Revista de Cultura da Ajufe

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Revista

AJUFE

de Cultura ANO 6 . MARÇO DE 2014 . Nº 9

Ponto de vista Entrevistas exclusivas com a ministra do STJ Regina Helena Costa, a escritora e acadêmica da ABL Rosiska Darcy de Oliveira e o produtor musical Marcelo Fróes Prosa Mudanças drásticas, desejos proibidos, superação de desafios, aprendizados profissionais, experiências de vida: a criatividade dos magistrados em contos e crônicas Verso Conheça poemas produzidos por nosso juízes poetas




expediente

R  C Ajufe - 9ª E

Diretoria da Ajufe • Biênio 2012/2014

Presidente Nino Oliveira Toldo

Vice-Presidente da 1ª Região: Ivanir César Ireno Júnior Vice-Presidente da 2ª Região: José Arthur Diniz Borges Vice-Presidente da 3ª Região: José Marcos Lunardelli Vice-Presidente da 4ª Região: Ricardo Rachid de Oliveira Vice-Presidente da 5ª Região: Marco Bruno Miranda Clementino

Diretoria Secretário-Geral: Vilian Bollmann 1° Secretário: Frederico Valdez Pereira Diretor Tesoureiro: Fernando Marcelo Mendes Coordenação geral: Nino Oliveira Toldo Coordenação de apoio: José Antonio Lisbôa Neiva Jornalista responsável: Alessandro Mendes (Azimute Comunicação) Projeto gráfico: Eye Design Diagramação: Supernova Design Ilustrações: Caio Oishi Apoio técnico • Andréia Levi Colaboradores desta edição: Nicolas Bonvakiades e Iara Vidal Foto da capa: Bernardo Carneiro Ajufe • Associação dos Juízes Federais do Brasil SHS Quadra 06, Bloco E, Conjunto A, Salas 1305 a 1311, Brasil XXI, Edíficio Business Park 1, Brasília/DF CEP: 70322-915 Tel. (61) 3321.8482 e fax (61) 3324.7361 www.ajufe.org.br Os textos assinados são de responsabilidade dos autores e não

Diretor da Revista: José Antonio Lisbôa Neiva Diretor de Assuntos Legislativos: Adel Américo Dias de Oliveira Diretora de Relações Internacionais: Marcelle Ragazoni Carvalho Diretor Cultural: Juliano Taveira Bernardes Diretora Social: Raquel Soares Chiarelli Diretor de Relações Institucionais: Alexandre Vidigal de Oliveira Diretor de Assuntos Jurídicos: Antônio André Muniz M. de Souza Coordenador de Comissões: Jader Alves Ferreira Filho Diretor de Esportes: Bruno Teixeira de Paiva Diretor de Assuntos de Interesse dos Aposentados: André José Kozlowski Diretor de Tecnologia da Informação: George Marmelstein Lima Diretor Administrativo: Emanuel Alberto Gimenes Diretor de Comunicação: Décio Gabriel Gimenez

refletem, necessariamente, a opinião da revista. É proibida a reprodução total ou parcial dos textos, fotos e ilustrações sem prévia autorização.

Conselho Fiscal Alessandro Diaferia

Revista não destinada à venda. Distribuição realizada pela Ajufe.

César Arthur C. de Carvalho Warney Paulo Nery Araújo Joaquim Lustosa Filho

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Palavra do presidente O novo ano se inicia com mais uma edição da Revista de Cultura Ajufe. O trabalho expõe a sensibilidade e a criatividade que passam despercebidas pelos magistrados durante todo o ano em meio ao ambiente formal das audiências, dos gabinetes, dos salões dos tribunais. Nestas páginas, surgem poetas, cronistas, contistas, fotógrafos. Nesta edição, André R. C. Fontes nos traz em forma do artigo A ecologia e a história urbana da jaqueira no Campo de Santana, no Rio de Janeiro, um passeio pela própria história da cidade. A agonia e o medo do que está por vir, a tristeza pelas coisas que se foram. O conto Manhã escura, de Luiz Antônio Moreira Porto, é um relato angustiante e, por fim, belo. Afinal, como diz o autor, nada do que nos lembramos é real, é apenas como nos lembramos. No conto Na mesma rua, Marcos César Romeira Morais prende a atenção do leitor com um relato de final aparentemente previsível, mas com riqueza de detalhes e cheio de encantos, pelo menos para quem conhece e admira a vida das pessoas simples do interior. A crônica A escolhida, de Rosa Maria Garcia Barros, mostra que, às vezes, precisamos de um impulso, de um estímulo, para descobrir em nós mesmos forças e talentos que desconhecemos ou não queremos reconhecer. O lado pitoresco dos arranjos matrimoniais do interior está na crônica A menor e o mudo, de Vladimir Souza Carvalho. Lembranças de quem muitos casamentos realizou em nome da lei. A crônica Cabeça de juiz, relações humanas e um pouco de vida selvagem, de Marcos Mairton, analisa o lado hostil do mundo quase sempre civilizado das audiências judiciais. Em um texto rápido, espirituoso, Everson Guimarães Silva revela em sua crônica, afinal, o que muitos procuram: o segredo da maturidade. De volta para Manaus, pirarucu, tambaqui, pirão de açaí, tapioca e mungunzá. Jogar conversa na feira, passe-

ar de igarité. “Eu voltei pra minha terra”, diz a poesia de Dimis Braga. A pena rápida e suave de Theophilo Miguel nos traz a Luz da minha Lua, que vem da rua, vem do mar... O intelectual, de Marcos Mairton, emocionado entre tantos livros, perde a concentração diante daquele par de tornozelos com um trevo tatuado no pé esquerdo. Além da prosa e verso, belas imagens também estão entre a criativa produção dos magistrados, por meio de fotos de viagens de Bernardo Carneiro. A revista traz ainda três entrevistas. O pesquisador e produtor cultural Marcelo Fróes passou do curso de direito, sem escalas, para o mundo da música. Pelo selo Discobertas, produziu coletâneas de Celly Campello, Elza Soares e Moreira da Silva, entre outros intérpretes e compositores. Falou à Revista de Cultura sobre direitos autorais e sobre a polêmica em torno das biografias não autorizadas. A primeira obra da acadêmica Rosiska Darcy de Oliveira foi um roteiro teatral que acabou boiando, inédito, nas águas da Baía da Guanabara. Isso ocorreu na época em que partiu para o exílio, na Suíça, forçada pela ditadura militar. Feminista declarada, mas não radical, dedicou-se ao jornalismo, à defesa dos direitos humanos e da mulher e à literatura. A ministra Regina Helena Costa, primeira juíza federal de concurso regional a chegar ao Superior Tribunal de Justiça (STJ) e vencedora do prêmio Jabuti, nos fala de seu entusiasmo por viagens e por destinos exóticos, que a levaram a aventuras, como a vez em que enfrentou tempestade de areia em pleno Saara. Esperamos, para os próximos números, que os associados contribuam ainda mais para a produção da revista. A expressão artística será sempre uma forma de espairecer, relaxar, algo imprescindível para quem carrega o peso de tantas responsabilidades. Boa leitura!

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FOTO: BERNARDO CARNEIRO

Bernardo Carneiro


sumário

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de Cultura 8

Q    Contos – Luiz Antônio Moreira Porto Mauro Cesar Romeira Moraes

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P  V – Entrevista com a escritora e acadêmica da

20

I 

ABL Rosiska Darcy de Oliveira - Nicolas Bonvakiades

Poesias – Dimis Braga Theophilo Miguel Marcos Mairton

26

C  

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P  V – Entrevista com a ministra do STJ

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C  

Fotos – Bernardo Carneiro

Regina Helena Costa - Iara Vidal e Nicolas Bonvakiades

Rosa Maria Garcia Barros Marcos Mairton Everson Guimarães Silva Vladimir Souza Carvalho

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A

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P  V – Entrevista com produtor musical

Artigo – André Fontes

Marcelo Fróes – Nicolas Bonvakiades

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quem conta um conto

Manhã escura Luiz Antônio Moreira Porto Juiz federal

Hoje o sol não nasceu. Uma escuridão profunda me rodeia. Permaneço na cama envolvido pelo silêncio e pelo negrume. Há tempos o sol vinha perdendo seu brilho, sabia que chegaria a isso, mas não esperava que fosse tão cedo. Nunca esperamos. Milhares de coisas me passam pela cabeça, sobre como viver, como será o mundo. Não há medo e sim uma profunda dor. Talvez a morte seja assim, apenas uma inesgotável escuridão. Um negro profundo e sem fim.

A escuridão me assola e oprime. É o desconhecido mais familiar. Estou preso num inferno de ignorância consciente É preciso me levantar. Espero mais um pouco, aproveito a calma e a paz de minha manhã. Como se nada tivesse acontecido, estico este momento até que se torna tão fino que não posso mais negar a realidade.

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Não estou de olhos fechados, não há luz, não há nada. Mais e mais a escuridão me traz a tristeza das coisas que se foram. Tento um último esforço para gravar na memória as coisas mais recentes que vi. Sei que irão desaparecer, sei que o passado são os sonhos, nada do que nos lembramos é real, é apenas como nos lembramos. E o tempo tudo transforma. Sinto o conforto que o calor de minhas cobertas me traz. Penso no frio, irmão da escuridão, e no desamparo que nos traz. Quase ouço meu coração e parece que sinto minhas artérias pulsando. Cada sentido aos poucos parece adaptar-se ao escuro, a esta noite sem lua ou estrelas. Passo a mão pelo meu rosto numa procura fútil por segurança, tento sentir que tudo está bem. Não está. Sento em minha cama e um longo suspiro enche o ar de meu quarto. O peso de mil anos de idade está sobre meus ombros. E nada diante de mim, um cansativo e infindável nada. Sinto meu próprio peso em minhas costas, ergo meus ombros, me espreguiço, tento que tudo pareça normal. Ali, sentado, construo


meu quarto. Cada detalhe, cada porta de armário, cada quina. E não lembro aonde exatamente deixei meus chinelos. A escuridão me assola e oprime. É o desconhecido mais familiar. Estou preso num inferno de ignorância consciente, tudo que sei não me serve mais, o mundo está perdido na sombra. Levanto-me e vou à janela, abro-a e nada acontece. A esperança que me ergueu se vai e volto tateando para a cama. Sento-me. Nada ouço, sem gritos, sem desespero, o mundo parece ignorar as trevas. Deve ser muito cedo, não posso ver as horas. Não sei o que faço. Permaneço ali, não penso em nada, não sinto nada. Somos apenas eu e a escuridão nos conhecendo. O tempo passa, mas não sei quanto, já não importa mais. Sinto o ar frio da manhã que entra por minha janela,

respiro profundamente e começo a sentir o despertar de minha mente. O ar frio em meus pulmões me anima e me encoraja a me levantar. Preciso encontrar minhas roupas, não preciso. Estou de pijama no escuro. Isso basta. Permaneço ali sentado em alguma parte de minha cama. Sinto uma tristeza me tomando. Nem de minhas roupas preciso mais. E choro. Começo chorando por uma estúpida camiseta de que gostava tanto e que nunca mais verei. Depois choro pelo mundo e por mim. O calor de uma mão em meu ombro interrompe meus soluços. A voz calma do meu grande amor me envolve junto com um abraço. - Foi hoje – eu digo – ela finalmente chegou. Sinto sua mão na minha, convidando-me a levantar. - Você sempre foi e é tudo para mim, deixe-me ao menos ser os seus olhos – ela disse suavemente e me beijou.

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quem conta um conto

Na mesma rua Marcos César Romeira Moraes Juiz federal

Eleni viveu muito pobre até os 12 anos, num pequeno distrito no interior do estado, distante uns 40 km em estrada de chão. Era de família numerosa, em que o muito dividido era pouco e o pouco era miséria. Foi para a cidade trabalhar em casa de família, de boas pessoas que iriam terminar de criá-la. Era costume e até necessidade na região, onde o simples sustento já era tarefa árdua. Com sorte e tempo, Eleni conseguiria um casamento. Era menina franzina pela falta de comida e maltratada pelo lugar seco em que vivia. Até então, pouco tinha estudado e pouco tivera contato com a cidade. Depois de ir para a casa dos patrões, aprendeu quase tudo, até a higiene pessoal. Eleni não era tímida, era falante e atenta, mas mantinha o respeito de sua condição. Nessa casa foi muito bem, agradava aos patrões e passou a usufruir o conforto comum. Frequentou a escola, fez amigas e algumas pequenas viagens a outras cidades.

O conflito dos desejos da carne com a obrigação da retidão estava sendo lentamente aquecido Na mesma rua em que Eleni foi viver, havia um bar, e seu dono era o Lenha, como era conhecido. Devia ter uns 40 anos na época. Era homem capaz, corpulento e genioso. O trabalho e os costumes

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locais moldaram seu jeito forte de ser. Lenha não chegava a ser um bruto, mas sua cordialidade era pouco larga. Mantinha o estabelecimento como se sua vida a ele se resumisse, funcionando de segunda a segunda, de cedo até tarde da noite. Ninguém o ajudava, a não ser algumas mulheres que por ele passaram em alguns momentos. Lenha morava sozinho num cômodo pequeno e simples nos fundos do bar, só com a cama e o guarda-roupa. Seu bar também era pequeno e simples. Oferecia aos fregueses apenas algumas banquetas de madeira, um balcão antigo de fórmica, algumas prateleiras de secos e molhados, uma estufa de salgados, uma geladeira e uma mesa de bilhar pequena, tudo muito usado e pobre. Lenha ignorou Eleni até os seus dezesseis anos de idade, enquanto era menina que corria pelas ruas, lépida e ocupada. Porém, quando começou a tornear-se mulher e passou de menina emborcada de magra, de aparência infantil, à exuberância da adolescência sadia e viçosa, praticamente da noite para o dia, as coisas mudaram. Eleni tornou-se uma bela fêmea atraente. Bem alimentada, de pele rósea e morena que contornava suas curvas naturais, sua ingenuidade necessariamente converteu-se em sensualidade. Lenha, apesar de anos mais velho, tinha seus atrativos e não precisou de muito para convencer Eleni a ser sua companheira. Não houve nenhuma festa e papel passado, ela só se enamorou e mudou-se para o bar de


Lenha. Viviam como se casados fossem e tiveram dois filhos antes que ela completasse vinte anos. Os filhos deram a Eleni ainda melhores contornos, que destacaram as suas ancas. Tornou-se uma mulher muito desejável, mas de Lenha. Como companheira de Lenha, Eleni mantinha-se como tal, e assim era conhecida e vista diariamente. Os afazeres de casa confundiam-se com os do bar. Era zelosa com ele e com os filhos, atendia no bar, ajudava na cozinha e no balcão. E assim a vida lhe corria bem. Giusepe era gerente das Casas Pernambucanas e se mudou para a cidade para gerenciar a maior das lojas locais. Era homem fino, de pela clara, descendente de italianos, cabelos volumosos, magro, de estatura mediana, já na casa dos quarenta, de boa educação e bom trato. Mudou-se para a mesma rua do bar do Lenha e de sua companheira Eleni. Em pouco tempo fez amigos e passou a frequentar o estabelecimento. Giusepe gostava da feijoada que Lenha servia aos domingos, a partir das seis da manhã. Giusepe era do sul, mas rapidamente tomou os hábitos daquela região norte, inclusive o de comer feijoada cedo na manhã dos domingos. Em alguns dias da semana, Giusepe também passava pelo bar no fim da tarde. Pela sua posição social na cidade, tornou-se um cliente respeitável, e Lenha, por sua vez, também tornou-se cliente das Pernambucanas. Casado de pouco tempo, Giusepe não tinha filhos. Sua rígida educação familiar o fez de modos e desejos contidos desde a adolescência. Porém, com o passar dos anos, ainda solteiro, começou a nutrir internamente vontades que, depois de casado, menos ainda lhe cabiam. Como era socialmente honrado, algumas liberdades que dariam vazão a essas vontades não lhe eram permitidas, e isso estava se tornando insuportável. O conflito dos desejos da carne com a obrigação da retidão estava sendo lentamente aquecido. Se já não bastasse o tempo, um bom combustível foi acrescentado a essa chama, e ele tinha um nome. Quando esteve no bar pela primeira vez, e apenas para atender a um mandado da esposa para compra de alguma mercearia disponível, Giusepe percebeu Eleni. Na verdade, Giusepe percebeu as ancas de Eleni e a sua sensualidade natural. Não soube bem o porquê, mas ela não mais lhe saiu da cabeça. Ali, no bar, seu olhar foi instintivo e encontrou o mesmo no instinto de Eleni. Giusepe

sentiu-se homem diferente de si e Eleni, acanhadamente fêmea. Não puderam mais ser quem eram na relação de um com o outro. Lenha não era de ter ciúmes, mas tampouco era bobo. Sabia da mulher que tinha e sabia do que era capaz, em todos os sentidos. Sempre mantinha os olhos sobre as atenções dos fregueses e de Eleni. Não a censurava, até porque ela não tinha comportamento que justificasse. Mas era claro o limite da decência imposto na união dos dois.

Eram sensações nunca experimentadas por nenhum deles, mas de alguma forma já há muito esperadas Giusepe passou a ser assíduo no bar e permanecia bom tempo conversando com Lenha. Eleni também participava das conversas. A presença de Eleni fazia com que Giusepe aumentasse seu interesse, seu sorriso, sua graça e sua amabilidade. Fazia-se propositalmente diferente de Lenha, que entendia aquilo como gesto de homem educado. Aos dias, as idas ao bar aumentaram as vontades de Giusepe e a sua habilidade em manter-se no local e longe de casa. Eram incessantes suas ideias íntimas sobre como acontecer com Eleni, como romper com suas barreiras e as dela. Eleni, em certo passo, delicada e femininamente astuta, aceitou jogar, mantendo a distância, mas sem repúdio. No cotidiano do bar, um pouco de cachaça com cinzano, uma cerveja, um tira-gosto, uma curiosidade, umas palavras bem pronunciadas, tudo para chamar Eleni e sua atenção. Ela sentia-se à vontade em servi-lo. Quando no balcão, não deixava de atentar a atenção de Giusepe e dos outros fregueses. Quando na cozinha, Eleni olhava furtivamente para o balcão e encontrava sempre o olhar certeiro de Giusepe. Esse jogo de cena de ambos tornava-os cúmplices de uma sedução recíproca, secreta e acumuladora. E num sábado à noite, após um dissabor em casa de uma pequena discórdia conjugal, mais que transbordante de um balde de contrariedades íntimas, Giusepe infla-

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quem conta um conto

mou-se. A irracionalidade foi mais forte. Fora do hábito do dia, conduziu-se até o bar. Giusepe não tinha muito em mente o que queria ao sair de casa, mas pensava muito nas vontades e nas ancas de Eleni. A poucas quadras, Eleni resolvia o fim do dia de trabalho no bar, ainda aberto. Ela usava um vestidinho vermelho de chita com estampa de pequenas flores brancas, ajustado na cintura por um elástico interno, curto na altura das coxas, o que lhe ressaltava em muito suas já volumosas ancas. Ela estava suada do dia quente e do trabalho. Lenha fazia o dos seus e arrumava caixas de bebidas no último dos cômodos dos fundos, e nenhum freguês, pois já era noite demais. Giusepe chegou no bar e encostou-se no balcão, puxando um tamborete. Eleni foi atender e logo sentiu o calor dos olhos e da face rubra de Giusepe. Ela ficou surpresa por ele estar ali, mas ficou ainda mais ao ver como ele estava, ou seja, na urgência de seus desejos. “Uma cachaça pura”, pediu Giusepe, e disse mais: “vou fazer uma loucura hoje”. Eleni virou-se para apanhar a garrafa e perguntou com leve sorriso e provocativamente qual era a loucura. O coração de Giusepe disparou sem medida, seus ouvidos ensurdeceram-se, seus olhos fixaram-se cegamente em Eleni, isto é, nas suas ancas. Não respondeu e virou o copinho de cachaça que lhe desceu ardente e espalhou fogueira em seu peito. Passou a fitá-la, e ela a olhá-lo com o canto do olho, com a sensação de uma caça à espera de seu caçador. Com um pouco de timidez e chamariz, Eleni foi para a cozinha, que era separada por uma puída cortina de pano listrado em verde e branco. Ela fez parecer estar com alguma ocupação atrás daquele pano. Giusepe, quente, já ofegante, cego ao redor e em seus desejos, desceu do banquinho, deu a volta no balcão, afastou a cortina de pano listrado e entrou na pequena cozinha. Eleni estava encostada na pia, de frente para a cortina, já esperando pelo ímpeto de Giusepe. Ela não se moveu e esperou que Giusepe se aproximasse e tomasse a iniciativa. Num curso natural, Giusepe deixou que antiga e alimentada aventura fosse adiante. Encostou-se na pia e em Eleni ao mesmo tempo. A hora esperada chegara. Giusepe pôs a mão na cintura de Eleni e sentiu sua carne quente e seus mínimos movimentos. Um silêncio. Eleni não o recusou e, tremendo, respirava nervosamente. Não disseram nada e colaram

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seus corpos. Eleni sentia a respiração quente e alcoólica de Giusepe. Eram sensações nunca experimentadas por nenhum deles, mas de alguma forma já há muito esperadas. De repente, num súbito, como uma rajada de vento forte, a cortina de pano listrado se enrolou num voo curto e rápido, e Lenha irrompeu ruidosamente na cozinha, empunhando uma faca peixeira. Num estrondo de voz e grito, expeliu: “sua rapariga! Seu filho da puta!”. Troncudo e pesado, Lenha partiu para cima de Giusepe e atochou-lhe violenta facada abaixo do umbigo. Giusepe não teve tempo de temer ou reagir, e sentiu um ardor fundo e o calor daquele golpe subir-lhe as entranhas. Numa reação instintiva de presa, Giusepe empurrou, remexeu, conseguiu livrar-se de Lenha e da faca e virou-se para correr. Giusepe levou a mão na ferida pela sensação de queimação. Lenha virou-se e desferiu outro golpe, mas a rapidez de Giusepe foi maior pela força da sobrevivência, e a faca cortou o nada no vazio logo atrás de suas costas, atingindo e arrancando apenas o salto do sapato mocassim preto de Giusepe. Ele correu manco, cozinha, bar e rua afora, segurando o intestino que não mais lhe cabia nas mãos e insistia em sair da barriga. Correu em sangue até encontrar o hospital. Eleni não sofreu toda a ira que se esperava de Lenha, mas o suficiente para que, envergonhada, voltasse para o povoado de origem já no dia seguinte, então com seus dois filhos. O caso não foi para a polícia, apesar do comentário geral. Lenha continuou abrindo o bar todos os dias, com a feijoada no domingo de manhã. Passou a explicar que Eleni precisou socorrer a família. Sobre o Giusepe, Lenha limitou-se a dizer que ele só teve o que mereceu. Em menos de um ano, Lenha foi buscar Eleni, dizendo que sentia falta dos filhos. Nenhum dos dois se desculpou e nada mais disseram sobre o assunto. Giusepe foi transferido pelas Pernambucanas de volta ao sul. Quando lembra-se do ocorrido, de Eleni, das ancas e de suas vontades que não aconteceram com ela, pensa no que poderia ter sido ainda mais certeiro e mais trágico, logo lhe vem um frio na altura do umbigo e uma leve coceira na cicatriz de dez centímetros da costura feita pelo médico. Também se lembra do salto do sapato mocassim que foi arrancado e que viu abandonado no meio da rua dias depois.


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ponto de vista

À luz da imortal Em entrevista exclusiva para a Revista de Cultura Ajufe, a cronista Rosiska Darcy de Oliveira fala sobre literatura, desterro e orfandade linguística, o papel do feminino no aprimoramento da humanidade e também sobre o famoso chá dos imortais da Academia Brasileira de Letras (ABL) Nicolas Bonvakiades

O Petit Trianon, prédio da Academia Brasileira de Letras (ABL), doado ao Brasil pelo governo francês em 1923, parece ter sido feito para usufruir a presença da cronista Rosiska Darcy de Oliveira. Naquele santuário de erudição e tradição, sob a luz da imortal de sorriso gentil e sedutor, a sensação de reverência é inevitável. Em entrevista exclusiva à Revista de Cultura da Ajufe, a escritora, que

cursou Direito sem nunca ter advogado, falou sobre literatura, sobre desterro e orfandade linguística, sobre o papel do feminino no aprimoramento da humanidade e respondeu até à curiosidade sobre o famoso chá dos imortais. A crônica é a arte de Rosiska Darcy Oliveira e cada gesto e olhar da escritora evocam, por si só, miríades de histórias e sensações.

Qual é a sua formação e como iniciou sua trajetória na literatura? A minha formação é tortuosa. Eu fiz muitas formações na minha vida [risos]. Eu me formei em Direito, na PUC (Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro). Na verdade, comecei a ser escritora como jornalista. Quando estudava Direito, já estava trabalhando como jornalista. Comecei muito cedo, na revista Senhor, que era, naquela época, um pouco o equivalente da Piauí. Só que durou muito pouco, porque, em 1964, com o golpe militar, a revista foi fechada. E eu passei para outros veículos. Fiz rádio, televisão. Fui, durante muito tempo, redatora da revista Visão. Trabalhei na TV Globo, nos primeiros anos do Jornal Nacional, como redatora. O Nelson Rodrigues implicava muito comigo. Implicava simpaticamente [risos] – eu era uma menina e ele, um jornalista feito. Depois, fui para o Jornal do Brasil, uma passagem rápida, porque, logo depois, sobreveio o exílio.

Eu trabalhei com o Zuenir Ventura, com o Ziraldo... Isso na Visão. No Jornal do Brasil, Fernando Gabeira foi meu contemporâneo. Reynaldo Jardim foi quem me descobriu como jornalista. Ele me descobriu em uma revista de um instituto de educação em que eu era aluna – escola Normal. Ele leu um texto meu e me convidou para conversar. E dali ele me levou diretamente para a revista Senhor, que ele dirigiu. Na primeira vez que fui conversar com ele, eu fui de uniforme do Instituto de Educação [risos]. Estava terminando o terceiro ano Normal e entrei direto no Jornalismo. Esses foram meus contemporâneos diretos, eram meus amigos, pessoas que me eram, naquela época, mais próximas.

Quem foram os seus contemporâneos de imprensa antes do exílio?

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Essa “formação tortuosa” tem a ver com sua saída forçada do país? Nos 15 anos de exílio, eu publiquei meus primeiros livros, que foram escritos em francês, porque eu não tinha nenhuma certeza de que poderia voltar ao Brasil. Foram publicados na Europa e lá ficaram. Como achei que já estavam superados, em francês ficaram. Eu re-


FOTOS:: MARCOS MORTEIRA

Católica do Rio de Janeiro), tive a sensação de que tinha tirado um sapato apertado.

R D  O

tomei os temas que considerei importantes em vários outros livros. Mas esses, que foram Le Féminin Ambigu e La Culture des Femmes, foram os dois primeiros. Na mesma época, publiquei em Portugal um livro em português chamado A Libertação da Mulher. Estávamos no começo dos anos 70. Eu fui para a Suíça, lá fiz doutorado, me tornei professora universitária e, durante 10 anos, lecionei na Universidade de Genebra. Então, foi um percurso acidentado, porque foi pelo exílio. Quando eu cheguei a Genebra, eu tinha teoricamente duas profissões, duas formações. Eu era advogada e era jornalista. E nenhuma das duas me servia. Eu não podia usar nenhuma das duas. Então eu tive que fazer uma nova formação. E fiz. Como escritora brasileira, como foi ficar confinada ao idioma francês? Escrever em francês, por melhor que eu falasse a língua, foi um grande desconforto. Mas eu não me dei conta disso na época. Só fui me dar conta quando escrevi o primeiro livro em português. Lembro que foi a mesma coisa com as aulas. Durante 10 anos, dei as minhas aulas em francês. Achava aquilo normal. Era natural que fosse assim, posto que vivia na língua francesa. Mas, quando dei a minha primeira aula na PUC (Pontifícia Universidade

A elaboração de textos jornalísticos e jurídicos é bem diferente. Isso representou alguma dificuldade para a senhora? Devo dizer que eu nunca lidei propriamente com a escrita no Direito. Eu tive muito interesse pelo Direito. Tive, sobretudo, muito interesse pela Filosofia do Direito e estudei com muito interesse. O que me atraiu menos foi a ideia da prática forense. O que me atraía era a redação dos jornais. Parecia, para a jovem que eu era, estar mais conectada com uma certa vida febril da cidade. E eu sempre soube que eu seria escritora. E era o que eu queria ser de fato. Ser jornalista me aproximava mais claramente da carreira de escritora. Já havia alguma referência que inspirasse a realização desse desejo? Eu fui uma leitora voraz, desde menina. No meu discurso de posse, aqui na Academia, falei da “família secreta” a que eu pertencia. Tenho uma “família secreta”, que é a dos personagens que me encantaram ao longo da vida e que me formaram. O primeiro membro da minha “família secreta” que eu apresentei aos acadêmicos foi a Emília, Marquesa de Rabicó, de Monteiro Lobato. Monteiro Lobato eu devorei. Tinha a coleção completa e li toda. Depois fui continuando pela vida inteira. Tive três bibliotecas na vida e perdi duas. A primeira deixei no Brasil, quando fui para o exílio. A segunda deixei em Genebra, quando voltei para o Brasil. Agora, eu tenho uma biblioteca de que me orgulho muito. Uma biblioteca que foi toda lida. Então, pertenço a esse mundo de escritores e leitores. Foi isso que me fez escritora. Acho muito difícil que alguém se torne escritor sem ter sido um grande leitor, sem ter sido seduzido pela verdade dessas mentiras que constituem a ficção, que constituem a literatura. A sua biblioteca é daquelas bibliotecas minuciosas, em que as coisas são catalogadas? Só eu sei mexer nela! Ela é o contrário de uma biblioteca minuciosa! [risos] Eu funciono por gestalt. Olho, tenho flashes, sei onde estão. Sei onde está tudo! Mas só eu sei a lógica pela qual os livros estão distribuídos. Ninguém saberia se orientar lá sem ser ciceroneado por mim.

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ponto de vista

A sua entrada na literatura começou pelos temas femininos? Na verdade, minha entrada na literatura começou pelo teatro. Eu escrevi uma peça, que teve um triste destino: foi jogada no mar. Porque, durante a repressão, meu pai teve medo de que as minhas coisas, meus livros, fossem vistos pela polícia e jogou muita coisa fora. Entre outras coisas, foi o caderno que tinha a peça de teatro. A minha primeira obra morreu no mar, afogada [risos]. Não se perdeu nada, porque não era nada que realmente valesse a pena. Depois, o exílio determinou uma carreira de ensaísta. Porque a perda da língua é a perda mais dramática para o escritor. Aliás, de todas as adversidades do exílio, eu acho que a mais penosa para mim foi exatamente a perda da língua, que não me fez perder apenas a profissão que eu tinha, mas me fez perder, temporariamente, a profissão que eu queria ter. E o ensaio se prestava mais a uma escrita com uma língua mais pobre, mais reduzida. Era concebível pela força da ideia, que podia ter uma primazia sobre a forma. Enquanto na literatura propriamente dita, não. Aí, eu precisava realmente da língua portuguesa. Foi uma perda que me doeu, que me custou muito. Estive fora de 69 a 84. A senhora, um dia, sonhou fazer parte da Academia? Todo escritor sonha. É claro que há exceções, mas a maioria dos escritores evidentemente sonha com a Academia, porque é uma honra, é uma distinção muito grande. E é também, como eu dizia antes, um “estar entre pares”. E como a Academia é uma eleição para o resto da vida, é a admissão a um grupo de pares com quem você fará sua vida. E isso é um momento muito importante. Para mim foi muito importante. Não dá para deixar de perguntar sobre o chá da Academia Brasileira de Letras...

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O chá ocorre toda quinta-feira, é uma tradição. Às terças-feiras também. É um momento extremamente agradável. É um chá entre amigos, quase familiar. Ele tem um grande defeito: engorda! [risos] Um defeito gravíssimo, com que nós todos nos debatemos. Nós todos temos medo do chá! Alguns ficam hesitando em entrar, porque é um perigo! Os assuntos sobre os quais conversamos são os mais variados, acompanham o cotidiano do país, da cidade. Mas é claro que a Literatura tem um espaço muito especial, uma vez que é atividade de todos nós. Mas é bastante informal, contrariamente ao que possa parecer.

De todas as adversidades do exílio, eu acho que a mais penosa para mim foi exatamente a perda da língua Na sua produção literária, o que mais a toca, mais fascina construir: o enredo ou o personagem? Eu sou fundamentalmente cronista, escrevo pequenas histórias... Eu não poderia responder “isto” ou “aquilo”. Depende muito da circunstância, do momento. Determinados temas “o escolhem” mais do que você os escolhe. Os temas de crônica, sobretudo, porque o cronista é um fotógrafo que anda pela cidade, pelo mundo, captando os flashes que ele considera valerem a pena. Esse flash pode estar encarnado em uma pessoa ou pode estar personificado na paisagem. Pode estar em grafite no muro ou, simplesmente, em um olhar que se surpreende em alguém. Então, seja sobre sentimentos, seja sobre acontecimentos, um cronista não determina muito sobre o que vai escrever. Ele é muito solicitado pelo fato ou pelo flash, pela trama, pelo drama. Esse é o destino do cronista.


O fortalecimento da indústria editorial brasileira chegou a fazer diferença para os escritores do nosso país? Eu creio que não. Eu não saberia lhe dizer se isso é um fenômeno brasileiro ou mundial. É claro que há casos excepcionais, de um imenso sucesso mundial, um imenso sucesso de público. Eu citei dois casos de escritores brasileiros, mas poderia citar Isabel Allende, Garcia Marquez, Vargas Llosa, que são (os dois) Prêmio Nobel. Certamente são casos de pessoas que talvez vivam realmente do seu trabalho como escritores. Mas a grande maioria, não. O direito autoral não é uma fonte de renda importante. A senhora considera literatura publicações feitas para o mercado? Tomemos o Harry Potter como exemplo. Eu não posso afirmar que uma determinada publicação é feita para ter sucesso editorial. Eu não estou na alma do escritor para isso. Por exemplo, Harry Potter, eu creio que não foi o caso. Até onde eu sei, a história foi realmente uma inspiração da autora que teve uma acolhida mundial inesperada. Eu não coloco necessariamente sob suspeita os livros que tenham grande sucesso de público. Não mesmo. Eu acho que eles podem ser obras de literatura e podem não ser. As grandes obras literárias tiveram grande sucesso de público, mas não necessariamente econômico. Mas existem autores, no Brasil são vários os exemplos, que têm tido um grande sucesso de público e cujas obras têm toda a dignidade para colher os frutos desse sucesso. Muitos que pensam em fazer literatura se preocupam em ter um método. Como é o seu processo criativo? Como chega ao ponto de definir o que é o material para um livro? Cada livro é um livro. Eu acho que há, certamente, coisas que são importantes: o apaixonar-se por um tema, estar disposta a conviver com esse tema durante algum tempo e estar apaixonada o suficiente para dedicar a ele muito cuidado, muita lapidação. Eu tenho oito livros, vai sair agora o nono. Não é muito. Eu sempre achei muito difícil publicar um livro, porque é algo que exige muito. O trabalho de escrita é uma coisa, a lapidação é outro: você escreve, depois lapida o texto. É preciso ter a paciência do trabalho. Quer dizer, eu acho que escrever não é uma iluminação da inspiração. Não é. Certamente, existe, vamos dizer assim, um flash que se dá e aquilo lhe interessa, aquilo o apaixona suficientemente para dedicar o seu

tempo. Mas é necessário muito trabalho, e é um trabalho penoso o trabalho da Língua Portuguesa. A Língua Portuguesa é uma língua muito rica, é uma língua difícil. O trabalho com a língua é um trabalho exigente. Qual a sua relação com a nova literatura, essa literatura dos jovens? Eu tenho muita curiosidade – aliás, tenho curiosidade pelas artes em geral, tenho muita curiosidade pelo futuro. Gostaria de viver muito para ver o que vem por aí. Acho que nós estamos vivendo uma mudança de era. Acho que a minha geração teve o duvidoso privilégio de viver uma mudança de era. O que é, ao mesmo tempo, muito estimulante, e uma prova de fogo para quem a vive. O Ortega y Gasset tem uma frase que eu adoro, na qual ele diz “não se sabe o que está acontecendo, e é isso que está acontecendo”. Parece-me que se escreve muito no momento atual. E eu acho, também, que os jovens escritores, de uma maneira ou de outra, dão testemunho, dão um depoimento sobre isso que está acontecendo e que nós não sabemos o que é, mas que é o que está acontecendo. Eu acho que não vou deixar, nunca, de ler as novas gerações, porque me fascina saber o que elas estão pensando. Muitas vezes elas me são muito opacas. O jovem, para uma pessoa da minha geração, é alguém a ser decifrado, o que não se dá com facilidade. Mas é um mistério que me seduz, sem dúvida nenhuma. Para onde está indo este mundo? Como é que essas pessoas estão vivenciando os sentimentos que eu acho que são constantes e continuarão a ser: o mistério da origem, o amor, a amizade, o medo da morte, o mistério da morte? Todas as gerações viveram isso, de uma maneira ou de outra, e as novas gerações não escapam disso. Então, me interessa saber como é que eles estão abordando esses temas. Eu digo isso não só em relação aos escritores, mas também em relação aos que fazem artes plásticas, aos que fazem cinema. É claro que nós todos pertencemos a uma geração – eu acho que disso não se escapa, como se pertence, por mais cosmopolita que se seja, a um país. São as raízes. E essas raízes, de certa maneira, modelam o gosto. Dificilmente eu gostarei de alguma escritora mais do que eu gostei de Clarice Lispector. Admito que isso corresponde a uma sensibilidade que é muito próxima da minha. Mas não desqualifica a sensibilidade de uma jovem que tem hoje 25 anos

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e que se inicia na escrita, como Clarice se iniciou antes dos 20, quando escreveu Perto do coração selvagem. Então, eu quero saber o que está perto do coração selvagem dessa juventude. Qual é a sua opinião sobre a questão das biografias? Sou, certamente, a favor das não autorizadas. Acho que essa exigência de autorização, no meu entender, não faz nenhum sentido. Seria um contrassenso, por exemplo, com a redação da História. É impossível fazer História, a história de alguém, exigindo a autorização – em geral, dos descendentes, porque nem é da própria pessoa. Eu me manifestei publicamente nesse debate. Fui claramente contra essa exigência de autorização das biografias. A lei já oferece recursos de defesa contra as infâmias e calúnias. Fora isso, eu acho que o trabalho de reconstrução de uma história é responsabilidade do autor. E eu uso a palavra “responsabilidade” no seu sentido pleno, a pessoa é responsável pelo que vai escrever. Que obras a senhora indica para magistrados conhecerem melhor a alma humana? Eu diria, com certeza, Antígona. É a história de um julgamento. Foi o primeiro texto sobre o qual eu escrevi na faculdade de Direito e eu acho que é um texto fundamental. Não só é um texto fundador da literatura, mas é um texto que deve ser lido por qualquer juiz. Eu diria mais, que um juiz será tanto melhor, tanto mais justo quanto seja capaz de conhecer a complexidade extrema da alma humana. A literatura, nesse sentido, é uma fonte inesgotável de informação. Todo juiz deveria ler

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muito, e deveria ler muita ficção, porque só teria a ganhar, conhecendo mais em profundidade o aspecto da natureza humana. Há, também, questões contemporâneas. Aquelas que se referem, por exemplo, às liberdades. Acho que todo e qualquer juiz deveria ter interesse em penetrar bem nesse mundo do debate sobre as liberdades – aquelas liberdades que ainda não estão garantidas. Nós estamos vivendo um momento de grandes transformações. Nós tivemos, por exemplo, a discussão sobre o uso das células-tronco, questão da pesquisa, sobretudo, levada ao Supremo Tribunal Federal. Eis aí um exemplo de liberdades que eu acho que devem ser discutidas, que envolvem questões éticas complexas. A leitura de tudo aquilo que se relaciona, por exemplo, com a ciência moderna, eu acho que é extremamente enriquecedora para qualquer juiz. Acho que é de conhecimento geral que fui, a minha vida toda, uma grande defensora dos direitos das mulheres. Fui presidente do Conselho Nacional dos Direitos da Mulher, embaixadora do Brasil na Comissão Interamericana de Mulheres da OEA (Organização dos Estados Americanos) e co-chefiei a delegação brasileira na Conferência Mundial de Pequim, na China. Nessa qualidade, de grande defensora desses direitos, que ainda não estão todos assegurados, acho que os temas relativos à questão feminina são temas candentes, ainda, para a formação do juiz – questões de gênero, questões relativas ao papel da mulher, o que é o feminino, como é que as mulheres se situam no mundo hoje, um mundo que é hegemonicamente masculino. Nesse caso, a leitura da literatura escrita por mulheres é muito útil.


Tem uma frase que eu acho bonita, do Aragon, que diz “la femme est l’avenir de l’Homme” (a mulher é o futuro da Humanidade). O que falta para o Brasil ter um Prêmio Nobel de Literatura? Certamente não são os escritores. Escritores merecedores do Prêmio Nobel não faltam ao Brasil. Hoje, o Brasil é um país importante, com uma cultura originalíssima e tão lindamente retratada na nossa literatura. Mas acho que virá muito rapidamente – assim espero! Como defensora dos direitos da mulher, que mensagem deixa para as juízas federais brasileiras? A primeira é que eu me orgulho muito delas, porque acho que a carreira jurídica deu um extraordinário exemplo do mérito, da força do mérito. Observe que, lá onde havia concurso, as mulheres se saíram muito bem. Onde elas não se saem bem é onde há nomeação. Agora, talvez até pelo fato de ter uma mulher na Presidência, houve um número maior de ministras que foram nomeadas, mas antes disso, os ministérios eram um deserto. No Legislativo, a mesma coisa – até porque havia um processo de filtragem, dentro dos próprios partidos, que impediu, durante muitos anos, o acesso de candidaturas femininas. Mas lá onde havia mérito em questão, ou seja, na carreira jurídica, as mulheres tiveram sucesso para mudar. O outro é que espero que nunca deixem de se lembrar de que são mulheres, de expressar o que falamos quando nos referimos ao feminino, quando nós falamos das mulheres: que elas conhecem de perto, por experiência própria, pela vivência dos seus próprios corpos, da sua própria vida. É importante que elas possam dizer isso em um mundo que sempre descreveu as mulheres como o contrário dos homens, ou pelo menos o seu avesso. Na verdade, as mulheres não são o avesso nem o contrário dos homens – as mulheres são as mulheres. O primeiro livro que publiquei no Brasil chamava-se Elogio da Diferença, e as pessoas ficaram muito surpresas de como era possível que uma defensora da igualdade escrevesse um livro com esse nome. Mas faz todo o sentido! Por-

que eu acho que as mulheres são as mulheres, elas não são apenas o contrário dos homens. O elogio que eu faço à diferença é exatamente o esforço de fazer com que a humanidade reconheça que é feita de dois sexos e não apenas de um e do seu contrário. Acho que às mulheres que estão em posições de decisão ou posições de impacto de algum tipo na sociedade cabe fazer ver que a humanidade é feita de dois sexos; que a humanidade é feita de homens e mulheres, e não apenas de homens com quem as mulheres tentam se parecer ou se mimetizar. Não é esse um projeto, eu penso, de humanidade. Tem uma frase que eu acho bonita, do Aragon, que diz “la femme est l’avenir de l’Homme” (a mulher é o futuro da Humanidade). “De l’Homme” com “H” maiúsculo: a humanidade. Quer dizer, simplesmente, que existe um futuro em que a existência do feminino terá um impacto na cultura. Eu penso que uma juíza é alguém que tem uma posição muito privilegiada para exercer, em si mesma, essa presença do feminino na cultura. Na sua maneira de ver, na sua maneira de julgar – o que não quer dizer que ela vá privilegiar isso ou aquilo, mas simplesmente que ela vai ser capaz de reconhecer, ou ter um olhar qualificado para o que sejam problemas humanos em que as mulheres estejam envolvidas. Eu me lembro de que, há anos, era muito difícil persuadir alguém de que uma mulher que tivesse sido vítima, por exemplo, de violência sexual, não tivesse sido, de alguma maneira, responsável por isso. Isso é uma agressão tão forte quanto a própria violência sexual – dizer isso a alguém ou julgar a vítima dessa maneira. É uma agressão insuportável. Eu creio que as mulheres sabem disso melhor que ninguém. Para quando podemos esperar sua próxima obra e por qual editora? Baile de Máscaras foi lançado neste mês de março. A Rocco é a editora de toda a minha obra. Meus nove livros, agora, estão lá.

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inspiração poética

De volta para Manaus Dimis Braga Juiz federal

Estou de volta p’ra minha Manaus E para matar saudades Vou caminhar no Mindú Caldeirada é tambaqui Quero assar pirarucu Com pirão de açaí Domingo, no Tarumã Café regional é o que há O x-caboquinho é demais: Queijo coalho e tucumã Tem o mingau de banana Tapioca e mungunzá E de tarde, na banca do Theatro Ou da Getúlio Vargas O gostoso tacacá, Caruru e vatapá. Estou de volta a Manaus E minha tarde predileta É caminhar na Ponta Negra Ou navegar no Rio Negro Em companhia seleta Ir ao Encontro das Águas E ao ver o Solimões Envolver num abraço o Negro Pra se fundir ao Amazonas Ter os olhos rasos d’água E no Palácio das Artes Caboclo simples que sou Eu me contento com pouco Seja Wagner ou Zezinho Assayag ou Bizet Mendelssohn, Vivaldi ou Bach A Amazonas Filarmônica É formosa como o quê

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No domingo de manhã O futebol com os amigos Depois aquela cerveja Jogar “porrinha” e a “negra”! E então vencer a ressaca Com banho de Igarapé O “Espírito das Matas” Eu voltei pra minha terra Onde o boto não é lenda Arengar com negão Não é racismo ou contenda Eu só quero estar em casa Matar saudades de mim Render loas ao tio Peres Chamar o Neto pro ringue Ironizar com o primo Braga E criticar o Serafim (Que fim levou Serafim?) Às vezes nem mesmo sei Se o que quero é andar na mata E esfriar no igarapé Jogar conversa na feira Banhar-me na cachoeira Ou passear de igarité Peixe pode ser pacu Jaraqui, tucunaré Sardinha ou carauaçú, Aracu, mandii, “ruelo”, Matrinchã, curimatã, “Filhote” ou pirarucu, Bodó ou aruanã Com farinha do Uarini E o pirão de açaí, Vinho de cupuaçú Ou com Guaraná Baré.

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inspiração poética

Luz da minha lua Theophilo Miguel Juiz federal

Vejo a luz. Vem da rua. Não... É a Lua Não... É o mar! Vejo a rua da Lua a luz vem do mar! Vendo a rua sem a Lua sem o mar que a luz é minha só com ela posso ver sob a Lua onde é que tudo está...

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inspiração poética

O Intelectual Marcos Mairton Juiz federal

Discreto, sério, culto e educado, Segue em visita a uma livraria. Relê um conto, lê uma poesia. “São tantos livros!” – pensa, emocionado. Até lamenta não ter dedicado A vida inteira simplesmente a lê-los. Mas, eis que surge um par de tornozelos, No pé esquerdo, um trevo tatuado. As panturrilhas e cada joelho, Coxas que somem sob o tom vermelho De um vestido fino e sensual. E, sem esforço, aquela criatura Logo desvia da literatura Toda a atenção do intelectual.

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galeria

Cliques pelo mundo BERNARDO CARNEIRO Juiz federal Confira fotos produzidas pelo juiz federal Bernardo Carneiro em viagens a lugares como o Parque Nacional Torres del Paine e o Deserto do Atacama, no Chile, o belo litoral cearense e a paradisĂ­aca Los Roques, na Venezuela.

Torres del Paine – Chile

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Edimburgo – Escócia

Istambul – Turquia Revista de Cultura Ajufe 27


galeria San Pedro do Atacama – Chile

Los Roques - Venezuela

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Fortaleza – Ceará

Uruau – Ceará

Icaraizinho de Amontada – Ceará

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ponto de vista

A arte e a prática da coerência Primeira magistrada de carreira a tomar posse no Superior Tribunal de Justiça (STJ) desde a Constituição de 1988, a ministra Regina Helena Costa conta, nesta entrevista exclusiva à Revista de Cultura Ajufe, suas visões da vida, da arte e do mundo. Nicolas Bonvakiades e Iara Vidal

Pragmática, dinâmica e apaixonada pela prática e pela teoria do Direito, a ministra Regina Helena Costa é dona de uma coerência que vai da percepção dos mínimos detalhes em um quadro naïf ao exercício diário da Magistratura, na 5ª turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ), na qual atua desde agosto de 2013. Para ela, na arte, no Direito, no Magistério e na vida cotidiana, é indispensável ter em mente que a individualidade

faz parte do coletivo, mas não se pode perder de vista que o coletivo é composto por indivíduos. A sabedoria nessa percepção é encontrar a beleza, o prazer e as verdadeiras riquezas da vida tanto no quadro completo quanto nos detalhes da obra. Nesta entrevista à Revista de Cultura Ajufe, Regina Helena expõe suas visões da vida, da arte e do mundo – viajante contumaz, ela tem muito o que contar.

A senhora pertence a uma nova geração que chega aos tribunais superiores. Pode falar um pouco sobre isso? Sou a primeira magistrada de carreira, aliás, a primeira juíza federal que ingressou na carreira após 88, a partir da Constituição atual. Todos os que estão aqui, que vieram pela classe de juiz e desembargador federal, vieram por concursos anteriores à Constituição. Antes da criação dos Tribunais Regionais, todo mundo veio pelo Tribunal Federal de Recursos. Eu sou do primeiro concurso da Terceira Região, de 1991.

grau, como é por concurso, evidentemente, o número de mulheres e homens que se tornam magistrados é equilibrado. Mas a partir do momento em que você vai subindo, e se você pensa, por exemplo, na promoção por merecimento, o número de mulheres é muito menor. Se você pensa em uma nomeação, porque é uma indicação, não é um cargo de carreira, é mais difícil ainda. Creio que isso ocorre porque o homem gosta mais de política, tem mais traquejo. Acredito que, enquanto a disputa se dá no campo técnico, não há discriminação contra a mulher. Mas quando entra um componente político para a ascensão – seja na escolha da promoção por merecimento, seja na indicação para um Tribunal Superior – o número de mulheres despenca, é muito inferior ao de homens. Talvez fosse o caso de se pensar melhor nesses números.

Ser uma mulher ocupando mais uma das cadeiras do STJ também é um marco, não acha? Como a senhora vê a questão de gênero na ocupação de cargos no Judiciário? Isso também é interessante, porque chega a pouco mais de 20% o número de ministras em relação ao de ministros, aqui. São 33 ministros – agora são 32, temos uma vaga entre eles, apenas sete mulheres. Se você pensar na magistratura de primeira instância, em primeiro

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Como era a sua vida cultural em São Paulo? São Paulo é uma cidade que, no Brasil, é única pelo que oferece. É a cidade que tem o maior número de museus,


FOTOS: NICOLAS BONVAKIADES

outras ciências sociais. É importante você ler sobre Filosofia, sobre Psicologia... enfim, tudo o que for relacionado com o homem. Eu poderia falar várias coisas, mas um autor que me impressionou muito, que é Direito, mas extrapola, é Alf Ross, que foi um grande pensador, um grande jurista, um grande filósofo. A obra dele influenciou muito a minha formação acadêmica e também porque eu tenho uma carreira acadêmica paralela à magistratura. Sou professora universitária há 28 anos, bem mais tempo do que sou juíza. Acho que a gente acaba lendo muito sobre Filosofia. Gosto muito de Luhmann, também. Niklas Luhmann é interessantíssimo.

M R H C

é uma cidade que tem muitos espetáculos. Mas São Paulo também é uma cidade difícil por outras razões: a locomoção é complicada, a violência é muito grande. O melhor dos mundos seria você ter uma cidade com uma oferta cultural muito boa sem problemas que dificultassem o acesso a essa oferta cultural. Brasília tem uma vocação boa para isso. Vou dar um exemplo: aquela mostra no Centro Cultural Banco do Brasil, Mestres do Renascimento, é uma coisa que eu quero ver e certamente irei. Em São Paulo, seria muito mais difícil ir, por causa do volume de pessoas. O Centro Cultural Banco do Brasil fica no centro da cidade, você não tem acesso, tem que usar o transporte público, que é muito complicado, é difícil, é cheio de gente. Quais são as obras literárias, não jurídicas, que a ajudaram como magistrada? Eu acho que isso é um ponto interessante porque quem lida com Direito não pode ficar só no Direito. A gente está dentro das Ciências Sociais Aplicadas e há uma série de

Por que considera o Luhmann tão importante? Qual é a lição dele? O Luhmann não é tão concentrado no Direito em si, fala dos sistemas. A grande lição dele é essa: todos os sistemas – o Direito é um, a Economia é outro, a Contabilidade... – existem para reduzir a complexidade do mundo. Daí porque o Direito tem que ser funcional, tem que ser prático. Eu sou uma pessoa com visão pragmática das coisas e acho que a visão do Luhmann é muito isso. O Direito, a Economia e outras ciências sociais vão reduzir a complicação do mundo – uma porção de fatos ligados uns nos outros. Portanto, como redutor de complexidade do mundo fático, o Direito tem que funcionar de maneira pragmática. E obras de ficção e não ficção? Eu sempre gostei de suspense. Eu li toda a obra de (Arthur) Conan Doyle, todos os livros de Sherlock Holmes e outras obras dele, porque meu pai era aficionado e tinha a coleção – eu ainda tenho os livros dele. Gosto de História, também, livros que tratam de aspectos históricos, de algum tópico da História. Li A Breve História do Mundo, do Geoffrey Blainey, que fez também A Breve História do Século XX. Podem dizer que não é um livro profundo, mas é interessante a maneira como ele escreve porque é rápida. A impressão é a de que você sentou-se em um trem que está entrando em um túnel do tempo e, pela janela, você está vendo os séculos passarem. Ele destaca, em cada década de cada século, o que foi determinante e a influência disso nos séculos posteriores. O poder de síntese dele – ele é professor de Harvard, acho – é im-

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pressionante. É a história traduzida em miúdos para qualquer pessoa, e muito rápida. Então você tem uma visão de mundo desde a Pré-História. Ele conta coisas que você nunca viu em um livro formal de História, em uma escola. A pesquisa que ele fez para escrever um livro desses é muito interessante. O que a senhora gosta na pintura? Aqui tem um quadro que todo mundo adora. É uma pintura naïf, ou pintura ingênua. Naïf quer dizer ingênua em francês, ou naive, os americanos também usam esse termo. Parece que foi feita por uma criança, mas tem muito detalhe. Eu comprei esse quadro há oito ou nove anos e ele já estava no meu gabinete, em São Paulo. A pintora se chama Raquel Galena, ela é paulista. Eu comprei esse quadro e comprei outro dela, que está na minha casa, em São Paulo. A pintura naïf é uma vertente das artes plásticas de que eu gosto muito. Em uma viagem, há alguns anos, a Zagreb, capital da Croácia, eu encontrei um museu de arte naïf que dizem ser o único do mundo. Eles têm pintores do mundo inteiro, mas o mote é esse tipo de pintura. Qual é a sensação que essa pintura (a de Galena) lhe evoca? É o detalhe. Quer dizer, você tem a visão geral e qualquer ponto é muito rico em detalhes. Isso me chama muito a atenção. Um quadro desses leva meses e meses para ser executado, porque é feito por fases. Então, primeiro ela divide, desenha as regiões, depois ela vai colocando os detalhes. Quanto mais próximo você chegar, mais vai ver detalhamento. Eu fui aluna do Geraldo Ataliba e ele dizia que você tem que olhar para o ordenamento jurídico, para o Direito, para as obras – tem que ter uma visão de floresta, sem perder de vista cada árvore. Ou você tem que olhar para a árvore sem esquecer que está em uma floresta. Ou seja, você não pode examinar nada isoladamente, tem que interpretar aquilo no contexto do todo. Acho que me lembra um pouco isso. Você olha e acha bonito como um todo, mas se chegar perto, também consegue identificar o detalhe. Tem várias coisas acontecendo nesse quadro. Você olha para cá, o pessoal está festejando, se você olha para lá, tem o pessoal trabalhando...

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Da forma que a senhora fala tanto da pintura quanto da literatura, parece um paralelo muito grande com a sua visão da aplicação da Justiça, do Direito. Sim, eu acho que sim. Eu dediquei a minha vida à magistratura e ao magistério, e me sinto realizada nas duas coisas. São carreiras difíceis e muito absorventes. Os estudos que eu faço para a minha carreira de professora, que são teóricos, me ajudam muito com a concretude que eu tenho que ter como magistrada, que eu estou aplicando aqui. Por outro lado, a experiência com a prática ajuda a iluminar os estudos teóricos; a ver a teoria não apenas como uma coisa tão etérea, inatingível. Claro que existem outras associações de profissões que são interessantes, mas essa, eu acho muito legal a gente poder ser magistrado e professor ao mesmo tempo. Magistério e magistratura, até as palavras têm a mesma raiz. O que a senhora destacaria na literatura brasileira? Eu gosto de Mário Quintana, é uma poesia tão realista! Acho fantástica. E gosto de outro autor sulista, que é o Luís Fernando Veríssimo. Qual é o tamanho da sua biblioteca? Eu nem tenho tantos livros assim. Eu cheguei a ter muito mais livros do que tenho hoje, mas fui tornando a biblioteca mais seletiva. Eu tinha livros de áreas em que eu não atuava, então fui doando. Doei para faculdades em São Paulo, muitas vezes. Aí acabei compartimentando minha biblioteca praticamente na minha área: Tributário, Administrativo. Mas, por muitos anos, eu cheguei a ter um apartamento que eu mantinha só para os livros. Depois, achei que era um exagero, porque eu acabava não consultando muito esses livros. Então, hoje eu tenho muito menos livros do que tinha antes. A senhora é também uma autora. Quantos livros já lançou? Foram quatro livros. Os três primeiros foram as minhas teses acadêmicas: dissertação de mestrado, tese de doutorado e tese de livre docência. Portanto, são livros muito específicos; não são para o público do Direito em geral, e sim para quem está especializado na área tributária. O quarto foi o Curso de Direito Tributário – Constituição e Código Tributário Nacional, que ganhou o Prê-


mio Jabuti. É um livro para a graduação ou para quem quer ter noções dessa matéria, mesmo já formado. Tenho muitas participações em obras coletivas e artigos em revistas. Mas, quanto aos livros, eu nunca achei que deveria escrever algo que não fosse contribuir de alguma maneira para uma visão diferente ou para provocar um debate. Tenho muita autocrítica; eu já tinha 25 anos de magistério até escrever o meu curso.

“Ganhar um Prêmio Jabuti foi uma grande alegria. Claro, foi um livro técnico, porque eu só escrevo livro técnico, mas foi uma coisa inacreditável.” É necessário desenvolver tanta intimidade com o assunto para lançar uma obra como essa? Hoje, o pessoal com quatro, cinco anos de formado está escrevendo. E eu acho que o curso é a culminância da carreira de um professor. Em Portugal, eles chamam de “lições”. Publicar suas lições, seu livro, com a sua visão da disciplina, é um grande evento. Eles só concebem que o professor vá publicar suas lições quando ele já tem uma experiência grande. Aqui no Brasil não. Eu só me atrevi a publicar quando tinha 25 anos de magistério porque, antes, eu não achei que podia fazer alguma coisa minimamente diferente; não melhor do que os outros que já escreveram; mas diferente. Se não, os outros livros estão aí e muitos são bons. Não faria sentido escrever outro. Escrevo quando penso que posso contribuir. Como foi a experiência de ganhar um Prêmio Jabuti? Ganhar um Prêmio Jabuti foi uma grande alegria. Claro, foi um livro técnico, porque eu só escrevo livro técnico, mas foi uma coisa inacreditável. Quando me avisaram, eu pen-

sei que era alguma brincadeira, dessas pegadinhas de programa de TV, porque eu jamais podia imaginar uma coisa dessas. Foi um grande momento ter ido receber o prêmio, em 2010. E foi uma grande surpresa, porque a editora, que no caso é a Saraiva, fez a inscrição – outras editoras escrevem obras que consideram ter chance de ganhar – e eu nem sabia. Hoje a regra mudou, mas naquela época, em cada categoria, eles premiavam os três primeiros. Eu tive sorte porque fui a terceira, em 2010, na categoria Direito. O primeiro que ganhou foi o Dalmo Dallari, com um livro fantástico: A Constituição na Vida dos Povos. O meu livro é muito singelo, mas eu acho que ele tem uma visão humanista da tributação. A gente estava falando de humanismo, eu acho que isso talvez tenha sido o diferencial. Dizer isso, que a tributação tem que se preocupar com o ser humano, também. O Estado, quando tributa, não pode só tirar o dinheiro para conseguir recursos, para sustentar os serviços – não, você tem que pensar, também, em que medida esses recursos serão aplicados para viabilizar outros direitos. Eu estava lá com vários autores que ganharam o prêmio, foi até o ano em que o Chico Buarque ganhou mais uma vez. Achei aquilo o máximo. E no cinema, quais são suas preferências? Eu gosto muito de suspense, como na Literatura. Gosto de alguns diretores e de comédia, gosto de Woody Allen, por exemplo. Eu vou ao cinema para ver alguns diretores. Então não interessa se o filme é A ou B, eu gosto da obra autoral. Vou para ver o Woody Allen, como ia para assistir Kubrick. São vários os filmes de que eu gostei, não sei se consigo lembrar de algum em particular. A senhora tem algum hobby? Eu gosto de viajar. É o meu grande hobby. Já tive outro: já mergulhei, fiz scuba diving em muitos lugares do mundo. Gostava muito disso.

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ponto de vista

Seus roteiros são tradicionais ou exóticos? Eu tenho feito viagens para a Ásia ultimamente. Tenho gostado imensamente. Eu já estive em países como Índia, Vietnã, Laos, Mianmar (antiga Birmânia) – essa foi uma das viagens mais exóticas. Na verdade, como eu já sou uma turista “carimbada”, viajo muito, meus roteiros são personalizados. Eu monto um roteiro pra mim com meu operador de turismo e saio do Brasil com tudo resolvido. Eu tenho o roteiro, os hotéis, e em todo lugar tenho um guia local e um motorista. Eu sempre estou acompanhada de duas pessoas. Fiz o Marrocos assim... Já fui a lugares fantasticamente exóticos, maravilhosos, e sempre assim. Claro, você não precisa disso se for para Londres. Mas se você for para esses países, é muito interessante ter, por conta das dificuldades de língua e de costumes. E também por ser mulher. Em alguns países, as mulheres têm uma dificuldade maior em segurança. Já conheci quase 60 países. Foi muito interessante estar em Mianmar, por exemplo, no despertar do país. Nem o Obama tinha ido ainda e eu já estava lá [risos]. A gente vai para a Europa, para os Estados Unidos e a vida é muito parecida. Os valores e a maneira de pensar são muito parecidos. Quando você vai para um país como a Índia, como Mianmar, tudo o que você tem de conhecimento deixa de funcionar. Eles pensam de outra maneira, vivem de outro jeito, valorizam outras coisas. Tem alguma história pitoresca dessas viagens? Tem de tudo. Uma passagem recente e muito interessante foi no deserto do Saara: muita gente recomenda que você passe uma noite no deserto, que é uma experiência única. Mas nessa viagem eu estava com a minha mãe e foi uma

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péssima experiência [risos]. Acontece, por mais que você se informe. Viajamos um dia inteiro para chegar no lugar onde são montadas as tendas, que são muito luxuosas, como se fossem apartamentos: têm banheiro, chuveiro, o máximo de conforto possível. Em cada tenda ficam várias pessoas, mas, em meia dúzia de tendas naquela noite, a única ocupada era a nossa. Fazia uma noite de lua cheia, as dunas, uma coisa linda. Aí você janta, à luz do luar, as comidas típicas... Maravilhoso! Fomos dormir. Passando a meia-noite, começa uma tempestade de areia pavorosa! E não havia como se comunicar com ninguém. Vocês não têm ideia do que foi aquela noite! O vento jogava areia para dentro, entrando de tudo quanto era lado! E a gente se perguntando se a tenda ia aguentar. Sem ninguém, sozinhas! E ventou durante horas. Uma loucura! Vieram nos buscar de manhã e a tempestade de areia continuava... Eles tiveram que içar a gente, segurar e puxar. Saímos daquele lugar, entramos em um lugar fechado. E eles perguntaram – “então, gostaram?”. Eu estranhei – “’gostaram’?!”. “Vocês tiveram a sorte de pegar uma tempestade de areia! As pessoas vêm aqui e adoram! Não é sempre que acontece” [risos]. As nossas malas, que estavam fechadas, ficaram cheias de areia [risos]! Então, veja que tem esses riscos quando você faz passeios diferentes, exóticos. Tem de tudo... Mas eu acho que a gente aprende muito com as viagens. É o meu hobby preferido, é no que eu gasto meu dinheiro com prazer. E os roteiros nacionais? Eu viajo muito pelo Brasil também. Conheço muito do Brasil, exceto da região Norte. Mas conheço praticamente todos os estados. Acho que todo brasileiro de-


veria conhecer bem o seu país antes de começar a se aventurar em outros. Mas normalmente o pessoal faz o processo inverso; vai para Nova Iorque, Paris, mas não conhece o Nordeste ou o Centro-Oeste. É importante até para fazermos uma relativização. Estive na Índia há uns três anos e é uma viagem muito impactante, porque é realmente como se você tivesse subido em uma nave espacial e descido em outro planeta. E o que

biografia de um anônimo, ou de alguém que a sociedade não tem interesse em conhecer, que não tenha uma vida pública. Se você tem uma vida pública, acho que não tem que condicionar à autorização. Eu acho que as biografias têm que ser elaboradas independentemente da autorização do biografado, porque se referem à vida pública. O Fernando Morais (que é especializado em biografias) diz que “vida privada é o que se faz na

“A liberdade de expressão tem que ter limites, como todas as liberdades, mas não pode chegar a ponto de inviabilizar as pessoas de conhecerem a vida pública de alguém.” se relativiza é que a gente tem coisas que não gosta no Brasil, mas, na Índia, eles vivem com tão menos e têm problemas tão maiores. Acho que tudo é muito didático para quem quer refletir. E quem, como eu, já viajou muito quer fazer viagens exóticas. Eu quero ser surpreendida. E música? O que a senhora gosta de escutar? Não sou profunda conhecedora. Minha mãe é quem tem o ouvido ótimo para música. Eu gosto de música popular brasileira, gosto de música clássica... Não sou aficionada a um tipo de música, mas gosto muito. Gosto, claro, de Chico, Caetano, Gil. Gosto de ópera. Acho que é impossível não gostar de Verdi... Gosto muito de jazz também, de Gershwin, de música americana clássica. Já assisti a muitos shows ao vivo. Gosto muito de shows. Estive na Broadway várias vezes. Gosto de musicais em geral; de filmes musicais. Gosto, mas sou muito eclética: de música brasileira até música clássica, passando pelo jazz... Sob a luz do direito, qual a sua opinião sobre a polêmica das biografias não autorizadas? Eu não sou especializada nessa área. Minha opinião como pessoa comum e não como juíza é ser a favor da publicação. Porque eu acho que ninguém vai fazer

intimidade”, então ninguém vai escrever uma biografia sobre o que a pessoa vive dentro da casa dela. Vai fazer sobre a trajetória do artista, do político. Esse é um debate interessante, tanto é que está “fervendo”. Não estou falando sob o prisma do direito autoral, embora ache que essa seria a tese mais consistente, mas como pessoa. A liberdade de expressão tem que ter limites, como todas as liberdades, mas não pode chegar a ponto de inviabilizar as pessoas de conhecerem a vida pública de alguém. Você foi diretora da Ajufe? Eu fui de duas diretorias. Também fui diretora da revista. Foi de 94 a 96, na gestão do Vladimir Freitas. Não havia uma diretoria da revista formalmente, ela foi criada muito tempo depois. Havia a diretora cultural, que era a Eliana Calmon, mas o Vladimir achou que era tão importante cuidar da revista que criou uma “diretoria informal”, que eu assumi, mas não era um revista de cultura. Depois, foi proposta uma mudança no estatuto da Associação e virou uma diretoria. Foi uma experiência muito boa. Mas a Associação naquela época não tinha a expressão, a visibilidade e a importância que obteve de uns anos pra cá. Basicamente, a partir do Vladimir ela começou a ter. Depois, Flávio Dino... E todos os que vieram depois deles.

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Naquela situação não era nada interessante ser a primeira a ser chamada. Mas podia ser que fosse você. Foi...

“A escolhida” Rosa Maria Garcia Barros Juíza federal

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Certas coisas acontecem com a gente como que por obra de alguém. Lembrar desse acontecimento hoje em dia me faz pensar no tempo que passou desde então, nas mudanças em meu visual, mas principalmente nas alterações de comportamento que, aliás, não param de ocorrer conosco, apenas não percebemos tão claramente como quando apontamos o espelho para trás. Tudo naquela faculdade me apavorava no meu primeiro ano: a ostentosa construção do prédio, as arcadas históricas que me faziam encabular, as cores dos vitrais iluminados pela luz do sol, o tamanho monstruoso das classes para receber 250 alunos aprovados no vestibular para o período da manhã, divididos em duas turmas inimagináveis de 125 cada uma, os colegas que mal conhecia, a sisudez dos professores, tão distantes dos meus professores de colégio, lá na Mooca.

Me deu vontade de chorar, de me descabelar, de vomitar no ônibus de volta pra casa. Mas por que aquilo acontecia comigo? Sei lá! Era uma tragédia completa para mim. O centro de São Paulo era ambiente inóspito e, acostumada a ir andando para o colégio por quatro quadras, onde sempre encontrava um outro estudante como companhia, tinha que me conformar com o trajeto no ônibus elétrico, que me deixava completamente nauseada na Praça da Sé, lotada de rostos indiferentes, que nada me diziam. Mas o pior era chegar na faculdade e me sentir desconfortável com o ambiente formal, não conhecer alguém que fosse, se bem que o Américo estava lá e tinha feito o 3º colegial na minha classe. Só que nunca foi próximo e estava enturmado com seus amigos de cursinho. Então... Pra mim restava a solidão e o desespero de me sentir muito deslocada,

acostumada que estava a dominar meu espaço lá no colégio do bairro. Era fato: mandava ver no teatro, no jornalzinho da escola, jogava na seleção de basquete (se bem que na reserva) e adorava as aulas de literatura. Como é que estava acontecendo aquilo comigo? A coitada da minha mãe é que aguentava minhas lamúrias todo dia ao voltar pra casa na hora do almoço. Reclamava, reclamava e reclamava. Achava que aquilo não era pra mim. Que os colegas eram muito diferentes, que não conseguiria fazer amigos, que nem sabia se Direito era mesmo a profissão certa... Por outro lado, me interessei de cara pelas matérias dadas no primeiro ano, que envolviam Filosofia, História do Direito, Sociologia, Direito de Estado, e vi que podia divagar também por lá, que a prática da profissão ficava de fora e, realmente, me deleitei com tantas leituras que me deram a solidez para enfrentar outros tempos, mais tarde. Aos poucos fui me virando, conversando com um e outro e acabei me tornando mais próxima de duas japonesas, bem tímidas, bem mais velhas do que eu, que me acolheram naquele universo tão distinto, me ajudando a enxergar a faculdade sob outra ótica, afastando de mim tantos medos... No segundo ano, um pouco mais enturmada, já estava com outro grupo, mas a Áurea e a Rosa (minha xará) eram os colos para onde corria quando precisava. E naquele emaranhado de novidades na minha vida, aconteceu de eu ser a escolhida... No quê? Bem, sabe aquela situação da classe não colaborar, permanecer em total tumulto na aula do professor substituto, que, contrariado, decide escolher um aluno para dar a próxima aula, resumindo um capítulo do livro de economia do professor Nusdeu, o titular da pasta? E você ser aquele aluno em um grupo de 125 no livro de chamada, que não tinha nada a ver com a bagunça, e ser o escolhido? Para ir lá na frente daquela classe enorme, ao lado de um professor estranho, que equiparou todos os alunos pela atitude

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de um grupo? Logo eu, a assustada, a inadaptada, a incrédula de todo aquele novo mundo que se apresentava para mim... Me deu vontade de chorar, de me descabelar, de vomitar no ônibus de volta pra casa. Mas por que aquilo acontecia comigo? Devia ser o medo geral a atrair as coisas. Curiosamente, não foi a primeira vez que isso aconteceu. Já tinha sido premiada antes em minha vida escolar com esse tipo de escolha ao “Deus dará”, o que se repetiria em outros anos na faculdade também. Devo ter um ímã, só pode ser! Bom, o desespero foi completo, o inconformismo também, agora tinha que ir lá, me expor para aquela turma de desconhecidos, na qual me sentia uma intrusa, uma outsider, uma coisa qualquer que não se encaixava. Mas já que era inevitável e tinha uma semana exatamente para preparar aquela aula, me muni de todas as minhas forças de teatro de escola, de jogadora de reserva, de lutadora boba e preparei a bendita aula, ensaiando infinitas vezes na frente do espelho da penteadeira do meu quarto branco. Fazia interjeições, decorava parte do texto, explicava outra. Acabei gostando, mas continuava apavorada com a ideia de enfrentar a todos. Minha mãe, que costurava muito bem e gostava de me ver arrumadinha, logo achou que deveria me fazer uma blusa especial. No caso, uma bata que estava na moda na época. Ficou bem bonita sim, lembro que o fundo do tecido era amarelo claro, com umas estampas de flores, acho. Meu cabelo é que era estranho, não parecia eu. Explico: no 3º colegial, inventei de fazer uma permanente, afinal, ninguém merecia aquele cabelo comprido e liso, menos ainda eu! Aí pensei - já que era para mudar, radicalizei total. Cortei curto e mandei preparar a permanente. Por um erro de cálculo da cabeleireira meu cabelo quase tostou, franziu, encolheu. Meu namorado na época teve um surto e foi bom, porque descobri melhor seu íntimo. Não servia para mim. Ainda foi meu namorado por um bom tempo, mas seu prazo estava acertado desde então, sem dúvida. Onde já se viu ficar inconformado pela falta de minha madeixas? Até que o resultado não tinha ficado tão ruim assim... Lá na faculdade, meu cabelo fez falta. Queria ser mais bonita, chamar mais atenção. Essas coisas... Daí olhava no espelho e me via com menos atrativos... Certamente influenciada pelo namorado possessivo, que queria meu cabelo de volta. Ele voltaria, mas não para ele. Fui dei-

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xando crescer, crescer, sem um corte, para vê-lo cair sobre meus ombros. Portanto, assim estava meu cabelo nessa fase. Nem cá, nem lá. Nem liso, nem crespo. Nem longo, nem curto. Indefinível, como eu própria naquela fase. E foi com esse cabelo estranho, minha batinha amarela e a aula bem treinada que fui naquela manhã de terça-feira pegar o ônibus elétrico no ponto. Tomei muita água com açúcar, me ancorei nas minhas amigas japonesas, revi a toda hora o livro e minhas anotações, conferi minha memória. Respirando fundo, fui lá para o pedestal do lugar dos professores, com um gigantesco quadro negro atrás de nós e uma mesa intimidante, onde se sentou o substituto do professor Nusdeu, e eu em pé, preparada para o deboche, querendo me jogar do precipício. O fato é que o referido professor, de quem não lembro o nome, não me deu muito crédito, já que estava bastante contrariado com o comportamento dos alunos na aula anterior. E queria esnobar em cima da turma, mostrando nossa ignorância por meio da minha pessoa. Coitada de mim. Mas me surpreendi! Afinal, não era de todo inexperiente, já tinha tido meus momentos de exposição outrora em classe e mandei ver. Voz boa, educada, com a clareza que consegui, fui falando, explicando, fazendo parcos comentários, todos pertinentes, e o professor foi gostando, admirando, os colegas silenciaram por solidariedade e terminou que o dito professor me elogiou rasgadamente junto a meus pares e eu só pensando que era isso mesmo, que eu merecia, pois tinha me preparado de verdade. Joguei a insegurança para o lado e me deliciei com os parabéns das amigas Áurea e Rosa e também dos colegas próximos à minha carteira. A bata da mama tinha me dado sorte. E meu cabelo, se não ajudou, também não atrapalhou, por certo. Se hoje posso rir das incertezas daquela fase, ao mesmo tempo, sinto saudade daquela ingenuidade que me acompanhava, do esforço para vencer as adversidades, que eram incontáveis. E se eram ou não aumentadas por mim, da referência em que me encontrava, nunca vou saber. Mas me lembro com muito orgulho da minha coragem, do apoio das amizades conquistadas e da força de minha mãe, que pouco entendia do que se passava no turbilhão de meus pensamentos, mas me ajudou a seguir em frente com permanente no cabelo e tudo o mais.


Cabeça de juiz, relações humanas e um pouco de vida selvagem Marcos Mairton Juiz federal

Em meados de 1995, eu estava começando minha carreira como advogado. Trabalhava no departamento jurídico de um banco, em Fortaleza, e fui designado para passar uma temporada no núcleo jurídico de Teresina, onde deveria substituir um colega que estava de férias. Os advogados mais novatos sempre eram mandados para esse tipo de serviço, sob o argumento de que era uma ótima oportunidade para se adquirir experiência. E foi

Se algo desse errado, se surgisse alguma dúvida, eu não teria a quem recorrer. assim mesmo que encarei a missão de exercer a advocacia em outra cidade, capital de outro estado, sem conhecer as pessoas ou os costumes do local.

Encontrei menos dificuldades do que imaginava, mas tremi quando o meu chefe em Teresina mandou que eu fosse para mais longe ainda: - É uma audiência em Caxias – disse ele. – Você pode ir no seu carro. Dorme lá e no dia seguinte faz a audiência, às nove da manhã. A cidade de Caxias fica no Maranhão, mas é muito longe da capital, São Luís – uns trezentos e cinquenta quilômetros. Por isso, era atendida pelos advogados de Teresina, distante apenas setenta quilômetros. Recebidas as instruções, fiz cara de “deixe comigo” e, na véspera da audiência, peguei a estrada. O coração ia apertado, reconheço. Pela primeira vez, eu não teria um colega mais experiente por perto. Se algo desse errado, se surgisse alguma dúvida, eu não teria a quem recorrer. Telefone celular e internet já existiam, mas não tinham a cobertura que têm hoje. Pouco antes de o sol se pôr, cheguei a Caxias. Acomodei-me em um hotel onde passei a noite e, no dia seguinte, compareci ao

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fórum. Aguardava a chamada para a audiência, quando chegou o advogado da outra parte no processo, acompanhado de seu cliente. Ali estava meu colega e meu adversário. Uns vinte anos mais velho (eu tinha vinte e nove), falava e se movimentava como se estivesse em seu próprio escritório. Demonstrava estar à vontade e conhecer todos, desde o porteiro do fórum ao servidor mais graduado. Senti que a situação me era desfavorável. Não bastasse a minha inexperiência, eu era apenas um estranho, vindo sabe-se lá de onde, defendendo o odiado sistema

No ambiente civilizado das demandas judiciais há algo da vida selvagem financeiro contra um empresário local, provavelmente dotado de influência econômica e política na cidade. Mas, não tive tempo de pensar muito nessas coisas. Poucos minutos depois da hora marcada, foi feita a chamada e entramos na sala de audiência. Acomodei-me por ali, no lado da mesa indicado pelo servidor que auxiliava o juiz. Meu colega-adversário, prosseguindo em sua demonstração de bons relacionamentos forenses, cumprimentou efusivamente o juiz, apertando-lhe a mão enquanto lhe dava tapinhas em um dos ombros. Apesar do pouco entusiasmo do magistrado em corresponder ao cumprimento, o advogado falava com ele como se fossem velhos amigos e, antes que a audiência começasse, começou a comentar sobre outro processo, aparentemente, a cargo de outro juiz. Depois de falar alguma coisa quase sussurrando, disse sorridente ao juiz, elevando novamente a voz: - Sabe como é, né, excelência? De cabeça de juiz e de bunda de menino, a gente não sabe o que é que vem…

O juiz não sorriu. Também não se mostrou irritado. Simplesmente, olhou para o advogado com total indiferença e disse, lenta e pausadamente: - Desses dois aí, doutor, mais cedo ou mais tarde, acaba vindo sempre alguma merda… O advogado ficou sem graça. Percebi que ele tentava dizer alguma coisa que afastasse o mal-estar gerado pela situação, mas nada lhe ocorria. O juiz aproveitou o silêncio que se fez e iniciou a audiência. Eu, percebendo o desconforto que se instalou em meu colega-adversário, recuperei a autoconfiança e passei a defender os meus pontos de vista com tranquilidade e segurança. No final do ato, o caso não foi julgado, mas as provas ficaram bem favoráveis à tese do banco. Mais tarde, quando estava na estrada, novamente sozinho, pensei sobre tudo aquilo e senti que não havia gostado da conduta do advogado. Apesar de o dito popular ser bem conhecido, não é o tipo de coisa que um juiz goste de ouvir, ainda mais na hora em que se prepara para começar uma audiência. Se bem que o juiz também não precisava ter sido tão seco na resposta. A audiência é um momento que, por si só, já é tenso, pelo fato de haver ali interesses contrários sendo discutidos. Não precisava aumentar mais ainda essa tensão só porque o advogado foi infeliz ao tentar ser engraçado ou espirituoso. A minha grande lição naquele dia foi me portar nas audiências de maneira afável, mas mantendo sempre certa formalidade no tratamento. Se é inevitável algum tipo de animosidade, que esta se limite aos que têm o seu direito sendo decidido, sem envolver os profissionais que estão cuidando disso. Mas, confesso que gostei de ver o meu experiente colega escorregar e perder a desenvoltura que exibia no começo. Isso é algo que me fascina até hoje na vida forense. No ambiente civilizado das demandas judiciais há algo da vida selvagem. Ali, um deslize do predador pode transformá-lo em presa.

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O segredo da maturidade Everson Guimarães Silva Juiz Federal

Meu pai morreu cedo. Fui, portanto, criado unicamente por minha mãe, com o auxílio de uma irmã dela. Também não conheci meus avôs. À falta do modelo masculino e da presença paterna atribuo o surgimento em mim, juntamente com a puberdade, de certa ansiedade e insegurança. Embora nunca tenha deixado de superar as diversas etapas de meu desenvolvimento psicossocial, todas as fases, a partir da adolescência, foram para mim um grande desafio, motivo de intranquilidade e angústia. Essa característica interior produziu um reflexo nos meus traços exteriores. Meu caminhar tornou-se tenso e apressado, com a musculatura rija, como se sempre estivesse diante de um compromisso inadiável ou de uma catástrofe iminente. Por conta de meu jeito de ser, admirava aqueles homens maduros, na faixa dos sessenta anos. Obviamente projetava neles a figura paterna que não tive. Mas um aspecto, em particular, me chamava a atenção. Era o caminhar compassado, altivo, tranquilo. Aquele deslocamento lento pela rua, acompanhado pela conversa com um

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amigo, e que, pelo que parecia, nenhum compromisso, circunstância ou sentimento podia abalar. Enfim, uma atitude corporal que exteriorizava enorme segurança interior. Almejava desvendar, algum dia, o segredo para atingir aquela maturidade serena. Próximo de me tornar um sexagenário, consolidaram-se em meu corpo os sinais de envelhecimento. Embora sempre tivesse me cuidado, minhas articulações começaram a doer, instalou-se uma artrose no joelho direito e passei a conviver com uma hérnia de disco na região lombar. Então, embora mantivesse a minha ansiedade e insegurança características, meus movimentos tornaram-se mais comedidos e calculados. Meu caminhar passou a ser manso e ritmado e, para os deslocamentos mais longos, a companhia de um amigo era fundamental para desviar a atenção da dor. Não havia circunstância capaz de alterar o ritmo dos maus movimentos, não por uma impassibilidade da alma, mas por uma impossibilidade do corpo. Um dia a ficha caiu. Finalmente havia descoberto o segredo da maturidade.


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A menor e o mudo Vladimir Souza Carvalho Juiz federal

O trio não apresentava nenhuma uniformidade: a mãe, a filha e um mudo. Todos de idade variada, gente simples, lavradores. Foram conduzidos à minha presença, no Fórum Dr. Martinho Garcez, da comarca de Campo do Brito. Entendi o que desejavam, ante a revelação do fato. A mãe, numa linguagem bem direta, sem cumprimento algum e introdutório nenhum, apontando para a filha, informava que, mal tinha aparecido a primeira regra, a menina se entregara ao mudo, ali, ao lado. O verbo foi esse mesmo. À época, era fazer e casar. Não se prescrevia outro remédio. Contudo, seu Antonio [Luiz da Rocha], o escrivão do Registro Civil, não aceitava os papéis para a celebração do casamento, em face da idade da menina. O mudo, não sei se entendia alguma coisa, permanecia pa-

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rado, um riso meio disfarçado no canto da boca. A menor, curiosa, sentindo-se o centro dos acontecimentos. A mãe, com toda a razão, queria uma solução para o caso. A filha não podia voltar para a casa sem que a Justiça tomasse uma providência, sobretudo quando o autor estava ali, assumindo o ato, pronto para o casório. Na monotonia que a comarca andava, sem ações complexas, sem litígios de grande importância, eu, no comando, querendo processo para movimentar e sem os ter, sonhando com um feito complicado para lançar a minha sentença, decidindo ações bestas, vislumbrei uma ótima oportunidade para colocar em plano prático as lições que vinha assimilando do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, cuja revista de jurisprudência recebia, lia e anota-


va. Era o caso ideal para ver se, fisicamente, a menor estava apta ao casamento e à procriação, independentemente da idade. Evidentemente que nada significaria a realização do casamento com separação de corpos. Quem, na intimidade da casa, com o título de marido e mulher, ia se lembrar da proibição judicial para esperar a chegada da data permitida? Depois, como explicar ao mudo? A medida estava fora de qualquer cogitação. O ideal era me cercar dos cuidados devidos com o exame, fruto de decisões do Tribunal de Justiça sulista aludido. Os colegiados dos pampas gaúchos sempre ocuparam um espaço de relevo na minha admiração. Antes o de Justiça, nos tempos de juiz de direito, depois o Tribunal Regional Federal da 4a Região, cujas decisões costumo citar, hoje, com frequência. Tomei em termos a revelação da mãe da menor, juntando as certidões de nascimento dos futuros cônjuges. Em despacho, ordenei a realização de um exame por um médico local, o dr. Antonio Carlos Fontes. Itabaianense como eu, contemporâneo dos tempos de ginásio e colega dos bancos da Filarmônica Nossa Senhora da Conceição, foi chamado para verificar, em nível científico, o estado físico da menor. Expliquei à mãe e à filha como seria o exame, a finalidade etc. e etc., para evitar confusões mais tarde. Tudo bem encaminhado. Com o resultado da perícia, ouviria, enfim, o promotor da comarca à época, o qual não me recordo exatamente quem era. Dias depois, chegando ao fórum, me encontrei com o dr. Antonio Carlos Fontes na calçada da Praça Nossa Senhora da Boa Hora. Perguntei-lhe pela perícia e ele informou-me que já a tinha realizado. E, dada a intimidade dos tempos de estudante e de banda, lancei o veneno, indagando-lhe se a menor aguentaria o rojão do mudo. O médico, mantendo a voz calma, a cara séria, me respondeu que o mudo é que não aguentaria o rojão da menor. Evidentemente, a assertiva do médico não

constou do relatório que me foi encaminhado. Nem poderia. O pedido de casamento da menor com o mudo encontrou parecer favorável da Promotoria Pública, graças a Deus, porque um opinamento em sentido contrário à pretensão seria negativo para todos, para a mãe da pretendente, que buscava uma solução para não deixar sujo o nome da filha; para a menor, que queria casar com o bem-amado mudo; e para o Judiciário, que também se veria impotente em solucionar um problema tão simples para o vulgo. Dificilmente a mãe entenderia e, certamente, ficaria escandalizada com a negativa encontrada, omissão que traria respingos para o Judiciário. A cerimônia, com as formalidades devidas, foi realizada na manhã de uma quarta-feira, no fórum de Campo do Brito. Um fato na menor me chamou a atenção: o uso de uma peruca. O mudo estava impecável em sua roupa bem engomada. Foi a primeira vez que casei um mudo e me apresso a esclarecer que, no civil, do meu tempo de magistrado estadual, não falávamos em aliança, de forma que, para ser entendido, não precisei fazer o gesto, com o dedo, gesto que um padre, na clássica anedota, recorreu para que o mudo lhe respondesse onde estava a aliança. É difícil, hoje, vinte e três anos depois da minha saída da comarca de Campo do Brito, saber notícias do casal, se a sociedade conjugal foi e está sendo duradoura, quantos filhos tiveram etc. e etc. Muitos foram os casamentos que realizei, em nome da lei, como rezava o Código Civil, declarando os pretendentes marido e mulher, até mesmo um coletivo, com cento e dez casais, salvo engano, em Monte Alegre. No entanto, o da menor e do mudo ficou na minha lembrança, pelo inusitado da revelação da mãe da noiva, pelo exame médico realizado e, por fim, pela peruca que a menor usou na cerimônia. Ah, sim, sim, admito, também pela curiosidade de saber, afinal, se o mudo deu conta do recado.

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academia

Ecologia e história urbana da jaqueira no Campo de Santana, no Rio de Janeiro André R. C. Fontes Desembargador federal

Ao principiar o século XVII, o Campo de Santana já era um dos espaços livres mais tradicionais do Rio de Janeiro. Era um imenso descampado, originalmente pantanoso, e que se encontrava aterrado, porque a população o usava para depositar lixo, entulho e esgoto. Se no início daquele século a imensa área recebeu o nome de Campo de São Domingos por causa de um templo construído pelos frades dominicanos, em 1753, seus limites mais reduzidos comportavam as primeiras chácaras, nas quais se construiu uma igreja dedicada à Nossa Senhora de Santana. Desde então, a área passou a ser assim denominada.

[...] em 1870, o naturalista francês Auguste François Marie Glaziou e o estudioso de jardinagem José Francisco Fialho apresentaram à municipalidade um plano de ajardinamento do campo A mudança do nome, em 1817, para Praça dos Curros, por abrigar uma arquibancada para touradas, não impediu que o local continuasse a ser chamado de Campo de Santana. Nem mesmo depois de receber lavadeiras em

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suas 22 bicas nos anos 1810 e, por isso, ser chamado de Campo das Lavadeiras, ou Campo da Honra, em 1822, por causa da conclamação de Dom Pedro I a que a população se insurgisse contra o seu embarque à força para Portugal, e em seguida Campo da Aclamação, por ter sido ali aclamado imperador do Brasil. Voltou a ser chamado oficialmente Campo da Honra, a despeito de ter sido redenominado Campo da Redenção durante a Regência e, por alguns outros, Campo da Liberdade. Uma estação ferroviária foi construída, em 1858, no local da igreja que inspirou seu nome mais conhecido. A proclamação da República conduziu-o a uma nova classificação, a de praça, ficando, assim, a denominar-se oficialmente Praça da República. Desde a proclamação da República, outros tantos nomes foram dados, inclusive retomar a vetusta e comezinha designação de Campo de Santana, sua forma mais popular e mais conhecida. O serviço de aterro dos pântanos marcou-lhe a essência como conceito e denominação, pois foi acompanhado do plantio de algumas árvores, realizado por vinte sentenciados militares presos na Fortaleza de Santa Cruz. Se o plantio de árvores não obedeceu a critérios muito rígidos até então, em 1870, o naturalista francês Auguste François Marie Glaziou e o estudioso de jardinagem José Francisco Fialho apresentaram à municipalidade um plano de ajardinamento do campo. Em 3 de julho de 1871, a Câmara Municipal aprovou o projeto,


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ponto de vista

mas Glaziou assumiu sozinho a responsabilidade pelo empreendimento. O parque passou a ser protegido por grades de ferro e ser cruzado por caminhos variados, acompanhados por árvores, arbustos e vegetação exótica. Alguns lagos foram formados e um rochedo, posicionado em seu interior para abrigar uma pequena cachoeira.

dadeiramente nacional se não contrastasse com o plantio de várias plantas exóticas, ou seja, provenientes de flora diversa da nossa, como são, designadamente, figueiras, mangueiras e jaqueiras. Em seu conjunto, os intentos de Glaziou de cumprir o contrato de embelezar o Rio de Janeiro com a figueira microcarpa trazida da Ásia, mais especificamente da

Apesar da contínua disseminação de várias espécies vegetais não nativas, uma em especial adquiriu grande difusão e se tornou de tal maneira conhecida no país que faz parte dos sistemas biológicos instalados ao seu redor, assim como da cultura popular: a jaqueira. A abertura da Avenida Presidente Vargas marcou definitivamente o traçado urbano do Rio de Janeiro e não poupou a histórica e única igreja de forma côncava no país. Além disso, reduziu de 142.421 m2 para meros 18.216 m2 a área total do parque. De local sublime a local de referência na história do país, serviu lamentavelmente aos militares golpistas de 1964, que, não contentes com o mar de trevas a que submeteram o país, julgaram ainda necessário entrincheirar tropas e emboscar os estudantes da Faculdade Nacional de Direito que lá permaneceram, heroicamente, em resistência à ditadura implantada. Esse refugio verde na área urbana do Rio de Janeiro, palco das mais efervescentes manifestações do povo pela independência e proclamação da República e de resistência à bota militar na sanha ditatorial, assinala, igualmente, outros elementos da dignidade do povo brasileiro: são eles a exemplar existência de árvores centenárias, como, por exemplo, figueiras e baobás, e, também, a proteção a diversas espécies animais, que vivem em total liberdade, como cutias, galinhas-d’angola, gatos e patos-do-mato. O parque é marcado por elementos paisagísticos, arbóreos e embelezadores da cidade. Uma combinação sem paralelos dos acontecimentos históricos e patrióticos mencionados e ocorridos no mais característico oásis arbóreo do Rio de Janeiro imprimiria um significado ver-

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Índia, muito além de dar o toque maravilhoso à cidade, provocaram a disseminação de uma árvore que se tornou uma verdadeira praga que, para muitos, necessita ser dominada, a fim de que as espécies locais possam retomar seu lugar. A figueira religiosa cultivada ao longo das vias públicas do Rio de Janeiro, também trazida da Índia, sob a sombra da qual Buda atingiu o Nirvana, é outro bom exemplo que também não poderia ser esquecido. Apesar da contínua disseminação de várias espécies vegetais não nativas, uma em especial adquiriu grande difusão e se tornou de tal maneira conhecida no país que faz parte dos sistemas biológicos instalados ao seu redor, assim como da cultura popular: a jaqueira. Talvez não haja fruto mais apreciado ou que produza melhor doce ou geleia que o da jaqueira. A fruta tem bagos ou frutículos de cor amarelada, que muito lembram uma mistura de manga com laranja ou, talvez, de maçã com abacaxi. Com sabor doce e cheiro forte e perfeitamente perceptível a certa distância, os bagos são envoltos por uma camada grudenta e formam o seu fruto sincarpado, de grande volume, ou mais propriamente o sincarpo, assim entendida a infrutescência de forma oval produzida pela junção dos frutos formados pelo desenvolvimento do ovário de flores vizinhas. Em cada sincarpo encontram-se frutículos ou bagos em número que pode ultrapassar uma centena.


A jaqueira é uma árvore morácea de grande porte, de folhas coriáceas e flores pequenas, que se acredita ser originária da Índia e de Bangladesh, país que a elegeu como fruta nacional. Os portugueses conhecem a fruta desde quando chegaram a Calicute, em 1498, e foram responsáveis por divulgar, a partir do tamil chakka, a palavra jaca, que serviu de fonte para outros povos ocidentais batizarem a fruta. Daí jackfruit, jack ou jak em inglês, giaca em italiano, jacque em francês e yaca em castelhano, dentre outras. De suas sementes extraem-se castanhas, remédios e alimento para os animais. De seu caule, madeira boa pode ser extraída, e dela até instrumentos musicais são produzidos devido a sua maciez. E por ser muito apreciada em todo o mundo pelo fruto e pela madeira de boa carpintaria, ela foi disseminada por todos os continentes, com exceção do antártico, de forma que, por exemplo, além do Brasil, também é encontrada em outro local do continente americano, nomeadamente nas Antilhas. A jaqueira é, sem dúvida, uma das mais proveitosas espécies vegetais. Seu cultivo é estimado por alguns estudiosos desde 3.000 a 6.000 anos atrás.

E se na Floresta da Tijuca a política tem sido contrária à jaqueira, no Campo de Santana as árvores são protegidas Ao passo que espécies nacionais dependem de muita água da Mata Atlântica, a jaqueira, diferentemente, não necessita de forte hidratação, embora não admita sombra de outra árvore para se desenvolver. E foi ideal para reflorestar a Floresta da Tijuca pelo major Archer, a partir de mudas trazi-

das de sua fazenda no interior do estado do Rio de Janeiro, porque não havia água no local e nenhuma outra espécie se desenvolvia. A jaqueira foi a primeira que conseguiu desenvolver-se nos limites do Parque Nacional da Tijuca. Se um princípio geral de expansão das jaqueiras tem provocado necessidade de controle e, consequentemente, o corte de muitas árvores por autoridades públicas, especialmente na Floresta da Tijuca, no Campo de Santana, o aspecto paisagístico triunfou. As árvores são protegidas e observadas e já interagem com espécies animais do local, que se alimentam de seus frutos. A capacidade da jaqueira de disputar e vencer as espécies nativas, somada à sua ampla ambientação no país, deu origem a uma atenção das autoridades nacionais quanto à sobrevivência das espécies nativas, especialmente por causa do bloqueio de luz do sol e pela dificuldade de suas folhas se decomporem e, com isso, impedirem a germinação de outras árvores. Espécie exótica e também invasora, a jaqueira foi alvo de uma guerra que provocou não somente um ataque à sua proliferação, como, também, o abate, o arranque de mudas e o anelamento, ou seja, a morte pelo impedimento da circulação da seiva. E se na Floresta da Tijuca a política tem sido contrária à jaqueira, no Campo de Santana as árvores são protegidas, sem que se intervenha em favor daquelas que são prejudicadas, especialmente as espécies locais. A Floresta da Tijuca é marcada pelo retorno à biodiversidade e por um ataque secundário à superpopulação de quatis e micos-estrela, que por abundância de frutos da jaqueira multiplicaram-se de maneira desequilibrada. Essas são orientações estranhas ao Campo de Santana, que, submetido a um perfil estético-paisagístico, não tem por vocação resgatar espécies nativas ou preservá-las no concurso com as jaqueiras, e

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ponto de vista

não considera necessário manter vivo e limitado um grupo de animais típicos locais. Seja porque não toma a ecossistematologia como condição para permanência do parque, seja porque não se planeja qualquer iniciativa de se igualar à Floresta da Tijuca, segue o Campo de Santana em sua história de integração com o desenvolvimento e a expansão urbana do Rio de Janeiro. De curta dimensão territorial, o Campo de Santana tem uma vocação estético-paisagística pautada por uma desnecessidade de torná-lo funcional na preservação de algumas espécies de árvores, como, aliás, ocorre ao longo das vias de acesso ao município com amendoeiras e figueiras, que, a despeito de não atenderem aos requisitos de retorno às espécies locais, capturam o espaço público arborizável no Rio de Janeiro. Os rumos dados, atualmente, pela Administração Pública, às jaqueiras no Parque Nacional da Tijuca e, possivelmente, no restante do território do município do Rio de Janeiro, pode incluir a sua eliminação e controle, a fim de resgatar as espécies nativas e protegê-las. À medida que se aprofundam as técnicas e os recursos para a destruição das árvores nas áreas já delimitadas, submetem-se as jaqueiras do Campo de Santana a uma outra política, de cunho estético e paisagístico, na qual essa frondosa árvore é parte integrante e harmoniosa do mosaico de espécies vegetais lá encontradas. A experiência mostra que, no Campo de Santana, os frutos da jaqueira integram

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o conjunto de medidas relacionadas à alimentação de alguns animais, e a colheita de seus frutos obedece a rígidos critérios delineados na política de convivência com os seres humanos. As medidas de desenvolvimento que surgem a olhos vistos no Rio de Janeiro parecem não incluir o Campo de Santana, que se apresenta como algo aparentemente pronto e feito. Sua característica mais completa continua a ser de área destinada à estética, ao paisagismo e ao lazer. A questão do controle arbóreo parece não encontrar ali nenhum significado fora dos ideais urbanos (estético-paisagístico e de lazer), justamente porque sua natureza de parque urbano, destinado preponderantemente ao ser humano e à sua qualidade de vida, e não ao tipo ambiental por excelência, reflete os seus vínculos com a história e a essência do Centro da capital do estado do Rio de Janeiro. Cumpre assinalar que as forças transformadoras e urbanísticas do Rio de Janeiro ainda não encontraram motivação para retomar no parque alguns conceitos sobre o uso do subsolo como estacionamento ou área para trilhos de metrô, exatamente como ocorreu no passado. Esses exemplos superficiais podem não ter hoje nenhum significado para o desenvolvimento do município. Talvez se nós nos omitirmos das lembranças dessa área tão importante da capital do estado possamos preservá-la de sua própria redescoberta ou de sua destruição!


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ponto de vista

Resgate de carreiras musicais O pesquisador musical Marcelo Fróes deixou o Direito, no início dos anos 90, para investir na pesquisa de acervos e relançamento em mídia digital de gravações feitas originalmente em vinil Nicolas Bonvakiades

Egresso da Faculdade de Direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, o produtor, pesquisador musical, escritor e editor Marcelo Fróes trocou o mundo das leis pelo das cifras musicais e trajetórias artísticas no início da década de 1990. Hoje, ele define seu trabalho como resgate de carreiras e relança em mídia digital gravações originalmente feitas em discos de vinil, que se perderiam no tempo com a substituição de tecnologias. Em entrevista exclusiva à Revista de Cultura Ajufe,

o responsável por aquelas sedutoras caixas de CDs nas vitrinas das grandes livrarias destaca a ambiguidade das exigências para o acesso ao patrimônio cultural. Para Fróes, a legislação brasileira não pode, por exemplo, estabelecer a impunidade em caso de mau uso de informação na elaboração de uma biografia. Por outro lado aponta que a obrigação de autorização para questões que podiam ser resolvidas com regras mais objetivas torna o trabalho em cultura burocrático no Brasil.

Como começou seu trabalho com a música? Eu tinha a música como hobby, hoje até sinto falta disso. Quando trabalhava como advogado, a música era o que eu curtia fazer. Hoje em dia, eu trabalho com isso de domingo a domingo e, na hora do lazer, resta ir ao cinema, comer fora, ver televisão – tudo, menos ouvir um disco. Às vezes, até ir a um show é trabalho, não necessariamente lazer. Então, o primeiro passo foi fazer um livro sobre os Beatles, que são minha grande paixão, minha grande influência. Conheci o produtor deles, o George Martin, nessa época (1992), em Londres, eu o tinha visto trabalhando com fitas com as gravações deles, as sobras dos Beatles, e eu achei aquilo muito interessante. Depois, comecei um livro sobre a Jovem Guarda. Por causa da pesquisa para esse livro comecei a frequentar os arquivos das gravadoras para escutar as fitas, as discografias. Quando comecei a mexer com o material dos arquivos, vi que, aqui no Brasil, também existiam sobras de gravações, as fitas guardadas, igualzinho ao que rolava lá. Aquilo me estimulou a fazer um trabalho que ninguém

fazia no país. O Gilberto Gil foi o primeiro a captar essa tendência e me dar o sinal verde para fazer o trabalho com ele, que se estendeu por uns sete anos.

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Sete anos só nesse trabalho específico com o Gilberto Gil? Eu comecei em 95 e em 99 saiu uma primeira caixa com diversas gravações. No final de 2002 saiu a segunda, quinze dias antes de o Lula chamá-lo para ser ministro. Então, marcou exatamente o período dele como ministro. Depois ele passou alguns anos sem se dedicar tanto à música. Depois que ele saiu do ministério, já fizemos algumas coisas, alguns projetos. Foi muito importante esse trabalho, porque abriu portas para eu fazer diversos outros. Então a literatura veio primeiro na passagem do Direito para a música? Literatura musical. Foi uma tendência. Lembro que, na primeira semana de aula da Faculdade de Direito, a Heloísa Helena (Gomes Barboza, da Universidade do Esta-


FOTOS: MARCOS MORTEIRA

quando o Hélio estava doente, veio a falecer e eu resolvi parar de fazer. Até porque, em 2008, eu tinha criado uma gravadora, a Discobertas, que fundei também sem grandes pretensões, mais para poder continuar trabalhando no que eu sempre fiz, porque o mercado fonográfico entrou em colapso desde o final do século passado e estava cada vez mais difícil trabalhar.

M F

do do Rio de Janeiro – UERJ) era professora de (Direito) Civil. Ela comentou uma coisa interessante: a faculdade de Direito era aquela em que as pessoas que não sabiam o que fazer no vestibular se inscreviam. Talvez eu até me incluísse entre elas. Não me arrependo, acho que foi excelente para mim e é útil até hoje. Sei fazer meus próprios contratos, sei negociar, sei avaliar as situações, tenho um pensamento jurídico muito forte, tenho noção das coisas, graças a essa formação que me é muito útil no dia a dia, embora eu tenha parado de advogar em 95. Parando para analisar tudo o que eu fiz nesses mais de 20 anos, se eu tivesse feito Comunicação, Jornalismo, alguma coisa assim, talvez tivesse sido mais proveitoso, mas não me arrependo de ter feito Direito. Essa transição foi até rápida: comecei em 92, em 95 eu já estava trabalhando com o Gilberto Gil e já era sócio e editor em um jornal de música que durou 15 anos. Era o International Magazine, um tabloide só de música que circulava no Brasil inteiro. Era uma parceria com o Hélio Fernandes Filho, que era o dono da Tribuna da Imprensa, que durou até 2009,

Foi simples assim criar a Discobertas? Um presidente de gravadora, vendo o tipo de projetos que eu fazia, cada vez mais difíceis de realizar dentro de uma multinacional, sugeriu que eu abrisse um selo. Eu achava que era um passo muito largo, não tinha capital, mas acabei tomando coragem e comecei a me organizar para fazer esse selo em 2006, 2007. Quando eu estava negociando para ver a distribuidora que eu ia fazer, o Erasmo Carlos já estava com a gravadora dele, a Coqueiro Verde, e me perguntou se eu não queria distribuir pela gravadora dele. Então, a Coqueiro Verde foi minha incubadora, para garantir o primeiro ano. Em 2009, eu fui para a Microservice, onde fiquei até agora. É a linha de fábrica distribuidora. Você deixou de lado a literatura musical? Agora, em 2012, eu resolvi voltar a mexer com livro, porque é uma coisa que eu sempre gostei de fazer, mas era muito complicado, porque nos anos 90, quando comecei, não tinham as grandes cadeias. Saraiva e Cultura não tinham cadeias nacionais e a distribuição de livros era muito complicada. Havia as cadeias regionais ou estaduais: Entre Livros, Sodiler, Siciliano. Hoje, com cadeias nacionais, se você tiver uma editora, coloca o livro na mão da Cultura, da Saraiva e da Fnac, o que não é muito fácil, porque eles são muito assediados, você está no país inteiro. Então eu resolvi fazer uma editora só de livros de música. Tenho três sócios e já estamos caminhando para o quinto livro. São livros de biografias, livros de referência. Ainda não fizemos nenhum songbook, mas podemos vir a fazer. O mercado editorial é mais rentável agora? Por mim, eu teria feito livros sempre, mas era muito complicado esse lance da distribuição, era meio desanimador. Era uma atividade lúdica. Acredito até que para os juristas que fazem livros, é uma coisa lúdica, uma sa-

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tisfação. A maioria dos juristas que faz livros não ganha dinheiro com esses livros, ganha? Com a venda? Porque você faz livro para vender, para receber 10% do que for vendido. Às vezes, o cara passa quatro, cinco anos escrevendo um livro, tem a satisfação de publicar, mas não dá para viver disso. Era uma atividade lúdica e eu precisava trabalhar, precisava pagar minhas contas. Então eu acabei tendo que canalizar minha atividade de pesquisa para coisas que tivessem um retorno. O jornal me consumia muito e a indústria fonográfica também.

Eu não teria coragem de lançar, pela minha editora, e muito menos de escrever a biografia de uma personalidade sem ela saber. Eu lançava um jornal todo mês, e lançava discos de dois em dois meses. Hoje, todo mês eu lanço um disco. Agora, tem a editora, que todo mês vai lançar um livro. Você passa três anos escrevendo um livro se tiver bolsa, se tiver um emprego e, ao mesmo tempo, um patrocinador que garanta a dedicação necessária. É por isso que livro no Brasil é uma coisa muito delicada. A que fontes você recorria quando começou com as pesquisas? Na época em que eu comecei não existia internet, não tinha Google. Hoje em dia, com ele, a quantidade de pesquisadores deve ter aumentado consideravelmente. Eu recorria à Biblioteca Nacional, arquivos, sebos. Teve muita entrevista. Procurei as pessoas, ouvi delas. Hoje em dia você faz ótimas pesquisas sem sair do sofá. Você destacaria alguma entrevista especialmente marcante? Eu tive oportunidade de entrevistar centenas de pessoas do mercado musical brasileiro, dos anos 90 para cá.

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As melhores entrevistas que eu fiz foram com o Renato Russo. Foram as mais interessantes, as que eu mais tive prazer em fazer. Gosto muito de entrevistar o Gil. Gosto de entrevistar o Nando Reis, o Erasmo. Tem umas entrevistas bem legais que eu refaço. Sempre que é possível, eu gosto de entrevistar essas pessoas. O Discobertas tem um catálogo grande e variado. O que determina suas escolhas? O Discobertas é muito focado em reedições, reeditar em CD discos que saíram em LP. Eu procuro fazer um resgate de carreiras. Os discos da Celly Campello nunca tinham saído em CD. Procurei a gravadora dela, licenciei todos os discos, remasterizei e relancei em uma caixa com seis discos. Fiz isso com Zimbo Trio, fiz isso com diversas pessoas. Fiz alguns projetos com o Zé Ramalho, também, que é um amigo querido. O ponto principal do Discobertas são essas reedições, que têm material para colecionador e alguma coisa documental. Então, o que a gente mais gosta de fazer são reedições, sempre com esse caráter de carreiras, de discografia completa. São umas caixinhas que você acha por aí na Cultura, na Travessa, na Saraiva. Durante uns dez anos eu fiz isso para todas as gravadoras, e quando a coisa começou a ficar complicada, me sugeriram que eu fizesse um selo e, graças a esse selo, eu continuo fazendo e tenho feito bastante. As gravadoras já não acham essa atividade tão rentável. Para uma microempresa como a minha, é interessante fazer. Como é a recepção a esses relançamentos, como o da Celly Campello? Teve muita repercussão na mídia. Saem matérias no país inteiro, porque a gente manda para os veículos do Brasil todo. Tem muita repercussão, e também tem público interessado. A vendagem não é nada astronômica – não mesmo, senão as gravadoras mesmas fariam. Mas para o nicho que é, é bem legal. Quais são os cantores e autores de quem você planeja produzir algum trabalho?


Eu devo fazer o João Donato, que faz 80 anos. Tem um projeto para fazer com ele e com o Carlos Vieira também, que faz 60 anos de carreira. Tem esses dois projetos para fazer em 2014 e, certamente, alguns outros que ainda estão sendo definidos. Você consegue definir os gêneros musicais atuais? É indiscernível. E é bom que seja assim, o rótulo é muito prejudicial. Moraes Moreira sofria muito nos anos 90, porque a música dele era considerada música regional. Quando saíam prêmios, o colocavam como músico regional e ele ficava irado, porque não era música regional o que ele fazia, era uma música pop brasileira, uma popular brasileira sem ser aquela MPB. Porque a MPB ficou muito ligada à música de protesto, porque nasceu na época dos festivais, que, por sua vez, nasceram na ditadura militar. Foi estimulada e influenciada pela ditadura, que era a grande inspiração daquelas canções – a ditadura, a questão política. Tanto que, depois da abertura, um monte de gente ficou sem ter o que fazer. Como você vê e lida com as questões de direitos autorais e autorização para publicação de biografias? Eu até pleiteei estar presente nas audiências públicas provocadas pela ministra Carmem Lúcia, mas demoraram muito para confirmar a lista de convidados. Quando recebi o aviso de que estava credenciado, fui olhar o preço da passagem para Brasília. Comprando-se dois dias antes, é um absurdo. Acabei assistindo pela televisão. Acho que não dá para liberar geral, porque o mercado editorial brasileiro ainda é pequeno. Imagina a quan-

tidade de gráficas que iam virar editoras. E quantas seriam editoras de baixa qualidade, com jornalistas mal qualificados para fazer biografia. Ia aparecer livro de toda espécie, respaldado em uma lei que garante a impunidade. Claro que você sempre vai poder ser processado se fizer uma biografia, autorizada ou não, e falar alguma coisa que possa ser reclamada judicialmente. Tem que haver um meio termo. O fato de você procurar uma personalidade pública e obter autorização não quer dizer que você vai fazer uma biografia chapa branca. A questão da autorização não deveria ser considerada uma coisa negativa. Existem, também, muitos advogados, muitos artistas, muitos herdeiros que pensam no dinheiro nessa hora. Então, o poder de autorizar e o poder de vetar têm um preço. Às vezes, o cara nem quer que saia uma biografia da mãe dele, mas se aparece uma editora pagando uma grana, autoriza. A existência da possibilidade de os herdeiros e de os próprios biografados autorizarem ou não se torna uma coisa perigosa, no sentido de que a grana fala mais alto. Sabe-se que há casos em que, pela “herança da memória” pelas famílias, pessoas que foram importantes na trajetória de biografados foram banidas. Acho muito deselegante. Eu me sentiria muito mal. Eu não teria coragem de lançar, pela minha editora, e muito menos de escrever a biografia de uma personalidade sem ela saber. Ainda mais porque, pelo menos no mercado em que eu trabalho, eu conheço a maioria das pessoas. Seria muito deselegante fazer a biografia do artista A, B ou C sem falar com ele, seja em termos de pedir autorização ou não. Se a lei mudar, eu vou falar:

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“Fulano, eu vou lançar a sua biografia. Não estou pedindo nada, não, estou só te avisando que vou lançar”. Mas essa coisa dos herdeiros, você tem razão, é complicada. Do rádio à internet, com a questão da pirataria inclusive, como você avalia a aplicação das novas tecnologias, especialmente na área fonográfica? Eu acho que o digital é muito útil, pode ser a salvação em termos de espaço para estocagem, com todas as possibilidades de backup, de cópias sem perda de qualidade e tudo o mais. A internet é muito útil, também. Eu acho que é tudo uma questão de educação. Da mesma forma que o pessoal descolado começou a abrir lojas de vinil em Nova Iorque, no Rio ou em São Paulo, depois de a gente ir ao fundo do poço, talvez alguma loja em Nova Iorque comece a lançar CDs e a mesma garotada que descobriu o vinil acabe descobrindo que ter um equipamento de som com uma caixa grande, com boa qualidade, é muito mais interessante que você ouvir um mp3 em um headphone, mono, no próprio ouvido e outro no ouvido da sua namorada. A tendência é descobrir que o CD tem seu valor e o mp3 de baixa qualidade, aquele levinho, que você manda anexado no e-mail, não é a melhor opção. Como é o cuidado com os acervos fonográficos no Brasil? É muito preocupante, porque, durante muitos anos, as gravações ficavam guardadas nas gravadoras, nem todas elas com o devido cuidado, mas estavam dentro das suas sedes, nos seus prédios e casarões, em ambientes refrigerados, em estantes. Eram os acervos que eu frequentava. Com a crise do mercado,

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as gravadoras foram vendendo suas sedes e alugando andares de salas. Os acervos das fitas foram terceirizados para firmas de armazenamento permanente. Hoje em dia, se precisar de alguma coisa, tenho que pedir por e-mail, pelo sistema, a fita número tal – aquele número de série imenso –, que está guardada em uma caixa de arquivo no interior de São Paulo ou na Baixada Fluminense, em lugares inacessíveis. Às vezes, chove dentro. É coisa de interesse público. Caberia até questionar se essas gravações deveriam ser patrimônio particular de multinacionais e não do Estado. Nós temos a Biblioteca Nacional, onde, a rigor, tem um exemplar de cada livro, cada periódico publicado no Brasil, mas você não tem um estabelecimento onde você tenha um exemplar de cada disco de música brasileira.

A qualidade musical ficou tão ruim nos últimos anos que qualquer coisa que você escute dos anos 60 ou 70 acha bom para caramba. A própria história das personalidades da música brasileira tem lacunas? A lei brasileira é calcada no direito moral, que preconiza essa coisa de ter que ter a autorização para fazer qualquer coisa. Você não usa uma foto sem a autorização do fotógrafo, você não usa uma canção sem a autorização do compositor... Para tudo tem que pedir autorização. Nos Estados Unidos não é assim. Você dá crédito e paga aquele valor que já está pré-estabelecido; a pizza já foi dividida há muito tempo e cada um já sabe qual é o


seu valor. Aqui não, tudo tem que ser negociado. Aí é complicado. As pessoas desistem de fazer as coisas. Você não usa uma foto em revista sem a autorização do fotógrafo. Não vai usando foto de arquivo assim, não, que pode aparecer alguém para processar. Ainda temos personagens marginais na história da música brasileira? Eu acho que isso já passou. Nós tivemos muito patrulhamento cultural na época da ditadura militar. Os críticos musicais nasceram ali, os especialistas da MPB, esses caras que louvavam os defensores dos direitos civis. As pessoas que batalhavam contra a ditadura se tornaram verdadeiros deuses, independente da qualidade musical, por serem batalhadores, politizados e conscientes. Antes da ditadura, não tinha crítico musical, existia disc jockey. O rádio era determinante. Não existia crítica, não existia resenha. Depois, começaram a surgir as resenhas, os críticos musicais que faziam verdadeiras interpretações das letras, que enxergavam coisas nas letras, a genialidade na poesia de fulano ou beltrano. Esse patrulhamento que, ao mesmo tempo, louvava os artistas mais

engajados execrava o cantor popular, que não tinha espaço. Ali nasceu a música brega. Qualquer cantor romântico era considerado brega, não tinha valor nenhum. Hoje em dia, isso acabou. Tanto é que você relança os discos do Odair José e todo mundo acha genial. As pessoas passam a valorizar as coisas. Você compra um disco do Reginaldo Rossi, coloca para tocar e acha bacana para caramba. Você passa a analisar de uma forma diferente. Naquela época era tudo brega, de baixa qualidade e, hoje em dia, é uma coisa bacana que você tem. A qualidade musical ficou tão ruim nos últimos anos que qualquer coisa que você escute dos anos 60 ou 70 acha bom para caramba. É difícil achar em CD muito do que se encontra em vinil. Aquele Bossa Rio, por exemplo, com o Pery Ribeiro. Eu acabei de relançá-lo. Minha mulher falou que foi procurada pela mulher do Sérgio Mendes. “A Gracinha Leporace te procurou? Eu estou procurando essa mulher há três anos!”. Ela mora em Los Angeles e mandou e-mail para a minha mulher. Ela é do Bossa Rio. São três discos.

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Olivares de Quepu $]HLWH 2URPDXOH Produzido a partir de variedades de azeitonas, caracteriza-se pelo perfeito equilíbrio de finos toques de ervas frescas e de frutas, deixando na boca um agradável bouquet de amêndoas.

3LFXDO Produzido a partir de variedade de azeitona de origem espanhola, apresenta equilíbrio entre os toques picantes e amargos presentes em seu sabor frutado. Seu gosto, ao fundo, é picante, intenso e profundo. É recomendado para carnes vermelhas e vegetais verdes, além de combinar muito bem com saladas e guisados.

)UDQWRLR Produzido a partir de variedade de azeitona de origem italiana, caracteriza-se pelo agradável aroma de frutas frescas e ervas recém-cortadas, que remetem à fragrância da rúcula. A intensidade média e o sabor frutado proporcionam um gosto limpo, com agradável frescor amargo ao final. Seu uso é recomendado em todo tipo de massa, pescados e mariscos.

$UEHTXLQD Produzido a partir de variedade de azeitona de origem espanhola, apresenta um aroma fresco de maçãs verdes, com notas de alcachofra. Com adstringência brilhante e pura, possui agradável sabor de amêndoas, com excelente combinação de frutas frescas e sensações de amargo e picante bem balanceadas. É recomendado em todo tipo de carnes brancas, saladas e vegetais salteados.


Sabor e saúde desde a antiguidade O azeite de oliva é utilizado desde a Antiguidade pelos povos do Mediterrâneo, e foi um dos principais produtos comercializados pelos fenícios, que, como os povos da Mesopotâmia, os egípcios e os gregos, já o usavam há seis mil anos. Ao longo dos tempos, sua utilização cresceu e sua importância se acentuou, como resultado dos múltiplos aproveitamentos que lhe foram dados, especialmente na alimentação e na medicina. Seu consumo tomou grandes proporções na cozinha moderna graças aos benefícios que o azeite propicia à saúde, principalmente os azeites extravirgens, que possuem propriedades e vitaminas que podem prevenir doenças e melhorar a pele, além de conter ainda diferentes vitaminas (A, D, K e E). Dentre os inúmeros benefícios do azeite extravirgem estão sua ação antioxidante, redução do mau colesterol, proteção ao coração e ao cérebro, proteção contra a osteoporose, efeito analgésico, além de hidratação capilar e fortalecimento das unhas. Além de todos esses benefícios, o azeite dá sabor, cor e aroma, integra os alimentos, personaliza e identifica um prato. Graças ao conhecimento de seus benefícios, o consumo de azeite foi difundido de forma a abranger mercados longínquos dos locais de produção. Pensando na saúde e no crescimento do mercado do azeite, a Olivares de Quepu tem investido na expansão da sua marca. A empresa, localizada na região de Maule, no Chile, dedica-se 100% à produção de azeite de oliva extravirgem de altíssima qualidade. As oliveiras foram cultivadas no Vale de Pencahue, na VII Região, cidade de Talca, considerada uma terra muito fértil. No início, apenas 80 hectares e, após uma década, possui 763 hectares plantados. Devido à integração vertical na cadeia de produção, desde produzir as mudas para plantio até o engarrafamento dos azeites, a Olivares de Quepu obtém produtos únicos em sua categoria. Assim os monovarietais 1492 – Frantoio, Picual e Arbequina – e o Oromaule, cada um com a sua característica particular, mas todos com qualidade inigualável, com acidez de 0,2% e diversas premiações, adquiriram fama e prestígio no mercado mundial.


Nos últimos anos, os azeites da Olivares de Quepu foram premiados nos principais concursos europeus e americanos: Terraolivo / Mediterranean International Olive Oil Competition – Israel, 2012 | Los Angeles Extra Virgin Olive Oil Competition –EUA, 2010 e 2011 Concorso Internazionale L´Orciolo D´Oro – Itália, 2004, 2006, 2007, 2009, 2010, 2011 e 2012 | 4ª ExpoAzeite Concurso de Azeites Extra Virgem –Itália, 2010 12° Concorso Internazionale Oli da Oliva L´Orciolo D´Oro – EUA, 2010


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