitetura brutalista praticada no Brasil. No projeto do Tribunal, Borsoi consolida um método projetual cuja sensibilidade ao lugar é o aspecto preponderante. A partir da construção da Assembleia, introduz em solo piauiense uma técnica construtiva proveniente do Uruguai, desenvolvida pelo engenheiro Eladio Dieste, e praticada no Brasil pelo também engenheiro Ariel Valmaggia: trata-se da abóbada em cerâmica armada, utilizada como solução para a cobertura da sede do poder legislativo estadual. Quando o movimento moderno deixou a Europa e desembarcou na américa latina, assim como ocorreu nos países nórdicos daquele continente, submeteu-se a um profundo processo de revisão conceitual, desvinculando-se das prepotências do Estilo Internacional e abrindose para novas experimentações, marcadas pelo rompimento do pensamento da primeira geração modernista, constituindo o que, atualmente, denomina-se de Método Internacional. Irrefutavelmente a arquitetura brasileira tem como fonte as produções teórica e prática dos mestres europeus, sobretudo Le Corbusier, que visitou o país em diversos momentos. Contudo, em decorrência da busca pela afirmação de uma “identidade nacional”, os
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arquitetos e escolas negaram a difusão de uma arquitetura universal, adotando posturas que vincularam modernidade e tradição como forma de afirmação do caráter local.
CONTEXTO Vastos são os estudos existentes sobre esta obra, sendo os mais relevantes àqueles elaborados por Afonso (2012) e Feitosa (2010). Em ambos, pode-se encontrar minuciosas análises da concepção das soluções projetuais, da conjuntura social da época, etc. Por este motivo, não se desenvolveu-se neste artigo, tal abordagem. O edifício sede do Tribunal de Justiça do Estado do Piauí (TJ-PI), projetado em 1972, localiza-se no bairro Cabral, zona centro-norte de Teresina. (Figura 01). Os posicionamentos projetuais adotados por Borsoi neste projeto evidenciam seu compromisso com as correntes teórica e prática da arquitetura brasileira. Para sediar o poder judiciário do estado, concebeu a obra de tal forma que a fez surgir como um grande templo, penetrável, na época, por todas as fachadas. Para tanto, o arquiteto recuou o corpo do edifício de forma a se criar grandes varandas, que em associação a placas de concreto que emergem do solo até o último pavimento, tocando a laje de cobertura por delgados tubos metálicos, protegem o interior da edificação da radiação solar direta, ao passo que favorecem a ventilação natural e a permeabilidade física e visual da edificação. (Figura 02). O arquiteto fez com que a solução estrutural protagonizasse a composição, não a camuflando, tampouco relegando-a ao segundo plano. O apego ao lugar evidenciase para além dos materiais utilizados, que pela própria natureza, já explicitariam o vínculo direto com o território. A tectonicidade, ou seja, a condição estrutural do construtivo, a confluência da ordem visual e material, manifesta-se através das técnicas construtivas utilizadas, de amplo domínio na região, do “fazer arquitetônico” que foi transmitido de geração para geração que se encontra registrado na obra.
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DOR TIBÉRIO R. GOVERNA
TIMON - MA
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3 R. OSVALDO
CRUZ
Figura 01 – Localização do Tribunal de Justiça do Piauí. Fonte: Google Maps, 2015. À direita: 1. TJ-PI; 2. Assembleia Legislativa do Estado do Piauí; 3. Praça Des. Edgar Nogueira; 4. Fórum Central. Fonte: Prefeitura Municipal de Teresina, 2013.
AV. MARECHAL CASTELO BRANCO
NUNES
TERESINA - PI
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Figura 02 – Fachada norte do Tribunal de Justiça do Piauí. Fonte: FEITOSA, 2010.
O tijolo aparente não foi empregado apenas para satisfazer critérios estéticos, mas para reforçar a ligação com a região, cuja atividade com argila, manuseada para fabricação de peças cerâmicas artesanais, constitui-se uma tradição local. O revestimento das circulações externas foi concebido em seixo, não somente por motivações de ordem econômica, mas porque trata-se de um material facilmente encontrado no Piauí e que possibilita uma experiência sensorial que aproxima o usuário do espaço arquitetônico proposto, criando uma “escala doméstica”. A solução volumétrica parte de uma planta retangular, estritamente moderna, mas que pelo emprego acertado de elementos arquitetônicos na composição do invólucro, observam-se revisões as quais o Movimento Moderno foi submetido quando chegou ao Brasil, evidenciando-se, dentre outros fatores, a relevância deste exemplar para a história da arquitetura nacional. O CASO Historicamente, sempre se fez presente na sociedade a necessidade de mudança. Enquanto organismos vivos encontramo-nos em constante processo de evolução e a arquitetura tem buscado acompanhar essas transformações através de respostas, concretizando o que hoje denominamos de “estilos arquitetônicos”. A cada nova solicitação, uma nova linguagem foi deflagrada. No mundo “pós-moderno”, movido pela visão de desenvolvimento aliado ao contínuo progresso, intensificaram-se as metamorfoses. Os espaços arquitetônicos começaram então, a ser impelidos a corresponder a novos contextos e necessidades de atualizações, seja por fatores como a demanda de uso e a obsolescência das tecnologias empregadas ou pela própria deterioração das estruturas e instalações. Neste sentido, embora as discussões sobre intervenção em pré-existências ambientais não sejam recentes na teoria e prática arquitetônicas, preservar os valores dos bens edificados tem se tornado um conflito constante, como este que envolveu o Tribunal de Justiça do Piauí. A intenção de ampliação através da construção de um anexo foi amplamente conhecida a partir de uma publicação realizada no Diário da Justiça do Estado do Piauí no dia 02
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de dezembro de 2014, quando se abriu licitação para elaboração dos projetos executivos complementares para construção do novo anexo do Palácio da Justiça. A justificativa para tanto, foi de que em função do aumento do número de desembargadores, servidores e magistrados, o edifício sede não mais atendia a solicitação, sendo, portanto, necessária a ampliação para abrigar os postos de trabalho existentes. A Universidade Federal do Piauí, através dos grupos de pesquisa Amigos do Patrimônio e Form.PI – Modernidade Arquitetônica, na época então coordenado pela Prof.ª Dr. ª Alcília Afonso, sumidade em arquitetura moderna piauiense, manifestou preocupação em relação à proposta do Departamento de Engenharia do Tribunal de Justiça do Piauí. Considerando que é garantido o direito, conforme Decreto-Lei nº 25 de 30 de novembro de 1937, a todas as pessoas (físicas e jurídicas) de reclamarem a abertura de estudo de tombamento de um bem, encaminhou-se uma solicitação à Fundação Cultural do Piauí (FUNDAC), atual Secretaria de Cultura do Piauí (SECULT), na qual solicitou-se a abertura de tal processo, justificado pelo valor histórico, urbanístico e arquitetônico da edificação. O PROJETO PROPOSTO PARA O ANEXO É sabido que, em consonância com o artigo 5º da Carta de Veneza, a conservação de um monumento deve ser favorecida por sua destinação a uma função útil à sociedade, contudo, não se deve alterar sua disposição ou decoração, sendo este o limite de concepção para se autorizar modificações exigidas pela evolução dos usos e costumes. Conforme artigo 23 da Carta de Burra de 1980, qualquer intervenção prevista em um bem deve ser precedida de um estudo de dados e, caso haja transformação do aspecto do bem em questão, devem ser elaborados por profissionais, documentos que perpetuem o aspecto modificado com exatidão. Em função do caráter agressivo da proposta de ampliação do Tribunal de Justiça, deduz-se que não houve cadastramento consistente de maneira a se coletar informações sobre as características da obra de Borsoi, o levantamento histórico da edificação, seus aspectos originais, alterações sofridas com o passar do tempo, a relação do edifício com oentorno, com a cidade, e principalmente com os seus habitantes.
No ano de 2015, o TJ-PI, através de processo administrativo, submeteu o projeto do novo anexo para consulta prévia na Superintendência de Desenvolvimento Urbano Norte, a qual, mediante pressões do CAU-PI, encaminhou-o para o Conselho de Desenvolvimento Urbano de Teresina. Consta registrado na ata da 12ª Reunião Ordinária deste Conselho, realizada em 18 de dezembro de 2015, o parecer de “vistas do processo”. Já na ata da 2ª Reunião Ordinária do ano de 2016, ocorrida em 26 de fevereiro, o CDU manifestou-se favorável ao empreendimento, recomendando-se apenas a observância a algumas leis municipais, porém não incidentes na questão preservacionista. O projeto consistia na inserção de um anexo no recuo existente entre o edifício sede e a rua Gov. Tibério Nunes, imediatamente à frente da fachada oeste deste. (Figura 03). Conforme pedido de indeferimento da liminar de suspenção da construção da obra, apresentado pela Procuradoria Geral do Estado do Piauí (PGE-PI), evidencia-se apenas a preocupação em atender ao caráter jurídico da causa, visto que se tentou a todo momento, evidenciar que o projeto atendia ao Código de Obras vigente, a lei de uso e ocupação do solo e que não existiam medidas de acautelamento incidentes. Dessa forma, já se constata a falta de sensibilidade à questão da preservação da memória coletiva e do papel social que desempenha a edificação. Os argumentos utilizados pela PGE-PI para invalidar àqueles apresentados pelo MP e CAU-PI, presentes na ação civil proposta para suspensão da construção, não são têm consistência teórica. Ao apresentar as considerações iniciais sobre o projeto, definiu-se uma “fachada principal” da edificação, apontando àquela voltada à praça des. Edgar Nogueira, por ser este o endereço oficial do Tribunal, relegando as soluções empregadas por Borsoi na composição da obra no que tange à percepção, a um mero decorativismo, visto que se desconsidera o conjunto harmonioso, resultado da articulação concisa de todas as fachadas. Vale ressaltar o equívoco de tal entendimento, já que arquitetura não existe em apenas uma dimensão, precisa-se de todas as quatro (comprimento, largura, profundidade e tempo) para que a experiência sensorial seja completada.
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Figura 03 – Implantação do novo anexo. Na cor cinza, edifício sede do TJ-PI; na cor verde, anexo existente de autoria do escritório Borsoi Arquitetos Associados; na cor vermelho, novo anexo proposto. Fonte: Departamento de Engenharia do TJ-PI, 2014. Edição de imagem: Rômulo Marques, 2016.
Ademais, não se entende como preservação patrimonial apenas a conservação de fragmentos de uma obra. No artigo 6º da Carta de Veneza de 1964, consta-se que “a conservação de um monumento implica a preservação de um esquema em sua escala”. Dessa forma, toda e qualquer construção nova, destruição e modificação que possam alterar as relações volumétricas e de cores são proibidas. Além disso, de acordo com o artigo 13 desta mesma Carta, acréscimos só podem ser tolerados quando respeitarem todas as partes interessantes do edifício, seu esquema tradicional, o equilíbrio de sua composição e suas relações com o meio ambiente. Notoriamente a proposta de construção do novo anexo não satisfazia nenhuma dessas observações. Em atenção ao artigo 8º da Carta de Burra, torna-se relevante expor que a conservação de um bem exige a manutenção de um entorno visual apropriado, no plano das formas, da escala, das cores, da textura, dos materiais, etc. Dessa forma, devem ser proíbas quaisquer intervenções que venham a causar prejuízo ao entorno, por comportar-se como um elemento estranho ao meio circundante prejudicial a apreciação ou fruição do bem. Em sua defesa, a PGE-PI argumentou que o Tribunal, através de seus gestores e área técnica, reconhecia a importância da obra e, por isso, optou-se por não alterar os prédios sede e anexo existente. Novamente, observa-se falta de conhecimento da significação cultural do acervo de Borsoi. A cidade é composta por símbolos, ícones materiais ou imateriais que constituem a identidade de um povo, o senso de localização, a imagem do espaço urbano, a semiótica do lugar. No momento em que se locou o anexo de forma a obstruir por completo a percepção visual de uma das fachadas, a voltada para a rua Gov. Tibério Nunes (fachada oeste), comprometeuse a harmonia da obra, em decorrência, sobretudo, do desprezo às transparências espaciais criadas pelo autor, comprometendo-se ainda as soluções bioclimáticas empregadas, além de impossibilitar a contemplação deste monumento por gerações presentes e futuras. Outra afirmação que se faz necessário contestar é o compromisso da proposta com a sustentabilidade. Por julgar-se não caber a este artigo a análise do projeto em si, apenas discorrerá sobre o equívoco cometido no entendimento contemporâneo deste conceito.
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A sustentabilidade não se limita apenas a satisfação de critérios ambientais (e mesmo considerando apenas este caráter, a proposta ainda não satisfaria todos os condicionantes inerentes para ser considerada sustentável), mas econômicos e sociais. Ao desconsiderar a significação cultural da obra para as gerações presentes e futuras e desrespeitar o seu passado, o viés social do conceito é profundamente comprometido, não sendo, portanto, sustentável o projeto. A última justificativa apresentada foi a mais preocupante de todas, visto que se evidenciou o completo desconhecimento por parte do corpo técnico do Tribunal, das metodologias de intervenção em pré-existências ambientais. Sinalizou-se que o projeto foi concebido com a intenção de possuir características arquitetônicas distintas, tais como o material especificado (metal e vidro). Alegou-se que, “arquitetonicamente”, entendeuse não ser viável a utilização na fachada dos mesmos materiais do prédio sede, visto que “não se deve confundir o ‘leitor’ da década de construção e da sua autoria”. Ainda no século XIX, o francês Viollet-le-Duc e o inglês Jhon Ruskin começaram a protagonizar discussões acerca da preservação. As ideias destes teóricos, embora antagônicas, criaram um debate que evoluiu ao longo dos anos a normas e recomendações de intervenção em bens culturais. No caso da proposta de anexo ao Tribunal, não se observa a adoção de um embasamento teórico-metodológico conciso, tampouco apoio técnico especializado. Com base na afirmação da PGE-PI citada acima, constata-se o emprego errôneo dos critérios de preservação. Há uso de má fé do princípio da “mínima intervenção”, visto que de fato a proposta intervém minimamente na estrutura existente, porém, apresenta-se exaltada em detrimento do edifício sede, ocultando uma série de detalhes construtivos, característica essencial da produção moderna. (Figura 04). Um outro critério que merece ser evocado, por ter sido igualmente ignorado, é o de “reversibilidade”, que, vale ressaltar, em nada relaciona-se a um estado efêmero de uma intervenção. Com base neste conceito, as modificações não podem interferir na leitura do edifício e devem somar valor ao objeto intervindo. A proposta do anexo em nenhum momento ampara-se neste fundamento, visto que o edifício sede teve sua compreensão
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Figura 04 – Proposta de intervenção (desconexão entre o pré-existente e o novo). Redesenho: Pabllo Nunes; Rômulo Marques, 2016.
Figura 05 – Proposta de intervenção (comprometimento do entorno). Redesenho: Pabllo Nunes; Rômulo Marques, 2016.
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holística comprometida em função da enorme barreira visual decorrente da implantação equivocada pretendida. (Figura 05). “Ostentar a marca de nosso tempo” de maneira a não induzir ao engano constitui o critério da “distinguibilidade”, previsto no artigo 9º da Carta de Veneza, através do qual a intervenção deve negar o mimetismo óbvio, ou seja, não se disfarçar fazendo-se uso de tradições e materiais da obra original, e ser evidente, com a utilização de materiais e tecnologia do seu tempo. A aplicação deste princípio em obras de maior distanciamento temporal da atualidade apresenta-se como uma tarefa de fácil execução. Todavia, quando se trata de um exemplar da modernidade arquitetônica, a leitura deste critério torna-se menos clara. Tangivelmente, a proposta do anexo diferencia-se do edifício original, porém, com uma solução medíocre, óbvia em demasiado. O sistema construtivo segue o mesmo utilizado no Tribunal: concreto armado com vedação em alvenaria. A diferença consiste apenas nos revestimentos e elementos construtivos empregados, que não assumem uma conversa, tampouco buscam criar um diálogo contrastante coeso. A diferenciação do edifício sede não ocorreu em satisfação ao critério de distinguibilidade, mas como uma solução trivial de um programa solicitado, sem qualquer preocupação com a preservação do bem em questão. AÇÕES REACIONAIS À PROPOSTA A família do arquiteto foi o primeiro grupo a posicionar-se contra a proposta. Ao tomar conhecimento do projeto, os herdeiros do autor do edifício sede, Carmen, Eduardo e Marco Antonio Gil Borsoi, denunciaram ao Conselho de Arquitetura e Urbanismo do Piauí a violação do Direito Autoral, uma vez que os mesmos alegaram que não tiveram participação na elaboração da proposta, tampouco foram consultados. No início do mês de fevereiro de 2016, a coordenadora do Grupo de pesquisa FORM PI, ao tomar conhecimento do início da obra do Anexo do TJ, sem ter sido devidamente aprovada pela SDU Centro Norte/PMT e sem considerar o valor patrimonial do edifício sede, iniciou um movimento nas redes sociais, bem como junto aos colegas pesquisadores e às instituições
preservacionistas como DOCOMOMO Brasil e ICOMOS Brasil, em prol da proteção do edifício projetado pelo mestre Borsoi e sua equipe, chamando atenção para a perda que seria para a história da arquitetura moderna brasileira ter tal monumento descaracterizado. No dia 29 de fevereiro de 2016, o DOCOMOMO Norte/Nordeste criou uma petição online no site Avaaz.org, intitulada “Proteção do edifício do Tribunal de Justiça do Piauí”, que contou com mais de 400 assinaturas de pessoas de diversas localidades do país. Sob grande apoio de estudiosos da área, como a Prof.ª Dr. ª Alcília Afonso, coordenadora geral do 6º DOCOMOMO Norte/Nordeste; da Prof. Dr. ª Ruth Verde Zein, autoridade internacional na área de brutalismo; do Prof. Dr. Fernando Diniz, coordenador geral do DOCOMOMO Brasil e conselheiro federal do CAU-BR; do Prof. Dr. Leonardo Castriota, presidente do ICOMOS Brasil; de estudantes do curso de arquitetura da Universidade Federal do Piauí, Instituto Camilo Filho e Centro Universitário Uninovafapi e sociedade em geral, o CAU-PI, também motivado pela denúncia realizada pelos herdeiros, em ação conjunta ao Ministério Público do Estado do Piauí, por intermédio da 24ª e 30ª Promotorias de Justiça de Teresina/PI, propuseram, no dia 11 de março de 2016, uma Ação Civil Pública com pedido de liminar inaudita altera pars. No dia 04 de maio de 2016, em audiência realizada na 6ª Vara da Seção Judiciária do Piauí, com representantes do CAU-PI, da Procuradoria da República, da Fundação Cultural Monsenhor Chaves, da Procuradoria do Estado, do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, da 30ª Promotoria de Justiça e do Tribunal de Justiça, acordou-se que os técnicos das partes envolvidos reunir-se-iam no dia 23 do mesmo mês para discutirem e deliberarem propostas visando à conciliação. Nesta reunião, conforme acordado, o CAU-PI apresentou uma proposta elaborada em parceria com a UFPI. Sugeriu-se que o anexo fosse transferido para um terreno situado no entorno imediato ao prédio, de propriedade do Estado do Piauí, e tendo em vista que há outras obras do arquiteto no entorno, como a Assembleia Legislativa, uma escultura de concreto armado e a própria praça des. Edgar Nogueira, recomendou-se que fosse aberto um concurso de intervenção em toda a área, de forma a valorizar o acervo arquitetônico de Borsoi, assim como solucionar diversos problemas funcionais que a área apresenta, sendo o principal relacionado ao fluxo de veículos. (Figura 06).
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Figura 06 â&#x20AC;&#x201C; Contraproposta apresentada pelo CAU-PI/UFPI. Maquete virtual: RĂ´mulo Marques, 2016.
Em audiência realizada aos 05 dias do mês de junho de 2016, com representantes das partes envolvidas, o Tribunal de Justiça informou que desistiu da construção do anexo em questão. No despacho do processo, ficou estabelecido um prazo máximo de 30 (trinta) dias para que a Fundação Cultural Monsenhor Chaves apresente um cronograma de conclusão do pedido de abertura do processo administrativo de tombamento, e que o IPHAN dê continuidade ao processo já instaurado na superintendência do Piauí. Até o fechamento deste artigo, então, o edifício sede do Tribunal de Justiça do Estado do Piauí, de autoria do renomado arquiteto Acácio Gil Borsoi, não se encontrava tombado, porém, já protegido em decorrência da abertura do processo.
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consideraçõe finais
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A demanda de adequação dos espaços a novos usos é uma questão que não pode ser desconsiderada. Preservar um bem cultural não significa engessálo, pois assume-se o risco de esvaziá-lo e induzi-lo a uma condição de ócio que pode acarretar em sua destruição física e, por consequência, simbólica. Não obstante, as intervenções necessárias devem ser precedidas de estudos comprobatórios da possibilidade de compatibilização do novo uso solicitado assim como a garantia de preservação dos valores do bem intervindo. Quando se trata do restauro e conservação do patrimônio recente, o curto distanciamento temporal tem comprometido não somente o olhar crítico por parte de especialistas, mas a apropriação de um bem enquanto patrimônio cultural de uma dada sociedade por esta própria sociedade. A prática projetual contemporânea, cada vez mais, dá-se em espaços com pré-existências de maior ou menor valor. É dever do arquiteto estar inteirado dessa discussão para ter a capacidade de identificar quais elementos devem ser preservados afim de se assegurar o direito de acesso de determinado bem a futuras gerações e da conservação da memória coletiva. O profissional deve ter consciência e responsabilidade para intervir de maneira além do atendimento a uma solicitação imediata, como esta necessidade de ampliação do Tribunal de Justiça do Piauí. O pragmatismo deve ser subvertido para que se garanta a preservação de conjuntos ou obras isoladas de valor arquitetônico relevante para a sociedade. As pesquisas acerca do patrimônio recente ainda não se encontram esgotadas, mas o que se pode concluir até o momento é que para se intervir nesse acervo, o levantamento de dados, o entendimento do discurso do autor, a significação cultural e a coerência da solicitação devem ser sensivelmente ponderadas. No caso de Teresina, toda essa situação foi proveitosa pois abriu em âmbito local a discussão para preservação do patrimônio recente da cidade, que
é vasto, rico e de qualidade incontestável, cuja ações de acautelamento fazem-se emergenciais para que se preservem para a posterioridade, esses testemunhos de períodos relevantes da história do povo teresinense.
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bibliografia
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capĂtulo
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modernidade (arqui)tectĂ&#x201D;nica: a arte de contruir RICARDO PAIVA
resumo
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O presente trabalho é um ensaio teórico sobre o conceito ampliado de tectônica e sua relação com a modernidade arquitetônica, enfatizando em uma perspectiva histórica a dimensão social (econômica, política e cultural-ideológica), o papel dos agentes e a articulação com os meios de representação. Para reforçar o argumento do lugar da tectônica no debate teórico e prático da disciplina, estabelece um paralelo entre aspectos da arquitetura moderna e da contemporânea. O rebatimento das discussões na análise de alguns poucos exemplos empíricos da expressão da tectônica na arquitetura moderna em Fortaleza apontam para a necessidade de refletir sobre a validade dos princípios da modernidade na produção da arquitetura na atualidade. Some-se a isto a urgência da documentação e conservação deste importante patrimônio cultural, tanto pelo seu valor como testemunho da trajetória dos arquitetos e demais agentes e dos processos de modernização híbridos e contraditórios, como pela herança da criatividade frente à (in)disponibilidade de recursos em nosso meio. Assim, torna-se imprescindível ratificar a modernidade (arqui)tectônica como expressão da “arte de construir”. Palavras-chave: Arquitetura moderna; tectônica; Fortaleza.
Keywords: Modern architecture; tectonic; Fortaleza.
abstract
The present work is a theoretical essay about the broad concept of tectonics and its relation with the architectural modernity, emphasizing in a historical perspective the social dimension (economic, political and cultural-ideological), the role of the agents and the articulation with the means of representation. In order to reinforce the argument of the place of tectonics in the theoretical and practical debate of the discipline, it establishes a parallel between aspects of modern and contemporary architecture. The reflection of discussions in the analysis of a few empirical examples of the expression of tectonics in modern architecture in Fortaleza indicates the need of reflecting about the validity of the principles of modernity in the production of architecture today. In addition, the urgency of documentation and conservation of this important cultural heritage, both for its value as a testimony to the trajectory of the architects and other agents and the hybrid and contradictory modernization processes, as well as for the inheritance of creativity in the face of the unavailability of resources in our context. Thus, it becomes essential to ratify (archi)tectonic modernity as an expression of the â&#x20AC;&#x153;art of buildingâ&#x20AC;?.
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BREVES REFLEXÕES CONCEITUAIS Uma das interpretações possíveis acerca do conceito de arquitetura remonta à etimologia da palavra, que possui uma relação de origem com o significado e o significante de “tectônica”. Segundo a interpretação de Brandão (2001), para os gregos, o vocábulo arquitetura se refere ao termo “tektonicos”, no sentido de carpinteiro, fabricante, ação de construir, precedido pelo radical “arché”, significando origem, começo, princípio, autoridade. Nessa gênese conceitual da arquitetura, a arché qualifica os edifícios como objetos artísticos, distintos da simples construção. A arché é o centro da esfera social daquele mundo e deve ser traduzida nos edifícios, apresentando os deuses, a história e a conformação ética do povo grego. Por essa razão, distinta da simples construção, a arquitetura reenvia-nos às origens, aos princípios fundamentais e às leis originais e éticas que atravessam uma sociedade (BRANDÃO, 2001, p.27).
Nesta abordagem filosófica e histórica, é patente a dimensão artística e cultural da arquitetura. Entretanto, é importante salientar que não se trata unicamente de uma distinção entre arquitetura e construção, determinada pela existência de valores artísticos intrínsecos aos edifícios com maior representatividade simbólica, frequentemente associados aos seus atributos formais e/ou estéticos e ao poder dos atores sociais aos quais alude, mas um saber-fazer expresso na relação dialética entre a natureza técnica e artística contida nos edifícios. A equivalência do significado de técnica e arte, correspondendo respectivamente aos termos techne (grego) e ars (latin), como aquilo “que é ordenado ou toda espécie de atividade submetida a regras”(CHAUÍ, 2002),sugere que a arquitetura se sustenta em um conhecimento e em uma prática comprometida com a arte (ou técnica) de construir. A “arte da construção” é um dos “departamentos” da arquitetura, já afirmava Vitruvio (1985). A tríade vitruviana (utilitas, firmitas e venustas), que consiste em um sistema teórico e prático da arquitetura na Antiguidade e que permanece com grande força interpretativa na contemporaneidade, confirma que a tectônica, mais próxima da ideia de firmitas (firmeza e estabilidade construtiva), constitui um elemento intrínseco à arquitetura e à
sua concepção, fabricação e produção (inclusive simbólica), enfim, à construção. Ademais, a diferença entre os significados de práxis (ação) e poiésis (fabricação) foi responsável, respectivamente, pela distinção entre as artes ou técnicas liberais, como a gramática, dialética, retórica, aritmética, geometria, música e astronomia, francamente com maior status dentro da divisão social do trabalho e, as mecânicas, como a agricultura, a arquitetura, a pintura, a escultura, a guerra, o comércio, entre outras. Trata-se das artes ou técnicas que dirigem o trabalho da razão e as que dirigem o trabalho das mãos, sendo as artes liberais superiores às mecânicas, muito embora a arquitetura já possa ser enquadrada na interseção de ambas. A classificação das técnicas ou artes seguirá um padrão determinado pela sociedade antiga e, portanto, pela estrutura social fundada na escravidão, isto é uma sociedade que despreza o trabalho manual. (CHAUÍ, 2002:317)
Somente no contexto da passagem da Idade Média para a Moderna, verifica-se, com o Humanismo, um esforço de elevação das artes mecânicas (como a arquitetura, a escultura e a pintura) à condição de artes liberais, em função da valorização e dignificação do trabalho manual, bem como do papel da ciência no desenvolvimento material e artístico que se anunciava. Com o Renascimento, a relação entre arte e técnica ficou condicionada pelo progresso científico, que permitiu o desenvolvimento simultâneo de diversos saberes e, no caso da arquitetura (escultura e pintura) alçou o desenho, por meio da invenção da perspectiva científica, à categoria de linguagem da técnica e da arte, cumprindo um papel essencial no contexto inventivo da época, na busca pelo domínio da natureza. Embora esta relação entre arte e técnica persista, o achado da perspectiva científica e seu impacto no projeto de arquitetura possibilitaram uma emancipação sem precedentes dos arquitetos e artistas (HAUSER, 1998), repercutindo na separação entre o trabalho intelectual e o manual e, consequentemente, nas atribuições distintas do processo de materialização da arquitetura. De um lado: aquele que cria e concebe e de outro: aquele que executa e constrói. Martinez (2000) considera que os arquitetos renascentistas estabeleceram uma
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competência profissional fundada no domínio dos meios de representação, que resultou em uma autonomia da arquitetura em relação à construção, situação que vigora até a atualidade. Com o advento da modernidade, suscitada pela Revolução Industrial a partir da segunda metade do século XVIII e de forma mais intensa no século XIX, há uma tendência em associar à técnica aquilo que é utilitário e à arte aquilo que tem por finalidade o belo. Neste contexto, há uma mudança significativa na relação entre arte e técnica, posto que a técnica se aprimora e vira tecnologia, ou seja, não é somente ação fabricadora de acordo com regras e receitas, mas um processo e uma forma de conhecimento. A origem etimológica da palavra tecnologia ratifica isto, uma vez que se origina da articulação entre téchne, como técnica, e logos, associado à razão, ao estudo, ao processo. Portanto, o sentido de tecnologia seria equivalente aos ordenamentos teóricos e práticos, isto é, à ciência da técnica. Mas se téchné tem seu correspondente no latim ars, pode-se inferir que tecnologia pode denotar também a ciência da arte. Vianna (1989) reforça esta diferença ao considerar que a técnica é hard e a tecnologia é soft. Assim, a arquitetura no século XIX se encontra em uma encruzilhada entre o belo e o útil, entre a arte e a técnica, pois, ao mesmo tempo que procurou dar respostas às demanda crescentes impostas pela sociedade industrial, inovando em alguns aspectos construtivos, espaciais e funcionais, reduziu a dimensão artística da arquitetura ao caráter superficial e epidérmico do ornamento, traduzida em uma linguagem arquitetônica de matriz historicista, notadamente eclética e suas variações, onde fica evidente a contradição entre a dimensão tecnológica e artística, esta última restrita à estilística. Assim, a modernidade exige uma resposta adequada à questão da tectônica, que compreende os primeiros esforços de assimilação dos avanços da industrialização, por meio de formas ainda contraditórias, até o surgimento da arquitetura moderna. É possível afirmar, assim, que a modernidade (arqui)tectônica, especialmente do Movimento Moderno, representa uma síntese entre arte, técnica e tecnologia, uma espécie de tomada de consciência dos arquitetos em relação à disponibilidade de recursos materiais e humanos, processos e técnicas, colocando-os a serviço de uma linguagem arquitetônica apropriada e comprometida como o espaço e o tempo da sua existência material.
POR UM CONCEITO AMPLIADO DE TECTÔNICA A modernidade confere à tecnologia o papel de protagonista na produção do espaço social, criando novos conceitos e processos artísticos e técnicos pautados em uma transformação sem precedentes da natureza pela cultura. A ampliação dos conhecimentos científicos e a disponibilidade de instrumentos de trabalho cada vez mais poderosos e eficientes se traduzem numa crescente capacidade de transformação social do espaço circundante. As sucessivas revoluções tecnológicas que o desenvolvimento histórico das formações sociais registra significam um incremento acumulativo de seu domínio sobre a natureza. (BARRIOS, 1986:3)
Embora a produção do espaço seja, historicamente, resultado da alteração da natureza pelo trabalho do homem em um determinado modo de produção, capitalista ou não, é evidente que houve um incremento nas possibilidades de transformação da natureza em função das práticas sociais (econômicas, políticas e cultural-ideológicas) da modernidade, alicerçada, sobretudo, na lógica da produção industrial como redentora no processo de desenvolvimento econômico, no progresso e no domínio do ambiente natural, sob a égide de um Estado interventor e em nome dos valores simbólicos da razão e do pensamento universal. As mudanças tecnológicas suscitadas pelo modo de produção capitalista induziram a rápidas transformações no meio natural, uma vez que a tecnologia moderna não somente mediou, mas intensificou o suposto antagonismo entre o homem e a natureza, com repercussões importantes no papel da tectônica na arquitetura. Entretanto, é importante ressaltar que se verifica, na realidade, uma relação dialética entre natureza e cultura, pois: O desenvolvimento tecnológico não se contrapõe à natureza, de que é, na verdade, a face oculta – com todas as suas potencialidades virtuais – revelada através do intelecto do homem - vale dizer, através da própria natureza no seu estado de lucidez e de consciência (COSTA, 1983).
A disponibilidade de recursos naturais na forma de matéria-prima passa por processos mais sofisticados de transformação, viabilizados pela indústria e os instrumentos e máquinas decorrentes, que redundaram na superação dos processos construtivos do
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passado, restritos à madeira, à cerâmica e à pedra, e que foram sendo acrescidos, adaptados ou substituídos pelo ferro, o aço, o concreto (armado) e o vidro. Desta forma, a tectônica, como a arte da construção, se identifica com um processo mais aprimorado, atrelado agora à industrialização, que preside o projeto e a materialização da arquitetura, desde a concepção à construção, estabelecendo uma nova divisão social do trabalho consoante à complexidade acarretada pela modernidade. Este incremento se manifesta em termos na intensificação da vida urbana, nas tipologias e nos programas de necessidades, nas estruturas e infraestruturas e na produção em série. Este conceito ampliado de tectônica, condicionado pela tecnologia (ideias e técnicas), pressupõe considerar, além dos processos sociais (econômicos, políticos e simbólicos) supracitados, o papel dos agentes envolvidos (arquitetos, engenheiros, operários e clientes) e a importância dos meios de representação. No final do século XIX, os engenheiros tencionaram resolver a contradição entre arte, técnica e tecnologia, propondo soluções arquitetônicas e urbanas condizentes com o surgimento dos novos materiais modernos (aço, o concreto e o vidro) sem propriamente abdicar do ornamento como um atributo “artístico”. Neste cenário, desde o século XVIII, a formação de arquitetos e engenheiros, se contrapõem como projetistas, e consequentemente, como pressupostos e produtos. Os primeiros, formados nos moldes academicistas das Escolas de Belas Artes, dispunham de um repertório de “estilos” pseudohistóricos, que eram arranjados conforme as tendências do ecletismo (ARGAN, 2006). Os segundos constituíam uma classe intermediária que surgiu entre os cientistas, artistas e artesãos, formados em Escolas Politécnicas, que combinavam uma competência científica inserida na produção industrial crescente (ARGAN, 2006), ocupando papel destacado neste contexto, ao inovarem sobremaneira no cálculo estrutural e na construção civil de edifícios e obras de infraestrutura. Algumas destas obras revelam mudanças na arte de construir, com contribuições inegáveis dos engenheiros, pois: Nessa nova sensibilidade estética a ideia de solidez arquitetônica não está mais ligada à forma geométrica, mas aos conhecimentos técnicos da construção. Mais particularmente, esses projetos demonstram uma tomada
de consciência das partes fisicamente ativas e inativas da construção, e o esboço de uma abordagem estrutural do edifício (AMARAL, 2009, p.152)
Entretanto, a questão da tectônica não estava totalmente ausente no debate arquitetônico do período. Viollet-le-Duc e Auguste Choisy na França, Carl Bötticher e Gottfried Semper na Alemanha, buscaram compreender, em uma perspectiva teórica e histórica, a relação da arquitetura com a construção (AMARAL, 2009). Ainda que discutissem as possibilidades de um estilo moderno, e tenham dado contribuições para o que estava por vir, “eles tinham um conceito muito primário de sua forma” (CURTIS, 2008, p. 11). Para além do aporte destes teóricos, a tecnologia industrial, condição para a reprodução e expressão simbólica do capitalismo, passou ser a mola propulsora de uma transformação sem precedentes na concepção e produção da arquitetura, presidida pelo novo perfil do profissional arquiteto, comprometido agora como o planejamento urbano, a cidade e a construção. Já não se trata da velha distinção entre empíricos e teóricos, entre artistas e engenheiros, e sim de uma distinção de ordem moral, segundo a qual os arquitetos que se colocam concretamente o problema funcional da cidade são os únicos a empreender uma livre pesquisa e a alcançar resultados esteticamente válidos (ARGAN, 2006, p. 264).
Estes “resultados esteticamente válidos” os quais Argan menciona, se referem às manifestações do Movimento Moderno, que perseguia uma conciliação entre a dimensão técnica e artística apropriadas às demandas econômicas, políticas e culturais da modernidade e às suas expressões simbólicas, estéticas e artísticas, muitas delas vinculadas aos movimentos de vanguarda. Não livre de transições e contradições, a arquitetura racionalista que se anunciava e reproduzia com mais coerência a lógica da produção industrial, criou uma ruptura consciente nos aspectos espaciais, funcionais, construtivos e estéticos da arquitetura e do urbanismo no início do século XX. É importante destacar que divisão social do trabalho da lógica da produção passa a comparecer na indústria da construção civil, com a compartimentação dos processos e tarefas dos operários, submetidos à especialização e racionalização das diversas funções e etapas dentro do canteiro para a consecução da obra, favorecendo a alienação e o
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controle da força de trabalho, do mesmo modo que se verificava nas fábricas. Embora a princípio estivessem vinculados aos estilos históricos, o Estado e os proprietários dos meios de produção também foram agentes incentivadores da arquitetura moderna, usufruindo dos benefícios econômicos, políticos e simbólicos por ela suscitados, contribuindo para a legitimação e reprodução da sua hegemonia econômica e/ou política. No momento em que a arquitetura moderna se torna um caminho sem volta, a polêmica entre as competências de engenheiros e arquitetos se dilui e se transforma a partir de então em uma contraposição entre a arquitetura moderna, identificada com as demandas da sociedade (habitação, equipamentos urbanos e culturais, etc) e, a arquitetura acadêmica, associada à arquitetura das instituições (ARGAN, 2006). A compreensão da tectônica como processo se sustenta ainda nos avanços dos meios de representação na modernidade que, herdados do Renascimento, constituem também uma expressão da técnica e da tecnologia, portanto, manifestações da arte de construir. Assim, o desenho também se confirma como uma técnica e uma tecnologia, presente não somente na ordem das coisas, mas na ordem das ideias (por meio do projeto), que possibilita uma intervenção e transformação da natureza em espaço social, das coisas em objetos. Para Artigas (1999:70), “dominar a natureza foi e é criar uma técnica capaz de obrigá-la a dobrar-se às nossas necessidades e desejos”. Na modernidade, os meios de representação constituem uma forma de produção de conhecimento, expressas na condição do desenho como linguagem e, como tal, funciona como um meio de comunicação, de transmissão de valores econômicos, políticos, culturais, ideológicos, históricos, entre outros. Estes meios de representação foram instrumentos para o desenvolvimento da subjetividade dos arquitetos, que passaram a incorporar processos de projeto mais abstratos, afastando-se das práticas miméticas anteriores e se aproximando cada vez mais dos aspectos estruturais e construtivos. A premissa de independência das estruturas em relação às vedações, presentes nos discursos e práticas nos pioneiros do modernismo, ratificam esta preocupação.
Embora a cultura arquitetônica moderna se projete como uma ruptura com o historicismo, ela é tributária dos avanços tecnológicos gestados no século XIX. O Movimento Moderno, nas suas mais variadas tendências e correntes artísticas, se comprometeu em “interpretar, apoiar e acompanhar o esforço, progressista, econômico-tecnológico, da civilização industrial” (ARGAN, 2006, p. 185). O movimento foi tão eloquente que inaugurou uma nova tradição arquitetônica, rompendo com a milenar hegemonia da linguagem clássica, além de revolucionar as possibilidades de uso do espaço. Nada disso seria possível sem uma mudança significativa na “arte de construir”. Em síntese, o conceito ampliado de tectônica pressupõe a compreensão dos processos condicionados pelas práticas sociais, os agentes e os meios de representação, conforme evidenciado na Figura 01. TECTÔNICA: DO MODERNO AO CONTEMPORÂNEO Conforme destacado anteriormente, é na modernidade arquitetônica, sobretudo com a consolidação do Movimento Moderno, que a tectônica comparece efetivamente no processo de projeto e construção da arquitetura atrelado à industrialização, muito embora o termo, para Amaral, fique no ostracismo. Lembremos que a teoria da arquitetura do século 20 considerou a discussão em torno da construção, e, por consequência, sobre a materialidade da arquitetura, como um debate secundário, a exemplo dos discursos clássicos da arquitetura moderna, como os de Bruno Zevi, Siegfired Giedion, e o próprio Le Corbusier, que deram preferência à noção de espaço arquitetônico, e, em segundo lugar, a de função, ofuscando, assim, a de tectônica (AMARAL, 2009, p. 160).
Entretanto, é necessário admitir que a ênfase na tectônica é intrínseca ao Movimento, uma vez que a questão espacial e funcional é decorrente da relação entre os meios construtivos, a forma e a função, revelando assim, que não faz sentido estabelecer a hierarquia supracitada. Prova disso é que Frampton, em “Studies in tectonic culture”, de 1995, analisa a validade do conceito de tectôncia com base na obra de grandes mestres do modernismo, como: Frank Lloyd Wright, Auguste Perret, Mies van der Rohe, Louis Kahn, JornUtzon e Carlo Scarpa.
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Figura 01 – Síntese Conceito de tectônica como processo. Fonte: elaborado pelo autor
Depois de Frampton colocar a questão da tectônica como um dos principais temas da arquitetura pós-moderna, o termo adquiriu várias acepções e usos, inclusive pelo próprio teórico, mas todos ainda relacionados à noção de construção. Não há dúvidas que a variedade de sentidos associados ao termo tectônica durante os dois últimos séculos levou a uma grande ambigüidade de aplicação, existindo, de um lado, sua compreensão como sistema construtivo, como arquitetura de sistemas construtivos leves (principalmente em referência à madeira), como uma arquitetura na qual a lógica do sistema construtivo é deixada aparente, e, em aplicação mais geral, associada à arquitetura como “arte da fabricação”, na qual a construção é veículo de sua expressão artística. O importante é que, apesar da polissemia e das contradições, Frampton, com a questão da tectônica, forneceu munição para novas perspectivas analíticas, ultrapassando a discussão centrada quase exclusivamente na noção de espaço, típica do modernismo, bem como as discussões sobre a imagem e o significado, típicas do pós-modernismo (AMARAL, 2009, p. 160).
Embora não seja possível generalizar, é importante estabelecer alguns paralelos entre a expressão da tectônica na arquitetura moderna e na contemporânea. A forma na arquitetura moderna pode ser vista como um agenciamento da lógica do objeto (KAPP, 2003), não simplesmente como dedução da construção e da estrutura (mas com impacto importante), uma vez que ela é condicionada tanto pelas propriedades estéticas dos materiais, como pela linguagem artística da vanguarda. Assim, a forma pode ser considerada como uma estrutura, ou seja, um conjunto de partes que reagem de modo sistêmico, ao contrário da ideia de autonomia da forma a partir do pós-modernismo, reduzindo-se à imagem e ao aspecto visual, tornando algumas das tendências da arquitetura contemporânea a-tectônicas, uma vez que a dimensão construtiva é subtraída. Com base neste paralelo, podemos inferir que, ao passo que a forma moderna é uma expressão da lógica da fabricação, da produção industrial; a forma contemporânea é uma expressão da imagem, do consumo, posto que a arquitetura adquire a condição de mercadoria altamente valorizada.
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Assim, na arquitetura contemporânea, verifica-se um processo de fetichização da mercadoria por meio de sua imagem, expressa em sua aparência superficial, induzindo a criação de formas espetaculares e se valendo da “renda da forma” como um ativo econômico, ou seja, “a utilização da arquitetura para a obtenção de ganhos monopolistas derivados da atração proporcionada por suas formas únicas e impactantes” (ARANTES, 2012, p.119). Em geral, os elementos estruturais e construtivos são preteridos em detrimento de uma forma icônica e espetacular (PAIVA, 2016). A negação do ornamento, atitude típica e consciente do Movimento Moderno, visava explicitar a tectônica e a lógica construtiva do edifício em uma forma pura, mais abstrata. Desde as críticas ao Movimento Moderno pelo Pós modernismo, as discussões apontaram para um novo estatuto do ornamento, traduzidos de um lado pelas vertentes historicistas ou de um “novo” ecletismo, copiando ou ressemantizando o vocabulário clássico, e de outro, se valendo das novas tecnologias dos materiais e dos meios de representação para a criação e valorização das peles e superfícies dos edifícios. Nestes casos, a tectônica comparece incorporando os avanços no campo digital, visíveis na utilização de fachadas responsivas e na parametrização dos seus condicionantes, apropriando-se de geometrias complexas e não euclidianas. Na arquitetura moderna, há geralmente uma consciência construtiva desde o processo de projeto, contribuindo sobremaneira para evidenciar a tectônica dos edifícios absolutamente intricada com a forma, ao passo que a arquitetura contemporânea se caracteriza por tendências marcadas por uma certa inconsistência em relação aos processos construtivos, uma vez que eles não comparecem necessariamente na forma. No último caso, a forma é concebida de maneira autônoma e independente, por vezes verdadeiramente desconstruída. Este apelo formal, presente em diversas tendências e “posturas arquitetônicas” (MONTANER, 2001) na contemporaneidade, são expressões da subjetividade dos arquitetos e das infinitas possibilidades dos meios de representação. Ainda assim, é possível perceber permanências modernas na produção da arquitetura contemporânea, onde a tectônica tem primazia, seja na utilização de materiais gestados desde a industrialização, seja em materiais de construção inovadores ou ainda na incorporação dos princípios da sustentabilidade arquitetônica. A Figura 02 ao lado sintetiza estes aspectos.
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Figura 02 – Tectônica: arquitetura moderna x arquitetura contemporânea. Fonte: elaborado pelo autor
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MODERNIDADE (ARQUI)TECTÔNICA EM FORTALEZA: À GUISA DE CONCLUSÃO. A modernidade arquitetônica gestada em países periféricos, malgrado as suas idiossincrasias, é fruto de uma síntese de valores universais e locais. A industrialização se tornou hegemônica no mundo inteiro e impôs transformações nos materiais e nos modos de produção da arquitetura e da engenharia, que repercutiram de forma variada nos lugares. Verifica-se, assim, um processo de transculturação, síntese dos avanços tecnológicos com a cultura construtiva local. No caso específico do Brasil, a arquitetura moderna se desenvolveu em um contexto de modernização contraditória, em que a industrialização não estava propriamente consolidada e onde houve conscientemente um interesse de resgatar valores históricos e tradicionais do passado colonial. Um exemplo revelador deste sincretismo se refere à ampla aceitação da tecnologia do concreto, que se adaptou muito facilmente os meios materiais e humanos locais, francamente representados por uma mão-de-obra arraigada a técnicas artesanais. A construção em madeira das formas de concreto é um exemplo típico deste processo. Em Fortaleza, o modernismo arquitetônico incorpora principalmente o concreto, mas há a permanência de aspectos da cultura arquitetônica local, como o uso da madeira, tanto nas esquadrias de venezianas articuladas, como em elementos da cobertura. Se por um lado a difusão do modernismo impõe uma mudança no canteiro e nos processos construtivos locais, sobretudo como o uso do concreto aparente, permanece uma exigência de uma mão-de-obra artesanal, necessária para a fabricação de formas para o concreto e de elementos de vedação e cobertas. A tectônica moderna comparece ainda nos projetos e nos meios de representação, francamente concebidos dentro de uma racionalidade estrita, visíveis nas modulações da estrutura e na sua independência em relação às vedações, assim como com o apuro no desenho e no detalhamento. O papel dos engenheiros e calculistas em parceria com os primeiros arquitetos de formação modernista foi crucial para o desenvolvimento da arquitetura moderna em Fortaleza.
Os edifícios públicos, pela exigência de flexibilidade dos seus usos, são um dos exemplos dentre vários que absorvem esta racionalização, como é o caso do Edifício do Ministério da Fazenda de Fortaleza (1975-1979) de Acácio Gil Borsoi, que se vale de uma coordenação modular de 1,25m, princípio que preside toda a estruturação do edifício, concatenando a maioria dos elementos da construção: estrutura, vedações, esquadrias, brises, proteções, forros, pisos e o próprio mobiliário. Todo este processo tectônico aparece explicitamente no projeto e no edifício. A própria “coordenação modular” é impressa na fachada, funcionando como uma espécie de manual de construção e intervenção do/no edifício, modos de fazer e usar (Figura 03). O edifício-sede do Banco do Nordeste do Brasil – BNB (projeto de 1978), de autoria dos arquitetos cearenses Nelson Serra e Neves, Antônio Campelo, José Alberto de Almeida e Carlos Alberto Costa expressam com muita eloquencia a tectônica moderna, seja na definição da estrutura, em nome da flexibilização do espaço, seja na expressão formal da edificação, que sintetiza de modo sincero a solução como um todo (Figura 04). Outra expressão característica da tectônica na arquitetura moderna em Fortaleza ocorre quando a estrutura per si define os espaços, a função, o uso e a forma do edifício, como se verifica na Estação Rodoviária Eng° João Thomé (1969), do arquiteto cearense Marrocos Aragão (Figura 05) e no Estádio Governado Plácido Castelo (1969), mais conhecido como Castelão, daequipe de arquitetos José Liberal de Castro, Gerard Bormann, Marcílio Luna, e Reginaldo Rangel (Figura 06). No Castelão: A racionalidade da obra não se manifesta apenas no sistema construtivo, composto de sessenta pórticos que determinavam a coerência da composição, mas no agenciamento dos aspectos funcionais, na definição rigorosa dos acessos, dos fluxos (inclusive de escoamento), dos setores. O edifício, apesar da proporção avantajada, apresentava uma unidade formal muito evidente, visível na repetição e continuidade formal da unidade estrutural que o pórtico representava. Aliás, a expressão formal resultava explicitamente da solução estrutural, potencializada pelo uso do concreto aparente que, de certa maneira, reforçava o caráter público e coletivo do edifício (PAIVA, 2013, p. 5).
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Figura 03 – Coordenação modular – Ministério da Fazenda (1975-1979) – Acácio Gil Borsói. Fonte: elaborado pelo autor
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Figura 04 – Coordenação modular – Ministério da Fazenda (1975-1979) – Acácio Gil Borsói. Fonte: elaborado pelo autor
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Figura 05 - Estação Rodoviária Eng° João Thomé (1969), do arquiteto cearense Marrocos Aragão Fonte: Marrocos Aragão
A construção do Castelão exigiu o uso de uma quantidade significativa de madeira para apoiar as formas, além de um reaproveitamento rápido em função da necessidade de concretagem do pórtico com celeridade. Para tanto, conforme relato do coordenador da obra, o arquiteto Roberto Martins Castelo, foi utilizada a carnaubeira como escora em função da sua abundância e disponibilidade como recurso natural, além das suas propriedades físicas, que foram analisadas à época no IPT – Instituto de Pesquisas Tecnológicas em São Paulo, comprovando a sua boa resistência. Este último aspecto revela que a tectônica possui uma aproximação muito forte com a noção de lugar. Assim, uma consciência ecológica do lugar e da tectônica contribui para a produção de uma arquitetura mais sustentável, comprometida com as preexistências, a cultura e a identidade. As discussões teóricas e a apresentação de alguns poucos exemplos empíricos da expressão da tectônica na arquitetura moderna em Fortaleza apontam para a necessidade de refletir sobre a validade dos princípios da modernidade na produção da arquitetura contemporânea e sobre a urgência da documentação e conservação deste importante patrimônio cultural, tanto pelo seu valor como testemunho da trajetória dos arquitetos e demais agentes e dos processos de modernização híbridos e contraditórios, como pela herança da criatividade frente à (in)disponibilidade de recursos em nosso meio. Assim, torna-se imprescindível ratificar a modernidade (arqui)tectônica como expressão da “arte de construir”.
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Figura 06 – Castelão (1969), José Liberal de Castro, Gerard Bormann, Marcílio Luna, e Reginaldo Rangel Fonte: Museu da Imagem e do Som - Ceará
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capĂtulo
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Centros administrativos como tipologia urbana moderna: o caso do Cambeba em Fortaleza BRUNO MELO BRAGA RICARDO ALEXANDRE PAIVA
resumo
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A preservação do patrimônio de complexos urbanos ainda é algo rarefeito nas cidades brasileiras. Se, no caso de edifícios, ações preservacionistas já se fazem mais presentes, tal preocupação com relação a conjuntos edificados é bem mais recente. Iniciativas que visem à preservação de conjuntos edificados modernos são ainda mais raras. No entanto, é preciso reconhecer o legado material de alguns trechos urbanos do patrimônio deste período que não são apenas um aglomerado de edifícios modernistas, mas apresentam na sua implantação, distribuição espacial, inserção e configuração urbana uma evidente vertente do urbanismo racionalista. O abrigo das atividades governamentais agrupadas é uma questão clássica da arquitetura, que surge à medida que se aumenta a burocracia e as relações entre diferentes órgãos ou secretarias, exigindo articulações espaciais e funcionais cada vez mais complexas. No Brasil, seja na esfera municipal, estadual ou federal, a espacialização destas atividades em um centro político-administrativo concentrado surge como resposta à pulverização de repartições no traçado das cidades tradicionais, atuando também no sentido de legitimar o espaço do poder, cuja expressão máxima e modelar se deu com a construção de Brasília (Segawa, 2002). Neste contexto, o objetivo deste trabalho é analisar a proposta original do Plano Piloto para o Centro Administrativo Governador Virgílio Távora (o Cambeba), em Fortaleza, confrontando-o com o que de fato foi construído, enfatizando a importância desta tipologia enquanto conjunto urbano de valor patrimonial face ao pensamento moderno presente na sua concepção. Para tanto, o trabalho fará uma discussão teórica sobre o tema dos centros administrativos, com foco no Brasil, levantando alguns exemplares e suas características, aprofundando a análise no caso específico do Cambeba, através da comparação entre o Plano Piloto, principal fonte de análise do trabalho, e a situação atual em que se encontra. Palavras-chave: Arquitetura Moderna, Fortaleza (CE), Centros político-administrativos.
Keywords: Modern Architecture, Fortaleza (CE), Politic administrative centers.
abstract
The patrimonial preservation of urban complexes is still rare in Brazilian cities. If, in the case of buildings, these actions have become more present, such concern regarding urban sets is much more recent. Initiatives that aim to preserve modern urban complexes are even more rare. However, it is necessary to recognize the material legacy of some urban sites from this period that are not only a group of modern buildings, but have in its implantation, spatial distribution, insertion and urban configuration a clear vein of the rationalistic urbanism. The shelter for governmental activities grouped together is a classic matter in architecture, and rises with the increase of bureaucracy and the relations between different agencies and departments, demanding more complex spatial and functional articulation. In Brazil, either in the municipal, state or federal level, the spatial distribution of these activities in a grouped political administrative center is a response to the spread offices in the traditional cities, also acting to legitimize the place of power, whose maximum and model expression occurred with the construction of Brasilia (Segawa, 2002). In this context, the aim of this work is to analyze the original proposal for the Pilot Plan of the Administrative Center Governador VirgĂlio TĂĄvora (Cambeba), in Fortaleza, in comparing it with what was actually built, emphasizing the importance of this typology as an urban set of patrimonial value face modern theory in its conception. Therefore, the work will discuss the theory about political administrative centers, focusing in Brazil, raising some examples and its characteristics, deepening the analysis in the specific case of Cambeba, by comparing the Pilot Plan, main source of analysis of the work, with its current situation.
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INTRODUÇÃO A preservação do patrimônio urbano é uma prática ainda bastante rarefeita nas cidades brasileiras. Se a preservação de edifícios remonta à Revolução Francesa e já se faz mais presente em ações neste sentido, tal prática com relação a conjuntos edificados é bem mais recente, tendo início a partir de 1913, com os escritos do arquiteto e historiador Gustavo Giovannoni (ANDRADE JR., 2008). É preciso, nestes casos, identificar quais elementos possuem valor patrimonial, a fim de deixar claro o que deve ser preservado e mantido, o que é ainda mais complexo no caso do patrimônio urbano em relação ao edificado. É necessário criar critérios claros que não limitem as áreas de interesse, mas que garantam a permanência da integridade de seus objetos de valor, sejam eles elementos urbanos, como o desenho de vias e calçadas ou mesmo a estrutura fundiária original, sejam os elementos arquitetônicos que conferem a ambiência de tal área de interesse. Uma cidade histórica constitui em si um monumento, tanto por sua estrutura topográfica como por seu aspecto paisagístico, pelo caráter de suas vias, assim como pelo conjunto de seus edifícios maiores e menores; por isso, assim como no caso de um monumento particular, é preciso aplicar-lhes as mesmas leis de proteção e os mesmos critérios de restauração, desobstrução, recuperação e inovação. (GIOVANNONI apud ANDRADE JR. 2008)
É ainda menor a existência de ações que visem à preservação de conjuntos edificados modernos. No entanto, é preciso reconhecer o valor de alguns trechos urbanos deste período que, mais que apenas um aglomerado de edifícios modernistas, apresentam na sua implantação, distribuição espacial e configuração de inserção urbana uma forte veia moderna. Nas propostas originais destes conjuntos é possível identificar tanto o desenho moderno na disposição dos espaços livres como na implantação e funcionalidade gerada pelos edifícios modernos. Uma das tipologias mais representativas de conjuntos urbanos modernos são os centros político-administrativos1, presentes em várias cidades brasileiras, que reproduziram o pensamento moderno, tendo como exemplo maior a construção de Brasília. Sendo
assim, o objetivo deste trabalho é analisar a importância desta tipologia enquanto conjunto urbano de valor patrimonial, bem como as suas características inseridas no pensamento moderno, tendo como estudo de caso a proposta original do Plano Piloto para o Centro Administrativo Governador Virgílio Távora (1979), em Fortaleza. O trabalho fará uma discussão teórica sobre o tema dos centros administrativos, com foco no Brasil, levantando alguns exemplares e suas características, aprofundando a análise no caso específico do Cambeba, através da comparação entre o Plano Piloto, principal fonte de análise, e a situação atual em que se encontra. Apesar não ter sido implementado em sua integridade, julga-se importante analisar o projeto original para a melhor compreensão da essência do ideal moderno da proposta. CENTROS POLÍTICO-ADMINISTRATIVOS NO BRASIL O abrigo das atividades governamentais é uma questão clássica da arquitetura e do urbanismo, pois à medida que se aumenta a burocracia e as relações entre diferentes órgãos ou secretarias, exige-se articulações cada vez mais complexas. Seja na esfera municipal, estadual ou federal, a espacialização destas atividades em um centro político-administrativo concentrado surge como resposta à pulverização de repartições no traçado das cidades tradicionais, atuando também no sentido de espacializar o desejo de poder da nação e sobre a nação, cuja expressão máxima no Brasil se deu com a construção de Brasília (Segawa, 2002). Vale ressaltar, no entanto, as experiências anteriores de Belo Horizonte (1894) e Goiânia (1933) como exemplos de afirmação territorial de autoridade do poder público. Tanto em Belo Horizonte, como em Goiânia e também Brasília cidades administrativas e capitais construídas por deliberação do poder público, diretamente associadas seja a políticas gerais de colonização das fronteiras agrícolas, ou de expansão para fins geopolíticos, e no
Além dos centros político-administrativos, merecem destaque também algumas outras tipologias urbanas modernas, como os campi universitários e os conjuntos habitacionais, ambos bem representativos do urbanismo moderno e bastante presentes na legislação e expansão das cidades. 1
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bojo de políticas desenvolvimentistas alimentadas por ideologias do progresso e civilizatórias - encontraremos características semelhantes no que se referem às determinações simbólicas de seus traçados. O que lhes atribui um significado político específico, distinguindo-as de outras cidades novas, é, sobretudo, o desenho de seus centros cívicos. A estes é conferida uma forte monumentalidade, seja através da arquitetura dos edifícios públicos que vão se distribuir ao longo ou em torno de praças e grandes eixos, ou por meio da forma de seus espaços públicos e abertos, com um desenho geometrizado, regular e simétrico, quase barroco, com o emprego de vias estruturais ou diagonais, “pattés-d’oie” e praças estelares. (ANDRADE, 2000, p. 3)
Apesar, portanto, de não ser uma experiência pioneira neste sentido, Brasília exerceu forte influência em outras cidades brasileiras que construíram seus centros políticoadministrativos posteriormente. Ainda segundo Segawa (2002), na década de 1970, tornou-se recorrente a construção de grandes centros político-administrativos ocupando grandes vazios da periferia urbana, além da construção de monumentais centros administrativos para empresas estatais ou para-estatais. Fenômeno esse, relacionado ao milagre econômico do país e à centralização da administração pública pós-golpe de 1964. Desse modo, desenvolveram-se os centros administrativos de Salvador, Belém, Porto Alegre, Natal e Fortaleza, este último o objeto de estudo deste trabalho. Estes centros apresentavam algumas características similares, principalmente com relação à implantação e setorização dos edifícios, obedecendo a uma lógica extremamente racional, à imagem de Brasília. Do ponto de vista urbanístico, apresentavam sistema viário bem definido, com vias para automóveis que percorriam todo o complexo, abastecendo bolsões de estacionamento próximos aos blocos edificados. No que se refere à arquitetura, percebe-se a utilização de pontos de referência, como os acessos e os edifícios de maior destaque, sempre acentuados pelo desenho viário ou por elementos como esculturas, em contraponto aos demais edifícios administrativos que, muitas vezes, apresentavam-se mais discretos, com elementos repetidos que justamente destacavam os pontos focais, como as sedes de poder. Além disso, percebe-se nas soluções dos edifícios uma grande racionalidade construtiva, muito em função também de critérios de economia e manutenção.
Isso fica bastante claro, por exemplo, no Centro Administrativo do Piauí. Em seu plano original foi proposto uma via dupla periférica, interligada com conexões com o sistema viário existente, demarcando fisicamente o conjunto edificado. Esta via conecta-se a estacionamentos dispostos em forma de bolsões, dispostos ao longo dela e próximos aos blocos, que, por sua vez, são organizados dispondo as secretarias no sentido leste-oeste, com o palácio dos despachos ao centro, e complementados por um auditório e um centro de informática. Este arranjo oferece uma organização plástica e hierárquica, como era comum nestes projetos (Machado e Silva, 2009). No caso do Piauí, assim como na maioria dos centros administrativos similares, o projeto original acabou sofrendo diversas alterações no decorrer de sua implantação. Isso ocorre pelo longo período que se passa desde os planos originais até a construção, que normalmente acontece em etapas, uma vez que, pela própria magnitude de projetos desta escala, normalmente não há verba para implementá-los de uma vez. Outro fator que contribui para as alterações nos projetos originais é a própria mudança dos governos, o que tende a gerar uma descontinuidade de uma gestão para a outra. Assim, é fundamental nestes casos estudar tanto os projetos originais quanto os que de fato foram construídos, como será observado no caso específico de Fortaleza, onde os pontos levantados até o momento serão aprofundados. CENTRO ADMINISTRATIVO GOVERNADOR VIRGÍLIO TÁVORA NO CAMBEBA
O Plano piloto
É neste contexto que, no final da década de 1970, o então Governador Virgílio Távora, solicitou o projeto de um Centro Administrativo no bairro do Cambeba2. Foram convocados os escritórios dos arquitetos Neudson Braga, Francisco e José Nasser Hissa e Reginaldo Rangel para elaboração do plano diretor do centro, O bairro do Cambeba se localiza na região sudeste do município de Fortaleza, pertencendo à Secretaria Executiva Regional VI, e surgiu na década de 80 juntamente com o centro administrativo. 2
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tendo o arquiteto Luiz Fuiza sido integrado à equipe posteriormente. Após o início do projeto, o arquiteto Neudson Braga saiu do grupo, não participando dos créditos finais do projeto, nos quais constam os escritórios Nasser Hissa Arquitetos Associados, Reginaldo Rangel Arquitetura e Consultoria e Luiz Fiúza Arquitetos3. Intitulado Centro Administrativo do Estado do Ceará, o Plano Piloto (figura 01) estabelece logo em sua apresentação que sua principal diretriz era: (...) a edificação de blocos administrativos dotados de organização espacial flexível e dinâmica, de forma que cada unidade possa sofrer alterações em suas características funcionais, para atender às necessidades do serviço a que é destinada. (CEARÁ, 1979, p. 1).
Percebe-se logo na proposta o seu caráter funcional e flexível, características da produção moderna, o que será analisado com mais clareza posteriormente. Sobre o local de implantação, foi escolhido o Sitio São José do Cambeba, uma gleba de 47 hectares com topografia pouco acidentada e atravessada pelo sangradouro da Lagoa de Messejana, com a justificativa de restaurar a ocupação equilibrada da malha urbana, represada, ao longo dos anos, naquela região pelas áreas ocupadas pelo Aeroporto e pela Base Aérea de Fortaleza. As diretrizes projetuais contidas no Plano Piloto são de grande valor, pois atestam o viés moderno da proposta, desde o seu traçado viário e desenho urbanístico até aspectos construtivos dos edifícios.
Sistema viário Acerca do sistema viário básico, a intenção primordial era integrar com o sistema viário de Fortaleza, para o qual foram previstas as seguintes ações: criação de uma via arterial no limite norte do terreno, com caixa de 30 metros, incidente sobre a Rua Leão Veloso, leste, até
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Informação concedida pelo arquiteto Neudson Braga, em entrevista realizada em janeiro de 2016.
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Figura 01 – Capa do Plano Piloto para o Centro Administrativo do Estado do Ceará. Fonte: Plano Piloto – Centro Administrativo do Estado do Ceará (1979).
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o seu encontro com a avenida sem denominação oficial (limite norte do terreno), seguindo coincidentemente com essa avenida até o seu encontro com a Avenida Perimetral; criação de uma via coletora no limite sul do terreno, com uma caixa de 18 metros, incidente sobre a Rua Homem de Melo, seguindo pelo seu prolongamento, em sentido leste até o seu encontro com a outra avenida sem denominação oficial (limite sul do terreno) e continuando coincidentemente com esta avenida até o seu encontro com a Avenida Perimetral; conexão do conjunto destas duas vias ligando, diretamente, a área, em seus extremos norte e sul, à Rodovia BR-116, a oeste, e à Avenida Perimetral, a leste, daí facilmente articulando a área com os demais pontos de interesse da cidade, através de outras vias do sistema. Para o esquema viário interno, adotou-se como elemento básico um eixo convergente que coleta e distribui os fluxos aos subsistemas. A simplicidade do plano adotado tinha como objetivo a adaptação mais racional e lógica de qualquer modelo para transporte coletivo no interior do Centro Administrativo. Um terminal de transportes coletivos era previsto para ser implantado na extremidade norte do terreno defronte ao acesso principal. É notório, no entanto, como predomina a adoção da escala do automóvel no plano, premissa característica do urbanismo moderno.
Urbanismo A concepção do Centro Administrativo propunha como elemento principal um eixo de acesso atravessando o terreno no sentido Norte-Sul e estabelecendo um zoneamento de fácil ocupação, sem interferências na topografia natural do terreno. Esta Avenida Central, que contorna a Ágora Cívica, em frente ao Palácio Executivo, permite que se desenvolva ao longo do seu percurso, no canteiro interno, pontos de concentração natural, com equipamentos de lazer, tais como: pequenos quiosques, bancas de jornais e revistas, pontos de reuniões, de maneira a caracterizá-la como corredor de vivência do Centro Administrativo. (CEARÁ, 1979, p.4)
Este eixo central faria três derivações no sentido Leste-Oeste, distribuindo os fluxos aos diversos setores de cada subsistema (figura 02). Sobre os meios de transporte, o tráfego de carros particulares contaria com estacionamentos
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Figura 02 – Maquete da implantação do Plano Piloto. Fonte: Plano Piloto – Centro Administrativo do Estado do Ceará (1979).
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coletivos localizados entre os setores, sendo que no caso dos veículos oficiais estes teriam acesso aos planos semi-enterrados formados pela declividade natural do terreno e as bases de implantação de cada edifício, e os transportes coletivos veiculariam ao longo da Av. Central, com paradas distribuídas nos pontos de fluxos de pedestre, penetrando nas variantes transversais, com retorno em cul-de-sac para novamente trafegar pelo eixo. Os passeios teriam 5 metros de largura, e os equipamentos previstos teriam uma faixa contínua livre de 3 metros de largura, de maneira a permitir uma pista alternativa de segurança para ambulâncias e viaturas de bombeiros. Aqui já ficam evidentes os princípios do urbanismo moderno. A adoção do zoneamento, que será aprofundado a seguir, a diluição da quadra e do lote dos tecidos tradicionais, a monumentalidade da proposta, além da relação entre o construído e o não construído, revelam o caráter da proposta. Assim como em outras tipologias urbanas modernas, como os campi universitários, a implantação remete a um parque com edifícios mais do que ao tecido de uma cidade tradicional.
Zoneamento Os diversos órgãos a serem instalados no Centro Administrativo foram agrupados em sistemas e subsistemas, de acordo com as atividades afins, permitindo o bom funcionamento para cada um em particular e todos em conjunto. Foram organizados em oito sistemas (figura 03): Sistema 01: Governadoria, Vice-Governadoria, Assuntos da Casa Civil, Assuntos Municipais; Sistema 02: Secretaria de Planejamento, SUDEC, SEPROCE, BANDECE, IPLANCE, AUMEF, Secretaria da Fazenda, Secretaria de Administração, IPEC, BEC; Sistema 03: Secretaria de Agricultura, CODAGRO, CEPESCA, CEASA, EPACE, EMATERCE, FUNCEME; Sistema 04: Secretaria de Cultura e Desporto, FADEC, Secretaria de Educação, Secretaria de Saúde, FUSEC; Sistema 05: Secretaria de Obras e Serviços Públicos, COHAB, CAGECE, COELCE, SOEC, DAER; Sistema 06: Secretaria de Interior e Justiça, FBEMCE, Secretaria de Segurança Pública, BPTRAN; Sistema 07: Secretaria da Indústria e Comércio, JUCEC, EMCETUR; Sistema 08: Centro Comercial/ Correios/ Telefonia, Restaurante, Áreas de Lazer, Centro de Exposições, Sistema de Segurança e Incêndio, Prefeitura do Centro. Este último sistema estaria diluído em vários setores de acordo com as conveniências de localização.
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Figura 03 – Setorização dos sistemas no Plano Piloto. Fonte: Plano Piloto – Centro Administrativo do Estado do Ceará (1979).
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Aqui a comparação com Brasília e seus setores é inevitável. Numa distribuição fortemente funcional e racional, “estes conjuntos objetivavam maior racionamento de funções evitando conflitos entre as atividades, assegurando controle do uso do solo e orientando seu desenvolvimento” (CEARÁ, 1979, p.6). AS EDIFICAÇÕES: IMPLANTAÇÃO E ASPECTOS CONSTRUTIVOS A solução adotada para a implantação dos edifícios objetivou minimizar movimentos de terra tornando a implantação mais econômica sem desvirtuar a paisagem natural, gerando uma forma espontânea de acomodação do solo e permitindo diferentes usos aos níveis térreo e inferior (figura 04). Por se tratarem de edifícios administrativos, sujeitos a constantes mudanças na ordenação de seus espaços, foi adotado um esquema modular, garantindo a dinâmica de implantação dos programas. O módulo base de 1.25 x 1.25 gerou a trama da modulação estrutural de 7.50 x 7.50 (figura 05). Os blocos foram dispostos sobre uma malha orientada no sentido NorteSul, dispondo as menores fachadas no sentido Leste-Oeste, assegurando às edificações proteção da forte incidência solar e explorando a ventilação cruzada de origem Sudeste. A modulação de 1.25 conduziu à adoção de painéis de 7.50 x 7.50 apoiados nos quatro cantos em pilares com seção transversal em cruz, podendo a solução da estrutura comportar três alternativas: lajes pré-moldadas protendidas de 1.25 x 7.50; lajes maciças de espessura constante sem vigamento e sem capitéis, e protendidas nas duas direções perpendiculares; e lajes maciças de concreto armado com vigamento nas bordas. As esquadrias seguiriam a mesma modulação, através da adoção de sistemas pré-fabricados a serem posicionadas sobre elementos sacados da fachada, assegurando a proteção térmica das esquadrias, permitindo, ainda, quando necessário, a adoção de brises soleil. As instalações também seguiriam um modelo para os edifícios, concentrando a torre de caixa d’água contendo banheiros e cantina, a torre de circulação vertical com caixa de escada e poços para previsão de elevadores e a torre de equipamentos, tais como ar condicionado
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Figura 04 – Corte esquemático da implantação dos edifícios no Plano Piloto. Fonte: Plano Piloto – Centro Administrativo do Estado do Ceará (1979).
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Figura 05 – Planta e corte da estrutura proposta para os edifícios do Plano Piloto Fonte: Plano Piloto – Centro Administrativo do Estado do Ceará (1979)
ou equipamentos específicos para cada secretaria. Estas torres obedecem a mesma modulação estrutural 7.50 x 7.50, de modo a se ajustarem em qualquer posição do bloco. As instalações também seguiriam um modelo para os edifícios, concentrando a torre de caixa d’água contendo banheiros e cantina, a torre de circulação vertical com caixa de escada e poços para previsão de elevadores e a torre de equipamentos, tais como ar condicionado ou equipamentos específicos para cada secretaria. Estas torres obedecem a mesma modulação estrutural 7.50 x 7.50, de modo a se ajustarem em qualquer posição do bloco. Nota-se uma total integração entre as soluções arquitetônica e urbanística, questões presentes em exemplos emblemáticos do período, como, por exemplo, na obra de Georges Candilis, Alexis Josics e Shadrach Woods. Dessa forma, deixa-se de pensar no edifício como algo isolado, e sim integrado ao entorno e à paisagem. Como afirma Maciel (2015, p. 354): O entendimento da arquitetura para além do objeto remonta às discussões teóricas dos anos 60. O deslocamento em direção à concepção de sistemas ambientais, ainda que implicasse a eliminação do caráter objetual da arquitetura, não abdicava do desenho da conformação física e da concepção da materialidade da construção. Fazia-os, contudo, a partir de princípios relacionados ao desenho da cidade, à conformação de suportes indeterminados para amparar a vida, superando a persistência dos princípios clássicos de unidade, harmonia ou proporção, como, por exemplo, nas proposições de “cidade em miniatura” de Candilis, Josic e Woods.
Uso do Solo O Plano Piloto considerava ainda algumas indicações de uso do solo para o Centro Administrativo, numa outra referência direta a alguns preceitos de Brasília. Além de algumas indicações técnicas de obras de drenagem, arruamento e posicionamento de subestação, merecem destaque dois pontos do plano. Primeiro, quando este indica que o sistema construtivo na modulação em malha de 7.50 x 7.50 serve para todos os blocos, excetuando-se para os do sistema 01, indicando a preocupação em destacar o edifício sede da Governadoria, em proposta muito similar ao que
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ocorre com a Esplanada dos Ministérios e o Congresso Nacional em Brasília, com os primeiros repetidos e modulados enquadrando o foco da perspectiva para o edifício escultórico ao fim. Por outro lado, tal estratégia indica que, pelo menos no Brasil, os aspectos simbólicos não foram completamente ignorados pelo urbanismo moderno. O outro ponto interessante são as indicações de implantação e volumetria dos edifícios, demarcando que nenhum recuo poderá ultrapassar ao previsto com relação às vias ou aos pátios de estacionamento, podendo, entretanto crescer nos demais sentidos, desde que na interferisse nos blocos vizinhos, e delimitando o gabarito máximo dos blocos administrativos (excetuando-se, mais uma vez, o sistema 01) de três pavimentos, não sendo computados os pilotis e estacionamentos em pavimentos inferiores, quando utilizados. Aqui a referência direta são as superquadras, com seus edifícios padronizados e seus pilotis livres. SITUAÇÃO ATUAL DO CENTRO ADMINISTRATIVO DO CAMBEBA Como já foi mencionado, este Plano Piloto, assim como os planos originais de muitos centros administrativos, não foram implementados de forma integral. É possível ainda identificar alguns aspectos da proposta original, principalmente no que se refere ao sistema viário interno e à proposta urbanística, onde ainda se percebe elementos como o eixo central e suas ramificações que dão acesso aos edifícios. No caso dos edifícios, no entanto, apenas um bloco foi realizado de acordo com as diretrizes do Plano Piloto, onde hoje se localiza o Instituto de Pesquisa e Estratégia Econômica do Ceará – IPECE. As diretrizes de modulação e flexibilidade previstas para os edifícios, bem como o desenho de suas estruturas e infraestruturas e aproveitamento da topografia, não foram seguidas nos prédios que foram construídos. Nem mesmo o edifício em destaque do Sistema 01 foi implantado no final da via interna, e o seu local de implantação encontra-se ainda desocupado (figura 06). Tendo sido projetados por diferentes arquitetos em diferentes momentos, os prédios não seguem nenhum padrão e o resultado do conjunto é bastante heterogêneo, bem distinto
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Figura 06 – Situação atual: a implantação geral do Centro Administrativo Governador Virgílio Távora e o edifício que atualmente abriga o IPECE, único que seguiu as diretrizes do Plano Piloto. Fonte: Montagem elaborada pelo autor a partir de imagens do Google Earth
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do previsto no plano original. Alguns dos primeiros edifícios, apesar de já romperem com o plano original, ainda apresentam uma boa qualidade arquitetônica, como é o caso da Secretaria da Educação, projetada pelos arquitetos Neudson Braga e Joaquim Aristides, e a antiga Secretaria da Fazenda do Estado do Ceará, atual Tribunal de Justiça do Ceará, de autoria dos arquitetos Roberto Castelo e Nearco Araújo, ambos construídos em 1982. Outras edificações, construídas mais recentemente, já não apresentam a mesma qualidade construtiva ou plástica dos exemplos citados. A falta de controle se dá justamente pelo não cumprimento do plano inicial, o que ocorre por uma série de fatores já mencionados. As diretrizes apresentadas pelo Plano Piloto, apesar de buscarem homogeneidade entre os edifícios, permitiam adaptações e atualizações, o que poderia ter permitido o desenvolvimento e crescimento do Centro Administrativo de forma mais coerente e organizada.
A preservação de conjuntos urbanos modernos ainda é muito incipiente no Brasil, uma vez que o acervo do patrimônio moderno tombado nacionalmente é constituído apenas de três conjuntos arquitetônicos, um parque urbano e um conjunto urbanístico, muito pouco diante da produção de arquitetura moderna brasileira. Estes números refletem a ausência até o presente de uma política de identificação e sistematização do acervo arquitetônico moderno, visando a preservação dos exemplares notáveis desta produção, como acontece, por exemplo na Colômbia, onde dezenas de exemplares construídos a partir da década de 1930 das mais variadas tipologias, inclusive várias residências unifamiliares, já são protegidos por leis de preservação federal. (Andrade, Andrade Jr., Freire, 2009) Espera-se, portanto, que trabalhos como este tornem possível identificar com mais clareza alguns pontos fundamentais que regiam a produção deste período tão fértil da arquitetura e do urbanismo brasileiros. Só assim, estabelecendo parâmetros claros de atuação, será viável pensar na preservação de conjuntos urbanos modernos no Brasil, sejam nos seus aspectos urbanísticos, arquitetônicos ou paisagísticos.
considerações finais
Apesar de não ter sido implementado em sua totalidade, o Plano Piloto do Centro Administrativo Governador Virgílio Távora é de grande valor para o estudo do ideário moderno no que tange o espaço urbano, em especial no estudo da tipologia dos centros político-administrativos. A importância de se estudar um plano como este remete, inclusive, à sua maior referência, Brasília, cujo Plano Piloto é motivo de estudo e de identificação de atributos modernos arquitetônicos e urbanos. Vale ressaltar que estes planos fazem parte de um processo de modernização das cidades brasileiras como um todo, e respondiam a demandas urgentes deste desenvolvimento.
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capĂtulo
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O edifício residencial em Fortaleza (1960-1972): a atuação dos arquitetos pioneiros na incorporação dos conceitos modernos MÁRCIA CAVALCANTE BEKER SOUSA
resumo
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Os primeiros edifícios de apartamentos em Fortaleza foram edificados de forma rarefeita e em linguagens arquitetônicas diversas, tais como: art déco, neocolonial e ecletismo. Na segunda metade da década de 1950 surgem exemplares projetados por engenheiros advindos de outros estados que incorporaram o racionalismo, porém com limitações conceituais. Na década de 1960, os arquitetos pioneiros introduziram a linguagem moderna conceitualmente adaptada aos condicionantes locais. Constatou-se uma defasagem temporal na produção dos edifícios residenciais modernos de Fortaleza em relação aos pioneiros edificados no Rio e em São Paulo que ratificam a tese da atuação dos arquitetos pioneiros. O recorte temporal se inicia com a construção do primeiro edifício moderno projetado por arquiteto, e finaliza com a mudança da linguagem estética, quando da adoção do concreto e tijolos aparentes, que irá configurar uma nova linguagem. Comprovou-se que a formação destes arquitetos, em sua maioria ocorrida na Faculdade Nacional de Arquitetura da Universidade do Brasil onde vivenciaram a efervescência da modernidade cultural e arquitetônica brasileira, foi determinante na consolidação da arquitetura moderna em Fortaleza. Outro fator de propulsão da adoção da nova linguagem foi a criação das Faculdades de Engenharia e Arquitetura que aproximou culturalmente a cidade de Fortaleza dos eixos hegemônicos do Rio- SP e das técnicas construtivas inovadoras. As análises de dois exemplares exemplificarão as técnicas construtivas utilizadas e as diretrizes projetuais de adaptação ao clima e cultura locais. Palavras-chave: Edifício Residencial, modernismo, Fortaleza.
Keywords: Residencial Building, modernism, Fortaleza.
abstract
The first apartment buildings in Fortaleza were built of rarefied form and in various architectural languages such as art deco, neocolonial and eclecticism. In the second half of the 1950s appear copies designed by engineers coming from other states that have incorporated rationalism, but with conceptual limitations. In the 1960s, the pioneering architects introduced the modern language conceptually adapted to local conditions. We found a time lag in the production of modern residential buildings in Fortaleza in relation to built pioneers in Rio and SĂŁo Paulo to confirm the thesis of the work of the pioneering architects. The time frame begins with the construction of the first modern building designed by architect, and ends with the change of aesthetic language, when the adoption of concrete and brick, which will set up a new language. It was shown that the formation of these architects, mostly held in the National School of Architecture of the University of Brazil where lived the effervescence of cultural modernity and Brazilian architectural, was decisive in the consolidation of modern architecture in Fortaleza. Another driving force behind the adoption of the new language was the creation of the Engineering and Architecture faculties that culturally approached the city of Fortaleza of the hegemonic axis of the Rio-SP and innovative construction techniques. The duplicate analysis exemplify the construction techniques used and the projective guidelines to adapt to the local climate and culture.
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INTRODUÇÃO As edificações, que inicialmente se apresentam como um objeto arquitetônico universalizado, retratam transformações estéticas, econômicas, tecnológicas e culturais de sua época e lugar. Percebe-se a importância da contribuição erudita do arquiteto e de sua interpretação destes condicionantes no resultado final do edifício. Com base em estudos históricos, nas contextualizações e nas análises dos objetos de estudo, comprovou-se a importância do arquiteto nas transposições e adaptações do edifício habitacional para Fortaleza caracterizadas pelas universalidades e singularidades existentes nos exemplares estudados. CONTEXTUALIZAÇÃO Fortaleza adentrou a década de 1960 em uma das situações mais críticas de seu desenvolvimento urbano. O aumento populacional de 90,5%1 e a crise econômica, provocada pela queda do algodão no mercado internacional, geraram problemas urbanos em série. Este período econômico caracterizou-se pela adoção de políticas federais de industrialização como forma de superar o subdesenvolvimento e a pobreza, vinculadas ao pensamento da Comissão Econômica para a América Latina e Caribe – CEPAL. Fortaleza sediou importantes órgãos de fomento da indústria, como o Banco do Nordeste do Brasil, iniciando um novo ciclo econômico que impactou na expansão da estrutura urbana e na atração de migrantes expulsos do campo pelas secas sistemáticas (BERNAL, 2004). Nesse cenário, o setor da construção civil recebeu incentivos governamentais como o Plano Nacional da Habitação, que criou o Banco Nacional da Habitação – BNH em 1967, estes recursos foram usados no financiamento de residências e edifícios de apartamentos para a classe média. Segundo Censo do IBGE. A população em 1950 era de 270.169 habitantes e, em 1960, de 514.818 habitantes. Acesso 1º. jun. 2015. 1
Esses fatores associados à implantação da Universidade Federal do Ceará – UFC e, em especial, à instalação da Escola de Engenharia (1956) e da Escola de Arquitetura (1964), contribuíram para o início de uma nova fase na arquitetura em Fortaleza.
A consolidação da arquitetura moderna Segawa (2010) afirma que a arquitetura moderna brasileira se afirmou como hegemônica a partir de 1945. Esse período corresponde à disseminação do ensino da arquitetura no país e à divulgação da arquitetura em revistas de decoração, engenharia e construção. Jucá Neto, Andrade e Duarte Junior (2013) dividem a arquitetura moderna cearense em dois momentos: a primeira geração e a segunda geração. A primeira foi formada pelos arquitetos graduados no Rio de Janeiro e em Recife, que retornam a Fortaleza a partir de 1950; enquanto a segunda foi constituída pelos formados na USP, UNB, UFRJ, UFPE e os primeiros arquitetos formados pela Escola de Arquitetura da UFC. “Em um movimento de redução de suas formas ao estritamente necessário, o edifício industrial passou, ele próprio, a servir de referência para a Arquitetura Moderna. Esses edifícios tornaram-se fundamentais para as concepções arquitetônicas modernas”. (Caldas, Renata e Diniz, Fernando, p.155)
Em dezembro de 1964, foi criada a Escola de Artes e Arquitetura, fator primordial para o desenvolvimento de uma produção arquitetônica local. Os condicionantes da criação da Escola de Artes e Arquitetura da UFC atestam sua inserção cultural nacional estabelecida pelas ligações de seus professores com os docentes dos cursos de arquitetura do Rio de Janeiro e São Paulo. A extensão da produção das obras dos arquitetos pioneiros atesta o reconhecimento sociocultural da linguagem moderna ocorrida em Fortaleza e o prestígio profissional conferido aos arquitetos.
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O uso residencial A expansão urbana provocada pelo uso residencial que começou a sair do centro comercial histórico na década de 1920 foi potencializada pelos financiamentos imobiliários para a classe média, cuja preferência era a residência unifamiliar, propiciando a criação de novos bairros e uma produção arquitetônica extensa e rica (Figura 1). A ocupação da área ao leste do centro, preferencialmente dos bairros Praia de Iracema, Aldeota e Meireles incrementouse nas décadas de 1950 e 1960 com a construção de residências em linguagem moderna. Os primeiros edifícios de apartamentos fora da área central foram construídos nestes bairros.
A legislação vigente Em 1960, durante a gestão do prefeito Cordeiro Neto (1959-1963), foi contratado o Plano Diretor da cidade de Fortaleza elaborado por uma equipe coordenada pelo arquitetourbanista Hélio Modesto2. A cidade foi dividida em zonas com usos predominantes, entre os quais o uso residencial que foi dividido em quatro níveis. O residencial unifamiliar (R1) nos bairros residenciais de classe média e alta; o residencial multifamiliar (R2) com prédios com até oito pavimentos localizados na área central e de expansão do centro; o residencial unifamiliar e multifamiliar (R3) em prédios de até três pavimentos localizados nos bairros de classe média em geral e o R3E que atendia a população de baixa renda localizada nos bairros periféricos. Observamos que a maioria dos edifícios de apartamentos erguidos respeitavam os parâmetros contidos no Plano Diretor e no Código Urbano de 1962, as exceções encontradas foram nas edificações residenciais multifamiliares da Avenida BeiraMar, pois, embora não constasse na legislação, utilizaram os parâmetros da zona central e de expansão do centro, dando início a um modelo de ocupação urbana semelhante à orla de Copacabana e Ipanema da cidade do Rio de Janeiro, na época.
Hélio Modesto (1921-1980) diplomou-se em 1945 pelo Curso de Arquitetura ainda integrado à Escola Nacional de Belas Artes. Foi professor adjunto do Curso de Urbanismo da Faculdade Nacional de Arquitetura do Rio de Janeiro (CASTRO, 2011, p. 124). Desenvolveu diversos planos diretores em cidades brasileiras. 2
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Figura 01 – Mapa dos bairros de Fortaleza de 1920 a 1950, elaborado sobre o mapa do Serviço Geográfico do Exército de 1945. Fonte: Cavalcante (2015, p.84).
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Conclui-se que os parâmetros do Código Urbano relativo ao zoneamento, verticalização e recuos promoveram a produção de duas tipologias de apartamentos distintas: as torres de uso misto e as barras de três pavimentos. A forma do edifício foi diretamente vinculada à zona urbana no qual ele se inseriu. AS TIPOLOGIAS DO EDIFÍCIO RESIDENCIAL Como explicamos anteriormente, na segunda metade da década de 1960 os financiamentos estatais contribuíram na expansão das residências unifamiliares para a classe média; para a construção dos conjuntos habitacionais para a baixa renda e para a produção de edifícios de apartamentos para a classe média com a finalidade de venda. A volumetria elementar do prisma puro da Escola Carioca foi transposta para as duas tipologias multifamiliares básicas edificadas em Fortaleza: a torre e a barra. “A torre é o prisma desenvolvido verticalmente e a barra é o prisma desenvolvido horizontalmente” (DREBES, 2004, p. 12). As torres foram construídas na área central e de expansão do centro e na Avenida Beira-Mar e as barras foram edificadas nos bairros residenciais.
O uso residencial A verticalização da área central foi incentivada desde o Código Urbano de 1932 que permitia a construção no alinhamento das ruas e a altura máxima de 50 metros. Nos códigos seguintes, persistem os parâmetros de recuos, mas a altura máxima foi fixada em 12 pavimentos ou 40 metros, propiciando a construção de torres residenciais. Os edifícios localizados na área central e de expansão do centro (zona R2), possuem características tipológicas e formais similares entre si. Estão implantados no alinhamento das vias, com recuos nos fundos. A volumetria é composta de um bloco plano, sem saliências, separado da base por uma marquise que avança sobre o passeio. De 1962 a 1975, durante a vigência do Código de 1962 são construídos apenas três edifícios residenciais verticais: o Edifício Palácio Coronado (1965) (Figura 5), do arquiteto
José Neudson Braga; o Edifício Palácio Senador (1969), do arquiteto José Liberal de Castro; e o Edifício Paraguassú (1972), do arquiteto Francisco Afonso Porto Lima. Os programas são compostos por térreo – ocupado por lojas com pé-direito duplo ou mezanino – pavimentos tipo contendo diferentes tamanhos de unidades habitacionais e um terraço para abrigar áreas de uso comum como o salão de festas. Não havia a exigência de vagas privativas por unidade habitacional, porém surgem os pavimentos para veículos, no subsolo (Paraguassú e Palácio Senador) ou no mezanino (Palácio Coronado). Apesar dos parâmetros de uso do solo mais generosos na zona central - densidade construtiva, taxa de ocupação e verticalização – constata-se que a ausência de planejamento urbano adequado contribuiu para uma diáspora da habitação da área, que não recebeu a implantação de edifícios habitacionais como ocorreu em outras cidades brasileiras na época. Os prováveis fatores são a extrema concentração das atividades comerciais, institucionais e de serviços, que congestionou o sistema viário; as dificuldades de acessibilidade em função da pouca largura da malha viária; a divisão fundiária com lotes estreitos e profundos; a preferência da burguesia e da classe média, naquela ocasião, pela habitação unifamiliar; e a valorização dos bairros residenciais da área leste da cidade (Praia de Iracema, Aldeota e Meireles). A abertura da Avenida Beira-Mar, em 1963, valorizou bastante a zona litorânea, prolongando o uso recreativo da Praia de Iracema. As novas ocupações ocorrem ainda na década de 1960, como o Clube dos Diários. Paiva e Diógenes (2014, p. 7) afirmam que “esta tendência de localização dos clubes defronte à orla marítima se justifica em função da Beira-Mar ter se transformado em uma das principais ofertas de lazer da Cidade, relacionada à maritimidade moderna, acompanhada das práticas de esportes nos clubes”. Nesta ocasião foram edificadas as primeiras tipologias assemelham-se às da área central, com oito pavimentos de apartamentos. Os Jaqueline, o Edifício Ellery (Figura 2) e o
torres residenciais à beira-mar. Suas com comércio no térreo e uma torre principais exemplares são o Edifício Edifício Prof. Marinho de Andrade.
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Figura 02 – Edifício Ellery, c. 1966, autoria do arquiteto Eriberto Alves de Albuquerque. Fonte: Cavalcante, M.
As unidades habitacionais possuem tamanhos variáveis privilegiando as unidades pequenas, atestando a incerteza do tipo de público que iria habitar os edifícios localizados à beira-mar.
Os edifícios residenciais de três pavimentos O uso multifamiliar, com até três pavimentos, adequado às zonas R3, e aos centros de bairro, poderia ser implantado em toda a cidade, desde que respeitados os recuos da legislação. O levantamento desta tipologia identificou exemplares espalhados principalmente nos bairros da Praia de Iracema, Aldeota e Meireles. Os blocos de três pavimentos possuem a mesma linguagem dos edifícios verticais, volumetria plana, ausência de saliências e ornamentos, platibandas escondendo as telhas e marcações (verticais ou horizontais) com revestimento de cores diferenciadas. São prismas tipo barras e, em sua maioria, revestidos em pastilha de porcelana. Esses edifícios foram implantados com recuo frontal de 3 metros e não possuíam muros altos, o que permitia uma comunicação direta com a rua. Em geral, não haviam garagens para estacionamento de automóveis, mas, quando essas existiam, eram localizadas nos fundos do terreno em abrigos independentes. É possível verificar uma padronização dos programas nas plantas, com dois apartamentos por andar unidos pela caixa de escada centralizada, que, segundo Montaner (2015, p. 23), se constituíram “un modelo canónico de vivenda moderna: la casa plurifamiliar com escaleras que dan acceso a dos viviendas por rellano, cada una de ellas con cocina, estar-comedor, dos habitaciones y um baño”. A importante diferenciação consistiu no programa das unidades, direcionado para classe média, que possuíam três quartos, além da dependência de empregada, com área média de 120 m2. A varanda era esporadicamente incorporada ao edifício multifamiliar. No cruzamento das avenidas Desembargador Moreira e Abolição foram construídos vários exemplares desta tipologia.
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OS EDIFÍCIOS REFERENCIAIS Dentro do contexto urbano apresentado, foram selecionados exemplares de edifícios de apartamentos para um estudo mais sistemático. Os critérios de seleção foram os seguintes: adequação ao lugar; interlocução com as tendências arquitetônicas nacionais e internacionais; aporte de conhecimentos técnicos atualizados à época. Os edifícios selecionados são o Edifício Don Inácio (c. 1960), exemplar tipo barra, e o Edifício Palácio Coronado (1965), exemplar tipo torre.
Edifício Don Inácio O Edifício Don Inácio (Figura 3) é um exemplar típico de edifício de três pavimentos e localizase na esquina das ruas Costa Barros e Gonçalves Ledo. Foi projetado por Enéas Botelho, um dos pioneiros da primeira geração de arquitetos. Enéas Botelho, cearense formado no Rio de Janeiro, montou o ESTAR – Escritório Técnico de Arquitetura em junho de 1959. Os afastamentos frontais, de 3 metros, são ocupados por jardins com um gradil baixo (Figura 3) , proporcionando maior integração visual. Aos fundos, uma área livre é atualmente ocupada por automóveis, que estacionam embaixo das árvores, situação que atesta a não previsão, em projeto, de estacionamentos. O conjunto é composto de três tipos de plantas de apartamentos, todas com divisão tradicional (social, íntimo e serviços) e racional, os ambientes sociais são voltados para a ventilação predominante (Figura 4). Os apartamentos foram orientados para o leste e norte, priorizando a ventilação e a vista da rua, enquanto as unidades localizadas na fachada oeste foram rebatidas para orientação leste, de modo a captar melhor a ventilação (Figura 4). As áreas comuns resumemse aos halls sociais de acesso aos apartamentos abertos diretamente para a rua e controlados por porteiro eletrônico. Contam com três caixas de circulação (uma para cada dois apartamentos). Como as unidades eram destinadas à renda, o investidor optou por apartamentos de dois quartos, porém conservando os aposentos de empregados domésticos, fato que atesta as referências elitistas da sociedade local.
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Figura 03 – Fachada Leste do Edifício Don Inácio, c.1960, autoria do arquiteto Enéas Botelho. Fonte: Cavalcante, M.
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Figura 04 – Planta do pavimento tipo do Edifício Don Inácio. Fonte: Cavalcante, M.
A volumetria plana e racionalista recebeu tratamentos diferenciados em suas fachadas leste e norte devido a uma maior visibilidade externa, sendo revestidas com pastilhas de porcelana; as demais, menos visíveis, foram pintadas com tinta à base de cal, tal postura projetual irá se repetir em vários exemplares da época, provavelmente por questão de economia de custos. Observa-se a marcação das esquadrias na horizontal e a utilização de pastilhas coloridas (azul e rosa) misturadas a pastilhas em tons de cinza (Figura 3). As esquadrias, em madeira com venezianas pintada de branco, são originais, o que atesta a excelente qualidade da produção local.
Edifício Coronado O Edifício Palácio Coronado (Figura 5) foi projetado em 1965 e sua construção foi finalizada em 1967. O projeto é do arquiteto José Neudson Braga que vivenciou o desenvolvimento da arquitetura moderna brasileira quando estudou na Faculdade Nacional de Arquitetura e Urbanismo do Rio de Janeiro, de 1955 a 1959. A localização e o tamanho das unidades habitacionais no pavimento tipo foram determinados pela forma e localização do terreno (Figura 6). Como não existia certeza quanto ao perfil do usuário e o edifício foi empreendido para comercialização, o arquiteto optou por diversificar os tipos de apartamentos3 para minimizar os riscos. A diversidade em tamanho dos apartamentos era uma alternativa de projeto bastante comum na arquitetura habitacional moderna, sendo os Edifícios Esther e Copan os exemplos nacionais mais emblemáticos. No caso do Palácio Coronado, as unidades habitacionais foram hierarquizadas em função da melhor orientação solar e da ventilação, ou seja, as unidades de três quartos foram orientadas para o leste e para a rua, as unidades de dois quatros orientadas para a rua e o norte, e a unidade quitinete para o sul, sem vista da rua (Figura 6). Observamos que essa postura de valorização da unidade residencial em função de sua orientação se tornaria uma prática comum em Fortaleza.
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Informação colhida em entrevista à autora ocorrida em 23 de janeiro de 2014.
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Figura 05 – Fachadas Leste e Norte do Edifício Palácio Coronado, 1965. Fonte: Cavalcante, M.
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Figura 06 – Planta do pavimento tipo do Edifício Palácio Coronado. Fonte: Cavalcante, M.
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Composto de nove pavimentos – térreo, garagem e sete pavimentos tipo – possui um térreo semiaberto (Figura 5), com área destinada a lojas, que foram recuadas para liberar um passeio largo, com colunatas quadradas e uma área destinada ao lazer, com pilares de base circular revestidos de pastilha amarela. A área denominada em planta como “pilotis” que se localiza no mezanino, correspondente ao salão de festas, prolonga o efeito visual dos pilares dando uma sensação de pé-direito duplo (Figura 5). O pavimento tipo é composto por 14 apartamentos de seis tamanhos diferentes, da quitinete de 22,80 m2 ao apartamento de 100,00 m2, com três quartos e dependência de empregada (Figura 6). No trecho das lojas, o passeio foi incorporado ao pilotis, criando uma galeria sombreada, solução inusitada em Fortaleza. O pavimento de garagem (Figura 5) cria um volume de articulação entre o corpo do edifício e a base. As aberturas desse volume formam quadros regularmente espaçados. O corpo do edifício possui volumetria plana e revestimento externo em pastilha branca, amarela e faixas horizontais de azulejo azul acompanhando as aberturas das janelas, que eram originalmente em veneziana de madeira pintada de branco (Figura 5). A utilização do azulejo na fachada, uma adaptação da tradição da arquitetura luso-brasileira, vincula-se à contribuição do arquiteto Lúcio Costa à arquitetura moderna brasileira.
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considerações finais
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As análises elaboradas constatam que ocorreram transposições estéticas e culturais na produção do edifício de apartamentos em Fortaleza. Também vimos que a atuação dos arquitetos pioneiros foi o principal fator de transformação desta arquitetura, que incorporou os ideais da arquitetura moderna, principalmente da Escola Carioca, com adaptações ao clima e à cultura local. Nas áreas centrais e de expansão do centro, apesar dos incentivos da legislação urbana, principalmente em relação à verticalização, foram construídos somente três exemplares verticais, tipo torre, atestando a desvalorização da habitação no centro. Nos bairros, foram implantados edifícios de apartamentos com três pavimentos, tipo barra. A Avenida Beira-Mar começou a ser ocupada por torres de uso misto, com unidades habitacionais variando de 30 a 170 m2 e comércio no térreo, aos moldes de Copacabana e Ipanema. A variação das tipologias adotadas e as dimensões dos apartamentos atesta que, no início da ocupação da avenida, havia uma insegurança dos empreendedores em relação à aceitação do edifício de apartamentos, mesmo à beira-mar. A pouca quantidade de exemplares construídos no período comprova que o edifício de apartamentos não era a forma preferida de morar. As plantas assemelhavam-se aos modelos racionalistas, com divisão tradicional em áreas social, íntima e de serviços. Nas torres, era comum a variação das tipologias das unidades habitacionais, inclusive no mesmo andar. Nas tipologias de barras, os apartamentos eram similares, com área média de 120 m2. Em todos os programas das unidades, com exceção feita somente às quitinetes, consta a dependência de empregada com WC. A implantação e a planta do pavimento tipo do Edifício Coronado, com as unidades habitacionais maiores locadas na fachada leste, que recebe melhor ventilação e insolação; as de tamanho médio orientadas para o norte, com vista da rua; e as quitinetes para o sul demonstram a hierarquia de valorização imobiliária, considerando o correto aproveitamento das variáveis climáticas, que passou a ser adotada pelos arquitetos locais.
Os edifícios selecionados exemplificam as singularidades arquitetônicas adotadas pelos arquitetos pioneiros: direcionar os setores sociais e íntimos para insolação matinal; captar a ventilação leste e sudeste para os ambientes de permanência prolongada; tentar facilitar a ventilação cruzada, que, em plantas racionais, fica prejudicada; proteger a fachada oeste da insolação; adotar esquadrias de madeira com venezianas móveis para controle da ventilação e utilizar materiais de proteção às intempéries nas fachadas, como as pastilhas de porcelana, como elemento de valorização das fachadas principais.
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bibliografia
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capĂtulo
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A contribuição de Geraldino Duda para a consolidação da modernidade arquitetônica em Campina Grande, na década de 60 CAMILA MENESES ALCÍLIA AFONSO
resumo
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O presente artigo possui como objeto de estudo a produção residencial de Geraldino Duda produzida nas décadas de 1960 e 1970 na cidade de Campina Grande, agreste paraibano. O objetivo do artigo é divulgar o trabalho desse personagem, pouco estudado e reconhecido, como um dos profissionais que possuiu uma produção profícua e rica, com centenas de obras realizadas na cidade, e que, de certa maneira, pode ser considerado, como um dos principais responsáveis pela utilização da linguagem moderna em Campina Grande, consolidando o vocabulário formal e funcional, e servindo de referências a outros profissionais. O artigo que se pretende apresentar é resultado de investigações desenvolvidas pelo grupo de pesquisa Arquitetura e Lugar cadastrado na UFCG e no CNPq. Adota uma metodologia que segue uma linha voltada para a investigação histórica e arquitetônica, trabalhando com as ferramentas da história e da arquitetura, coletando dados em fontes primárias, como arquivos públicos e privados; e em fontes secundárias, como bibliotecas e rede virtual, a fim de obter informações que possam aprofundar o estudo que está sendo realizado. O referencial teórico apoia-se em autores como Serra (2006), Gastón e Rovira (2007), Bruand (1979), Segawa (1997), Amorim (2004), Queiroz e Rocha (2006), Afonso (2006), Almeida e Carvalho (2010), Tinem e Cotrim (2014), entre outros. Como resultado da pesquisa que vem sendo realizada, tem sido feito o levantamento de informações, no sentido do preenchimento de fichas sistematizadas, que alimentam um banco de dados disponíveis à comunidade acadêmica/ científica, dando formação ao inventário da produção moderna da cidade de Campina Grande. A importância da obra do arquiteto autodidata Geraldino Duda para a cidade é inquestionável, e acredita-se que os resultados obtidos neste trabalho possam contribuir com a preservação cultural e arquitetônica das obras modernas campinenses. Palavras-chave: arquitetura moderna, linguagem moderna, inventário moderno.
Keywords: modern architectural, modern architectural language, modern inventory.
abstract
This article has as its object of study the works of Geraldino Duda which he produced in the sixties and seventies in the city of Campina Grande, Paraiba. The purpose of presenting the study at this conference is to spread the work of this man, which few people have studied and recognized as one of the professionals who has a fruitful and rich production with hundreds of works in the city; and that, in a sense, he can be considered as the principle character responsible for the use of modern architectural language in Campina Grande, consolidating the formal and functional vocabulary in serving as reference for other professionals. The article presented is the result of investigations made by the Architecture and Place research group and registered at UFCG and at CNPq. This method follows a line toward historic and architectural investigation, working with the tools of history and architecture, collecting information from primary sources, such as public and private archives; and secondary sources, such as libraries and virtual networks, in order to collect information that can enrich the study being made. This framework of reference is supported by authors such as Serra (2006), Gastรณn and Rovira (2007), Bruand (1979), Segawa (1997), Amorim (2004), Queiroz and Rocha (2006), Afonso (2006), Almeida and Carvalho (2010), Tinem and Cotrim (2014), among others. As a result of this study, the information was collected to complete the analysis of systematized chips which feed a database available to the academic/scientific community, providing information to form the modern inventory production in the city of Campina Grande. The importance of the work of self-taught architect Geraldino Duda to this city cannot be questioned and it is believed that the results obtained in this study can contribute to the preservation of the modern cultural and architectural works in Campina Grande.
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INTRODUÇÃO A arquitetura moderna alcançou no Brasil grande popularidade na década de 1950. Diferentemente do que ocorreu na Europa e nos Estados Unidos, esse estilo arquitetônico não ficou restrito às grandes metrópoles, pelo contrário, no Brasil ele foi apropriado nos interiores chegando ali como “ideias viajantes”, trazidas dos grandes centros e divulgada como a arquitetura utilizada em Brasília. Sobre a dispersão da arquitetura moderna no território brasileiro no período pósconstrução de Brasília Araújo comenta: Esse processo, a um só tempo, de difusão e diversificação, de questionamento e continuidade, fica cada vez mais evidente com as inúmeras pesquisas realizadas nas universidades brasileiras, que tratam da arquitetura produzida pós-construção de Brasília. Estas pesquisas, em termos gerais, revelam, além da diversificação geográfica, o nomadismo dos arquitetos e a dispersão de arquiteturas que chamam a atenção e merecem destaque não somente por seu eventual vínculo com o passado ou sua provável ruptura com ele, mas, sobretudo pela submersão em seu próprio tempo, marcado entre outros aspectos por certo teor de experimentalismo. (ARAUJO et. all, 2010)
O caso da Paraíba não foi exceção sendo alcançada pela difusão da arquitetura moderna. Tem como objeto de estudo a produção residencial de Geraldino Duda produzida na década de 1960 na cidade de Campina Grande, situada no agreste paraibano, na região do Nordeste brasileiro. O objetivo do artigo é divulgar o projeto de pesquisa do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica (PIBIC), desenvolvido pelo Grupo de pesquisas Arquitetura e Lugar, vinculado ao curso de arquitetura e urbanismo da Universidade Federal de Campina Grande (UFCG) e cadastrado no Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), intitulado “Geraldino Duda. Contribuições para a difusão da modernidade arquitetônica campinense. 1960-1970”.
O trabalho busca divulgar a produção residencial das décadas de 1960 e 1970 do personagem ainda pouco investigado Geraldino Duda. Sua atuação profissional resultou numa produção profícua e rica, com centenas de obras realizadas na cidade sendo considerado como um dos principais responsáveis pela utilização da linguagem moderna em Campina Grande. Mais conhecido na cidade pela importante obra pública do Teatro Municipal Severino Cabral, o arquiteto autodidata e engenheiro de formação Geraldino Duda, foi o autor de muitos projetos residenciais. Alguns deles já haviam sido apontados por autores como ALMEIDA e QUEIROZ, porém, a real dimensão da sua produção tem sido investigada pelo grupo de pesquisa Arquitetura e Lugar que obteve acesso ao acervo particular de Duda. Este estudo justifica-se em dois pontos, o primeiro deles consiste na apresentação deste trabalho no evento pela adequação ao tema “Arquitetura e Modernidade” do VI SEMINÁRIO DOCOMOMO NORTE/ NORDESTE por reconhecer a importância do Movimento Moderno na formação histórica e arquitetônica da cidade de Campina Grande. O segundo ponto em que se justifica este estudo é proporcionar aos pesquisadores da área, o conhecimento do trabalho do profissional Geraldino Duda, que atuou efetivamente, criando assim, uma identidade da arquitetura modernista campinense. O grupo de pesquisa tem buscado inventariar, mapear e analisar as obras ainda existentes, divulgando este importante acervo por meio de congressos, palestras e exposições fotográficas e também utilizando as mídias sociais para que haja uma maior apropriação do patrimônio por parte da população. A pesquisa sobre arquitetura moderna tem trabalhado com duas linhas metodológicas: A primeira linha está voltada para um trabalho teórico de pesquisa arquitetônica, através da coleta de dados primários e secundários, baseando-se principalmente, no que propõe Serra (2006), quando caracteriza processos e sistemas na elaboração de pesquisas científicas em Arquitetura e Urbanismo. Por processo, se entende “o modo como se sucedem os estados diferentes do sistema no tempo” e por sistemas “um conjunto de objetos entendidos como uma totalidade de eventos, pessoas ou ideias que interagem uns com os outros”. (SERRA, 2006, p.70 e 72).
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O primeiro momento é de caráter mais analítico e descritivo. Registros fotográficos, visitas in loco e aplicação de fichas de observação das obras que compõem o objeto de estudo. Além desta abordagem metodológica, a pesquisa trabalha também com a análise do objeto arquitetônico, adotando o método de GASTÓN; ROVIRA (2007), empregado pelo grupo de pesquisa, que parte do estudo gráfico projetual, realizando imagens fotográficas, levantamento de material de projeto, como plantas, cortes, fachadas e construções tridimensionais, que permitam a melhor compreensão do objeto em estudo. Como referencial teórico desta pesquisa, autores como BRUAND (1978), SEGAWA (1997) são fundamentais para a compreensão do processo de modernidade arquitetônica no Brasil. O aporte regional das discussões sobre o processo de modernidade no nordeste brasileiro são respaldados em trabalhos elaborados por AFONSO (2006), LOUREIRO, QUEIROZ e TINEM (2007), SOUSA (2007), COTRIM e TINEM (2014), e demais pesquisadores regionais que vêm investigando sobre a importância da preservação da arquitetura moderna nordestina no cenário nacional. Artigos mais recentes, resultados de pesquisas acadêmicas, produzidos por AFONSO e MENESES (2016), também servem de subsídio para a compreensão da difusão da linguagem moderna em Campina Grande, pois são resultantes de investigações acadêmicas que vem procurando aprofundar sobre a implantação, consolidação e difusão da modernidade campinense. CONTEXTUALIZAÇÃO: O LUGUAR E A ARQUITETURA MODERNA
O lugar: Campina Grande O município de Campina Grande é uma cidade brasileira situada no agreste paraibano, entre o litoral e o sertão, possui um clima menos árido do que o predominante no interior do estado (clima tropical semiárido). Além disso, a altitude de 552 metros acima do nível do mar garante temperaturas mais amenas durante todo o ano.
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Figura 01 – Mapa de localização da Paraíba e do município de Campina Grande. Fonte: Meneses, C.
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Geograficamente privilegiada, situada bem no centro do estado. A Rainha da Borborema como também é conhecida, é uma cidade-polo, liderando geográfica e politicamente outros aproximadamente 60 municípios ao seu redor. Além disso, a cidade apresenta condições de acesso às principais capitais do Nordeste, pois fica em média a 150 quilômetros de cidades como João Pessoa, Recife, Natal, dentre outras. Com cerca de 400 mil habitantes, a maior cidade do interior do Nordeste, destaca-se economicamente no setor da prestação de serviços, no comércio e é uma forte referência na produção de tecnologia, fabricando softwares vendidos para várias partes do mundo, com reconhecida qualidade tecnológica e funcional. Hoje a cidade se apresenta como uma excelente formadora de mão de obra especializada, principalmente na área tecnológica, graças às suas cinco universidades, com cursos, sobretudo, na área de Ciência e Tecnologia.
A arquitetura moderna em Campina Grande Como já foi exposto, Campina Grande sempre foi privilegiada por sua localização, servindo como “porta” do litoral ao sertão. Em 1907, dinamizada e impulsionada pelas linhas férreas, a cidade tornou-se o maior centro algodoeiro da região. Chegando ao apogeu comercial nos anos de 30 e 40 tendo como ponto forte a comercialização do “ouro branco”, como era conhecido o algodão. Nesse contexto, a cidade logo caminhou em direção ao desenvolvimento industrial e tornou-se, em 1949, a primeira cidade do interior do Brasil a sediar uma Federação das Indústrias, a FIEP. Aliado ao processo de industrialização na década de 1950, chegavam a Campina Grande as entusiasmadas notícias da caminhada rumo ao progresso, pelo qual o Brasil estava iniciando, e o percurso fora traçado pelo Plano de Metas, cujo responsável era o atual presidente Juscelino Kubitschek. Nos jornais eram encontradas fotos da construção de Brasília e manchetes que despertavam o sentimento patriótico nos seus leitores.
A cidade também passava neste momento de acordo com ROCHA E QUEIROZ (2007) por uma expansão da malha urbana provocada por vários fatores como, por exemplo, os novos loteamentos particulares, pela construção de casas populares construídas pela iniciativa privada, pela maior difusão dos transportes públicos, dentre outros motivos. A construção do terminal rodoviário, como também da Escola Politécnica da Universidade da Paraíba e a verticalização da região central foram evidências do quanto a cidade estava crescendo. Isto pode ser confirmado observando o salto da quantidade de edifícios, que aumentaram quase trinta vezes em pouco menos de cinquenta anos, saindo de 600 edifícios, em 1905, para 17.240, em 1954. (ROCHA E QUEIROZ, 2007) No cenário arquitetônico da época, vários profissionais fizeram parte da construção dessa concepção de arquitetura moderna na cidade, como relata Tinem e Cotrim: [...] vários profissionais vindos de outros lugares, como o arquiteto carioca Ayrton Nóbrega, que fez a primeira proposta para o Teatro Municipal, em 1957, ou como Roberto Burle Marx e o polonês Wit Olaf Prochnik, que foram contratados para elaborar o projeto de urbanização do Açude Velho na década de 1950, também passaram pela cidade nesse mesmo momento. Concomitantemente, alguns engenheiros campinenses ou radicados no município, como Lynaldo Cavalcante, Austro de França Costa, Max Hans Karl Liebig, Giusepe Gioia e Glauco Benévolo, e desenhistas, como Anacleto Eloi, Walter Cordeiro de Lima, Adelgício Lima Filho e Geraldino Pereira Duda, começaram a se engajar nesse movimento de renovação arquitetônica (TINEM, COTRIM, 2014, p. 86).
Princípios formais desse estilo arquitetônico tornaram-se modismo, difundindose por toda a cidade, às vezes de maneira esteticamente equivocada. MOREIRA (2007) descreve o decênio de 1960 como o período de renovação arquitetônica da Rainha da Borborema, com a filiação de boa parte dos edifícios construídos na cidade ao Movimento de Arquitetura Moderna, ainda que, muitas vezes de maneira incompleta, superficial, ou incorporando apenas elementos isolados dessa linguagem.
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Muitos projetos que fizeram uso desta linguem foram concebidos a partir dos anos 1950 das mais variadas tipologias como residências, edifícios altos, teatros, museus, rodoviárias, dentre vários outros. Rocha e Queiroz (2006) apontaram que vários destas obras foram projetadas por profissionais vindos de fora da cidade, em especial por aqueles vindos de Pernambuco. Afonso e Meneses (2015) estudaram a influencia da escola do Recife em Campina Grande nas décadas de 1950 a 1970, confirmando a existência de uma grande quantidade de projetos, em especial, projetos residenciais concebidos por arquitetos oriundos da Escola de Belas Artes de Pernambuco/ EBAP. Profissionais como Tertuliano Dionísio, Augusto Reynaldo e Hugo Marques encontraram em Campina um mercado bastante receptivo a Arquitetura Moderna. Linhas funcionais, valorização da climatização natural, predominância volumétrica e revestimentos variados formavam a execução das novas obras: módulos vazados, cerâmicas, azulejos e tacos compunham os pisos e paredes do conjunto arquitetônico moderno (figura 2). A PESQUISA SOBRE GERALDINO DUDA E SUA PRODUÇÃO RESIDENCIAL
Quem é Geraldino Duda? Geraldino Pereira Duda (figura 3), natural de Campina Grande onde reside até os dias atuais, nasceu no dia 06 de março de 1935. Desde a infância, teve gosto por trabalhos manuais e pela leitura, ponto de partida de onde surgiu o gosto pela arquitetura, ao observar os trabalhos do arquiteto Oscar Niemeyer em revistas de arquitetura como a revista Módulo. O interesse de Geraldino foi tanto que o mesmo viajou para Brasília e chegou a conhecer o arquiteto Oscar Niemeyer. Seu extenso trabalho começou na década de 1950, quando trabalhou no escritório do arquiteto Josué Barbosa Pessoa atuando como desenhista. Nos anos de 1960, tornou-se assistente técnico de arquitetura e urbanismo do departamento de planejamento e urbanismo da Prefeitura municipal de Campina Grande.
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Figura 02 – Residência Antônio Diniz Magalhães (1968). Fonte: Meira, R.
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Figura 03 â&#x20AC;&#x201C; Fotografia atual de Geraldino Duda. Fonte: Acervo do grupo de pesquisa.
Foi então que, em 1962 começou a elaborar o projeto do Teatro Municipal Severino Cabral (figura 4), obra que o deu grande destaque e prestigio. Primeiramente, o teatro estava planejado para cobrir apenas o centro do terreno onde hoje se encontra. No entanto, surgiu a ideia de construí-lo no formato de um instrumento musical, pois no teatro há música e música inspira arte. Com isso, a volumetria do teatro foi inspirada em um apito ou bico de flauta. Sua arquitetura moderna tem inegável importância histórica, artística e patrimonial para a cidade e região. (TEATRO, 2016). Com a chegada do curso de engenharia civil na antiga Universidade Federal da Paraíba (atualmente Universidade Federal de Campina Grande) na cidade de Campina Grande, Geraldino decide ingressar no curso obtendo o diploma de engenheiro civil no início da década de 80. Em entrevista, o arquiteto declarou que nos anos 60, ele se limitava a realizar projetos arquitetônicos, ficando a construção sob responsabilidade do engenheiro e só após os anos 80, quando seu diploma de engenharia foi expedido, passou a participar de todo o processo, desde a elaboração do projeto até a construção (FREIRE, 2010). Apesar de ter iniciado seus trabalhos na década de 50, é fascinante o grande número de projetos residenciais unifamiliares que foram produzidos nas décadas de 1960 e 1970. Após visitas realizadas ao acervo do engenheiro/ arquiteto, obtivemos informações mais concretas quanto a produção arquitetônica de sua autoria. Julgou-se portando importante verificar as obras das décadas de 1960 e 1970, época em que as famílias de médicos, cientistas políticos, comerciantes e profissões de alta renda sentiram-se incitadas a construir residências suntuosas e diretamente ligadas ao estilo de arquitetura que imperava em todo o Brasil, mesmo que tardiamente em Campina Grande.
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Figura 04 â&#x20AC;&#x201C; Croqui do projeto do Teatro Municipal Severino Cabral. Fonte: Acervo do grupo de pesquisa.
Algumas informações sobre o acervo estudado Como já foi dito anteriormente a principal fonte dos levantamentos realizados foi o acervo particular de Geraldino Duda (figura 5), além deste, o acervo municipal também foi consultado. Assim, foi feita identificação dos materiais de projetos (pranchas técnicas) das residências projetadas por Duda nas décadas de 1960 e 1970. A fim de documentar o material e também de analisa-lo posteriormente as pranchas técnicas foram fotografadas e compõe hoje o acervo do grupo de pesquisa. Dessa forma foi coletado o material de projetos de 46 residências da década de 1960 e 27 da década de 1970. A fim de organizar a grande quantidade de dados coletados, as residências foram divididas em três grupos: não identificadas (por falta de informações na planta de localização), existentes e demolidas. Após essa categorização foi constatado que no total (décadas de 1960 e 1970), 59 residências ainda existem, 15 residências não foram identificadas e 14 residências foram demolidas, como pode-se ver na figura 6- A. Buscou-se também identificar os usos atuais das 59 edificações ainda existentes (Figura 6 B). Entende-se que os novos usos que surgem como forma de adaptação dessas edificações às demandas atuais mesmo que a maioria ainda mantenha seu uso residencial original. Outro método utilizado para sistematização dos dados levantados foi o mapeamento utilizando a plataforma do software qgis, que nos possibilita explorar a área do geoprocessamento alimentando uma tabela de atributos que permite, gerar mapas temáticos com informações associadas aos pontos criados. Na figura 7, foi criado um mapa de pontos localizando as residências levantadas e associando a informação da década em que foram construídas. Nota-se que sua produção foi intensa principalmente em 1960, época em que as famílias abastadas da cidade sentiram-se incitadas a construir residências suntuosas e diretamente ligadas ao estilo de arquitetura que imperava em todo o Brasil, mesmo que tardiamente em Campina Grande (Meneses et. all, 2016). Além disso, observa-se também a predominância das obras nos bairros centrais da cidade.
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Figura 05 â&#x20AC;&#x201C; Registro de visitas realizadas ao acervo particular de Geraldino Duda. Fonte: Acervo do grupo de pesquisa.
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(B) Figura 06 – A. Situação atual. B. Usos atuais. Fonte: Acervo do grupo de pesquisa.
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Figura 07 – Mapeamento das residências das décadas de 1960 e 1970. Fonte: Acervo do grupo de pesquisa.
Dentre o material coletado o grupo tem selecionado residências ainda existentes para realizar o redesenho do material de projeto em AutoCAD. Esse esforço tem dois objetivos. O primeiro deles é iniciar a análise projetual buscando interpretar cada decisão e solução arquitetônica tomada pelo arquiteto. O segundo seria o de realizar o inventário desse material que ainda não se encontra digitalizado e que corre o risco de ser perdido. Exemplo do que está sendo feito pode ser visto na imagem da página seguinte (Figura 08). Outro material que foi coletado pelo grupo, foram fotografias do período de construção de algumas das residências. Assim o levantamento fotográfico atual é outro recurso essencial para a pesquisa, pois é uma boa forma de acompanhar o processo de descaracterização das residências. A Figura 9 mostra exatamente como vem sendo esse processo, onde muitas residências sofreram modificações críticas em suas fachadas e interiores, sendo reflexo da falta de uma política preservacionista efetiva ou pela simples necessidade de adaptá-las às demandas atuais. Todo esse levantamento tem contribuído para a discussão de fatores importantes sobre a preservação cultural e patrimonial, ao inventariar e analisar a produção arquitetônica moderna do engenheiro e arquiteto Geraldino Duda e, assim, poder inseri-la no trabalho de resgate e difusão deste período da história local e nacional. A divulgação que o grupo de pesquisa vem realizando, sobretudo nos eventos, sobre a existência desse acervo busca levar ao conhecimento tanto da comunidade acadêmica, como da população, o reconhecimento e sensibilização das obras como patrimônio arquitetônico e, assim, colaborar com o processo de documentação e conservação do legado moderno campinense.
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Figura 08 â&#x20AC;&#x201C; Redesenho do material de projeto. Fonte: Acervo do grupo de pesquisa.
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Figura 09 â&#x20AC;&#x201C; Fotografias antigas e atuais de algumas residĂŞncias. Fonte: Acervo do grupo de pesquisa.
considerações finais
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Para o contexto histórico da arquitetura moderna nacional, investigar profissionais locais como Geraldino nos permite compreender quão profundas foram as raízes do movimento moderno no Brasil, que inicialmente, semeados nos grandes centros, encontraram terreno fértil em cidades do interior do Nordeste. Katinsky (1978) reforça a importância de estudos como este quando afirma que: “Lentamente, pelo trabalho de novas gerações de estudiosos imbuídos de exatas convicções, figuras vão saindo dos arquivos particulares, voltando a povoar, agora definitivamente, a imagem pública da arquitetura brasileira.” (KATINSKY apud BRASIL p.135)
A divulgação desse tipo de pesquisas que investigam o acervo moderno das cidades vem sendo desenvolvidas pelas universidades brasileiras e promovem a compreensão da história da arquitetura moderna e sua dispersão pelo território nacional, primeiramente chegando às metrópoles e depois aos interiores. Além disso, esse tipo de estudo nos aponta personagens e obras antes desconhecidas como é o caso de Geraldino Duda e de sua vasta produção residencial. Infelizmente, grande parte do acervo tem sido demolido ou permanentemente descaracterizado. A ausência de politicas públicas preservacionistas e também a não apropriação por parte da população do acervo moderno tem contribuído para o rápido desaparecimento dessas obras na cidade de Campina Grande. Acredita-se que os resultados obtidos nesta pesquisa e naquelas que ainda serão realizadas possam contribuir, inicialmente, com o trabalho de preservação cultural que vem sendo desenvolvido em nível municipal, estadual e federal, ao inventariar e analisar a produção arquitetônica moderna, podendo, assim, inseri-la no trabalho de resgate e difusão deste período da história brasileira e, posteriormente, na adoção e melhoria das soluções técnico-construtivas empregadas na modernidade e que devem ser resgatadas e reutilizadas pelos futuros profissionais da área que, infelizmente, desconhecem a potencialidade dos recursos empregados nesta produção.
Como já foi dito, Campina Grande segue esta tendência nacional em ter seu patrimônio arquitetônico e urbanístico descaracterizado, e a necessidade da academia em contribuir para evitar tal fenômeno é fundamental. Este artigo surge como uma contribuição importante do curso de Arquitetura e Urbanismo da UFCG para o desenvolvimento sustentável de nossa cidade.
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bibliografia
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capĂtulo
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A permanência dos critérios modernos na obra de Glauco Campello. Estação Rodoviária Argemiro de Figueiredo. Campina Grande - PB CINTHYA SOBREIRA ALCÍLIA AFONSO
resumo
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O presente artigo pretende apresentar informações referentes à produção arquitetônica do arquiteto Glauco Campello, uma arquitetura com coerência e valores da linguagem moderna, considerando que ele e sua produção nacional, refletem a história da arquitetura moderna no Brasil, tratando especificamente, sobre uma obra precursora e suas contribuições para a arquitetura regional, classificada como moderna brutalista, que faz parte do acervo que vem sendo pesquisadas pelo Grupo Arquitetura e Lugar, cadastrado no CNPq. O objetivo desse artigo que se pretende apresentar nesse evento é o de analisar arquitetonicamente o Terminal Rodoviário Argemiro Figueiredo, observando-se a permanência dos critérios modernos no mesmo, que apesar de ter sido concluído em 1985, manteve todos os princípios projetuais da linguagem moderna, tais como uso de modulação, racionalidade projetual e construtiva, transparências espaciais, e atenção especial ao detalhe dos elementos compositivos. Justifica-se assim, trazer à luz esse edifício, com poucos estudos existentes sobre o mesmo e ainda desconhecido por grande parte do meio acadêmico e cientifico nacional. A metodologia de pesquisa empregada trabalha com pautas de investigação sugeridas pelo Grupo FORM da ETSAB/ UPC, que busca uma aproximação com a obra, através de estudos sobre os autores da mesma, observação dos princípios projetuais, levantamento fotográficos, levantamentos arquitetônicos em arquivos públicos e privados, além de entrevistas, leituras, e demais materiais existentes arquivados e publicados sobre a edificação. Dessa forma, as fontes primárias que nos trazem às mãos o material de projeto, é fundamental, além de fontes secundárias, como matérias jornalísticas, dissertações e sites que trabalharam o tema. Como referencial teórico, é fundamental o aporte de autores clássicos que trataram sobre modernidade arquitetônica universal, como Frampton (1993), Piñon (1997), Rovira e Gaston (2007), Montaner (2002), além das referências nacionais como Bruand (1981),Segawa (1997), Cavalcanti (2001). Palavras-chave: Arquitetura moderna, Patrimônio Moderno, Projetos Arquitetônicos.
Keywords: Modern architecture, Modern Heritage, Architectural Projects.
abstract
This article intends to present information about the architectural production of the architect Glauco Campello, an architecture with coherence and values of the modern language, considering that he and his national production, reflect the history of modern architecture in Brazil, dealing specifically with a precursor and His contributions to the regional architecture, classified as modern brutalist, which is part of the collection that has been researched by the Architecture and Place Group, registered at CNPq. The objective of this article is to analyze the Argemiro Figueiredo Bus Terminal, observing the permanence of the modern criteria in it, which, despite being completed in 1985, maintained all the design principles of modern language, such as use of modulation, design and constructive rationality, spatial transparency, and special attention to the detail of the compositional elements. It is thus justified to bring to light this building, with few existing studies on it and still unknown by much of the national academic and scientific milieu. The research methodology employed is based on research guidelines suggested by the FORM Group of ETSAB / UPC, which seeks an approximation with the work, through studies on the authors, observing the design principles, photographic surveys, architectural surveys in public archives and Interviews, readings, and other existing archived and published materials on the building. In this way, the primary sources that bring us the material of the project, is fundamental, as well as secondary sources, such as journalistic materials, dissertations and websites that worked on the theme.
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INTRODUÇÃO O trabalho que se pretende apresentar neste evento tem como objeto de estudo a Estação Rodoviária Argemiro de Figueiredo, localizada à leste da cidade de Campina Grande, Paraíba. A proposta das investigações que vêm sendo realizadas pelo grupo de pesquisa Arquitetura e Lugar, cadastrado na UFCG e no Cnpq, e inserido no curso de Arquitetura e Urbanismo da UFCG, possui como objetivo analisar arquitetonicamente o Terminal Rodoviário, observando-se a permanência dos critérios modernos no mesmo, que apesar de ter sido concluído em 1985, manteve todos os princípios projetuais da linguagem moderna, tais como uso de modulação, racionalidade projetual e construtiva, transparências espaciais, e atenção especial ao detalhe dos elementos compositivos. Justifica-se a apresentação destas pesquisas neste evento, pela importância em difundir, em nível nacional, a riqueza desse acervo, pouco conhecido e inédito, trazendo à tona, os valores e princípios que nortearam tal produção. A modernidade arquitetônica vem sendo alvo de constantes discussões nacionais e internacionais, que está trabalhando com o resgate desta produção e dos arquitetos, bem como, com a requalificação arquitetônica destas obras edificadas. O grupo de pesquisa, através da linha “História da arquitetura e da cidade moderna. Form CG” pretende contribuir neste processo de resgate, estudando e divulgando este acervo, propondo soluções para a sua conservação, e para tanto, vem dialogando com demais instituições como o IPHAN, Prefeitura Municipal de Campina Grande, DOCOMOMO Brasil (Documentação e conservação do movimento moderno), apoiado em um referencial teórico trabalhado pelo programa de doutorado da ETSAB/ UPC de Barcelona, que tem nos livros do professor catalão Dr. Helio Piñon, e da professora Dra. Teresa Rovira, a sua base conceitual. Quanto ao lugar, cenário desta produção, tem-se a cidade de Campina Grande; e como objeto de estudo, os edifícios projetados e construídos durante o século XX - 1900 a 2000, na cidade, que adotaram como linguagem, a os princípios desta arquitetura moderna. A investigação que vem sendo executada realiza coletas através de pesquisas em arquivos públicos e privados, baseados em uma listagem prévia de obras a serem analisadas, a fim de levantar seus autores, clientes, soluções projetuais e construtivas, além das contribuições
das mesmas para a construção de uma modernidade urbana. Como referencial teórico, é fundamental o aporte de autores clássicos que trataram sobre modernidade arquitetônica universal, como Frampton (1993), Piñon (1997), Rovira e Gaston (2007), Montaner (2002), além das referências nacionais como Bruand (1981),Segawa (1997), Cavalcanti (2001). Para melhor compreensão da análise feita neste artigo, é necessário que se faça uma relação entre o desenvolvimento dos terminais rodoviários no país e os momentos políticos vividos, tanto a nível nacional como regional. Essa relação é importante para que se possa identificar o valor cultural e arquitetônico da obra construída, bem como o impacto que ela causa na sociedade contemporânea. Tem como finalidade chamar a atenção da população brasileira para um exemplar da arquitetura moderna existente na cidade de Campina Grande. APORTE TEÓRICO Iniciado na Europa, o modernismo foi um movimento que envolvia as áreas artísticas e culturais. Os principais ideais modernistas tiveram sua chegada ao Brasil no a partir da primeira de década do século XX. Segundo Lúcio Costa, o Modernismo brasileiro justifica-se como estilo, afirmando a identidade de nossa cultura e representando o “espírito da época”. Um dos fatores predominantes para difusão do estilo modernista no Brasil foi o apoio do Estado Novo que via nesse estilo um símbolo de modernidade e progresso. Podemos afirmar que a arquitetura moderna se baseia num jogo dinâmico de planos, visa a simplificação, busca uma forma dinâmica e nega o emprego de decoração em suas composições. Funcionalismo e racionalismo são critérios fortemente presentes na arquitetura moderna. Seus princípios norteadores são os critérios que adotam como pontos básicos: a arquitetura como volume e jogo dinâmico de planos; a tendência à abstração, à simplificação; utilização de malhas geométricas estruturantes do projeto; busca de formas dinâmicas e espaços transparentes, com o predomínio da regularidade substituindo a simetria axial acadêmica e a ausência de decoração que surge de perfeição técnica. A abstração e o racionalismo aparecem como critérios desta arquitetura, partindo ambos dos mesmos métodos redutivos da ciência clássica, ou seja, a decomposição de um sistema em seus elementos básicos, a caracterização de unidades elementares simples e a construção da complexidade a partir do simples. (Montaner, 2002, p. 82).
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Vale à pena, aqui, recordar PIÑON (2006, p.42) que reflete sobre a forma moderna e sua identidade, colocando que: “A modernidade arquitetônica é, portanto, um modo de intensificar a construção da forma, pois a libera da coação dos princípios compositivos classicistas, sem renunciar à precisão e à consistência da estrutura formal do objeto.”
A forma moderna se caracteriza assim, pela adoção da abstração, pelo caráter universal, pela especificidade, pela autonomia, não sendo determinada por convenções prévias, diferentemente do que ocorria com a forma concreta, da qual, o tipo arquitetônico era o elemento essencial. As temáticas do patrimônio e da preservação ganharam destaque nas últimas décadas devido ao forte apelo junto à opinião pública e investimentos considerávies por parte de instituições culturais e financeiras, impulsionadas pelo crescimento do turismo nacional e internacional. Essa recente visibilidade e a crescente relevância das intervenções de restauro de áreas e centros históricos para o planejamento e os projetos urbanos, vêm suscitando reflexões e debates sobre as políticas de preservação do patrimônio cultural e também sobre a legitimidade das intervenções realizadas contemporaneamente. De acordo com HOBSBAWN (1998), para opinião pública não especializada patrimônio é visto com frequência como o elo entre passado, presente e futuro, mas para diversos autores em distintas áreas do conhecimento a atual valorização da preservação é um indício bastante significativo da ruptura entre presente e passado, isto é, o reconhecimento de que o passado já não é mais padrão para o presente. Lepetit (2000) reafirma o processo dinâmico da pesquisa historiográfica, dado que o “passado não se conserva, mas constitui o objeto de uma reconstrução sempre recomeçada”. Ou seja, é a partir dos questionamentos do presente que a história reconstitui os objetos do passado, transformando reminiscências e documentos em objetos passíveis de análise. Portanto, a partir dessas relações também o patrimônio assume significados distintos ao longo dos tempos e conforme o local.
As décadas do pós-guerra foram marcadas, no cenário internacional, por uma nova linguagem arquitetônica que propunha a exposição direta dos materiais e dos elementos tectônicos, o resgate de materiais tradicionais, a preferência por jogos de volumes mais dinâmicos e o uso extensivo do concreto, postura esta comumente chamada de Brutalismo. O conceito da arquitetura brutalista vem sendo trabalhado por autores, que colocam sobre o tema: “Termo de cunhagem relativamente recente, entretanto não é fácil definir-se o brutalismo de maneira acurada e isenta. Tão usado quanto esnobado pela literatura arquitetônica da segunda metade do século XX, está longe de configurar um conceito unânime, as diferentes acepções que lhe são atribuídas superpondo-se de maneira pouco clara, parecendo ser uma só quando são muitas, e para deslindá-las é necessária certa paciência de detetive.”(Zein, 2007)
De acordo com FRAMPTON (1995, p. 360), o Brutalismo está relacionado também com a tectônica, podendo ser considerado como uma retomada desta cultura, pois a arquitetura brutalista demonstra um claro retorno à expressão da estrutura e da construção. O conceito de tectônica, conforme foi desenvolvido por Kenneth Frampton, procura relacionar a arquitetura com o saber fazer, mediante o entendimento das técnicas construtivas passadas de geração em geração pelos mestres de obras, empreiteiros e técnicos da construção, como algo importante e essencial para a cultura e identidade de um povo. Desse modo, o estudo da tectônica, ou seja, a apreensão e o cuidado com os detalhes e articulações de materiais e junções, assim como a forma como os materiais são tratados na arquitetura brutalista, a exposição de partes e arremates, a busca por uma honestidade construtiva, a utilização dos materiais brutos, a evidenciação do processo construtivo, serão abordados neste artigo, promovendo um novo olhar sobre o ‘brutalismo’.
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CAMPINA GRANDE: O CENÁRIO URBANO DO SÉCULO XX Como esclarecimentos iniciais para a compreensão do objeto de estudo, serão colocadas aqui, algumas informações sobre a localização do município de Campina Grande e sua formação histórica. Campina Grande está localizada na região agreste do estado da Paraíba, nordeste brasileiro, e “durante as primeiras cinco décadas do século XX foi uma das maiores produtoras de algodão do país, exportando o chamado “ouro branco” para várias cidades do mundo, bem como, implantando na cidade, fábricas têxteis importantes e empresas beneficiadoras do produto”, conforme escreveu AFONSO (2015). A cidade é considerada polo de oito microrregiões que compõem o Compartimento da Borborema – área que abrange 79 municípios, 44% do território paraibano e uma população que soma mais de um milhão de habitantes (figura 1). Segundo ARANHA (2001), o apogeu econômico de Campina Grande se deu quando o trem chegou à cidade, em 1907, impulsionando o comércio local, e a população deu um salto de mais de 600%, chegando à marca de 130 mil habitantes no transcurso de pouco mais de três décadas- a cidade virou um polo atrativo de pessoas que foram trabalhar em volta da indústria algodoeira. A ferrovia, atrelada à infra estrutura que compunha o ciclo do algodão, trouxe a implantação de várias fábricas, escritórios, galpões de armazenamento, que configuraram uma nova forma urbana para a cidade de Campina Grande. Até 1931, a Paraíba liderava o ranking de produção algodoeira no Brasil, e Campina Grande chegou a ser denominada como a “Liverpool do sertão”, exportando o produto para a Europa e para vários outros continentes (Basílio, 2009). Nas décadas de 20 e 30, a cidade atraiu empresas de outros lugares, como Pernambuco, e vários empresários investiram na cidade, tais como os irmãos Marques de Almeida, o empresário José Tavares de Moura, entre outros.
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Figura 01 – Mapa de Localização da cidade de Campina Grande na Paraíba. Fonte: Wikipédia e Google Maps. Adaptado por Sobreira, C.
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De acordo com estimativas de 2014, sua população é de 402.912 habitantes, sendo a segunda cidade mais populosa da Paraíba, possuindo uma população estimada em 630. 788 habitantes. Está a uma altitude média de 555 metros acima do nível do mar. A área do município abrange 594,2 km². Fazem parte do município de Campina Grande os seguintes distritos: Catolé de Boa Vista, Catolé de Zé Ferreira, São José da Mata, Santa Terezinha e Galante. A ESTAÇÃO RODOVIÁRIA ARGEMIRO DE FIGUEIREDO
Contexto Histórico No início dos anos 80, a cidade de Campina Grande atingiu um grande índice de desenvolvimento, e encontrava-se em constante crescimento. Graças a este processo, o centro da cidade ficou com pouco espaço para escoamento dos carros, e a grande demanda no Terminal Rodoviário Cristiano Lauritzen, conhecida atualmente por “Rodoviária Velha”, causava um transtorno na artéria principal da cidade. Para resolver esse impasse, o prefeito Enivaldo Ribeiro, durante a gestão do governador Wilson Braga, desapropriou e cedeu um terreno localizado na área de expansão na periferia que serviria para a construção de uma nova rodoviária para a cidade. As críticas foram muitas, pois se considerava o local muito distante do centro da cidade, o que hoje face ao desenvolvimento daquela artéria, principalmente com o desenvolvimento da Avenida Brasília, praticamente se tornou uma rodoviária central. Esqueceram-se de que a cidade estava em constante crescimento. A “Construtora Limoeiro” foi à executora do plano estabelecido pelo Governo do Estado, com um projeto orçado em 1 bilhão e 20 milhões de cruzeiros (moeda da época), contando com 104 mil metros quadrados de área total e 10 mil metros quadrados de área construída. O projeto arquitetônico foi idealizado pelo arquiteto Glauco Campello. Glauco Campello nasceu em Mamanguape (PB), em 24 de julho de 1934. Iniciou seus estudos universitários na Escola de Belas Artes do Recife e graduou-se pela Faculdade Nacional de Arquitetura, no Rio de Janeiro, em 1959. Colaborador de Oscar Niemeyer, participou da construção de Brasília e, em seguida do Centro de Planejamento da UnB, como professor de pós-graduação. De 1972 a 1975, esteve na Itália como responsável pelo desenvolvimento
do projeto de Niemeyer para a sede da Editora Mondadori, em Milão. Na ocasião, elaborou trabalhos de arquitetura para Cless e Ascoli, na Itália, e para Saint-Florent, na Córsega. De volta ao Brasil, realizou projetos para o Rio de Janeiro e outros estados, vencendo concursos nacionais de arquitetura, e interessando-se, também, pelos problemas de restauro e revitalização de centros históricos. Foi professor titular (anistiado) da Universidade de Brasília (1988 – 1991) e presidente do Instituto do Patrimônio Cultural (1994) e do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (1994 – 1998). Foi membro do Conselho estadual de tombamento RJ e do Conselho do Paço Imperial, é membro do IAB, ICOMOS e da Ordem Rio Branco, no grau de Comendador. Atualmente dedica-se a estudos e projetos de arquitetura, em seu escritório no Rio de Janeiro. Devido às fortes chuvas que caíram em Campina Grande no ano de 1985, as obras da nova rodoviária sofreram um pouco de atraso. Mesmo assim, o então vice-governador do Estado, o empresário José Carlos da Silva Júnior profetizava: “Campina Grande, tem, a partir do próximo mês, uma rodoviária à altura do seu desenvolvimento e pelo menos nos próximos 20 anos esta população não terá preocupação em relação a essa questão”. Inaugurado em 25 de maio de 1985, o Terminal Rodoviário de Passageiros Argemiro de Figueiredo, mais conhecido como Rodoviária Nova, esta localizado no bairro Sandra Cavalcante e foi considerado uma obra ousada para época de sua inauguração em nossa cidade. O edifício tem seu acesso pela Avenida Otacílio Nepomuceno, seu terreno total ocupa todo o quarteirão. Encontra-se bem localizado por estar próximo a saída para a capital João Pessoa, (o que facilita a função a ele competido de carga e descarga de pessoas e outros) como também ao Shopping Partage, importante centro comercial da cidade. Segundo o engenheiro de manutenção do terminal, Luiz Carlos Gomes, a rodoviária de Campina Grande esta entre as estruturas físicas mais bem conservadas do país. Em pesquisa encomendada pela Associação Brasileira de Empresas de Transportes Terrestres de Passageiros (Abrati) contatou-se que a rodoviária de Campina é a 3ª melhor do
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Figura 02 – Mapa de localização da Rodoviária. Fonte: Modelo feito por Sobreira, C.
Nordeste, perdendo apenas para Salvador e Maceió. Está em primeiro lugar na região, entre as que possuem administração pública, e foi eleita a 16ª do país. Quatorze empresas de transporte de passageiros fazem linhas intermunicipais e interestaduais, com destinos às várias cidades da Paraíba e do país, pondo a disposição dos usuários ônibus diários. Apesar de todos esses dados positivos em relação ao Terminal Rodoviário Argemiro de Figueiredo, seu fluxo de passageiros vem diminuindo nos últimos anos. Em média o número de embarque e desembarque fica em torno de três mil, 30 % em relação há 10 anos. A queda no número de passageiros se deve na maior parte ao aumento do transporte alternativo (que cobram o mesmo valor da passagem dos ônibus, ou até menos) e ao continuo funcionamento da Rodoviária velha que recebe ônibus vindos de várias cidades circunvizinhas. A diminuição no fluxo de passageiros ocasionou o fechamento de 50 % das lojas existentes no local. Hoje, são 34 boxes em sua totalidade, no entanto, nem todos funcionam diariamente, além de contar com baixo movimento.
Análise projetual O Terminal Rodoviário de Campina Grande (1981 - 1985) possui a mesma configuração espacial do Terminal Rodoviário de João Pessoa. A rodoviária de João Pessoa é projeto original selecionado em Concurso Nacional, após sua construção o DNER, que muito apreciou o esquema ali proposto, quis repeti-lo na estação de Campina Grande. Solicitando apenas a adaptação da cobertura, em estrutura metálica, segundo eles mais prática e econômica. O partido adotado atende ao conceito de grande abrigo sombreado e aberto, alcançado pela adoção de extensa cobertura plana que confere horizontalidade à edificação, não se sobrepondo ao entorno imediato devido a sua locação no centro do lote e aos consideráveis recuos sobre os quais se articulam extensas áreas de solo permeável - acessos, vias internas e estacionamentos - garantindo a racionalização e otimização dos fluxos de ônibus e veículos dos usuários.
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Figura 03 â&#x20AC;&#x201C; Vista da Fachada Principal. Fonte: Fotografia de AlcĂlia Afonso. 2015.
Nessa relação sítio/estrutura formal arquitetônica, a inclinação do terreno favorece o embasamento em diferentes níveis, embora sua execução seja facilitada pelo solo de rocha decomposta. A rodoviária apresenta uma continuidade entre o espaço externo e os espaços semiabertos do terminal em função da quase inexistência do pódium na relação earthwork/roofwork. O embasamento em diferentes níveis interligados por rampas em meio lance contribui, também, para a distribuição linear das atividades e diferentes funções ao longo do eixo longitudinal do edifício. Permitindo a apreensão rápida e geral do espaço do terminal pelo usuário quando este chega a área de embarque e contribui para sua funcionalidade: a localização estratégica das bilheterias permite fácil identificação e acesso; o saguão de espera e portões de embarque podem ser acessados utilizandose apenas meio lance de rampa; a ausência de cruzamento de fluxos de embarque e desembarque, é permitida pela localização das respectivas plataformas situadas nas extremidades opostas do grande saguão linear, interligadas pelo extenso espaço contínuo e fluído, onde se distribuem serviços de lanchonete, telefonia, etc. Entre esse saguão de espera e as plataformas de embarque e desembarque apresentam, em sua maioria, espaços destinados a uso comum, como polícia rodoviária, juizado de menores, sanitários, depósitos, guarda-volumes, entre outros. A interrupção desses blocos de serviços pelos portões de embarque e desembarque promove a comunicação direta entre a espera e as plataformas dos onibus. Encontram-se no mezanino, o restaurante e os blocos de pequenos comércios distribuídos de modo a não interromper a fluidez do espaço e a comunicação com o exterior. O sistema estrutural da coberta é constituído por um sistema estrutural de treliça espacial plana composta por tetraedros formados por barras de alumínio esbeltas, apoiadas em colunas de concreto aparente de secção retangular distribuidos em módulos também retangulares. A resultante da sua volumetria se dá como uma única e grande coberta independente dos demais volumes construídos, cujos generosos balanços permitem o sombreamento dos espaços liberando-os de vedações no limite das fachadas, colaborando para a comunicação entre os espaços externos e internos. Atributos modernos encontrados no terminal que se proliferaram pelo Brasil.
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Figura 04 – Planta baixa dos pavimentos. Fonte: Modelo digital elaborado por Diego Aristófanes. Editado por Sobreira, C.
Figura 05 – Saguão de espera e Plataforma de Embarque. Fonte: Fotografia de Cinthya Sobreira. 2015.
A malha estrutural do sistema espacial de treliça plana permite pela repetição de seus componentes, além de vencer grandes vãos, a racionalização e produtividade defendidas pela tecnologia industrial. Por meio da simplicidade estrutural utilizada no projeto , alcança-se o princípio moderno da economia. No entanto, a idealização de leveza é reduzida, além dos atributos de ilimitabilidade e desmaterialização, uma vez que há o fechamento lateral da estrutura com painés de alumínio ondulado. Apesar da obra ser configurada como um volume simples, com cobertura independente dos espaços que subdivide-se, a ausência de iluminação zenital na cobertura colabora para a deficiência de iluminação e a sensação de peso. Além disto, os fechamentos das laterais formam um frontão que compromete a expressividade da treliça espacial. Os pilares de sustentação da coberta também apresenta inexpressividade, o que demonstra que os mesmos cumprem apenas sua função técnica, deixando de lado a estética, que tem intuito de sensibilizar pela simplicidade. Os fechamentos em painéis de madeira e vidro das lojas sobre o mezanino possuem valor funcional ao promoverem a continuidade dos ambientes no interior do terminal e amenizarem a sensação de clausura de seus reduzidos espaços, entretanto, são destituídos de expressividade. Os blocos de serviços onde estão localizadas as bilheterias possuem a função de vedação, entretanto, a substituição dos tabiques móveis por vidro translúcido nos painéis de fechamento acentua o caráter maciço desses volumes prismáticos. O revestimento cerâmico no fechamento de alguns desses blocos de serviços é um recurso técnico utilizado para manutenção do edifício, principalmente, por se tratar de um edifício público, mas que, de certo modo, também colabora no resultado estético do terminal, ao contrastar, em cor e textura, com o metal da treliça espacial e acentuar a independência dos blocos das mesmas. Na arquitetura moderna brasileira, em particular na sua fase heróica, esse recurso ao revestimento cerâmico é recorrente, constituindo-se de um dos elos entre tradição e inovação, unido entre arte e arquitetura. O uso da cerâmica como material de revestimento externo em fachadas para proteção contra intempéries passa a ser corrente principalmente
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Figura 06 â&#x20AC;&#x201C; Corte Transversal. Fonte: Modelo digital elaborado por Diego AristĂłfanes.
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Figura 07 â&#x20AC;&#x201C; Lojas sobre o mezanino. Fonte: Fotografia de AlcĂlia Afonso. 2015.
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Figura 07 â&#x20AC;&#x201C; Lojas sobre o mezanino. Fonte: Fotografia de AlcĂlia Afonso. 2015.
no litoral da Região Nordeste do país, entretanto, nem sempre colaborando com o caráter tectônico dos edifícios; O que não é o caso do terminal rodoviário analisado. Com isso, nota-se que o terminal rodoviário argemiro de figueiredo é um exemplo de um projeto institucional da arquitetura produzido no período do “milagre econômico” que tem como características a expressividade da estrutura portante em concreto aparente, modeladora do espaço contínuo através de grandes vãos; a diferenciação de funções separadas por diferentes níveis interligados por rampas e dispostos longitudinalmente; a horizontalidade do volume do edifício; a conciliação da função de transbordo de passageiros com atividades como restaurantes e pequeno comércio; e a ausência de barreiras entre o exterior e o interior. Glauco Campello, considerando e valorizando as especificidades do contexto imediato e a realidade do lugar, desenvolve uma arquitetura de excelente nível técnico e cultural, atendendo, no entanto, às normas de economia, simplicidade e conforto.
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consideraçõe finais
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O projeto de Glauco Campello apresenta-se atualmente completamente inserido na malha urbana de Campina Grande, e tornou-se identidade para a cidade. Suas dimensões estruturais atende perfeitamente aos padrões e a demanda que a rodoviária necessita. Com o advento do Maior São João do Mundo, da casa de shows Spazzio e principalmente, após os Shoppings “Luiza Motta” e “Partage”, a área do Terminal Argemiro Figueiredo tornou-se um verdadeiro centro de integração econômica. O engenheiro civil Hermínio Soares Filho, que trabalha no local há 12 anos, ressalta que mesmo estando entre as melhores do país, a administração do terminal rodoviário pretende oferecer mais beneficio a seus usuários: “Esperamos realizar pequenas reformas no banheiro e no piso, a exemplo da última que conseguimos fazer, colocamos um fraldário no banheiro feminino, além de um assento infantil também no banheiro feminino. São pequenos benefícios, mas que facilitam o dia-a-dia de nossos usuários”. Disse o engenheiro civil Hermínio Soares Filho. Infelizmente, o que se observa é que este acervo não foi ainda devidamente inventariado, nem protegido legalmente pelas instituições de preservação do patrimônio arquitetônico. Cabe a nós, pesquisadores, tentar iniciar este processo, divulgando o valor de tal acervo e buscando soluções juntos às instituições municipais, estaduais e federais, a fim de se evitar a descaracterização ou destruição do patrimônio arquitetônico moderno brasileiro. Observa-se, que intervenções práticas de restauração e revitalização das obras arquitetônicas não vêm sendo realizadas. A prioridade da preservação está voltada para o acervo de Art déco, e para imóveis isolados concentrados na área do Centro histórico. Faz-se necessário uma maior abordagem sobre a temática da falta de conscientização dos órgãos competentes e da própria comunidade acerca da escassez de divulgação desse rico e importante bens culturais e arquitetônicos, além da falta de estrutura
nos Arquivos Públicos, onde boa parte dos documentos da época são desconcentrados em um único ambiente, dificultando o acesso aos registros originais, assim como a precariedade no ambiente onde situa-se os mesmos. O desejo é que a intenção atual de preservação e do bom uso seja mantida para que se atribua valor no presente, e sua funcionalidade na cidade ajude no crescimento social, permitindo a contínua valorização desta obra na cidade contemporânea. Espera-se que as pesquisas que vêm sendo realizadas pelo Grupo Arquitetura e Lugar, obtenham resultados, não somente como registro de edificações, mas como registro de uma memória que não merece ser apagada. Por fim, acredita-se que com este trabalho, haja uma maior interação e discussão com a comunidade profissional e acadêmica interessada na preservação do patrimônio moderno, na história da arquitetura e do urbanismo, assim como a inserção deste importante acervo no rol dos bens culturais e arquitetônicos. Além de abordar sobre as possibilidades de intervenções com parceiros reforçando a intenção de ações mais práticas.
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capĂtulo
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PatrimĂ´nio moderno industrial no nordeste brasileiro ALCĂ?LIA AFONSO
resumo
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Este artigo possui como objeto de estudo, o patrimônio industrial moderno produzido no nordeste brasileiro, tomando como estudo de caso, a Fábrica da Bombril (1979/ 1983) - uma edificação localizada na BR-101 Norte, no município de Abreu e Lima, Região Metropolitana do Recife, Pernambuco. O objetivo do trabalho é trazer à tona o debate entre o patrimônio arquitetônico moderno e o patrimônio industrial, duas categorias de acervos que, infelizmente, muitos de seus exemplares, não são inventariados, não são protegidos legalmente, não são devidamente conservados, e nem valorizados pelos órgãos competentes pela política pública preservacionista nacional, que ainda não reconheceram o valor dos mesmos, para os inserirem em suas agendas de ações. Salienta-se que, por ocasião da Conferência 2003 do TICCIH – The International Committee for the Conservation of the Industrial Heritage (Comissão Internacional para a Conservação do Patrimônio Industrial), foi extraído um documento, intitulado Carta de Nizhny Tagil (2003) que colocou que, todo o acervo do patrimônio industrial deve ser estudado, a sua história deve ser ensinada, a sua finalidade e o seu significado devem ser explorados e clarificados a fim de serem dados a conhecer ao grande público. Tal artigo trata-se de um dos resultados de investigações realizadas pelo Grupo de pesquisa Arquitetura e Lugar cadastrado na UFCG e no CNPq, que vem procurando resgatar, tanto a produção moderna, quanto àquela referente ao acervo arquitetônico industrial regional, realizando para isso, diálogos com pesquisadores que trataram dos temas, mesmo que com distintos enfoques. As pesquisas de campo e as pesquisas bibliográficas, a fim de buscar nessa produção, pontos convergentes nas soluções projetuais e construtivas estão em andamento, e a cada dia, informações inéditas nos chegam, nos fazendo acreditar que ainda há muito por ser investigado e debatido para a construção de um possível inventário sobre edificações modernas industriais no nordeste brasileiro. Palavras-chave: patrimônio industrial moderno, arquitetura moderna, edifícios industriais.
Keywords: modern industrial heritage, modern architecture, industrial buildings.
abstract
This article aims to study the modern industrial patrimony produced in the Brazilian northeast, taking as a case study the Bombril Factory (1979/1983) - a building located at BR-101 Norte, in the municipality of Abreu e Lima, Metropolitan of Recife, Pernambuco. The aim of this work is to bring to the surface the debate between modern architectural heritage and industrial heritage, two categories of collections that, unfortunately, many of their copies are not inventoried, are not legally protected, are not properly preserved, nor valued by the competent organs of the national preservationist public policy, who have not yet recognized the value of the same, to insert them in their agendas of actions. At the 2003 Conference of the International Committee for the Conservation of Industrial Heritage (TICCIH), a document was drawn up, entitled letter from Nizhny Tagil (2003), which , the whole collection of industrial patrimony must be studied, its history must be taught, its purpose and its meaning must be explored and clarified in order to be known to the general public. This article is one of the results of research carried out by the Research Group Arquitetura e Lugar registered in the UFCG and CNPq, which has been trying to rescue both the modern production and the one related to the regional industrial architectural collection, by means of dialogues with researchers who dealt with the themes, even with different approaches. Field research and bibliographical research, in order to seek this production, converging points in the design and construction solutions are underway, and every day, new information comes to us, making us believe that there is still much to be investigated and debated for. The construction of a possible inventory of modern industrial buildings in northeastern Brazil.
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INTRODUÇÃO Este artigo possui como objeto de estudo, o patrimônio industrial moderno produzido no nordeste brasileiro, tomando como estudo de caso, a Fábrica da Bombril (1979/ 1983) - uma edificação localizada na BR-101 Norte, no município de Abreu e Lima, Região Metropolitana do Recife, Pernambuco. O objetivo do trabalho é trazer à tona o debate entre o patrimônio arquitetônico moderno e o patrimônio industrial, duas categorias de acervos que, infelizmente, muitos de seus exemplares, não são inventariados, não são protegidos legalmente, não são devidamente conservados, e nem valorizados pelos órgãos competentes pela política pública preservacionista nacional, que ainda não reconheceram o valor dos mesmos, para os inserirem em suas agendas de ações. Salienta-se que, por ocasião da Conferência 2003 do TICCIH – The International Committee for the Conservation of the Industrial Heritage (Comissão Internacional para a Conservação do Patrimônio Industrial), foi extraído um documento, intitulado Carta de Nizhny Tagil (2003) que colocou que, todo o acervo do patrimônio industrial deve ser estudado, a sua história deve ser ensinada, a sua finalidade e o seu significado devem ser explorados e clarificados, a fim de serem dados a conhecer ao grande público. Tal artigo trata-se de um dos resultados de investigações realizadas pelo Grupo de pesquisa Arquitetura e Lugar cadastrado na UFCG e no CNPq, que vem procurando resgatar, tanto a produção moderna, quanto àquela referente ao acervo arquitetônico industrial regional, realizando para isso, diálogos com pesquisadores que trataram dos temas, mesmo que com distintos enfoques. As pesquisas de campo e as pesquisas bibliográficas, a fim de buscar nessa produção, pontos convergentes nas soluções projetuais e construtivas estão em andamento, e a cada dia, informações inéditas nos chegam, nos fazendo acreditar que ainda há muito por ser investigado e debatido para a construção de um possível inventário sobre edificações modernas industriais no nordeste brasileiro.
RELAÇÃO ARQUITETURA INDUSTRIAL E MODERNIDADE Considerando-se que as palavras chaves desse trabalho tratam sobre os conceitos de patrimônio industrial moderno, arquitetura moderna, edifícios industriais, inicialmente, procurar-se-á, tecer algumas reflexões sobre a relação existente entre os mesmos. Tem-se observado que a relação entre o edifício industrial e a modernidade é muito próxima e que a adoção da linguagem moderna para edificações de uso industrial foi empregada por mestres e precursores como Walter Gropius e Le Corbusier que enalteceram, em pleno século XX, os edifícios fabris norte americanos e demonstraram o seu entusiasmo pela era da máquina: “Em um movimento de redução de suas formas ao estritamente necessário, o edifício industrial passou, ele próprio, a servir de referência para a Arquitetura Moderna. Esses edifícios tornaram-se fundamentais para as concepções arquitetônicas modernas”. (Caldas, Renata e Diniz, Fernando, p.155)
Observa-se que o edifício industrial adota como princípio, a racionalização projetual e construtiva, além da busca pelas soluções que demonstrem a verdade arquitetônica e técnica. Pode-se afirmar que as fábricas se desenvolveram como parte dos fenômenos da industrialização e da subsequente mecanização: “As construções destinadas a acomodar processos produtivos e industriais estão estreitamente ligadas a dois processos ou fenômenos característicos da era moderna: a mecanização e a industrialização, o que qualifica estas construções como uma expressão ou face da modernidade. Arquitetos pensaram esses edifícios de forma a solucionar impasses de ordem técnica. Essas soluções resultaram em significativas conquistas na engenharia civil, tais como o cálculo estrutural, técnicas avançadas com materiais como o ferro e o concreto e a racionalização e padronização dos processos de construção, os quais foram aplicados também a outros edifícios.” (Caldas,Renata e Diniz, Fernando, p.154)
Com a disseminação dos processos de industrialização e mecanização, foram observadas alterações significativas nos modos de construir, ao se explorarem os recursos e tecnologias apropriados para as suas necessidades.
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Essa produção arquitetônica industrial acarretou na construção de obras de boa qualidade projetual realizada por arquitetos que buscaram alinhar a concepção do processo industrial aos edifícios, formando assim, um acervo rico que compõe o rol dos bens arquitetônicos do patrimônio moderno industrial. Fundamental também, é definir o que se entende por patrimônio industrial, e para tal, toma-se aqui o conceito trabalhado pela Carta de Nizhny Tagil (2003): “... compreende os vestígios da cultura industrial que possuem valor histórico, tecnológico, social, arquitetônico ou científico. Estes vestígios englobam edifícios e maquinaria, oficinas, fábricas, minas e locais de processamento e de refinação, entrepostos e armazéns, centros de produção, transmissão e utilização de energia, meios de transporte e todas as suas estruturas e infra estruturas, assim como os locais onde se desenvolveram atividades sociais relacionadas com a indústria, tais como habitações, locais de culto ou de educação.”
Observa-se que muitos destes edifícios ou complexos industriais foram abandonados ao longo dos anos, devido a uma série de fatores de ordem econômica, ou familiares, e grande parte do acervo foi demolido, ou descaracterizado. Contudo, há uma tendência contemporânea em transformar territórios e patrimônios industriais, dando aos mesmos, novos usos, soluções empregadas especialmente por holandeses, que vem se disseminando por vários países, e que a autora francesa Françoise Choay (2006) discutiu em texto que tratou sobre reuso e requalificação desses espaços, antes industriais. Choay (2006) colocou que os edifícios isolados, em geral, de construção sólida, sóbria e de manutenção fácil, são facilmente adaptáveis às normas de utilização atuais e se prestam a múltiplos usos públicos e privados, e citou casos norte americanos e europeus, nos quais já são incontáveis os imóveis como usinas, ateliers, entrepostos, transformados em escolas, museus, teatros. O conceito de reutilizaçãoreintegração de um edifício desativado a uso normal- é apontado por Choay, como um caminho para a integração do patrimônio industrial à vida contemporânea.
Contudo, felizmente, existem casos nos quais os usos de conjuntos e edifícios industriais vêm sendo mantidos, e as soluções projetuais originais estão conservadas e o espaço projetado encontra-se em pleno funcionamento, permitindo observar nessas obras, a relação existente entre o processo industrial e arquitetura.
Como estudo de caso que exemplifica de forma significativa essa relação, foi selecionada para ser apresentada neste evento, a Fábrica da Bombril, projetada entre os anos de 1979 a 1983, pelo arquiteto Acacio Gil Borsoi, que contou com a colaboração das arquitetas Janete Costa e Rosa Aroucha. BREVE HISTÓRICO DA EMPRESA BOMBRIL Torna-se necessário aqui, esclarecer sobre a origem da empresa Bombril no Brasil, para o entendimento sobre o processo que criou a Unidade Fabril no Estado de Pernambuco, contextualizando o objeto de estudo. Será visto um pouco sobre a história dessa indústria e posteriormente, analisar-se-á, a sua solução arquitetônica, que adotou como linguagem os princípios de modernidade, especificamente, do brutalismo. A Bombril é uma empresa do setor de higiene e limpeza doméstica, cujo principal produto é uma lã de aço, que é utilizada como produto de limpeza, específico para panelas. Foi fundada em 14 de janeiro de 1948, no bairro do Brooklin em São Paulo, por Roberto Sampaio Ferreira que a denominou “Abrasivos Bombril Ltda”, e produziu a lã de aço, inspirando-se no novo produto fabricado, originalmente, nos Estados Unidos. O lançamento no Brasil foi uma revolução para as donas de casa daquela época, porque, além de polir panelas, o produto limpava vidros, louças, azulejos e ferragens, ficando conhecido como “1001 utilidades”. O produto foi um sucesso, e somente naquele ano, foram vendidas 48 mil unidades. Em 1961, a Bombril adquiriu a Companhia de Produtos Químicos - Fábrica Belém, detentora das marcas Sapólio e Radium de saponáceos em pedra, passando a desenvolver e aprimorar a linha Sapólio Radium, incluindo uma versão cremosa. Antes de ser lançado no Brasil, o produto existia apenas na França, Holanda e Bélgica.
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Figura 01 â&#x20AC;&#x201C; Os primeiros produtos da Bombril. Fonte: Site da empresa Bombril http://www.bombril.com.br/sobre/empresa
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Figura 02 – Evolução histórica da embalagem da lã de aço Bombril. Fonte: Site da empresa Bombril http://www.bombril.com.br/sobre/empresa
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Em 1972, a Bombril incorporou a Indústria de Lã de Aço Mimosa Ltda., do Rio de Janeiro, e em 1973, foi a vez da Q´Lustro, empresa que detinha aproximadamente 25% do mercado nacional de lã de aço. Em 1976, Bombril mudou sua linha de produção do bairro do Brooklin, em São Paulo, para a moderna fábrica em São Bernardo do Campo, cidade próxima à capital. Essa unidade existe até hoje e é considerada a matriz da Bombril, que atualmente possui 3 complexos industriais no Brasil: um em São Bernardo do Campo - São Paulo, outro em Sete Lagos - Minas Gerais, e este que está aqui sendo analisado, localizado no município de Abreu e Lima - Pernambuco. Em 1978,a Bombril lançou o detergente Limpol. Na sequência, vieram os desinfetantes (Pinho e Kalipto), os amoniacados (Fort) e os plásticos (embalagens de lixo e esponja de espuma). Neste mesmo ano, o ator Carlos Moreno surgiu por primeira vez como Garoto Bombril e as vendas da Lã de Aço Bombril chegaram à marca de 420 milhões de unidades. Em 1981, Roberto Sampaio Ferreira, o fundador da Bombril faleceu e, em primeiro de junho de 1982, foi constituída a Bombril Indústria e Comércio LTDA. Em 1983, inaugurouse a Bombril Química, em Simões Filho, Bahia, e mais produtos foram lançados, tais como o Amaciante Mon Bijou e a Esponja de Lã de Aço Bombril numa versão com sabão. Em 1984, foi inaugurada a Bombril Nordeste, em Abreu e Lima, zona metropolitana de Recife- objeto de estudo desse artigo- e a razão social mudou para Bombril S/A, quando a empresa passou a ter ações negociadas na Bolsa de Valores. Esta unidade possui uma área construída de 20.295 m², em um terreno de 74 mil m². Atualmente, a fábrica de Abreu e Lima responde por 20% de tudo que a Bombril produz. Em 1987, mais uma inauguração, agora da Bombril Minas, em Sete Lagoas (MG) e em 1999, a marca Bombril foi considerada a “Marca do Século”. Em 1990, o grupo italiano Ferruzzi adquiriu 2/3 das ações da Bombril e, em 1991, a Cragnotti & Partners obtém o seu controle acionário. Nos últimos anos da década de 90 do século XX, a empresa entrou em um processo de dificuldades financeiras, mas a família interviu a fim de não perder o patrimônio familiar herdado.
Em 2006, Ronaldo Sampaio Ferreira assumiu o controle da empresa, resgatando o pioneirismo do seu pai, fundador da Bombril e a partir de então, a indústria conseguiu de estabilizar financeiramente e continuar seu padrão de qualidade, ocupando novamente seu lugar no mercado. A FÁBRICA DA BOMBRIL DE ABREU E LIMA (1979-83) Após o breve histórico da empresa Bombril, ver-se-á aqui as questões que tratam especificamente, da Unidade fabril pernambucana, esclarecendo-se inicialmente, estudos que foram realizados sobre o complexo fabril e seus respectivos enfoques. O projeto da Unidade fabril da Bombril em Pernambuco (figura 1) foi realizado pelo arquiteto Acácio Gil Borsoi, com colaboração das arquitetas Janete Costa e Rosa Aroucha, em 1979, tendo sua construção concluída em 1983, pela construtora OAS- e a inauguração ocorrida em 1984.
Antecedentes da pesquisa. Alguns pesquisadores pernambucanos trataram sobre a obra que é uma referência em relação à arquitetura industrial, à obra do escritório de Acacio Gil Borsoi e às soluções de detalhes pré fabricados empregados. Amaral (2001) escreveu um artigo sobre esta fábrica para o seminário nacional do Docomomo Brasil, realizado em Viçosa, em 2001, que tratava sobre o processo de industrialização brasileira e as novas técnicas construtivas relacionadas com a modernidade. No artigo apresentado, Amaral escreveu sobre o que ela denominou um “processo caboclo de industrialização”, considerando as dificuldades locais da época da construção do arrojado projeto, para execução dos sistema construtivo adotado. Nove anos após, Caldas (2010) apresentou uma dissertação de mestrado na UFPE sobre o tema da “Arquitetura industrial em Recife: Uma face da Modernidade” que possuía como objetivo “esclarecer alguns dos mecanismos ou recursos utilizados para qualificar determinados edifícios, como objetos arquitetônicos” , e para tal, a autora analisou um grupo específico de edifícios industriais, através de uma abordagem acerca das técnicas e dos
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Figura 03 – Fábrica da Bombril. Fonte: Caldas, Renata. 2010
sistemas construtivos nele aplicados, estando entre eles, o conjunto da Fábrica da Bombril. Caldas e Diniz (2012)- mestranda e orientador- escreveram juntos um artigo resultante dessa pesquisa de mestrado realizada, objetivando analisar edifícios industriais por meio de uma abordagem das técnicas e dos sistemas construtivos neles aplicados, tendo como objeto de estudo três edifícios construídos na Região Metropolitana do Recife, entre 1960 e 1980, estando a Fábrica da Bombril aí presente. O artigo trata-se de uma espécie de resultado da dissertação e de forma sucinta, chamando a atenção para os principais pontos trabalhados naquela pesquisa. Contudo, bem anterior a estes trabalhos acadêmicos, trinta e um anos atrás, a revista Projeto- em 1985 (figura 4), escreveu uma matéria intitulada “Edifício Industrial: Adequação ao clima em solução industrial modulada, Bombril Nordeste” (1985, p. 56-57) enfocando as soluções projetuais e construtivas da arrojada obra. Esta matéria é importante, pois foi escrita baseada em depoimentos do próprio autor, e por isso, será a principal fonte coletada para observar e analisar a mesma.
Sobre o autor e sua equipe de trabalho Acacio Gil Borsoi nasceu na cidade do Rio de Janeiro em 1924 e faleceu em São Paulo, em 2009, aos 85 anos de idade. Formou-se em 1949, pela Faculdade Nacional de Arquitetura da Universidade do Brasil, atual UFRJ, chegando a estagiar no escritório de Affonso Eduardo Reidy, onde participou do projeto do Conjunto Habitacional do Pedregulho. Em 1951, mudou-se para Recife onde se tornou professor da Escola de Belas Artes de Pernambuco durante vinte e oito anos, sendo um dos precursores da consolidação da arquitetura moderna no nordeste brasileiro, juntamente com os arquitetos e professores Mario Russo, Delfim Amorim, Heitor Maia Neto durante os anos 50, que foram os responsáveis pela criação espontânea de uma chamada “ Escola do Recife”.
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Figura 04 – Publicação de 1985, na Revista Projeto, sobre o projeto da Fábrica da Bombril. Fonte: Projeto. 1985. Nº77
Este momento foi pesquisado por Afonso (2006) em tese doutoral que tratou sobre a consolidação da arquitetura moderna em Recife, analisando o papel desses arquitetos, e de suas obras mais significativas que deram origem a esta “Escola”- apoiada por alguns críticos e não reconhecidas por outros. O fato é que com a produção desses arquitetos docentes, adotando critérios projetuais modernos, dialogando arquitetura, lugar, clima, os projetos executados terminaram possuindo pontos convergentes de soluções, criando-se assim uma linha projetual. A trajetória profissional de Borsoi pode ser dividida em três fases, conforme colocou Wolf e Borsoi (1999): a primeira fase, que é referente à sua formação no Rio de Janeiro até o início dos anos 60, quando começou o momento marcado por um processo de reflexão ou releitura e revisão dos princípios modernos; uma segunda fase - quando abriu seu escritório em 1968, chegando a trabalhar com trinta profissionais, sendo um dos mais bem sucedidos escritório do país na época, projetando edifícios multifamiliares, institucionais, fábricas, entre outros; e a terceira fase, quando retoma algumas atividades na cidade do Rio de Janeiro, em 1989. A fase a ser trabalhada neste artigo, trata-se especificamente da segunda, quando o arquiteto carioca estava já devidamente consolidado profissionalmente no Recife, considerando que a Fábrica da Bombril foi projetada e construída entre os anos de 1979 a 1983. Sua equipe de desenvolvimento deste projeto contou com a participação de sua esposa Janete Costa (1932- 2008) e Rosa Aroucha (1948-) Janete Ferreira da Costa nasceu em 3 de junho de 1932, em Garanhuns (PE), e faleceu em 28 de novembro de 2008, em Olinda (PE). Era arquiteta graduada pela Faculdade de Arquitetura da Universidade do Rio de Janeiro, em 1961. Trabalhou com arquitetura residencial, edifícios públicos, cinemas, auditórios e teatros; hotéis, prédios comerciais, restaurantes e lojas. Janete Costa é considerada uma das principais arquiteta de interior brasileira, sendo uma das suas maiores contribuições, a divulgação da arte popular e do artesanato brasileiro. O ideal de Janete Costa era realizar o diálogo entre arte, arquitetura e design no Brasil, expressando as identidades culturais locais de cada região.
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A arquiteta Rosa Aroucha foi aluna de Acacio Gil Borsoi, havendo estagiado com o professor e tornado-se após graduada, colaboradora de sua equipe, atuando em vários projetos desenvolvidos pela empresa. Após se desvincular do mesmo, criou sua própria empresa “Aroucha Associados Ltda”, na qual continuou desenvolvendo sua atividade como profissional liberal.
Análise arquitetônica da Unidade fabril A Unidade da fábrica da Bombril em Pernambuco está localizada no Km 52, na BR101 Norte, no município de Abreu e Lima, na Zona Industrial, Região Metropolitana do Recife (figura 5). O complexo fabril possui 20.295 m2 de área construída, e é composto por três edifícios principais destinados inicialmente à produção de palha de aço. A implantação dos edifícios foi feita com os volumes separados, que se acomodam ao terreno com um pequeno declive, ao mesmo tempo em que atendem à lógica de produção. Os três volumes atendem à funções diferenciadas: o primeiro acomoda a administração, o segundo foi destinado à produção e o terceiro ao armazenamento, estoque e centro de distribuição. Segundo Caldas e Diniz ( 2000, p.170), duas características principais desse projeto foram os argumentos defendidos por seu autor: “ A primeira foi o seu sistema de vedação com placas pré-fabricadas em concreto, desenhadas exclusivamente para o edifício, e a segunda foi a coberta em treliça metálica espacial.” As placas pré moldadas foram utilizadas para o fechamento dos três blocos, empregandose seis matrizes em madeira, permitindo a reprodução em fiberglas quantas formas/ moldes fossem necessárias para a unidade funcional/ compositiva, conforme escreveu o arquiteto Acacio Gil Borsoi: “Toda a fábrica foi projetada dentro de uma malha modular tridimensional (m=1,25m), com os elementos pré moldados, tanto os pilares como as placas de concreto, as quais constituem os panos de vedação. (Revista Projeto, 1985)
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Figura 05 – Localização da Fábrica da Bombril. Fonte: Google maps.
Figura 06 – Esboço da estrutura metálica que possibilitou a criação de espaços integrados e transparentes. Fonte: Revista Projeto, Publicação de 1985.
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Pode-se observar que o uso de uma modulação e o ritmo dos pré moldados (figura7) dialogando com murais com relevos, paineis coloridos e ênfase visual a elementos do equipamento industrial, assinalam uma preocupação que extrapola a natureza funcional ortodoxa do galpão industrial, atribuindo à obra da Fábrica da Bombril, características de composição arquitetônica tão presente nas concepções de Borsoi. Quanto à segunda característica marcante do projeto, o arquiteto Acacio Gil Borsoi e sua equipe procurou inovar em sua proposta arquitetônica, propondo como partido “um edifício de configuração derivada do tema grande cobertura“ - procurando um diferencial às soluções constantes na época para edifícios industriais, que adotavam os telhados em “shed” para resolver a cobertura de grandes vãos necessários aos espaços fabris. Procurando atrelar as soluções da cobertura ao clima, propôs um grande pano de telhados para cada volume (figura 8): “O partido adotado difere das soluções usuais de shed ou arco que caracterizam a edificação industrial. No nordeste com clima de temperaturas entre 25 a 37 graus, e uma brisa constante, a dissociação da coberta e das paredes cria uma grande sombra, protegendo do sol e da chuva, enquanto estas servem de vedação, mas garantindo a renovação de ar nos ambientes internos”. (Revista Projeto, 1985, p.56)
Quanto à solução empregada para cobertura (figura 9), desperta interesse à dissociação da mesma em relação às paredes, e a criação de uma grande área única e sombreada, protegendo os espaços internos do sol e da chuva, enquanto estas servem de vedação, garantindo a renovação de ar nos ambientes internos. O sistema construtivo adotado para esta cobertura possui estrutura metálica espacial (m=2,50m), sobre a qual são colocadas telhas trapezoidais de alumínio. A estrutura utilizada na obra apresenta modulação em pré moldados de concreto armado, sobre fundação em tubulões do mesmo material, superestrutura mista em concreto e aço, e cobertura em estrutura espacial de alumí¬nio, que caracterizam essa obra de alta tecnologia e ímpar plasticidade.
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Figura 07 – Esboços de Acacio Borsoi e fotografia dos paineis nas fachadas. Fonte: Borsoi. 2006.p. 39
Figura 08 – Fachadas da Fábrica da Bombril. Fonte: Grupo de pesquisas Arquitetura e Lugar.
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Figura 09 – Esboços de Borsoi para o partido arquitetônico da Fábrica da Bombril.Fonte: Revista Projeto 77, p. 56-57. São Paulo, Arco Editorial, julho, 1985.
Observa-se que, as soluções projetuais e construtivas, priorizaram uma composição que valorizou a forma atrelada às soluções estruturais da cobertura, criando planos horizontais externamente, e tridimensionais no espaço interno, obtendo como resultado, um ambiente integrado, transparente- solução inédita até então, para um projeto de uma fábrica construída na região do nordeste brasileiro. Afirma-se tal posicionamento, ao constatar nos esboços do arquiteto a sua busca em obter um espaço funcional, racional, porém, rico e leve esteticamente, provando-se que é possível projetar edificações de tipologia industrial com qualidade arquitetônica. Após analisar a edificação e suas soluções projetuais e técnico construtivas, pode-se constatar a utilização da linguagem brutalista, adotando a fidelidade dos materiais, sem acabamentos; as instalações e estruturas aparentes e o uso do concreto que predominou nas placas pré moldadas. Sem dúvida, o arquiteto adotou a “estética do concreto”, presente nas obras do mestre Le Corbusier em um primeiro momento, e posteriormente, retomada com o novo brutalismo.
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considerações finais
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A proposta desse artigo foi trazer à tona um exemplar arquitetônico com tipologia industrial que utilizou soluções projetuais e construtivas embasadas em princípios de modernidade- o emprego de plantas livres, estruturas independentes, espaços transparentes, atenção ao detalhe construtivo, caracterizando tal partido. A boa arquitetura que o professor e arquiteto Acacio Gil Borsoi produziu nessa obra, reafirma o valor em documentar, conservar e divulgar a mesma. Um exemplo a ser seguido, observado, a fim de retirar dela, as soluções projetuais tais como o estudo dos pré moldados e suas distintas formas de aplicação, e a grande cobertura que interliga e une os diferentes espaços, com seu arrojo estrutural. Após quase quatro décadas que foi inaugurada, a obra sofreu poucas descaracterizações, e mantém o seu uso original, e continua com a produção da linha Bombril. As mudanças maiores sofridas são referentes ao seu entorno, que ao longo desses anos, recebeu a implantação de um maior número de indústrias, mas que, não possuem edificações com tanta qualidade arquitetônica como edifício em questão. Devida à proliferação dos edifícios industriais, a Unidade apresenta-se de forma bastante discreta na paisagem atual, passando despercebida naquela rodovia. Interiormente, alguns paineis artísticos que interligavam os blocos foram modificados, pois anteriormente possuíam formas geométricas nas cores da embalagem do produto Bombril (amarelo, vermelho, branco), e atualmente estão revestidos com pintura chapada em vermelho. A unidade da Bombril em Pernambuco não está inventariada no rol de edificações modernas a serem protegidas pelas instituições de preservação do município de Abreu e Lima, nem do Governo de Pernambuco. È um exemplar de grande valor arquitetônico, e que infelizmente, devido a estar produzindo, sofrerá possíveis modificações para acomodações às novas tecnologias industriais.
Situação dualista, pois si por um lado é bom que a indústria mantenha ao longo dos anos seu uso, por outro, está sujeita a sofrer reformas, acréscimos, que podem descaracterizar o projeto original. Por isso, a necessidade em documentar, divulgar, interagir o conhecimento arquitetônico com demais discussões pertinentes ao patrimônio industrial e suas distintas vertentes de atuação. Há que se continuar investigando, observando, descobrindo mais valores da obra moderna industrial produzida em regiões brasileiras, como as existentes no norte e nordeste- ainda tão pouco estudadas e difundidas. Aponta-se para a necessidade que existe em se proteger tais patrimônios, possuidores de valores ainda não reconhecidos por organismos preservacionistas e que fazem parte de acervos recentes. Cabe a nós, pesquisadores, iniciar este trabalho de sensibilização, de educação, para a valorização do patrimônio moderno industrial brasileiro.
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bibliografia
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capĂtulo
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Perdas, danos ou ganho? Sobre as intervenções do antigo RU da UFBA JULIANA NERY SUSANNA MOREIRA SAMIR CONCEIÇÃO RAFAEL CORONGIU
resumo
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Esse artigo se propõe a refletir sobre os impactos das várias transformações que um edifício no transcurso do tempo sofre e quais os resultados e significados dessas intervenções. A trilha dessa investigação segue a saga do antigo Restaurante Universitário (RU) da Universidade Federal da Bahia (UFBA). Ele teve seu projeto literalmente construído pela metade, uma significativa intervenção ao ser transformado na Faculdade de Comunicação da UFBA (FACOM) e recentemente foi ampliado a partir da construção da ala prevista e não executada da proposta original. Busca-se compreender o que restou dos princípios e soluções da arquitetura moderna e como ela interagiu às sucessivas intervenções para o reuso do edifício. Projetado e construído entre 1976 e 1980, o antigo RU possuía uma forma composta por um bloco retangular e um volume em balanço que se projeta a partir dele, dividindo-o em dois blocos. A obra mescla elementos metálicos na grelha que protege as esquadrias; alvenaria nas paredes e janelas em vidro e metal, além das estruturas em concreto aparente de grande valor estético para a identidade do edifício. O volume em balanço de dupla altura abriga as escadas e possui vedação externa em telhas de fibrocimento na vertical que funcionam como elementos para ventilação e de proteção solar. As formas criam espaços de convívio e o volume possui grandes aberturas favorecendo ventilação e iluminação natural. O edifício segue a estética brutalista e o desenvolvimento em módulo integra-o ao conjunto dos edifícios que compõem o Campus Federação-Ondina da UFBA. Em 1999 o prédio passou a abrigar a FACOM e apesar do aspecto externo ter permanecido razoavelmente o mesmo, seu interior foi significativamente reformulado nessa primeira intervenção nos anos 2000. A última intervenção recém-inaugurada mergulhou o edifício num paradoxo: ao mesmo tempo em que alterou por completo a solução assimétrica que caracterizava o edifício construído, deu à edificação a simetria do projeto original. Perdas, danos ou ganho? Palavras-chave: intervenção; reuso; arquitetura universitária; arquitetura moderna na Bahia.
Keywords: intervention; reuse; University architecture; modern architecture in Bahia.
abstract
This article aims to reflect on the impacts of the various transformations that a building in the course of time suffers and which the results and meanings of these interventions. The trail of this investigation follows the saga of the Federal University of Bahia’s old University Restaurant (RU). He had his project literally built by half, a significant intervention to be transformed into the Communication’s Faculty of UFBA (FACOM) and currently was being extended from the wing provided for construction and not executed the original proposal. Searches understand what’s left of the principles and solutions of modern architecture and how it interacted at successive interventions for the reuse of the building. Designed and built between 1976 and 1980, the RU’s shape possessed a form consisting of a rectangular block and a volume on balance that protrudes from it, dividing it in two blocks. The work merges the metallic element on the grill that protects the frames; masonry in the walls and windows in glass and metal, in addition to the concrete structures of great aesthetic value for the building’s identity. The double height balance volume houses the stairs and has external sealing cement tiles vertically, which act as solar protection and ventilation elements. The shapes create spaces of conviviality and the volume has large gaps favoring natural ventilation and lighting. The building follows the brutalist aesthetic and module development integrates the set of buildings that make up the Federação-Ondina Campus at UFBA. In 1999 the building went on to house the FACOM and despite the external aspect have remained reasonably the same, its interior was significantly reworked in this intervention of the years 2000. The last intervention plunged the building in a paradox: at the same time in that amended the asymmetric solution that characterized the building built, gave the building the symmetry of the original project. Damages or gain?
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INTRODUÇÃO Esse artigo se propõe a refletir a partir do caso do antigo Restaurante Universitário (RU) da Universidade Federal da Bahia (UFBA), sobre o patrimônio moderno e suas novas intervenções, especialmente aquelas guiadas pela finalização anos depois de obras cujos projetos foram construídos parcialmente. Como na construção do Teatro do Complexo do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro de Affonso Eduardo Reidy ou da Igreja do Complexo de Saint-Pierre em Firminy de Le Corbusier, e guardadas as devidas diferenças, esse é o caso da última intervenção no antigo RU, atual Faculdade de Comunicação (FACOM). O estudo dos diferentes usos, intervenções e características desse edifício tem como base a pesquisa “Constituição dos Campi e suas arquiteturas: o território da UFBA”, iniciada em 2014 em busca de mapear e registrar os campi e os edifícios da Universidade, conhecer suas histórias, características, contextos e usos e consequentemente oferecer bases mais consistentes para a preservação e necessárias intervenções nesse patrimônio. O projeto para o antigo Restaurante Universitário da UFBA foi realizado em 1977 inserido no Plano de Ocupação Física da Universidade de 1976, elaborado pelo Escritório Técnico-Administrativo (ETA). Anteriormente a esse plano, a UFBA já havia passado por dois momentos de constituição e expansão de seu território: o “Primeiro Tempo”, durante o reitorado de Edgard Santos (1946-1951), no qual algumas das unidades acadêmicas dispersas na cidade foram reunidas no bairro da Federação; no “Segundo Tempo” houve um projeto para esse Campus e o Campus do Canela financiados pelo Programa MEC-BID I, do Governo Federal (1967-1974), com projetos realizados pelos profissionais da Equipe do Serviço de Engenharia do Campus Universitário da UFBA. Houve também um “Terceiro Tempo”, no qual está inserido o projeto do RU, intervenções financiadas pelo Programa MEC-BID II (1974-1981), consolidando o Campus Federação-Ondina (BIERRENBACH e NERY, 2013). Por determinação do Programa MEC-BID II / PREMESU foi criado um escritório técnico em 1976 e realizado um novo Plano de Ocupação Física, em concordância com as orientações do Ministério, pautadas na Reforma Universitária do final dos anos de 1960. Vale pontuar que o processo de planejamento já vinha sendo realizado pela equipe da Prefeitura do Campus Universitário desde 1973 (FONTES, 2010, p. 115).
Para atender a um vasto programa de planejamento com elaboração de projetos e execução de obras, foi montado o Escritório Técnico Administrativo – ETA, que permaneceu com suas atividades até 1984, fazendo parte da equipe de planejamento os arquitetos Antônio Nelson Dantas Fontes [...], Dilson Souza dos Santos, Fernando José Fahel, Guilherme dos Santos Ramos, Lícia Maria dos Santos, Lídia Luz Conceição de Cerqueira, Maria Cristina Guedes Machado Mello, sendo coordenador do ETA, o arquiteto Luiz Carlos Botas Dourado. (FONTES, 2010 p.116).
Assim os edifícios foram projetos por diferentes combinações dos componentes do ETA e a proposta específica do antigo RU ficou a cargo dos arquitetos Luiz Carlos Botas Dourado (coordenador), Antônio Nelson Dantas Fontes e Guilherme dos Santos Ramos. A obra começou em 1979 e foi concluída em 1980, permanecendo como RU até os anos 90 e em 1999 o prédio passou a abrigar a FACOM. Apesar de o aspecto externo ter permanecido razoavelmente o mesmo, seu interior foi significativamente reformulado nessa primeira intervenção dos anos 2000. A última intervenção, projeto de 2008, iniciada em 2011 e prevista para ser inaugurada em agosto desse ano, mergulhou o edifício num paradoxo: ao mesmo tempo em que alterou por completo a solução assimétrica que caracterizava o edifício construído, deu à edificação a simetria volumétrica do projeto original. Esse artigo busca investigar as intervenções nesse edifício de expressão brutalista baiana e quais os impactos e significados dessas alterações entre projeto original e obra construída: perdas, danos ou ganho? VARIAÇÕES NA GÊNESE: O PROJETO ORIGINAL E A OBRA CONSTRUÍDA O Restaurante Universitário da UFBA foi implantado no Campus Federação-Ondina próximo à Biblioteca Universitária e aos edifícios correspondentes a: Serviços Gerais, Institutos de Letras, Filosofia e Ciências Humanas (projeto não realizado) e Instituto de Biologia. Foram encontrados três estudos preliminares do projeto do antigo RU na mapoteca número 20, na mesma sala onde estão armazenadas as plantas baixas originais dos edifícios da UFBA. Nesses estudos preliminares, já existem desenhos técnicos próximos de serem projetos executivos, nos quais o edifício possui uma estrutura muito maior e mais complexa. Pelo que se pode ver nessas plantas baixas, o Restaurante Universitário era dividido em blocos e, além de sua locação definitiva, foi estudado outro sítio para a sua
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implantação, pois existe um estacionamento e é cercado por vias de veículos, o que seria impossível na encosta onde de fato foi implantado. O projeto realizado foi implantado no centro geográfico do Campus Federação-Ondina, precisamente a meia encosta. A escolha deste local, juntamente com o da Biblioteca Central, locada nesse mesmo centro, na parte plana do vale, teve como premissa tornar este local ponto de concentração de atividades acadêmicas, caracterizado pelo fluxo de convergência e dispersão simultânea da população universitária (FONTES, 2016). Os autores do projeto do antigo RU buscaram estudar as edificações pré-existentes no campus Federação-Ondina para elaborar uma obra que dialogasse com o entorno. Segundo Antônio Fontes (2016), um de seus autores: “sua composição arquitetônica foi inspirada na leveza da plasticidade e do enquadramento da Faculdade de Arquitetura no meio natural do campus – construção representativa da arquitetura moderna (1967)”. A Faculdade de Arquitetura, assim como o antigo RU, está implantada em um terreno de desníveis e toma partido disso para decisões de projeto: na primeira existe um aproveitamento das diferentes cotas de nível para diversos acessos ao edifício e na segunda o prédio se instala precisamente a meia encosta, acomodando o nível de acesso na parte mais baixa (nível do passeio com a cota de 14,15m) e o primeiro pavimento na parte média da encosta. Aproveitando-se desse desnível, criam-se diferentes planos, dentre os quais aquele que interrompe a escada de acesso principal ao edifício (a 1,70m do passeio) e que compreende uma área de convívio no vão sob a escada, com a presença de bancos. Outro aspecto que influenciou no partido do RU foi a questão dos fluxos, tanto de alimentos como de pessoas. Dessa forma, na cozinha o espaço foi pensado para que não houvesse o cruzamento entre o limpo e o sujo - distribuição dos alimentos, devolução de bandejas, área de cocção, área para lavar os pratos e espaço para carga e descarga de materiais. A lógica de não cruzamento também acontece entre serviços e pessoas: a circulação da cozinha não interferia nos espaços de convívio do restaurante.
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Figura 01 â&#x20AC;&#x201C; Vistas do antigo R U nos anos 80 e vista da atual FACOM 2016. Fonte: montagem de Juliana Nery a partir das fotografias (anos 80) do acervo da SUMAI e da fotografia de Susanna Carrozzo Moreira (2016).
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Segundo Dourado (apud BIERRENBACH e NERY, 2013), o restaurante foi projetado para ter excelência de funcionamento, tinha como princípio básico das formas arquitetônicas as soluções necessárias e adequadas à sua função, teve como consultora para esse projeto a nutricionista Olga Laskani e como obra referencial a FUNDUSP. Antônio Nelson Fontes em entrevista concedida ao bolsista Leonardo Rocha em 2014, afirmou que o antigo Restaurante Universitário, juntamente com a Biblioteca Central e a Faculdade de Farmácia, foi considerado na época, em exposições em Brasília, referência de arquitetura de campi universitários na América Latina. Para atender a todas estas questões [de conforto ambiental] adotou-se um partido em lâmina, o que lembra as formas de Le Corbusier – volumes frontais – já adotados nos planos de 1967, financiado pelo Programa MECBID I, coordenado pelo professor Américo Simas Filho e de 1973, MECBID II, coordenado pelo professor Diógenes Rebouças, porém utilizandose de uma linha de plasticidade desse movimento e autenticidade ao partido arquitetônico proposto para a época (1980). (FONTES, 2016)
No primeiro projeto executivo, de 1977, a planta baixa do edifício era constituída por dois “braços” ou “asas” simétricos em volumetria e um terceiro bloco ao fundo com um pequeno deslocamento a partir de um eixo central marcado pelas escadas que “avançam” para fora do edifício em um volume próprio e bem característico do projeto. No pavimento térreo, o acesso ocorre pelo lado esquerdo do edifício – acesso que permaneceu o mesmo ao longo dos anos nas intervenções realizadas. No lado direito existe outro acesso secundário, de fora do prédio na parte posterior, que dá para um jardim. Esse pavimento é predominantemente destinado a espaços de convívio para os alunos e demais funcionários da Universidade; nele também existe uma área para um café e na parte central posterior, logo atrás do café, uma área para serviços, na qual está inclusa a circulação vertical. Nas pontas desses dois “braços” estão localizados os sanitários, que nesse pavimento possui uma distribuição espacial assimétrica (fig. 2). Já o primeiro pavimento possui uma lógica mais simétrica, com dois espaços para refeitório: um em cada “braço”. Essa lógica se aplica até a parte do edifício delimitada pelas duas caixas de escada entre os espaços servidos e espaços serventes – bem
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Figura 02 – Plantas do RU projeto original 1977 e Implantação (em cinza a parte construída em 1978 e em branco a parte construída em 2008). Fonte: Acervo da SUMAI e redesenho de Susanna Carrozzo (2017).
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Figura 02 – Plantas do RU projeto original 1977 e Implantação (em cinza a parte construída em 1978 e em branco a parte construída em 2008). Fonte: Acervo da SUMAI e redesenho de Susanna Carrozzo (2017).
delimitados em função do programa do edifício. Nesse nível, a cozinha, localizada na parte posterior do RU, avança sobre a encosta. Há também um espaço entre a parede posterior e o muro de contenção, onde fica armazenado o lixo, essa solução aproveita a implantação do edifício, para obter um ganho significativo de área para esse piso (fig. 2). O programa da zona de serviços desse pavimento conta com câmaras de armazenamento de alimentos, depósitos, despensa geral, administração, vestiário e sanitários para funcionários. Além disso, foi pensada uma área de carga e descarga com acesso à cozinha, e, como já foi dito, o fluxo funciona de forma que não existe cruzamento entre a circulação de elementos “limpos” a exemplo da chegada de alimentos e aqueles considerados “sujos” como a saída do lixo. O segundo pavimento segue a mesma lógica do primeiro em relação à distribuição de zonas e sem mudanças na organização dos espaços servidos, já nos serventes existe um novo programa: despensa, lavagem e preparo de outros alimentos, área de cocção, lavagem de pratos, mais uma administração e sala de nutricionista, além de sanitários para funcionários. Esse piso possui um recuo maior em relação à encosta quando comparado ao imediatamente inferior, existindo assim uma cobertura de laje plana em parte da área de cozinha do primeiro pavimento. Por fim, acima desse pavimento, estão localizados: a casa de máquinas, equipamento de exaustão e caixa d’ água. A volumetria então seria composta por uma barra intercepta por um volume ao fundo não perceptível da entrada principal e outro bloco imponente à frente, gerando a leitura dos braços simétricos e do destacado volume da escada principal. Vale observar a importância que o volume das escadas tem nesse edifício ao conferir identidade ao projeto por possuir um impacto estético. O volume, estruturado por concreto armado, é revestido com telhas de fibrocimento, atualmente pintadas em amarelo, assentadas verticalmente, que barram parcialmente a entrada de sol na edificação e favorecem a ventilação. Além de impacto estético, também tem impacto social, pois a escada proporciona um espaço abaixo dela com bancos nos quais os estudantes convivem diariamente até hoje, e isso já havia sido previsto no projeto original de 1977.
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Vale ressaltar sua estrutura em concreto aparente e a plasticidade dos componentes construtivos: A escada monumental revestida com telha de fibrocimento, assentadas verticalmente e com espaçamentos para ventilação, traduzindo a proposta de plasticidade da obra; o painel de vidro solto dos paramentos da edificação e inspirado nas esquadrias da Faculdade de Arquitetura, o que proporcionou aos refeitórios, nos andares superiores, uma expressiva abertura contemplativa, tanto para o vale, como para a encosta, além da permeabilidade da iluminação e ventilação natural; finalmente, o recuo do paramento central da edificação, assegurou a soltura dos blocos de refeitórios e para a área de sociabilidade – térreo – uma visão panorâmica com vistas para o vale. (FONTES, 2016)
O edifício executado, como se pode observar na figura 3, foi adaptado e simplificado a partir do projeto executivo original, havendo assim a elaboração de outro projeto no ano seguinte ao primeiro, 1978, pela mesma equipe. Além da perda do “braço” direito, o programa foi simplificado, para atender uma demanda menor: no pavimento térreo o espaço destinado ao café virou recepção; já no primeiro pavimento apesar da perda de espaço de refeitório, os espaços serventes continuaram com a mesma dimensão e complexidade. Por fim, no segundo pavimento houve uma leve redução no programa, mas sem alterações na lógica dos fluxos. Tanto o projeto original quanto aquele que foi construído, seguem as premissas funcionalistas da arquitetura moderna, bem como exploram a forte expressão estética dos materiais brutos da arquitetura do concreto armado característica das obras dos anos 70 no Brasil, nomeadas posteriormente como “brutalistas”. Essa arquitetura tinha em sua resolução programática e pragmática importante fator de decisão projetual dos espaços e formas volumétricas. Com um programa complexo e bastante específico, as soluções do RU eram condizentes ao atendimento preciso de suas necessidades funcionais. A estética que brota do uso franco dos materiais reforça a ideia da correspondência unívoca entre forma e função da arquitetura moderna, mesmo que a racionalidade ficasse mais no discurso do que na realidade do superdimensionamento de algumas peças em concreto aparente que marcam essa e tantas obras daquele período.
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Figura 03 – Plantas do RU projeto construído 1978. Fonte: Acervo da SUMAI e redesenho de Rafael Corongiu / revisão Susanna Carrozzo (2017).
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Figura 03 – Plantas do RU projeto construído 1978. Fonte: Acervo da SUMAI e redesenho de Rafael Corongiu / revisão Susanna Carrozzo (2017).
MUTAÇÕES PARA REUSO: DE RESTAURANTE UNIVERSITÁRIO A FACULDADE DE COMUNICAÇÃO O curso de Jornalismo e Comunicações foi regulamentado em 1943 começando a ser lecionado na universidade em 1950, integrando os cursos destinados à Filosofia e Ciências Humanas, instalando-se no campus desse grupo de cursos em São Lázaro, no Campus Federação. Funcionou por 19 anos até a reforma universitária que também reestruturou fisicamente a universidade. Em 1969, passou a ocupar parte do edifício de biblioteconomia, tendo seu departamento unido ao deste curso. Essa fusão funcionou de modo conflituoso até 1987. Por causa das divergências entre os departamentos e dos protestos dos estudantes, o curso de Comunicação se tornou independente e invadiu um prédio em precárias condições de uso no Campus do Canela. O prédio foi reformado para viabilizar seu uso, mas mesmo assim não conseguiu atender a demanda necessária para o funcionamento do órgão. Nesse período dois cursos faziam parte do departamento, o curso de Comunicação e a habilitação em Produção Cultural criada em 1996, além da pós-graduação. Em virtude da crescente demanda discente o departamento reivindicou em 1999 o edifício do Restaurante Universitário que se encontrava temporariamente desativado e apesar dos vários protestos do DCE (Diretório Central dos Estudantes) – por causa da iminente perda do único espaço para esse fim à época na UFBA – conseguiu a realocação. A Faculdade de Comunicação (FACOM) passou a funcionar no antigo RU em 2000, mesmo sem a reforma completa para atender as demandas da intervenção de reuso da edificação. Para a instalação da FACOM, várias do antigo RU, todas de autoria da Prefeitura do Campus, os arquitetos Nelson de Almeida Damasceno e
adaptações foram realizadas no prédio equipe de arquitetos e engenheiros da responsáveis diretos pelo projeto foram Márcia Elizabeth Pinheiro dos Santos.
A obra de reforma do antigo Restaurante Universitário de que trata este documento conclui um processo iniciado em 2000, quando se instalou as salas de aula e administração da Faculdade de Comunicação, áreas estas que não estão contempladas neste projeto. As áreas a serem reformadas nesta etapa são: no Pavimento Térreo área de acesso aos Sanitários e Pátio descoberto próximo ao Auditório para instalação da casa de máquinas do ar condicionado, a área da Despensa e Câmaras frigoríficas no Primeiro Pavimento onde serão instalados os
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Gabinetes de Professores e Laboratórios de Rádio e de Fotografia e a área da Cozinha no Segundo Pavimento onde serão instalados os Laboratórios de TV/SOM. (Memorial descritivo do projeto, 2000, p.4)
A intervenção de adaptação não propôs uma reforma completa, mas uma reutilização do espaço existente na busca de economia e uma pretensa racionalidade, uma vez que uma reorganização total seria onerosa à Universidade. Justificada também pela lentidão desses processos nas universidades federais, e pela urgente necessidade de realocação do curso, a intervenção, mais caracterizada por uma adaptação forçada e forçosa, seguiu inconscientemente a trilha da mínima intervenção no aspecto plástico do edifício, não exatamente motivada pelas preocupações com a sua plena preservação, mas sim pela falta de recursos e tempo para uma proposta mais qualificada. A estrutura em concreto foi mantida e foram tomados todos os cuidados necessários para que as demolições não a afetassem, foram demolidas as paredes das áreas da despensa e das câmaras frigoríficas para a readequação do espaço possibilitando o funcionamento dos gabinetes dos professores e dos laboratórios de rádio e fotografia e de TV/SOM no primeiro pavimento e no segundo pavimento respectivamente. No espaço interno houve uma transformação mais significativa já que foram subdivididas as áreas abertas e reconfigurados os espaços de serviços, apesar da intenção dos autores de propor uma reorganização interna respeitando os elementos importantes para a identidade plástica do edifício (ver fig. 4). O programa de necessidades utilizado para o projeto contempla, no pavimento térreo, o auditório, este com acesso separado do edifício principal, munido de antecâmara, depósito de equipamentos, casa de som, casa de ar-condicionado e a área de apresentações com capacidade para 100 pessoas. Adentrando o edifício há os halls de acesso, imediato a eles as salas administrativas de direção, vice direção, secretariado e departamento, em meio a estes espaços a sala de impressão. Há três possibilidades de acesso: a entrada principal próxima às salas administrativas; aquele que leva às circulações secundárias próximas às áreas externas, destinadas a cozinha, cantina, área de convivência e sanitários; e o terceiro vinculado ao estacionamento dos professores, onde foi prevista a instalação dos elevadores. Fruto dessa intervenção, as adaptações de acessibilidade como a construção da rampa no acesso para professores deram
melhores condições de acessibilidade ao edifício antes inacessível para cadeirantes. O projeto contava com a instalação de dois elevadores que não foram colocados. O primeiro pavimento abriga o setor destinado ao ensino que possui seis salas de aula na ala esquerda, o hall principal ligado a um conjunto de salas para atividades estudantis como o jornal, a agência de notícias e a sala de computação. Contíguo à circulação principal se localiza o espaço de acervo de áudio e vídeo. Seguindo para o fundo do edifício temos o laboratório de rádio, as salas de projeto, o laboratório de fotografia, os gabinetes para os professores e os espaços de apoio como a copa e os sanitários. O pavimento possui saída para o estacionamento dos professores. O segundo pavimento possui as salas de aula que também seguem a mesma organização do pavimento anterior na ala esquerda, porém é destinado majoritariamente às atividades estudantis, sobretudo da pós-graduação com salas para redação informatizada, laboratórios multimídia, videoteca, estúdio de som independente, ilhas de edição, depósitos, salas técnicas e o estúdio multiuso, todos com compartimentos de apoio necessários às respectivas atividades, além das salas de coordenação. O projeto possui um zoneamento de acordo com os blocos e andares razoavelmente resolvido, com alguns espaços por vezes muito imbricados, dado aos limites do edifício preexistente. O pavimento térreo é mais destinado às relações externas como o auditório e a administração enquanto os outros são destinados às atividades dos estudantes de graduação no primeiro pavimento e de pós-graduação no segundo pavimento. Embora o edifício possua áreas abertas de convívio, é bem restrito, fechado em si mesmo e voltado às suas atividades, diferentemente de outros edifícios contemporâneos a ele construídos no Campus Ondina da UFBA, em grande parte muito abertos. A adaptação tentou respeitar em certa medida o projeto anterior, ao manter a volumetria do edifício construído no final dos anos 70. No entanto as modificações nos fechamentos das fachadas mais extensas modificaram significativamente a percepção da edificação. Dentre tais modificações as mais significativas foram a colocação dos brises
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que passaram a cobrir toda a fachada principal, justificados pelas condições ambientais, fazendo desaparecer os generosos panos de vidro originais e o fechamento completo do pavimento inferior dessa mesma fachada, anteriormente em grande parte vazado. A estrutura do edifício não sofreu grandes transformações, bem como a caixa das escadas revestidas de telhas na entrada do edifício. A base estrutural de vigas transversais da ala esquerda e pilares em concreto aparente foi mantida no projeto de 2000. As vigas transversais da ala esquerda possuem grandes dimensões e uma angulação específica nas extremidades que equaciona as forças axiais e ajuda no contraventamento, ela é apoiada sobre uma malha de pilares retangulares que forma com elas um cruzamento unindo-as às vigas longitudinais de menores dimensões. As vigas longitudinais alcançam todo o volume do edifício. As esquadrias do edifício foram completamente alteradas, antes eram em vidro fumê e madeira, atualmente são em vidro transparente e alumínio. Como já citado, visando melhorar o conforto lumínico, foram instalados brises metálicos interferindo drasticamente na fachada do edifício que antes tornava mais evidente os elementos da arquitetura brutalista no franco contraste entre os panos de vidro e as vigas aparentes. A composição arquitetônica - que buscou nos rasgos envidraçados uma ampla vista do campus -, foi perdida na instalação desses brises, conferindo ao edifício um aspecto estético completamente diferente que vez diluir bastante a presença da estrutura nessa fachada. Ainda que conte com grandes aberturas pontuais o edifício não aproveita bem a iluminação restante, pois apesar de sua grande dimensão proporcionada pelo alto pé-direito a divisão do espaço e o isolado das salas gera uma menor eficiência da iluminação natural. Como já mencionado o edifício é ensimesmado e possui uma organização interna bastante retalhada tornando os espaços originais de plena luz em ambientes escuros e mais fechados nas relações que reestabelece com o exterior.
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Figura 04 – Plantas da FACOM intervenção 2000. Fonte: Acervo da SUMAI e redesenho de Rafael Corongiu / revisão Susanna Carrozzo (2017).
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Figura 04 – Plantas da FACOM intervenção 2000. Fonte: Acervo da SUMAI e redesenho de Rafael Corongiu / revisão Susanna Carrozzo (2017).
Figura 05 – Plantas da FACOM intervenção 2008. Fonte: Acervo da SUMAI e redesenho de Samir da Conceição / revisão Susanna Carrozzo (2017).
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Figura 05 – Plantas da FACOM intervenção 2008. Fonte: Acervo da SUMAI e redesenho de Samir da Conceição / revisão Susanna Carrozzo (2017).
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DESAFIOS DE UM NOVO ANEXO: MUTILAÇÃO DA PREEXISTÊNCIA CONSTRUÍDA OU COMPLEMENTAÇÃO DO PROJETO ORIGINAL? O novo anexo, projetado em 2008 foi solicitado por conta da grande demanda de alunos e fez parte do conjunto de iniciativas do REUNI (Programa de Apoio a Planos de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais do Governo Federal). O projeto foi realizado por uma equipe da atual SUMAI (Superintendência de Meio-Ambiente e Infraestrutura) formada por Thomas Kraack, Nelson Damasceno, Bruno Santana e José Luiz Imbiriba. Como consequência da proposta, além da ampliação da área construída da edificação preexistente, ocorreram mudanças na organização espacial alterando os espaços de ligação e compartimentos, incluindo a relocação dos gabinetes que se localizavam na parte antiga para o novo anexo. Segundo José Luiz Imbiriba, em depoimento dado a professora Juliana Nery, a determinação de seguir o projeto original foi uma decisão técnica de completar o edifício seguindo o projeto original porque ele se encontrava “mutilado” e em nenhum momento se cogitou outra possibilidade de intervenção. Assim os arquitetos propuseram o anexo seguindo a volumetria e a modulação estrutural do projeto para o RU de 1977 e as soluções da fachada toda recoberta de brises e de um espaço interno segmentado da reformulação de 2000 (fig.1). Esse descompasso temporal entre as soluções seguidas para a volumetria e estrutura e aquelas que guiaram as fachadas e a divisão interna já revelam a condição controversa da opção projetual do novo anexo da FACOM. No pavimento térreo foram realocadas as salas administrativas e o centro acadêmico. Nele também foi destinada uma sala para o programa de educação tutorial. No primeiro pavimento foram colocados o Centro de Comunicação, Democracia e Cidadania (CDDC) e um laboratório para computadores; no segundo pavimento foram instalados os laboratórios de fotografia, de rádio, o escritório júnior e novos gabinetes para professores. A estrutura da ala existente foi mantida e seguida no projeto de ampliação do novo anexo. Foram tomados cuidados para que a estrutura não sofresse nenhum dano durante as demolições realizadas no primeiro e no segundo pavimento da ala antiga do edifício.
O projeto, aprovado em 2008 e construído entre 2011 e 2015, foi acompanhado de uma reforma no edifício pré-existente e de adaptações para acessibilidade. Respeitou-se, como já explicitado, a volumetria, a malha estrutural e os elementos expostos em concreto armado do projeto original, com mudanças na configuração interna – para adequar as novas demandas da FACOM e à compatibilização com a nova ala (Fig. 5). Essa opção para o novo anexo, entendida como indiscutível complementação de um edifício “mutilado” por seus autores, nos coloca diante de um enorme paradoxo e de uma serie de questionamentos. O paradoxo de um antigo edifício que acabada de ser construído. O que parece uma continuidade acaba por mergulhar a edificação em um “limbo temporal”, no qual o novo anexo não é efetivamente nem o projeto original, nem um uma nova proposta. Quais os sentidos de uma decisão dessa e o que ela produz na relação entre preexistência e arquitetura contemporânea?
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considerações finais
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Segundo o arquiteto e crítico italiano Giovanni Carbonara (2013) há uma possibilidade atual de diálogo construtivo entre a arquitetura antiga e a arquitetura contemporânea que permite reinserir a produção da arquitetura de hoje na lógica da tradição estratificada do tempo. Assim é possível propor uma nova arquitetura que dê continuidade a preexistência sem necessariamente falsear ou imitar o passado nem romper radicalmente com ele. É nessa trilha que buscamos compreender outras possibilidades mais interessantes e qualificadoras para as intervenções em edificações já existentes e portadoras de importante expressividade arquitetônica de seu momento de concepção, como é o caso do antigo Restaurante Universitário da UFBA. O projeto de criação do novo anexo desenvolvido em 2008 propôs a ampliação do edifício, construindo o seu outro lado e seguindo a mesma volumetria do projeto original, porém com uma organização espacial interna diferente. Por outro lado segue o tratamento de fachada dos anos 2000 com o uso de brises, entretanto cobre com esses elementos toda a extensão da fachada da ala nova, fazendo “desaparecer” o pavimento térreo que diferencia a base do edifício existente na ala antiga, o que fragiliza a simetria almejada. Parece-nos que a nova inserção, ao contrário de ser uma complementação indiscutível, é uma saída ingênua e pouco consistente para uma intervenção que não responde ao mesmo uso nem ao mesmo momento expressivo do projeto original. Passados mais de trinta anos e consolidada a leitura assimétrica do edifício, a opção por complementar “uma certa” simetria originária jamais existente para abrigar um programa completamente diverso da proposta de 1977 é pouco justificável e parece revelar um empobrecimento da própria ação contemporânea da arquitetura, como também uma incapacidade de compreensão do edifício antigo e de preservá-lo efetivamente. A prática de “complementar” obras “inacabadas” a partir de projetos originais transcorrido um significativo tempo da construção não é uma novidade e é defendido por alguns autores, a exemplo de Ana Carolina Santos Pellegrini (2011). Essa autora defende que no caso da arquitetura moderna o projeto
pode dividir ou até mesmo se sobrepor à obra construída como patrimônio a ser preservado, o que justificaria a construção ou finalização de obras a partir dos projetos originais, mesmo após a morte se seus autores como no famoso caso da Igreja de Firminy ou no caso brasileiro do Teatro do MAM-RJ. No entanto é preciso se perguntar: se o patrimônio é o projeto, ele não deve ser preservado enquanto projeto, enquanto ideia propositiva de um devir? E quanto ao transcurso do tempo: será que ele não interfere nas decisões projetuais de um arquiteto? Talvez o caso do Mercado do Peixe de Diógenes Rebouças no Porto da Barra em Salvador seja exemplar para nos mostrar como a passagem do tempo impacta nas soluções arquitetônicas dadas por um mesmo arquiteto moderno, para o mesmo lugar, atendendo ao mesmo programa. As soluções tão diversas entre a primeira versão do projeto construída entre 1949 e 1950 e a proposta de 1986 não deixam muita margem de dúvida sobre como as respostas propositivas não se mantém as mesmas, como se pode observar na figura 6. Vale ressaltar que o tempo transcorrido no exemplo das propostas de Diógenes Rebouças é similar aquele decorrido entre o projeto de 1977 para o antigo RU e a construção da nova ala para a atual FACOM, como o agravante da alteração de uso do edifício. Ao decidir construir aquilo que não foi executado do antigo projeto para o novo anexo, os arquitetos buscaram respeitar o projeto original com o objetivo de dar unidade e simetria a um edifício que, segundo eles, estaria “mutilado”. Contudo, ao executar tal anexo, a preexistência do edifício construído acabou sendo drasticamente impactada, no momento em que a solução assimétrica que o caracterizava é completamente modificada, assim como a volumetria e a paisagem circundante também são alteradas. Para além dessa descaracterização da obra construída e consolidada no tempo, a nova ala não correspondeu (nem poderia corresponder, dada a diferença funcional demandada) exatamente ao projeto original, visto que nem a fachada, nem a divisão espacial interna foram mantidas. Portanto nos cabe refletir: por que manter as referências originais, adotando a mesma composição formal
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e outras soluções arquitetônicas de um projeto dos anos 70 com necessidade de adaptações significativas para atender ao novo programa? Por que não formular um projeto completamente novo, com uma arquitetura de base contemporânea capaz de um diálogo franco e qualificador com a preexistência? Será que bem distante da finalização de um projeto inacabado não se criou um híbrido de descaracterização de uma bela preexistência moderna com a nostalgia de um projeto que já não responde a expressão de seu tempo nem a funcionalidade necessária da nova intervenção? Será essa ação uma questão de preservação, de falseamento, de descaracterização ou de empobrecimento de nossa arquitetura contemporânea? Será mesmo tão pertinente usar um projeto de uma vertente da arquitetura moderna cuja premissa básica era a forma ser determinada pela função para um edifício que teve seu uso completamente alterado, com necessidades programáticas tão diversas do projeto original? Passados mais de trinta anos será que a arquitetura atual não teria outras respostas, mesmo que o uso do edifício tivesse permanecido? O que nos parece claro é que não podemos nem parar nem voltar o tempo, muito menos falseá-lo. Mas podemos aprender com ele e refletir mais e melhor sobre as possibilidades de seu transcurso sobre os exemplares e documentos herdados da arquitetura moderna.
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Figura 06 – Mercado do Peixe (acima) / Diógenes Rebouças (1949/50) Mercado do Peixe (abaixo) / Diógenes Rebouças (1986). Croquis de Daniel Paz (2017).
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