Não sei quantas almas tenho Não sei quantas almas tenho. Cada momento mudei. Continuamente me estranho. Nunca me vi nem acabei. De tanto ser, só tenho alma. Quem tem alma não tem calma. Quem vê é só o que vê, Quem sente não é quem é, Atento ao que sou e vejo, Torno-me eles e não eu. Cada meu sonho ou desejo É do que nasce e não meu. Sou minha própria paisagem; Assisto à minha passagem, Diverso, móbil e só, Não sei sentir-me onde estou. Por isso, alheio, vou lendo Como páginas, meu ser. O que segue não prevendo, O que passou a esquecer. Noto à margem do que li O que julguei que senti. Releio e digo: “Fui eu?” Deus sabe, porque o escreveu. Alberto Caeiro
ARGUMENTAÇÃO CONCEITUAL Tentarei,
de
alguma
forma,
explicar
a
conceituação de cada uma das imagens escolhidas para essa inscrição. Assim como no poema de Alberto Caeiro, não há um pensamento muito sistemático antes da feitura de cada imagem. É como se elas me gritassem do fundo da alma, loucas querendo sair, e quando dou por mim, quando percebo, elas já estão me acenando do lado de fora. “Fui eu?”, DENTE (2013)
me pergunto.
Sou obcecada por alguns assuntos e temas e eles, obviamente, aparecem nas imagens que eu faço. Física quântica, biologia, astrologia, psicanálise são leituras que estão sempre na minha lista e meus livros de cabeceira quase sempre tem esses temas. Em uma das minhas linhas de pesquisa, “Metonímias”, eu abordo essas questões. São temas que me permitem escarafunchar, ir no cerne das coisas, tentar buscar, dentro, em cada pedacinho físico ou psíquico, uma razão ou um deus. O díptico “Prognosis” surgiu espontâneamente, mas em um período em que eu andava lendo bastante sobre genética e doenças degenerativas. Acabei parando por bastante tempo em leituras sobre o câncer, principalmente o de mama, pois tenho uma relação difícil e conflituosa com meus seios. Apesar de não ter históricos de câncer de mama na família, nem ter tido amigos próximos sofrendo com a doença, o câncer acabou se tornando uma obsessão, sem, contudo, ser fobia. Já fiz uma cirurgia plástica para reduzir o tamanho dos peitos uma vez e ainda assim não consegui resolver nossos problemas. Então tudo que se refere aos meus seios (e seios, como um todo) significa muito, por razões de sexualidade, maternidade, feminilidade - todas questões conflituosas para mim. Então, no meio desses pensamentos todos, essa imagem
surgiu. E já surgiu dessa forma, sem nenhuma necessidade de alteração posterior. Uma outra linha de pesquisa que estudo é “O Retorno de Saturno”. Aqui, o assunto é a crise, qualquer que seja, e o medo do porvir. Retorno de Saturno é o período entre os 28 e os 30 anos de idade, quando somos testados, de verdade, pela primeira vez sobre nossa maturidade diante da vida. É quando Saturno, o planeta que representa a família, a responsabilidade, EXPERIÊNCIA DE QUASE-MORTE (2013)
o Senhor a quem devemos prestar respeito e obediência, vem nos cobrar. É quando ele entra
pela porta do nosso quarto e pergunta, bem na nossa cara, o que já fizemos até aqui e quais os nossos objetivos na vida daqui pra frente. É o período que abandonamos de vez a inconsequência da juventude, permitida de certa forma até aqui, e começamos a pensar na vida e na morte. Nossa, dos nossos pais. Algumas coisas deixam de fazer sentido, como gostar de sentir medo. Então, como eu estou exatamente no meio do Retorno de Saturno, eu abordo aqui todos os temas de crise que permeiam a minha vida e a vida dos que eu observo nessa faixa etária. A imagem “Dente” está situada aqui. Para esta exposição, proponho que seja instalada com um molde da minha arcada dentária ao lado da imagem. Dentes, caveiras, estão sempre na minha imaginação. Principalmente os dentes, que são a parte aparente do nosso esqueleto. A parte que nos lembra do que somos feitos, que todos somos iguais por dentro e que temos um mesmo destino, a morte. Eu, assim como todas as pessoas, acredito, quando estou sob stress ou preocupada com alguma questão íntima acabo tendo pesadelos. E todos, todos os meus pesadelos tem dentes envolvidos. Às vezes um ou dois caem da boca, outras vezes eu vomito dentes initerruptamente, outras vezes sou levada à frente de uma palestra sobre falta de higiene oral (e meus dentes estão
PROGNOSIS #1 e #2 (2013)
todos podres), ou ainda eu como algo, vou cutucar um dente com a unha para tirar um resto de comida e arranco uma obturação gigante, muito maior do que caberia na boca - somente para citar alguns mais recentes. Quase sempre minha mãe está presente nos sonhos. E não, não tenho problemas com dentistas ou exagero na higiene bucal. Dizem que sonhar com dentes é um mau presságio, que significa a morte repentina de algum parente ou amigo, mas eu sonho com dentes desde bem nova e nunca ninguém morreu. Espero que o Destino não esteja me pregando uma peça e aguardando o momento de me cobrar a vida de todos de uma vez... Falando em morte, a terceira imagem que apresento nessa proposta é “Experiência de Quase-Morte”, que integra minha linha de raciocínio “Tesarac”. Tesarac é onde me compadeço da dor dos outros e da dor do mundo. É, também, onde vejo que metonimicamente, nossas crises pessoais são as mesmas crises do planeta. É aqui que consigo fechar o ciclo das minhas linhas de raciocínio. Aqui abordo temas mais sociais,
mais fora do meu corpo, como mudanças de paradigmas, feminismo, terrorismo, guerras. Os processos, de forma bem objetiva ou fazendo abstrações e metáforas. O mundo está passando por grandes e profundas transformações, e, como estamos no meio do furação, não conseguimos enxergar muito bem os porquês das coisas. O processo é dolorido demais. A Experiência de Quase-Morte é outro desses assuntos que me vejo às voltas às vezes, em algumas leituras de neurociências, e é fascinante. Existem relatos realmente impressionantes de pessoas que tiveram morte cerebral, mas que se lembram, com detalhes, de tudo o que aconteceu no período que esteve apagada. Biologicamente, isto seria impossível, pois temos 5 sentidos de percepção e, se eles estão inativos, significa que não se está percebendo nada. Porém, alguns neurocientistas já estão apontando a existência de uma outra forma de sentir e perceber o mundo que não está ligada nem aos sentidos de tato, olfato, audição, visão e paladar nem à memória. Seria uma outra coisa, um sexto sentido, que é ao mesmo tempo todos os outros juntos, mas adicionado de uma sutileza que poderia ser chamada de infrafino, ou Infra-mince, conceito inventado e trabalhado por Duchamp, que abre um canal sutil entre o self e o Outro. A fagulha que transforma o ordinário em extraordinário. Por metáfora, esse é o retrato que faço do nosso tempo. O mundo está morrendo e nós continuamos percebendo tudo como vivo através desse sentido especial, infra-mince. Quando acordarmos, quando voltarmos à vida, estaremos renovados, mais plenos e mais conscientes de tudo que nos cerca. Essa é a esperança. Ou então podemos todos morrer de vez. *** O fato de eu chamar esses grandes temas de “Linhas de Raciocínio” e não de “Séries” se deve ao fato de que, dentro de cada uma dessas linhas existe uma variedade grande de sub-assuntos e linguagens, que não poderia unificá-las como séries. Em cada uma delas eu trabalho com fotos, vídeos, performances, objetos, instalações. Tudo bem misturado. E um tanto incoerente, certamente. Mais adiante eu tento explicar um pouco melhor o que é, conceitualmente, cada uma dessas linhas de pesquisa, ou Linhas de Raciocínio.
Linha de Raciocínio 01:
METONÍMIAS A metonímia é uma figura de linguagem que consiste no emprego de uma ideia ou termo para representar outro. Diferente da metáfora, a metonímia se refere a uma relação de contiguidade e semelhança ou uma possibilidade de associação entre uma parte e o todo de uma coisa, por exemplo: “Minha avó tinha cinco bocas para alimentar” (bocas representando pessoas), ou “Aquele homem não tem teto” (teto representando casa). Nessa linha de raciocínio eu investigo as partes que compõem as coisas e que, no entanto contém o todo das coisas, sejam estas tangíveis ou não, do mundo físico ou psíquico. Então aqui eu cortar, desfaço, monto, remonto, questiono, refaço, recoloco os metônimos em novos lugares e penso sobre os pedaços das coisas, das pessoas, dos ambientes, e de onde elas vieram. Nós mesmos somos metonímias do mundo, metonímias do universo, metonímias de tudo o que existe. Somos parte que compõem o todo, porém, somos inteiros e não meros pedaços. E é com essa ambiguidade e complexidade que gosto de brincar. Misturar as escalas macro e micro. Ir muito dentro das coisas, dentro de mim, psicologicamente, fisicamente. E depois me afastar, o mais longe que eu puder. E, mesmo nesse movimento, percebo que quanto mais dentro ou quanto mais fora eu estou, mas vejo, penso e sinto a mesma coisa. Eu posso me fracionar em pedaços cada vez menores e encontrar detro de mim novos inteiros. E gasta a vida inteira investigando esses pedaços-inteiros que descubro e ainda assim não entender do que sou feita. Somos todos partículas do universo, microcosmos que contém tudo o que existe. Um todo composto de várias partes, partes, estas que possuem dentro de si outro todo.
SENTIMENTO DO MUNDO Tenho apenas duas mãos e o sentimento do mundo, mas estou cheio de escravos, minhas lembranças escorrem e o corpo transige na confluência do amor. Quando me levantar, o céu estará morto e saqueado, eu mesmo estarei morto, morto meu desejo, morto o pântano sem acordes.
Os camaradas não disseram que havia uma guerra e era necessário trazer fogo e alimento. Sinto-me disperso, anterior a fronteiras, humildemente vos peço que me perdoeis. Quando os corpos passarem, eu ficarei sozinho desfiando a recordação do sineiro, da viúva e do microscopista que habitavam a barraca e não foram encontrados ao amanhecer esse amanhecer mais noite que a noite. Carlos Drummond de Andrade
Linha de Raciocínio 02:
O Retorno de Saturno Todos os astros tem seus próprios ciclos, onde transitam pelo mapa astral e retornam à sua posição inicial. Contando em anos terrestres, a Terra leva 365,5 dias; Saturno demora 29,5 anos para completar o ciclo. Eu estou no meio do primeiro Retorno de Saturno. Exatamente no meio. Na astrologia, o retorno de um astro ao mesmo ponto que ele estava no momento de nascimento da pessoa significa que ela terá um novo início na área governada por aquele astro. Saturno é o Pai, o senhor que cobra a maturidade, responsabilidade, o cumprimento do dever, a experiência, a cautela, a ambição. Comanda a carreira. Senhor do Tempo (Saturno é o correspondente romano para o deus grego Cronos), e por isso o fechamento do ciclo de Saturno é muito especial porque ele representa os novos princípios de limite e restrições da pessoa. Olhar a vida por uma nova perspectiva. Separar, definir, questionar. Iniciar o que estava latente, reiniciar o que estava estagnado. Reavaliar valores íntimos. Aprender a ser o genitor da própria existência. Crise. Ou seja, o período entre 28 e 30 anos terrestres é o período do primeiro retorno de Saturno. Ele volta mais vezes, por volta dos 56-58 anos, depois aos 74-76 anos. Saturno cobra cada coisa a seu tempo, claro, mas é implacável.
Tabacaria Não sou nada. Nunca serei nada. Não posso querer ser nada. À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo. Janelas do meu quarto, Do meu quarto de um dos milhões do mundo. que ninguém sabe quem é (E se soubessem quem é, o que saberiam?), Dais para o mistério de uma rua cruzada constantemente por gente, Para uma rua inacessível a todos os pensamentos, Real, impossivelmente real, certa, desconhecidamente certa, Com o mistério das coisas por baixo das pedras e dos seres, Com a morte a por umidade nas paredes e cabelos brancos nos homens, Com o Destino a conduzir a carroça de tudo pela estrada de nada. Estou hoje vencido, como se soubesse a verdade. Estou hoje lúcido, como se estivesse para morrer, E não tivesse mais irmandade com as coisas Senão uma despedida, tornando-se esta casa e este lado da rua A fileira de carruagens de um comboio, e uma partida apitada De dentro da minha cabeça, E uma sacudidela dos meus nervos e um ranger de ossos na ida. Estou hoje perplexo, como quem pensou e achou e esqueceu. Estou hoje dividido entre a lealdade que devo À Tabacaria do outro lado da rua, como coisa real por fora, E à sensação de que tudo é sonho, como coisa real por dentro. Falhei em tudo. Como não fiz propósito nenhum, talvez tudo fosse nada. A aprendizagem que me deram, Desci dela pela janela das traseiras da casa. Álvaro de Campos
Linha de Raciocínio 03:
Tesarac O poeta e compositor americano Shel Silverstein inventou a expressão Tesarac para nomear esses momentos na historia que a sociedade está no meio do processo para mudanças muito importantes. Nesses “hiatos”, onde o mundo já deixou de ser uma coisa, mas ainda não se tornou uma coisa nova, reside uma sensação grande de desesperança e angústia por não saber o que esperar. Uma quase-morte. A sociedade vai se tornando cada vez mais e mais caótica até, finalmente, do meio desse caos completo, conseguir extrair alguma ordem, para o bem ou para o mal. Entretanto, durante este processo, o que aconteceu no passado não vale mais como exemplo e, ao se olhar para o futuro, não se tem a menor ideia do será. É um período impregnado de pessimismo, por não sabermos ao certo se somos parte do problema ou parte da solução. O que nos toca é somente esperar passar a tempestade e avaliar os escombros, torcendo para encontrarmos algo melhor junto dos sobreviventes. Tesarac é como se fosse um espaço de sonho, onde vemos tudo mudando, passando ao largo das nossas mãos. Mais ainda, é a ilusão de que tudo muda inexoravelmente com o passar do tempo.
SOBRE OS RIOS Sobre os rios que vão por Babilônia m’achei, onde sentado chorei as lembranças de Sião, e quanto nela passei. Ali o rio corrente de meus olhos foi manado; e, tudo bem comparado, Babilônia, ao mal presente, Sião, ao tempo passado. (...) E vi que todos os danos se causavam das mudanças, e as mudanças, dos anos; onde vi quantos enganos faz o tempo às esperanças. Ali vi o maior bem quão pouco espaço que dura, o mal quão depressa vem, e quão triste estado tem quem se fia da ventura. Vi aquilo que mais val, que então se entende milhor quando mais perdido for; vi ò bem suceder mal, e ò mal, muito pior. E vi com muito trabalho comprar arrependimento; vi nenhum contentamento, e vejo-me a mim, qu’espalho tristes palavras ao vento. (...) Um gosto que hoje se alcança amanhã já o não vejo: assi nos traz a mudança de esperança em esperança e de desejo em desejo. Mas em vida tão escassa que esperança será forte?
Fraqueza da humana sorte que, quanto da vida passa, está receitando a morte. (...) Mas deixar nesta espessura o canto da mocidade, não cude a gente futura que será obra da idade o que é força da ventura: que idade, tempo, o espanto de ver quão ligeiro passe, nunca em mim poderam tanto que, posto que deixe o canto, a causa dele deixasse. (...) Que, se o fino pensamento só na tristeza consiste, não tenho medo ao tormento; que morrer de puro triste, que maior contentamento? Nem na frauta cantarei o que passo e passei já, nem ao menos o escreverei, porque a pena cansará e eu não descansarei. (...) Destes o mundo tirano me obriga, com desatino, a cantar ao som do dano cantares de amor profano por versos de amor divino. Mas eu, lustrado co santo raio, na terra de dor, de confusão e d’espanto, como hei de cantar o canto que só se deve ao Senhor? (...) Luiz de Camões