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Revista

AJUFE

de Cultura ANO 7 . ABRIL DE 2015 . Nº 10

Ponto de vista Ministro do STJ Napoleão Nunes Maia Filho mostra o seu lado poeta em uma conversa exclusiva sobre a arte em versos presente no dia a dia Academia Memória sobre o primeiro encontro nacional da Ajufe; ensaio sobre os 800 anos da primeira Carta Magna; curiosidades sobre a viola de gamba e artigo sobre o mal radical na sociedade contemporânea

Nos últimos anos, os azeites da Olivares de Quepu foram premiados nos principais concursos europeus e americanos: Terraolivo / Mediterranean International Olive Oil Competition – Israel, 2012 | Los Angeles Extra Virgin Olive Oil Competition –EUA, 2010 e 2011 Concorso Internazionale L´Orciolo D´Oro – Itália, 2004, 2006, 2007, 2009, 2010, 2011 e 2012 | 4ª ExpoAzeite Concurso de Azeites Extra Virgem –Itália, 2010 12° Concorso Internazionale Oli da Oliva L´Orciolo D´Oro – EUA, 2010

Quem conta um conto Cinco histórias pitorescas sob o olhar de juízes federais que mostram diferentes aspectos do cotidiano da magistratura


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Produzido a partir de variedades de azeitonas, caracteriza-se pelo perfeito equilíbrio de finos toques de ervas frescas e de frutas, deixando na boca um agradável bouquet de amêndoas.

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Produzido a partir de variedade de azeitona de origem espanhola, apresenta equilíbrio entre os toques picantes e amargos presentes em seu sabor frutado. Seu gosto, ao fundo, é picante, intenso e profundo. É recomendado para carnes vermelhas e vegetais verdes, além de combinar muito bem com saladas e guisados.

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Produzido a partir de variedade de azeitona de origem italiana, caracteriza-se pelo agradável aroma de frutas frescas e ervas recém-cortadas, que remetem à fragrância da rúcula. A intensidade média e o sabor frutado proporcionam um gosto limpo, com agradável frescor amargo ao final. Seu uso é recomendado em todo tipo de massa, pescados e mariscos.

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Produzido a partir de variedade de azeitona de origem espanhola, apresenta um aroma fresco de maçãs verdes, com notas de alcachofra. Com adstringência brilhante e pura, possui agradável sabor de amêndoas, com excelente combinação de frutas frescas e sensações de amargo e picante bem balanceadas. É recomendado em todo tipo de carnes brancas, saladas e vegetais salteados.



expediente

Revista de Cultura Ajufe - 10ª Edição

Diretoria da Ajufe • Biênio 2014/2016

Presidente Antônio César Bochenek

Vice-Presidente da 1ª Região: Candice Lavocat Galvão Jobim Vice-Presidente da 2ª Região: Eduardo André Brandão de Brito Fernandes Vice-Presidente da 3ª Região: Fernando Marcelo Mendes Vice-Presidente da 4ª Região: Rodrigo Machado Coutinho Vice-Presidente da 5ª Região: André Luís Maia Tobias Granja

Diretoria Secretário-Geral: Roberto Carvalho Veloso Primeira secretária: Luciana Ortiz Tavares Costa Zanoni Tesoureiro: Alexandre Ferreira Infante Vieira Diretor da Revista: Paulo César Villela Souto Lopes Rodrigues Diretor Cultural: Marcel Citro de Azevedo Diretor da Revista: Juiz Federal Paulo César Villela Souto Lopes Rodrigues Coordenação geral: Telmo Fadul Colaboradores desta edição: Augusto Dauster, Andréia Levi, Jéssica Eufrásio, Mírian Silva, Pedro Lacerda e Alessandro Mendes (Azimute Comunicação). Jornalista responsável: Iara Vidal (Azimute Comunicação) Projeto gráfico: Eye Design Diagramação: Supernova Design Ilustrações: Caio Oishi Foto da Capa: Bernardo Carneiro (Salaspils Memorial/Riga - Letônia)

Diretora Social: Maria Divina Vitória Diretora de Relações Internacionais: Raquel Coelho Dal Rio Silveira Diretor de Assuntos Legislativos: José Marcos Lunardelli Diretor de Relações Institucionais: André Prado de Vasconcelos Diretor de Assuntos Jurídicos: José Maximiliano Machado Cavalcanti Diretor de Esportes: Murilo Brião da Silva Diretora de Assuntos de Interesses dos Aposentados: Marianina Galante Diretora de Comunicação: Marcelle Ragazoni Carvalho Diretor Administrativo: Frederico José Pinto de Azevedo

Ajufe • Associação dos Juízes Federais do Brasil Setor Hoteleiro Sul Quadra 6 Bloco E Conjunto A Sala 1305 Brasil 21 - Ed. Business Center Park CEP 70322-915 Tel.: (61) 3321-8482 | Fax.: (61) 3224-7361 www.ajufe.org.br

Diretora de Tecnologia da Informação: Cristiane Conde Chmatalik Coordenadora de Comissões: Clara da Mota Santos Pimenta Alves Diretor de Prerrogativas: Helder Teixeira de Oliveira Suplente: Sérgio Murilo Wanderley Queiroga Suplente: Leonardo Vietri Alves de Godoi Suplente: Roberto Fernandes Junior

Os textos assinados são de responsabilidade dos autores e não refletem, necessariamente, a opinião da revista. É proibida a reprodução total ou parcial dos textos, fotos e ilustrações sem prévia autorização.

Conselho Fiscal Membro do Conselho Fiscal: Márcia Vogel Vidal de Oliveira

Revista não destinada à venda. Distribuição realizada pela Ajufe.

Membro do Conselho Fiscal: Alessandro Diaféria Membro do Conselho Fiscal: Carlos Felipe Komorowski Membro do Conselho Fiscal (Suplente): Jaílsom Leandro de Sousa

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Palavra do presidente

M

eus amigos, é com verdadeiro deleite que lhes entrego em mãos o número 10 da Revista de Cultura Ajufe. Belíssimo compêndio de emoções textualizadas e desenhadas que revelam o que é o magistrado para além da toga e dos tribunais. Suas habilidades superam o manejo de leis e testemunhos? É claro que sua aspiração principal é “fazer justiça”. Entretanto, há aqueles que também querem “fazer beleza”. A última frase parece soar estranha. Mas, pergunto eu: qual maneira foi dada aos homens para “fazer beleza”? A reposta é simples, óbvia até: a arte. “Juízes artistas” é o que lhes apresento. “Artistas” porque são produtores de contos, crônicas, poesias, fotografias, ilustrações – obras humanas capazes de provocar aquilo que vulgarmente chamamos de prazer estético. “Juízes” porque, mesmo quando envolvidos em atividades que nada lembram a rotina dos tribunais, jamais perdem aquele olhar oblíquo de quem vive a vida a reparar (e a sancionar ou absolver) os outros. É claro que nem todos os textos e imagens desta Revista de Cultura versam sobre “situações jurídicas” (aproveitando o brilhante conceito de Marcos Mairton), todavia, o julgador nato fica patente em cada linha de escrita, em cada traço de desenho e em cada click de fotografia dispostos nas próximas páginas. Em “Senhas e Sonhos”, o primeiro dos causos, essa lógica aparece invertida, estando o magistrado na posição de julgado. Imaginando-se “morto”, defronte São Pedro, Antônio Francisco Pereira não pode entrar no céu porque desconhece a senha. Estupefação que cresce na medida em que lhe adentra o devaneio a bandeiriana “Irene preta” – provinda de um tempo em que se entrava e se saía de qualquer lugar (sites não havia) sem “pedir licença”.

Marcos Mairton, em “Carta precatória, desacato, resistência e a versão do acusado”, também faz referência à era pré-internet, quando o contato entre deprecante e deprecado se dava apenas via missivas. Trata-se de “Conto jurídico” autodefinido, que dá ao leitor a dimensão idílica da vida de qualquer magistrado: ouvir uma boa história. Há também os milagres do ofício, que, na pena de Marcelo Dolzany, ganham um caráter irônico-fabular. Foi assim no caso do suposto doente que, mediante a perspectiva de obter um benefício do INSS, esquece-se das dores nas costas que o faziam corcunda, para, garboso, caminhar rumo ao bem logrado futuro de inválido segurado. E por que não o terror, ainda que sob bom humor? Basta ler “Retrovisor fúnebre” de Carlos Geraldo Teixeira, para que sejamos tomados por um sentimento duplo: o riso e o medo diante da morte e dos modos distintos pelos quais ela nos toma. Também podemos falar sobre o amor, suas lascividades e as estranhas uniões que promove. Ou alguém costuma vislumbrar uma magistrada – de nobre estirpe – dando-se a festejos mundanos na companhia de um pândego de botequim barato? Edilson Pereira Nobre Júnior apresenta “Carícia essencial”. E como não só de arte viverá o homem, temos as contribuições de B. G. da Costa Fontoura, Vladimir Passos Freitas e Marcel Citro – este, diretor de Cultura da Ajufe. Ensaios muito saborosos, que cativam o acadêmico que há em nós. Por fim, saudemos as duas Raquéis desta edição: a Chiarelli e a Domingues do Amaral – que, além do prenome, compartilham a paixão pelas duas mais sublimes formas de evasão do espírito humano: a música e a poesia. Elas nos ensinam que quando não mais cabemos em nós, nos extravasamos em verso e acorde. Rogo que aproveitem este derramamento.

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FOTO: BERNARDO CARNEIRO

Bernardo Carneiro / Street Art - Londres


sumário

Revista

AJUFE

de Cultura 8

Quem conta um conto Conto – Antônio Francisco Pereira Marcos Mairton Marcelo Dolzany da Costa Carlos Geraldo Teixeira Edilson Pereira Nobre Júnior

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Academia

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Ponto de vista – Entrevista com o ministro do STJ

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Academia

Primeiro encontro nacional da Ajufe – Vladmir Passos Freitas

Napoleão Nunes Maia Filho

Artigo – B. G. da Costa Fontoura Artigo – Raquel Chiarelli Artigo – Marcel Citro

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Inspiração poética Poesia – Raquel Domingues do Amaral

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Cliques pelo mundo Fotos – Bernardo Carneiro, Marcelo de Nardi e Marcelle Carvalho

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quem conta um conto

Senhas e sonhos Antônio Francisco Pereira Juiz federal aposentado

Quando eu vim ao mundo, o nome das pessoas é que abria as portas. Muitas vezes bastava o apelido, com um bom dia, uma boa tarde ou mesmo um abraço, se as portas fossem de um amigo ou vizinho. De-

– Ah! O famoso jeitinho brasileiro, hein? Igual ao outro barbudo, que não viu nada, não sabia de nada, nem a senha, e queria entrar assim mesmo. Não deixei. Nunca antes na história do céu... pois, para acompanhar o nome, nos deram o CPF, chave para qualquer movimento ou operação. Passou a funcionar como uma segunda alma, sem a qual não somos ninguém fora de casa. E aí, na esteira do CPF, vieram as senhas. Dos bancos, do computador, do telefone, do elevador, da mala e até do papagaio. Um caminhão de senhas e códigos, hoje exigidos para qualquer passo, no mundo real ou virtual. Um “abre-te, sésamo” generalizado, sem o qual você

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regride à Idade das Pedras sem poder entrar nas cavernas. Tudo muito lógico: isso é o progresso. É a tecnologia a serviço da segurança. Mas o que dizer quando se exige senha até para o sanitário? Pois é, certos estabelecimentos estão fazendo isso. Sem uma consumação mínima in loco, ninguém consegue o “abre-te banheiro”. Se você entra no recinto já em estado de necessidade, você dança, esperneia, faz nas calças, mas aquela portinha salvadora lá no fundo não se abrirá nem que você lhe atire uma bomba. Então, daqui pra frente, melhor sair de casa já de fraldão. Aí, eu fico pensando (aposentado tem muito tempo pra isso): e se a moda já passou para o além-túmulo? Depois de um exaustivo Juízo Final, que é uma espécie de vestibular para se entrar no céu, você dá de cara com São Pedro, barbas brancas, cajado na mão e voz tonitruante: – Senha, por favor! – Desculpe, Santo Guardião (você resistiu ao impulso de tentar alguma intimidade, chamá-lo de Pedroca, perguntar se ele já pescou em Três Marias), desculpe, mas Vossa Santida-


de há de entender...eu morri mais velho (eu e o Niemeyer), memória fraca, mal de Alzheimer, enfim, esqueci a senha. E ele, impassível: – Você tem direito a três tentativas. Se falhar, vai para o purgatório fazer o recadastramento, vai enfrentar uma fila que já deu mil voltas na Via Láctea. Então você tenta uma carteirada ou insinua uma certa familiaridade: – Mas o senhor não está me reconhecendo? Eu sou o Toninho, de Queluzito, filho do Toniquinho e da Conceição. Nada acontece. Aí você apela, dá o golpe de misericórdia: – Eu sou o avô do Bernardo!!!

– Ah! O famoso jeitinho brasileiro, hein? Igual ao outro barbudo, que não viu nada, não sabia de nada, nem a senha, e queria entrar assim mesmo. Não deixei. Nunca antes na história do céu... Nesse momento aproxima-se uma preta sorridente e diz: – Licença, meu branco. E São Pedro, bonachão: – Entra, Irene. Você não precisa pedir licença. Depois tenta explicar, meio sem jeito: – É a protegida do Manuel Bandeira. Se eu barrar a moça, perco o emprego.

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quem conta um conto

Carta precatória, desacato, resistência e a versão do acusado (*)

Marcos Mairton Juiz federal

Em linhas gerais, carta precatória é uma ferramenta processual por meio da qual um juiz faz um pedido a outro. Por exemplo, ouvir uma testemunha que mora em outra comarca.

À medida que a narrativa se desenvolvia, o acusado olhava fixamente para o centro da mesa de audiência, como se houvesse ali um monitor de vídeo, onde os acontecimentos eram exibidos. O juiz (chamado deprecante) envia a carta ao outro juiz (chamado deprecado), pedindo que este tome o depoimento. Atendido o pedido, o termo ou a gravação das declarações do depoente são remetidos ao juízo de origem para serem anexados aos autos do processo. Com o avanço da tecnologia, as cartas precatórias vêm caindo em desuso. No caso

de depoimentos de testemunhas e interrogatórios de acusados, a ampla maioria dos juízes tem preferido o sistema de videoconferência, regulado no Código de Processo Penal, a partir de 2009, e incentivado pelo Conselho Nacional de Justiça, a partir de 2010. Apesar dessa modernização, as cartas precatórias ainda resistem. Foi em cumprimento a uma delas que, atendendo ao pedido do juiz de uma Vara Federal do interior do Paraná, realizei, em Fortaleza, o interrogatório de um homem processado criminalmente naquele estado. Foi assim que tomei conhecimento do caso aqui tratado. O acusado era cearense. Depois de haver morado em algumas cidades da região sul, tinha voltado recentemente ao Ceará. Na época dos fatos tinha cinquenta anos, mas no dia da audiência já estava com cinquenta e dois. A avançada calvície e a barriga um tanto saliente davam a impressão de ser mais velho. A vítima, um oficial de justiça, teria se deslocado à residência do acusado para o

(*) Conto jurídico: Classifico como jurídicos os contos cujo núcleo da narrativa aborda questões relacionadas ao Direito e, além disso, apresentam ou explicam ao leitor não versado na Ciência Jurídica o significado de institutos, termos e expressões utilizados por juristas.

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quem conta um conto

citar em uma ação de cobrança de tributos federais – em linguagem jurídica, uma execução fiscal. Mas a visita do servidor teria despertado no réu duas formas de agressividade. Moral, porque teria chamado o oficial de justiça de “cachorro” e de “filho de puta”. Física, porque teria proferido os impropérios no mesmo instante em que empunhava um facão, chegando a afirmar que iria matar o meirinho. O relato de um vizinho noticiava que o homem teria saído portão afora com o instrumento perfuro-cortante em riste. Entretanto, não teria chegado a haver risco real para o oficial de justiça, que havia se evadido em desabalada carreira, antes que o acusado se desvencilhasse do portão da própria casa.

...o rapaz da Justiça queria que assinasse um papel do juiz. Eu desci e fui no rumo do portão, que era gradeado. Dava pra gente ver quem passava na rua. Fossem tais atos praticados contra uma pessoa do povo, seu enquadramento certamente seguiria os artigos 140 e 147 do Código Penal, ou seja, injúria e ameaça, mas, em se tratando de oficial de justiça no cumprimento do seu dever, pareceu-me adequada a tipificação nos artigos 331 (Desacato: desacatar funcionário público no exercício da função ou em razão dele) e 329 (Resistência: opor-se à execução de ato legal, mediante violência ou ameaça a funcionário competente para executá-lo ou a quem lhe esteja prestando auxílio). Iniciada a audiência, fiz pausadamente a leitura da denúncia, com o deliberado intuito de observar as reações que o réu teria ao ouvir as acusações que lhe

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eram imputadas. A linguagem corporal dos réus sempre me interessa. À medida que a narrativa se desenvolvia, o acusado olhava fixamente para o centro da mesa de audiência, como se houvesse ali um monitor de vídeo, onde os acontecimentos eram exibidos. De vez em quando mexia um pouco a cabeça negativamente ou apoiava o queixo em uma das mãos. Terminada a leitura, e cientificado o réu do seu direito constitucional de permanecer em silêncio, fiz a pergunta cujo peso só os réus conhecem: – É verdadeira a acusação? – Não, excelência. Não é verdade, não – respondeu ele, com segurança e até serenidade. – Então, o senhor não reconhece ter praticado esses crimes? – Reconheço não, excelência. – Se é assim, a qual razão o senhor atribui o fato de estar sendo acusado? Ou seja, se os fatos descritos na denúncia não aconteceram, o senhor está sendo acusado por qual motivo? – Doutor, aconteceu… Mas foi diferente… Eu posso contar pro senhor como foi tudo? – Claro! O homem tomou fôlego, como quem se prepara para contar uma história longa, e começou falando pausado: – Pois foi o seguinte, excelência. Eu tinha mesmo uma conta com a Receita Federal, e sabia que a qualquer hora ia ser executado. Isso eu não nego. Acontece que, no dia em que o oficial de justiça foi lá em casa, ele chegou bem na hora que eu tava podando umas plantas. Minha casa ficava em um terreno grande e tinha umas árvores lá. A casa era recuada, ficava quase uns trinta metros pra dentro do terreno. Eu tinha subido numa escada, de pés descalços, e tava com o facão na mão, cortando uns galhos, quando a moça que trabalhava pra mim me chamou, dizendo que o rapaz da Justiça queria que assinasse um papel do juiz. Eu desci e fui no rumo do portão, que era gradeado. Dava pra gente ver quem passava na rua. E da rua dava pra ver lá


dentro também, isso é lógico... Eu não vou negar pro senhor, doutor, que eu não gostei quando ela me chamou, porque eu tava no meio do serviço, e a escada balançava

– Foi, excelência! Eu disse isso com o cachorro! E, eu digo pro senhor, que, nessa hora, eu até levantei o facão, como se eu fosse dar nele. Aí o rapaz, que

– Eu acho que sim, né, doutor? - concordou, voltando à voz baixa e pausada do começo - Porque, depois, pensando bem, eu entendi que o rapaz tinha razão de se assustar mesmo… muito, tanto pra subir como pra descer. Mas, eu só tive raiva mesmo, doutor, foi quando eu pisei… Doutor, eu criava um cachorro lá, um cachorro grande, mas que não servia pra nada. Qualquer desconhecido que chegasse, ele ia logo balançando o rabo. O bicho só fazia muito era cavar buraco no chão. Cavava cada buraco que cabia uma pessoa dentro… Pois, doutor, do jeito que eu tava indo, de pés descalços, já nervoso por causa da escada mole e desse papel da Justiça pra assinar… Doutor, eu atolei o pé numa ruma de bosta desse cachorro, doutor… Desculpe a má palavra, doutor, mas aquilo é um exagero, um cachorro dar uma cagada daquelas, que o meu pé afundou todinho e o mau cheiro subiu logo… Nessa hora, doutor, eu olhei lá pro portão, e o cachorro tava lá, com aquela cara de safado, como quem tivesse rindo de mim, porque eu pisei na bosta dele!... Foi aí, doutor, que eu gritei “Cachorro, fela da puta! Se eu te pegar, eu te mato!”. Eu lembro até que eu quis apressar o passo no rumo do cachorro, mas escorreguei na bosta. Quase que eu caio. Aí foi que eu tive raiva mesmo, e ainda disse “Fica aí, fela da puta, pra ver se eu não te lasco em dois!”. A essa altura, a fala mansa e pausada do começo já havia sido substituída por um timbre alto, porém, sem fôlego, com inspirações curtas e fora de ritmo. – O senhor disse isso com o seu cachorro? – interrompi, forçando uma pausa, na tentativa de que ele voltasse a respirar entre as frases.

tava do lado de fora do portão, o oficial de justiça, deve ter pensado que era com ele, e correu. Eu vi ele correr, e ainda tentei correr atrás, mas foi pra tentar explicar essa situação. Só que, eu não sei se o senhor sabe, correr com merda entre os dedos dos pés é um atraso danado. Quando eu consegui sair na rua, ele já ia longe... – O medo, certamente, fez com que ele corresse muito também, não? – Eu acho que sim, né, doutor? - concordou, voltando à voz baixa e pausada do começo - Porque, depois, pensando bem, eu entendi que o rapaz tinha razão de se assustar mesmo… Mas, eu sei, dentro do meu coração, que eu não disse aquilo com ele… – E nem tinha intenção de agredir o rapaz com o facão?... – Deus me livre, doutor... E o interrogatório ficou mais ou menos nisso. Eu e o procurador da República ainda fizemos algumas perguntas, mas foram sobre detalhes que pouco ou nada acrescentam à história que hoje me volta à memória. Se a versão do acusado era verdadeira ou falsa? Não sei. Acho que nunca saberei. Depois de tudo assinado e autuado, mandei remeter a carta precatória de volta para o colega do Paraná. Caberia a ele decidir se a vítima das agressões verbais e das ameaças do acusado era mesmo o oficial de justiça ou o cachorro.

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quem conta um conto

O senhor aceita uma fruta? Marcelo Dolzany da Costa Juiz federal

Voltar a trabalhar em Belo Horizonte depois de quatro anos na praia me trouxe a grande experiência de aproximação com um lado pouco conhecido da rotina dos juízes que costumeiramente se enfurnam nos processos e caem na tentação de vislumbrar teses quando à sua frente desfilam traumas. Passei um ano atuando no Juizado Especial Federal. Alguns colegas, felizmente raros, torcem o nariz quando lhes surge a oportunidade de atuar na solução de causas consideradas de “pequeno valor” monetário, mas seguramente ricas em crescimento no aprendizado da vida. Comigo foi diferente. Marcante, corrijo. Tive dias felizes por lá. Felizes porque divertidos no melhor sentido da palavra. Por sinal, sou muito feliz com a carreira que escolhi. Isso dá todo o sentido à advertência do sábio Rubem Alves: “Na profissão, além de amar tem de saber. E o saber leva tempo pra crescer”.

...Era fácil reconhecer os últimos: o olhar era invariavelmente deprimido e se perdia nalgum ponto na monotonia da parede branca. 14 Revista de Cultura Ajufe

Era assustador o número de processos para cuidar. Cobranças de todos os lados. Corregedoria, ouvidoria, CNJ, todos se revezavam nos ofícios de pedido de explicações pela demora. Pensei, então, que o tempo gasto com as respostas poderia ser trocado pelo atendimento pessoal, tudo olho no olho. Passei a reservar uma hora de todas as tardes nas sextas-feiras para atender a parte, especialmente quando esta vinha pedir prioridade no julgamento ou por qualquer outra reclamação que ela tivesse a respeito do nosso trabalho. Poucos minutos antes das três horas e todas as cadeiras do corredor já estavam ocupadas. Misturavam-se viúvas, pensionistas e quase sempre dois ou três segurados excluídos do auxílio-doença ou da aposentadoria por incapacidade. Era fácil reconhecer os últimos: o olhar era invariavelmente deprimido e se perdia nalgum ponto na monotonia da parede branca. Saía do gabinete e ia até a fila de cadeiras: — Imagino que seja o seu Zé Rodrigues, lá de São Domingos do Prata, estou certo? – era a minha senha para afastar logo de início a famigerada formalidade que as pessoas simples temem.


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quem conta um conto

Ele entraria, contaria um pouco de sua história, falaria de sua angústia em receber o benefício. Eu então lhe falaria alguma coisa sobre o conteúdo do processo, sempre com o cuidado de não arriscar a imparcialidade nem adiantar qualquer coisa do que estava pensando a respeito da solução da causa. — Já estou estudando o seu processo e tenho a certeza de que daqui a duas semanas já teremos uma sentença no balcão à sua espera. Está bem assim para o senhor? O visitante responderia com o brilho de esperança dos olhos e um inevitável “muito obrigado, doutor, Deus o abençoe”. Então apertaríamos as mãos e nos levantaríamos: a visita chegara ao fim. Eu o acompanharia até o corredor e traria o próximo da lista.

Nem terminei a frase e lá estava o seu Zé Luís com a maior disposição do mundo, encurvando-se para catar a papelada do chão numa presteza de dar inveja a qualquer gari depois do desfile de escola de samba. Essa rotina era o alívio de uma semana cheia de audiências e do trabalho repetitivo que caracteriza muitas causas previdenciárias. Confesso que o dia era propositadamente adequado como a recompensa da semana cansativa, o momento de trégua no campo de batalha que era o ambiente dos juizados. Uma dessas tardes trouxe o seu Zé Luís. Comerciário da capital, ele se queixava do corte de seu benefício. O perito do INSS se convencera de que ele estava apto para voltar ao trabalho. Inconformado, pediu no juizado nova perícia e aguardava a sentença havia alguns meses. Vestia-se modestamente e se ergueu da cadeira com aparente dificuldade. Não se demorou a me fixar com o cenho. — Vamos entrar, seu Zé Luís, vamos conversar sobre o seu processo! – convidei-o, pegando pelo braço. Ele, contudo, não acompanhava meu passo, arrastava os pés e

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se apoiava na parede do corredor. Se eu não o atendesse logo, ele desmaiaria, pensei. — O senhor não imagina o que eu tenho sofrido, doutor – veio o resmungo, sincronizado com um suposto espasmo que lhe percorria as costas. — Não se preocupe, seu Zé Luís, vamos devagar. Isso, assim, com calma, devagar, fique tranquilo. Ele fechava ainda mais a carranca e continuava com o passo lento e arrastado até entrarmos no gabinete. Sentamo-nos um de frente ao outro nas cadeiras de interlocutor. Ele passou a detalhar que já não suportava as dores nas costas, falava de perseguição por parte do perito do INSS e que depositava sua última esperança nas barras do juizado. Em contraste com aquele moribundo que estava à minha frente estava o laudo do perito judicial. O ortopedista me assinalava dias antes a incerteza da alegada incapacidade do segurado. Difícil então contestar a palavra técnica pelo que meus olhos começavam a testemunhar ao vivo. O andar arrastado e os trejeitos me encaminhavam rumo à saída da dúvida para onde o laudo me levara. Talvez fosse a oportunidade única para confirmar ou refutar o que me dizia o papel. Resolvi arriscar. Sem que ele percebesse, fingi escorregar das mãos o leve calhamaço que documentava o aparente infortúnio de meu visitante. Simulando não me importar com a papelada caída, comecei a conversar sobre os problemas de sempre que os juízes costumam relatar aos advogados que pedem a prioridade de julgamento. — O senhor sabe como estamos cheios de processos, muitas audiências, poucos servidores... Nem terminei a frase e lá estava o seu Zé Luís com a maior disposição do mundo, encurvando-se para catar a papelada do chão numa presteza de dar inveja a qualquer gari depois do desfile de escola de samba. Aquilo não era comportamento de quem estava sofrendo dores e minutos antes arrastava os pés pelo corredor! — Doutor, eu vim aqui porque eu confio que o senhor vai fazer justiça, pois agora o senhor sabe da minha situação e com certeza vai me aposentar – foi a primeira frase dele quando terminei de explicar o motivo da demora dos julgamentos. — Não se preocupe, seu Zé Luís. A causa está em boas mãos. Já li rapidamente o processo e acho que estou chegando a uma conclusão para resolver seu problema.


A frase deve ter soado como música, pois o rosto carrancudo imediatamente se transmudava. — Fique tranquilo, em dez dias venha até o balcão pedir cópia da sentença, julgarei seu processo até a próxima sexta-feira – disse a frase já me levantando para oferecer-lhe apoio, mas desta vez ele recusou. Ao deixá-lo na porta, ele já andava a passos firmes e postura ereta. Sua voz era forte como um trovão. Fiquei rindo sozinho. Por um momento, me senti como santo milagroso. A simples promessa da sentença foi o suficiente para o tal incapacitado curvar-se ao chão sem gemer e sair a passo serelepe. Bendita cura! II Juizado faz milagres – e também cria paradoxos. Dias depois, enquanto assinava pilhas de despachos na secretaria, flagrei um trecho de conversa entre um segurado e a servidora que agendava as perícias. “Seu Clóvis? Aqui é a Geovana, do Juizado Especial... É sobre a perícia que o senhor fez na semana passada com o ortopedista, está lembrado?” Do outro lado da linha um coração deve ter disparado em expectativa. — Pois é, eu estou lhe telefonando para lhe dar uma ótima notícia. O senhor foi considerado in-ca-paz para o trabalho! O aflito coração então agradeceria: Bendito seja Deus, estou inválido! Não resisti. Desta vez o riso não foi interior, mas todos ali gargalhamos com a frase. A que ponto tínhamos chegado: a notícia ruim era estar bem de saúde. Felicidade era ser inválido! III A redenção, finalmente. Talvez por desconhecerem que é na leitura e na escrita do silêncio do gabinete que as difíceis decisões são tomadas, muitos leigos imaginam que as audiências são o lado mais trabalhoso na vida de um juiz. Para mim, audiências são o grande momento lúdico, a hora em que o papel se transforma em pessoas, a grande oportunidade para compreender os outros e até a si mesmo. Ah, lá vem de novo o Rubem Alves: “Consulte sempre um advogado: você tem

direitos. Consulte sempre um psicanalista: você tem avessos...”. Inesquecíveis. Assim eram as manhãs e tardes dos chamados mutirões de audiência. Pessoas simples, homens e mulheres que vinham de longe em busca da aposentadoria ou da pensão, que eles simplesmente chamavam de “binifíçu”. Geralmente vinham em grupo organizado por três ou quatro escritórios de advocacia, chegavam antes de o fórum abrir as portas e só voltavam para a roça ou vilarejo quando terminava a última audiência, já de noitinha. Nesse tempo todo, ficavam sentados lá fora ou conversando em rodas animadas. A maioria era idosa e parecia não ter nada o que comer na longa espera. Então, percebi que os velhinhos já chegavam pálidos de fome na sala de audiência. Imaginando que estaria salvando a humanidade com um simples gesto, abri a carteira e pedi ao segurança que fosse ao supermercado e comprasse frutas para oferecer durante as audiências. Meia hora depois, uma cesta com maçãs lustrosas adornava a mesa. Havia outra com caramelos que eram oferecidos aos velhinhos e a suas testemunhas assim que entravam na sala. — O senhor aceita uma fruta? – perguntava eu a cada um dos depoentes. A maioria dizia sim com brilho nos olhos. Numa dessas tardes, meu filho Thiago voltava das aulas e resolveu passar no fórum para ir de carona comigo. Curioso e estudante de Direito, aproveitou para assistir a algumas dessas audiências. Para ele não passou em branco o gesto inusitado do pai em insistir que os velhinhos comessem ali mesmo na audiência. — Vamos, seu Augusto, não se acanhe, coma, não se preocupe, já está pago! – devo ter dito a frase pelo menos vinte vezes naquela tarde ao povo da roça. Muitos aceitavam e respondiam que iriam comer depois. Pensei que a desculpa fosse por timidez, porém meu filho, mais tarde em casa, me corrigiu: — Pai, como é que você espera que eles comam na sua frente se a maioria nem dentes tem? Imagina só: os velhinhos com a dentadura grudada de caramelo!... Parece que não tem noção! Nos dias seguintes mandei comprar só pão de queijo e nada mais. Bem macio!

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quem conta um conto

Retrovisor fúnebre Carlos Geraldo Teixeira Juiz federal

“Gerardo” é uma pessoa simples, muito inteligente, esperto, solidário, não deixa “companheiro na mão”. Não enjeita parada, é pau pra toda obra. Mas também tem seus caprichos, entre eles, alardeia que não tem jeito pra coisas de hospital e evita velório. Se alguém fala em doença, muda de assunto. Se a prosa caminha pra defunto, diz logo : “ranquei, tá!”, “tô fora!” e, ao final de um longo

...Não via a hora de chegar à cidade, tomar um banho, ir jogar um truco e tomar uma cervejinha com os amigos, já que o dia de trabalho tinha começado muito cedo.. sorriso maroto que aparece após uma breve careta misturada com movimentos ligeiros do rosto expressando negação, vai logo dizendo: “vamo mudá de assunto” e, numa esperteza de dar inveja, engata a prosa para outro rumo, de preferência engraçado. Quase sempre a mudança vem acompanhada de uma talagada da “marvada” cachacinha.

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E com uma labuta muito intensa, a vida não poupou “Gerardo” de uns acontecimentos que ele peleja pra esquecer, mas que um ou outro amigo, de vez em quando, acaba lembrando. “Gerardo” não nega, às vezes, corrige um ou outro detalhe, mas o que gostaria mesmo era de esquecer essa passagem. Certa feita, “Gerardo” vinha da fazenda pra cidade. Saiu do “Mimoso”, rumo à sua casa da cidade em Arcos. Era por volta das cinco da tarde, como fazia quase toda quinta-feira. Mês de agosto, tudo muito seco, fumava seu “Hollywood” com aquela perícia de dar inveja, pois conseguia chegar ao final do cigarro com apenas duas ou três retiradas da boca, era fumaça para todos os lados, saía do canto da boca e do nariz. Categoria não faltava, gabava-se ao comentar seu jeito de pitar. Escutava no toca-fitas do carro músicas do cantor Gilliard. Coisa de cinema, como se dizia em Arcos. Não via a hora de chegar à cidade, tomar um banho, ir jogar um truco e tomar uma cervejinha com os amigos, já que o dia de trabalho tinha começado muito cedo. Estava na lida desde as cinco da manhã.


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quem conta um conto

Tão logo deixara suas terras, ao parar o carro pra abrir a porteira, viu seu amigo e vizinho: Toinzinho. Não podia passar de liso, uma conversa, por mínima que fosse, era do costume. Toinzinho estava passando por umas dificuldades, já tinha perdido o pai, e a mãe, Dona Titinha, já muito idosa, estava doente e acamada há mais de cinco anos. Todos na região comentavam o “pedaço” que o pessoal do Toinzinho estava passando. Comentava-se que não havia mais “ricurso” pra Dona Titinha e que ela não gostava da cidade e, mesmo doente, preferia passar o resto de sua vida na roça, mesmo sabendo da precariedade da assistência médica por aquelas bandas. Desde outras gerações, a família do amigo era vizinha e confrontante das terras do “Gerardo”, que vinham do seu bisavô. Ali tinha compadrios, amizades, muito companheirismo e camaradagem. A própria Dona Titinha era madrinha de um irmão mais moço do “Gerardo”. Ao perguntar como as coisas estavam se passando, Toinzinho, um pouco engasgado e com a fisionomia muito tristonha, foi falando pausadamente: – Uai, Gerardo, tamo levano cumo Deus qué. Num convém nem dianta recramá, né. – E sua mãe?, perguntou, em seguida, o “Gerardo”. – “Oh, como cê sabe, mãe num tá boa não, já faz tempo. Agora memo, deu uma piorada boa”. Em seguida, Toinzinho foi contando pro “Gerardo” sobre a situação, e que a irmã, Cida, tinha ido ao povoado do Capoeirão arranjar uma condução pra levar a mãe pro “Zarcos”. Cida tinha ido a pé. Toinzinho estava com semblante muito preocupado, demonstrava insegurança e até uma ansiedade, com medo de acontecer alguma coisa pior com a mãe, ainda mais depois que anoitecesse. Não possuía carro nem telefone. Tudo mais difícil naqueles tempos. “Gerardo” logo ficou um pouco vermelho, pois já pressentia que não podia deixar o amigo sem ajuda. O problema não era a ajuda em si, a questão era a delicadeza da situação, que envolvia uma pessoa amiga, querida, estimada, mas doente, ou pior, muito doente. “Gerardo”

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tinha visto Dona Titinha no último ano, já estava na cama e confessa que não tinha gostado do cenário. Ficou pensando na situação dela por uns tempos. Encabulou-se com o ciclo da vida. Às vezes, chegava a sugerir que a vida não devia ter doença nem morte. Pra que isso! Depois, se conformava, lembrando que foi Deus que fez o mundo e as coisas são assim mesmo. Não tinha esse ou aquele, pobre ou rico, letrado ou analfabeto, que passando ou não por doença, de um jeito ou de outro, mais cedo ou mais tarde, iria dessa vida pra outra. Ninguém tinha ficado pra semente. Nunca expressou certeza de que a outra vida fosse melhor. Na dúvida, bom mesmo era levar essa vida da melhor forma, arrematava “Gerardo”. Foi logo se prontificando a ajudar o amigo. Antes de ajustar como se dariam as coisas, a situação exigia que “Gerardo” fosse ver Dona Titinha. Qualquer um que conhecesse “Gerardo” diria que ele, ao entrar no curral, caminhar para varanda e a entrada da casa, estava como um boi entrando no brete para o abate. A vermelhidão aumentou, o pigarro ficou mais insistente e a cartela de cigarro zerou. Por sorte e como sempre, lembrava “Gerardo” que no porta-malas do carro sempre havia um pacote de “Hollywood” de reserva. Viu Dona Titinha. Infelizmente o quadro não podia ser pior. Uma tristeza tomou conta dele e praticamente emudeceu. Não tinha palavras para expressar a comoção. Foi logo dando um jeito de sair do quarto e arrumar forças para ajudar o amigo no que fosse preciso. A primeira sugestão foi levar Toinzinho e Dona Titinha para Arcos. Toizinho ponderou que a irmã Cida iria ficar mais preocupada e assustada se, ao retornar à casa, não encontrasse ninguém. Estavam sem esperança, mas queriam administrar a situação para que houvesse menos sofrimento para todos, afinal, não é fácil pra ninguém ver a mãe naquele estado. Veio a segunda sugestão do “Gerardo”. Levando em conta toda a história de amizade entre as famílias, não era hora de caprichos, o melhor era “Gerardo” criar coragem e, sozinho, levar a Dona Titinha para o hospital em Arcos.


Provavelmente, Cida voltaria do Capoeirão num táxi ou carro de um amigo. Toinzinho explicaria a situação para a irmã e os dois iriam para o hospital de Arcos. Lá, encontrariam com “Gerardo”. Dessa forma, adiantava-se o atendimento médico para a mãe, afinal, era isso que todos desejavam. Toinzinho pensou um pouco e acabou aceitando. Arrumou umas roupas, alguns documentos, os últimos exames; pegou as cartelas de remédios, colocou tudo numa pequena bolsa e entregou ao amigo. Fez pequeno comentário sobre as últimas recomendações médicas e, com a voz engasgada, olhos lacrimejantes, passou, com

Não se ouvia nada da parte de Dona Titinha. Nem uma resposta, nenhum resmungo ou lamento. ajuda de “Gerardo”, a carregar Dona Titinha e acomodá-la deitada no banco traseiro do carro, que nessa altura já estava estacionado bem próximo à varanda da casa. Um ajuste nos bancos, um travesseiro aqui, um lençol acolá, uma espuma por baixo das pernas, tudo com vistas a minimizar o desconforto e garantir que Dona Titinha não machucasse ou escorregasse do banco. A pequena estatura e o pouco peso ajudaram. Os cintos de segurança não tinham muita serventia e se apresentam inadequados naquele caso. “Gerardo” tomou um gole d’agua, trocou as últimas palavras com Toinzinho, deu uma ajeitada nas calças como se o cinto, de relance, tivesse afrouxado, assegurou que estivesse com as chaves do carro, conferiu o trancamento das portas e, buscando forças não se sabe lá onde, disse para ele mesmo e muito baixinho ao ligar

o carro: “gora num tem mais jeito, senão encarar a situação e só parar no hospital nos Zarcos, de preferência na maior toada pussíve”. A primeira metade do percurso da viagem foi em estrada de terra, com mata-burros ou porteiras. Tanto a situação externa como a interna não permitiam a velocidade que desejava. Coragem, atenção e devagar, parecia que alguém insistia em passar esses conselhos ao “Gerardo”. Para não deixar se abalar mais do que já estava, lembrou-se que o melhor seria ir conversando com Dona Titinha, ou melhor, tentar conversar, pois até aquele momento ainda não tinha escutado a voz dela. Não tinha nem certeza se havia o reconhecido. Mesmo desconcertado, puxou a prosa. Primeiro tentou falar da melhora do hospital, da chegada de novos recursos e de outros médicos, lembrou-a da recuperação de um conhecido em comum. Mas, por mais que “Gerardo” falasse, ele não ouvia nada. Tentou falar de coisas da roça, das festas religiosas, das comidas da Dona Titinha, da admiração que o pai do “Gerardo” e todos de sua família tinham por ela, mas nada de retorno. “Gerardo” esboçou aumentar o volume da voz e tudo continuou na mesma. Não se ouvia nada da parte de Dona Titinha. Nem uma resposta, nenhum resmungo ou lamento. A preocupação de Gerardo só aumentava. Só pensava em chegar ao hospital. Ainda na estrada de terra, e nas muitas vezes que tentou dar umas olhadelas para trás, pelo retrovisor interno que ajustara para ver ao máximo o banco traseiro, via Dona Titinha com os olhos abertos e fazendo movimentos com o queixo, parecidos aos de concordância, que “Gerardo” não estava bem certo se assim podia entendê-los, pois as condições da estrada provocavam alguns preocupantes solavancos. Com o cair da noite, a escuridão tomou conta do ambiente e, a partir de então, “Gerardo” começou a transitar em rodovia asfaltada. Mais uma vez convenceu-se de o melhor era se concentrar na direção, não acender a luz interna, tentar aumentar a velocidade para chegar mais depressa ao hospital.

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quem conta um conto

Chegando à cidade e buscando algum resquício, mínimo que fosse, de entusiasmo, falou mais alto com Dona Titinha, mesmo sabendo que o problema dela não era de ouvido: “ já chegamo nos Zarcos e daqui no hospital é um pulo, gurinha memo a senhora vai ser atendida e as coisas, se Deus quiser, vai melhorar. A senhora vai ficar boa, vai ver”. Mais uma vez, nenhuma resposta. Desconfiado e muito suado, “Gerardo” olhou, de relance, pelo retrovisor. Viu que Dona Titinha estava lá. Como se um vento passasse ligeiro em sua mente e dissesse: “Dona Titinha continua no banco como foi colocada. Continue firme “Gerardo”, já está chegando, você está fazendo uma bela ação, você vai conseguir, campeão!”. Quando o carro entrou na rua do hospital, como se recebesse uma compensação, “Gerardo” parou de suar, sentiu um grande alívio, verdadeiro estado de graça, sem comparação a qualquer das melhores situações que tivesse vivenciado nos últimos tempos. Aquela sensação foi uma maravilha, diria mais tarde. Rapidinho já estava parando na frente do hospital. Fora feita uma reforma recente na frente do prédio a permitir que o carro ou ambulância com enfermo parasse ao lado da porta de entrada. “Gerardo”, muito conhecido na cidade, antes mesmo de parar o carro, já notou que o enfermeiro o havia reconhecido. Imediatamente, aquele anjo já estava abrindo a porta traseira do carro, sem antes deixar de cumprimentar ligeiramente o “Gerardo”. Rapidamente e com o auxílio de uma maca, conduziu Dona Titinha para as dependências do hospital e para o atendimento médico. Considerando que Dona Titinha já estava em boas mãos, “Gerardo” foi tomar as providências na portaria. Apresentou a documentação, prestou as informações do quadro, adiantou tudo que estava ao seu alcance, deixou claro para a atendente de quem se tratava e que os filhos da enferma estariam pra chegar o mais breve possível. Prontificou-se a fazer algum pagamento se fosse necessário e pediu, de forma sempre muito simples

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e gentil - mas bem incisiva, que fizessem o que fosse preciso e ao alcance daquele hospital. Deixou claro sua disposição para acompanhar Dona Titinha para hospital de qualquer outra cidade, se fosse necessário e acaso os filhos não chegassem a tempo. Essas providências na portaria acabaram levando certo tempo e, quando finalizadas, considerando que os filhos ainda não tinham chegado ao hospital, “Gerardo”, notando que ainda tinha algo para fazer e completar o empreito, encorajou-se a entrar para conversar um pouco com o médico e tomar pé do diagnóstico. Naquela noite, estava de plantão um médico novato na cidade que, mesmo não conhecendo “Gerardo”, ao vê-lo passar no corredor, fez-lhe um sinal pedindo que fosse ao seu encontro. “Gerardo”, após breve cumprimento e explicar o que pôde ao doutor, principalmente de quem se tratava e que Dona Titinha não era sua parente, mas amiga e que filhos dela estavam para chegar, foi logo perguntando sobre a situação, se em Arcos tinha recurso ou se seria necessário o encaminhamento para outra cidade maior. O médico sem qualquer cerimônia foi logo dizendo: “infelizmente, não tem mais recurso, ela perdeu a vida”. “Gerardo”, muito assustado, perguntou: “Doutor, ela morreu agora?”. O médico, sem pestanejar, afirmou que ela já chegara morta ao hospital e que, muito provavelmente, já tivesse falecido havia mais ou menos 1 hora. “Gerardo” levou um baque, quase caiu. Ficou todo vermelho. O suor voltou e mais intensamente. A pressão arterial e os batimentos cardíacos dispararam. Menos mal que estava num hospital, consolava-se. Seus pensamentos estavam na viagem, na prosa sem resposta, nos olhos abertos e no movimento do queixo. Uma conclusão inevitável vinha à sua mente: ou a trouxe já falecida ou ela morreu durante a viagem. Qualquer uma das hipóteses não lhe agradava. Logo ele, que nem ia a velório, agora estava passando por aquela situação. Inacreditável. O melhor era esquecer tudo isso o mais rápido. Ajudaria


muito naquele momento se os filhos chegassem logo. Para “Gerardo”, era fim de linha, ele agora era quem precisava de ajuda. Tinha de se recompor. Ainda bem que, em seguida, chegaram Toinzinho e Cida. Sentiram muito, apesar de estarem esperando por aquela notícia a qualquer hora. Passados aqueles tristes e dolorosos momentos, a condução da situação passou para os filhos. Agradeceram muito a “Gerardo”, não tinha nada neste mundo que recompensasse aqueles favores. Pediram para que ele fosse para casa descansar. Já tinha ajudado muito. “Gerardo” queria ir para sua casa, mas não se via em condições de dirigir. Telefonou para seu irmão, contou parte do ocorrido e pediu para buscá-lo no hospital. Nunca tinha se visto tão desconcertado como naquela noite. Só pensava em esquecer aquela viagem. Nada de truco ou cerveja. Chegou acabrunhado em casa, mal cumprimentou sua esposa. Pouquíssima prosa, fugindo à regra, foi logo para a cama. Pediu a Deus para esquecer aquelas cenas, dormir e descansar um pouco. Dormiu muito mal naquela noite. No outro dia bem cedo, com o firme propósito de esquecer o ocorrido, prometeu não tocar naquele assunto, pediria ao irmão para fazer o mesmo. Iria fazer o que fosse preciso para

tirar aquelas cenas de sua cabeça. Decidiu não ir ao enterro. Pensou em vender o carro, mas ponderou a história e estima, tinha comprado zero quilômetro, logo desistiu da ideia. Decidiu trabalhar mais cedo, o serviço iria ajudar a esquecer tudo aquilo. Contrariado, entrou no automóvel, ligou o motor e, preparando para engatar marcha ré e tirar o carro da garagem, viu que tinha de ajustar o retrovisor interno. Antes de tocá-lo, pensou, pensou, acabou lembrando as razões que o tinham levado, no dia anterior, a alterar a posição daquele espelho e, sem coragem para fixar os olhos nele, tomou, imediatamente, outra decisão: arrancou-o e jogou no lixo. Daquele dia em diante, somente fez uso do espelho retrovisor externo, mesmo ao dirigir qualquer outro carro. Ficou sem ir à roça por quatro meses. Nunca mais voltou da roça sozinho e à noite. “Gerardo” tem uma imensa presença de espírito e jogo de cintura, lapidados também nas participações nos campeonatos de truco e de tosse, em que geralmente ganha os primeiros lugares. Dificilmente perde a linha com brincadeiras, mas depois desse episódio, os amigos não ousam perguntar se ele tem retrovisor para vender ou se já vem da roça sozinho.

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quem conta um conto

Carícia essencial Edilson Pereira Nobre Júnior Desembargador federal

Excetuada a forma humana, o mundo, ao tratar das pessoas, contemplou e continua a contemplar as mais diversas desigualdades. Seja no plano econômico, separando uma porção pequena de beneficiados duma multidão infinita de miseráveis, no da inteligência, repartindo-as dentre a escassez da genialidade e a constância da obtusidade, ou ainda por meio da divisão, mais agressiva e sensível dentre as mulheres, entre o feio e o belo. Pois bem. Numa humilde habitação nos subúrbios de Maceió, habitava dona Socorro Soares da Silva. Viúva havia um bom tempo, fazia-o juntamente com seu único rebento, Tenório Soares da Silva, para cuja educação vivia integralmente, desdobrando-se para o fim de potencializar o máximo possível, frente às inúmeras adversidades do cotidia-

Apesar de todo o zelo de sua mãe, nada em Tenório se desenvolvia para duramente vencer na vida. Estudar nem pensar no, o parco valor da pensão deixada por seu falecido esposo que, por vários anos, atuou como devotado professor da rede estadual de ensino. Apesar de todo o zelo de sua mãe, nada em Tenório se desenvolvia para duramente vencer na vida. Estudar nem pensar. A leitura, principalmente a de clássicos como Ma-

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chado de Assis e Victor Hugo, imensamente o entediava. A sua atração era pela música, sendo exímio na regência do sax. Embora não fizesse lá muito esforço para ascender socialmente, Tenório, pelo seu gosto, almejava uma vida fácil, com conforto, luxo e, sem dúvida, o domínio das companhias femininas. Pode-se dizer que Tenório, além da aparência na grafia, muito se aproximava de Teodoro, o amanuense do Ministério do Reino, personagem de Eça e que, apelidado como enguiço, tinha seus objetivos descritos na seguinte passagem de O Mandarim: “não que a minha louca alma jamais aspirasse a rodar pela Baixa em trem de Companhia, seguida de um coreto choutando; mas pungia-me de desejo de poder jantar no Hotel Central com champagne, apertar a mão mimosa de viscondessas e, pelo menos duas vezes por semana, adormecer, num êxtase mudo, sobre o seio fresco de Vênus”. Por enquanto, aos vinte e oito anos, nenhum progresso fizera. No alto de seu um metro e noventa de altura, a portar oitenta quilos de massa corporal, barba longa e malfeita, temente ao banho, e vestido sempre em trajes ripongas, Tenório se dividia entre a pândega noturna, ao tocar em bares e boates maceioenses, e o merecido descanso pela manhã inteira. Despertá-lo do repouso matinal, antes do meio-dia representava verdadeira agressão, merecendo o responsável os mais acres impropérios, ainda que fosse sua querida mamãe.


Na outra ponta da narrativa figura Rosa dos Anjos Botelho de Castro, jovem de importante família e, a despeito disso, aplicadíssima nos estudos. No entanto, Rosa dos Anjos, ou Rosinha, como é chamada na família e pelos amigos, não fora aquinhoada com os dotes da escultural beleza feminina. Duma magreza que não granjeava charme, o seu rosto, adornado por nariz aquilino, não a favorecia à inspiração dum Velásquez. Acima de tudo, sua voz gasguita traduzia sonoridade capaz de afastar a doce sensibilidade dos poetas. Graças à sua aplicação diuturna aos estudos, outro resultado não obteve senão brilhante aprovação em concurso para a magistratura, o que lhe garantia, para os padrões nordestinos, polpudo rendimento.

Porém, o sucesso profissional não lhe garantiu igual êxito no campo amoroso. A condição de magistrada, aliada ao fato de pertencer a uma família abastada, não transformou o quadro de ausência de admiradores que, de triste presença em sua juventude, também a acompanhava ao transpor o umbral da idade balzaquiana. A única oportunidade que lhe apareceu foi, já aos trinta e dois anos, a de noivar com o desembargador Zoroastro de Oliveira Diniz, famoso pelo apelido de Zoró pançudo que lhe proporcionava sua protuberância abdominal. Isso sem contar que se tratava de pessoa com diferença de idade de trinta anos. Essa perspectiva, é claro, tornava Rosinha muito angustiada e triste.

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quem conta um conto

Certo dia, ou melhor, em determinada noite, aconteceu algo capaz de alterar a rotina prevista para Rosinha. Juntamente com algumas amigas dos tempos de colégio, numa sexta-feira de lua, foi a um agito no Bar Brasil, curtir um pouco de música e paquerar, algo de que foi privada pela sua juventude devotada aos estudos. Lá, teve oportunidade de conhecer Tenório, cujo sax fazia o momento alto do show de MPB da banda “O que-

Ao ouvir a resposta, Tia Maricota ficou bastante desgostosa de sua sobrinha, chegando a excluí-la da condição de beneficiária de seu testamento. rubim sedutor”, percorrendo o melhor do repertório da bossa nova e do tropicalismo. Apresentada ao angelical músico, o amor à primeira vista provocou abrasador namoro, cujos beijos, no escurinho e nos intervalos dos shows, despertava a atenção dos presentes e maledicentes comentários da provinciana sociedade alagoana sobre o proceder duma juíza no esplendor de sua liberdade de julgar o modo como deveria entregar-se ao amor. Os comentários não tardaram a chegar a tia Maricota, ou melhor, à doutora. Maria Anunciada de Castro Martins, a mais antiga da plêiade dos procuradores do estado de Alagoas. Viúva sem filhos, após efêmero casamento com o falecido doutor Alcebíades Loureiro Martins, médico-cirurgião, tia Maricota, além do sucesso extraordinário como advogada, nada mais fez em sua vida a não ser dedicar-se à criação de Rosinha, tudo providenciando para que obtivesse sucesso em seu promissor futuro. Daí que, numa manhã de sábado, adornada pelo forte brilho do sol, tia Maricota se dirigiu à casa de

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Rosinha, na qual ainda residia com seus pais. Chegando às dez horas, teve de esperar até duas da tarde, a fim de que sua sobrinha se levantasse, pois na noite anterior frequentara mais uma agradável e agitada balada sob a animação dos metais da banda “O querubim sedutor”. Esse procedimento era incomum por parte de Rosinha, que, mesmo quando varava madrugadas estudando para o vestibular, ou para o ingresso na magistratura, nunca acordara além de nove horas da matina. Tranquila, Rosinha, vestida ainda com sensual roupa de dormir, cumprimentou a tia. Esta, porém, iniciou áspero diálogo: – Preciso com você ter conversa séria, Rosinha. Soube que andas namorando um rapaz de maus costumes, verdadeiro vagabundo, que vive por aí trajado como hippie. O que vamos explicar ao desembargador Zoroastro quando souber desse fato? Você precisa se importar mais com seu futuro. Com calma inalterada, Rosinha respondeu à sua bondosa tia: – Tia Maricota, você é que precisa conhecer mais a vida. Pois fique sabendo que para mim não importa o que meu namorado é. O que é o mais importante é a fricção! Ao ouvir a resposta, tia Maricota ficou bastante desgostosa de sua sobrinha, chegando a excluí-la da condição de beneficiária de seu testamento. A Zoró pançudo, outra solução não foi senão amargar o prazer de casar com Marina da Silva, sexagenária solteirona, com mais de trinta anos de serviço dedicados à imprensa oficial. Por sua vez, Rosinha descobriu o prazer de viver e que as aparências nada importam. Já Teodoro, embora não tenha conseguido o agradável, com o enlace sedutor adquiriu o útil para que pudesse custear, em parte de suas horas sempre vagas, sua vida de prazer e de indolência. Eis mais uma história na qual uma alma nascida para a virtude se perdeu por um equivocado amor.


Academia

O primeiro encontro nacional promovido pela Ajufe Vladimir Passos Freitas Desembargador aposentado

A Ajufe foi fundada em 20 de setembro de 1972, em Fortaleza, no Ceará. Na Ata de Fundação constam como sócios fundadores os juízes federais Jesus Costa Lima, Roberto de Queiroz (Ceará), Pedro da Rocha Accioli, Agnelo Nogueira Pereira da Silva (Alagoas), Heraldo Vidal Correia (Paraná), Vitor de Magalhães Júnior (Rio de Janeiro), José Cândido de Carvalho Filho (Bahia), Orlando Cavalcanti Neves, Artur Barbosa Maciel, Adauto José de Melo (Pernambuco), Ridalvo Costa, Genival Matias de Oliveira (Paraíba), Armindo Guedes da Silva (Rio Grande do Norte), Evandro Gueiros Leite, Elmar Campos, Aldir Guimarães Passarinho, Carlos Augusto Thibau Guimarães, Virgílio Gaudie Fleury, Américo Luz, Mário Mesquita Magalhães, Maria Rita Soares de Andrade, Eli Goraieb (Guanabara), Euclides Aguiar Reis (Minas Gerais), Péricles Luis Medeiros Prade (Santa Catarina) e João Gomes Martins Filho (São Paulo). Nenhum dos ministros do Tribunal Federal de Recursos compareceu. Pode ter sido por receio, eis que, no regime militar, uma associação poderia não ser bem vista, ou por não terem sido convidados, possibilitando aos magistrados de primeira instância maior liberdade de discussão dos temas propostos. Ao que tudo indica, a reunião foi mais de congraçamento do que de propostas. O perfil dos primeiros juízes federais era o de homens maduros, quase todos com mais de 40 anos, bem-sucedidos e, na sua maioria, com experiência política. O tema principal, certamente, foram os baixos vencimentos e as medidas para reverter a situação.

Cerimônia de abertura do Primeiro Encontro Nacional, São Paulo 12.11.1983. Faz uso da palavra o então desembargador Sydney Sanches, à época presidente da AMB, posteriormente ministro do Supremo Tribunal Federal.

Na ocasião, deliberou-se que o coordenador do evento, Jesus Costa Lima, seria o primeiro presidente, e Augusto Didier do Rego Maciel, do Distrito Federal, que por sinal não se achava presente, o vice-presidente. Os estatutos foram registrados em 14 de maio de 1974, no 4º Ofício de Registro de Títulos e Documentos de Pessoas Jurídicas de Brasília, sob nº 534, livro AF-2. Passaram os anos e a Justiça Federal continuava pequena em tamanho, mas grande em importância. Durante aqueles anos, em pleno período de regime militar, importantes ações eram julgadas pelos magistrados federais. Muitos exemplos poderiam ser cita-

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Academia

dos, mas, por todos, registra-se a Ação Declaratória proposta pelos filhos do jornalista Vladimir Herzog contra a União Federal na 7ª Vara Federal da Seção Judiciária de São Paulo. Os fatos: no dia 25 de outubro de 1975, 8 horas da manhã, o jornalista Vladimir Herzog, atendendo intimação, compareceu à sede do Departamento de Operações de Informações do Centro de Operações de Defesa Interna do II Exército, órgão conhecido como DOI/CODI, situado na Rua Tomás Car-

O então presidente era o juiz federal aposentado João Gomes Martins Filho, que foi titular da 7ª Vara Federal de São Paulo. Tinha experiência política, pois fora deputado federal e participou dos trabalhos da elaboração da Constituição Federal de 1946. Homem calmo, refinado, após a aposentadoria, fez da Ajufe a sua razão de viver. A vice-presidente era a juíza federal Maria Rita Soares de Andrade, sergipana nomeada pelo presidente Castelo Branco para exercer suas fun-

O perfil dos primeiros juízes federais era o de homens maduros, quase todos com mais de 40 anos, bem sucedidos, e, na sua maioria, com experiência política. valhal, 1.030, em São Paulo. Ao fim da tarde daquele dia, o Comando do II Exército fez divulgar uma nota, dando conta de que Vladimir Herzog, depois de confessar sua militância no Partido Comunista, foi encontrado, por volta das 16h, morto, tendo se enforcado com uma tira de pano. Aos 27 de outubro de 1978, o juiz federal Márcio José de Moraes proferiu sentença julgando a ação procedente para declarar a responsabilidade civil da ré. A sentença repercutiu em toda a imprensa nacional e em vários países, tendo sido a primeira a condenar a União pela prática de um fato decorrente de investigações políticas. A Justiça Federal crescia, ainda que vagarosamente. Em 1974, terminou o primeiro concurso, com a aprovação de apenas 18 candidatos. Em 1977, terminou o segundo (22 aprovados), em 1979, o terceiro (24 aprovados) e, em 1981, o quarto (21 aprovados). Em 1983, a Justiça Federal contava com cerca de 135 juízes federais na primeira instância e, nesse universo, decidiu a Ajufe realizar o seu primeiro encontro nacional.

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ções na Justiça Federal do Rio de Janeiro. Foi a primeira juíza federal do Brasil. Assim, depois de muitos preparativos, realizou-se, em São Paulo, no dia 12 de novembro de 1983, a abertura do primeiro encontro nacional de juízes federais. O evento era histórico, pois, pela primeira vez desde a reunião em que se deliberou fundar a Ajufe, reuniam-se os seus sócios para discutir as questões de interesse da classe. Compareci ao evento, devidamente autorizado pelo presidente do Tribunal Federal de Recursos, que deu total apoio para o sucesso da iniciativa. Não há ata formal com a lista dos presentes. Porém, a minha lembrança faz certa a presença dos ministros José Dantas e Jarbas Nobre, do TFR, dos juízes federais de São Paulo João Gomes Martins Filho, Cid Scartezzini, do casal Jorge e Ana Maria Scartezzini e de Sebastião de Oliveira Lima, Antonio Vital Ramos de Vasconcelos, Luis Rondon Teixeira de Magalhães, José Américo de Souza, Ana Maria Pimentel, José Kallás, Márcio José de Moraes, Homar Kais, Paulo Pimen-


Juízes federais presentes ao evento: da esquerda para a direita: Sílvio Dobrowolski, Henry B. Chalú Barbosa, Agustinho F. Dias da Silva, José Augusto Delgado, Paulo Pimentel Portugal, Ridalvo Costa, João Gomes Martins Filho (presidente da Ajufe), ministro Jarbas Nobre e Caio Plinio Barreto.

tel Portugal e Caio Plínio Barreto, bem como de juízes federais de outras Seções Judiciárias, como Sílvio Dobrowolski (CE), José Augusto Delgado (RN), Ridalvo Costa (PB), Pedro Accioli (AL), Maria Rita Leite Soares, Tânia Heine, Agostinho Fernandes Dias da Silva (RJ), Arnaldo Esteves de Lima e, João Batista Oliveira Rocha (MG), Vladimir Passos de Freitas (PR) e Osvaldo Moacir Alvarez (RS). O coquetel de abertura foi prestigiado pelos ministros José Dantas, então presidente do Tribunal Federal de Recursos, e Jarbas Nobre, ex-presidente da Corte, pelo desembargador Sydney Sanches, presidente da Associação dos Magistrados Brasileiros, e pelo professor José Carlos Dias, da Universidade de São Paulo, que anos mais tarde viria a ser ministro da Justiça. Na parte científica, foram apresentadas e discutidas teses. As discussões ocorreram no pequeno auditório da sede da Seção Judiciária, na Avenida Paulista, 1.682. As teses deviam ser apresentadas previamente e, se aprovadas, eram submetidas a discussão e votação.

Apresentei uma proposta no sentido de que, no Tribunal Federal de Recursos, fosse atribuído um percentual de vagas para juízes federais. Registro que, à época, o cargo de juiz federal era isolado, não havia carreira. Minha sugestão, evidentemente, foi aprovada por unanimidade, pois os interesses eram convergentes. A todos agradava a ideia de tornar-se ministro da Corte Federal. Durante o Congresso, o presidente João Gomes Martins Filho inaugurou um pequeno museu, com peças importantes da história da Justiça Federal. Era pequeno, mas interessante. Tinha sentenças da Justiça Federal, quando criada após a proclamação da República, aparelhos para editar notas falsas, armas apreendidas, bens apreendidos por contrabando. Todos os objetos estavam protegidos e etiquetados. Procurei-os quando assumi a presidência da Ajufe em 1994, sem sucesso. Ninguém sabia o paradeiro das peças daquela sala de memória. O lazer não foi esquecido no encontro. Houve um almoço no Jóquei Club e alguns fizeram suas apostas. Ninguém ficou rico e nem pobre, mas todos se divertiram bastante. O jantar de encerramento foi no restaurante do Edifício Terraço Itália, com muita alegria e confraternização. Lembro-me do ministro Pedro Acioli e de sua senhora dançarem, animados, twist sob o aplauso de todos os presentes. Após o primeiro encontro, outros tantos se sucederam. Belo Horizonte em 1984, Rio de Janeiro em 1985, Curitiba em 1986, e assim por diante, anos a fio, sendo o último, que foi o XXXI, na Praia do Forte, Bahia, de 5 a 8 de dezembro de 2014. Os encontros nacionais são o grande momento de confraternização, troca de experiências e tomada de posição nas lutas da classe. Por isso, ainda que se tornem diferentes com a passagem do tempo, continuam a ser prestigiados pelos magistrados federais. Aos organizadores do primeiro, há mais de 30 anos, o meu reconhecimento pela iniciativa pioneira.

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ponto de vista

A poesia pula do chão e cai do céu Entrevista com o ministro do Superior Tribunal de Justiça (STJ) Napoleão Nunes Maia Filho

Iara Vidal O ministro do Superior Tribunal de Justiça (STJ) Napoleão Nunes Maia Filho, 69, é autor de 12 livros de poesia*. Ele recebeu a Revista de Cultura da Ajufe em seu gabinete, em Brasília (DF), para uma entrevista exclusiva, na qual falou sobre a sua relação com os versos, a justiça, o sertão e o mar. Nascido em Limoeiro do Norte, município do sertão do Ceará a cerca de 200 quilômetros de Fortaleza, Napoleão Maia traz a poesia no sangue. É irmão dos também poetas Luciano Maia e Virgílio Maia, sendo, todos os três, membros da tradicional Academia Cearense de Letras.

De que forma a poesia entrou na vida do senhor? A poesia não entrou na minha vida. Ela é a minha vida.

Mas avisa que ele é o amador do trio, que os dois caçulas é quem têm os versos como profissão. Com fala pausada e olhar firme, tece seu vocabulário poético para mostrar que a poesia está “pulando do chão e caindo do céu”. Complementa o raciocínio ágil e enciclopédico com citações de belos poemas e canções. Um romântico homem sertanejo que revela a nostalgia do mar como fonte permanente de saudade e inspiração para seus versos. Alguns deles livres, outros na sublime e difícil forma de soneto. Delicie-se com esta conversa cheia de referências literárias e românticas. Boa leitura!

O senhor tem dois irmãos poetas, Luciano e Virgílio Maia. Poesia é um assunto de família? Eles são verdadeiros poetas. Eu sou um amador.

timento pode ser expresso de diversas maneiras, inclusive em uma forma metódica como o soneto; os poemas de quatro estrofes, quatro versos; ou ainda os poemas em 10 linhas chamado décima nordestina; ou ou versos heptasilábicos, de sete sílabas. Poesia não é forma, é sentimento; é percepção singular das coisas e da vida.

Mas até soneto o senhor escreve… É difícil escrever sonetos, uma forma aprimorada de poesia. A poesia muitas vezes se confunde com a forma. Isso é uma influência dos poetas românticos da fase simbolista. Uma fase desmeradamente metódica, como, por exemplo, Olavo Bilac (1865-1918) e Álvares de Azevedo (1831-1852), no Brasil. Os grandes poetas românticos. Mas a poesia não é forma. A poesia é sentimento. Um sen-

De que forma o Direito influencia a poesia e vice-versa? O Direito não influencia a poesia. Quem influencia a poesia é a Justiça. Principalmente quando se fala em Direito na sua versão ou na sua visão legalista ou escrita. A lei não é o Direito. O Direito não está nas leis. O Direito está nas decisões dos juízes. Nas sentenças. Aliás, a palavra sentença etmologicamente vem do verbo sentir, da mesma raiz de sentimento, sensação, sentido, sensorial, sensitir,

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FOTOS:: IARA VIDAL

Napoleão Nunes Maia Filho

sentença. Sentença é o modo de sentir. Isso é a Justiça. Justiça é harmonia, equilíbrio, sentimento, paz interior. A Justiça é feita de pequenas atenções e cuidados. Como os nossos sentimentos pelos nossos irmãos, pelos nossos pais, pelos nossos amores. Pequenas atenções, cuidados. As formas essenciais do amor humano são descritas por Emilio Mira Y Lopez na obra Os quatro gigantes da alma. O livro diz que a percepção das pequenas coisas, o amor, por exemplo, é feito de pequenas atenções e cuidados, de coisas cotidianas. Como o amor de uma mãe por um filho, que talvez seja a forma mais exaltada de amor humano. São quatro formas de amor humanos segundo Mira Y Lopez: o amor do homem pela mulher e da mulher pelo homem; o amor dos pais pelos filhos e dos filhos pelos pais; o amor dos irmãos e dos amigos, que faz a sociedade; e o

amor por Deus. Tudo são sensações, são percepções, são coisas sutis. E a pessoa que ama, que sente, expressa isso de mil maneiras diferentes. Umas das tais é a forma simétrica da poesia. Inclusive o soneto, uma arte dificílima. Olavo Bilac, que era um sonetista perfeito, talvez seja um dos maiores ou o maior da língua portuguesa. E a gente não diz isso diante de um português, não é? Porque eles acham que é o lusitano Sá de Miranda (1481-1558), que era um sonetista esmerado, perfeito. Não tem uma rima, uma palavra, uma sílaba poética fora do lugar. Isso é uma forma de expressar sentimentos. Não é a única. Apenas é mais difícil, mais complicada. A expressão de sentimento existe também em forma de prosa. Como José de Alencar (1829-1877), grande escritor cearense, autor de Iracema, que é um poema do começo ao fim. “Além, muito além daquela serra, que ainda azula no horizonte, nasceu Iracema. Iracema, a virgem dos lábios de mel, que tinha os cabelos mais negros que a asa da graúna, e mais longos que seu talhe de palmeira.” Isso é uma poesia. Não é um soneto, nem é metrificado, nem é rimado, mas tem a sonoridade da poesia. A língua portuguesa é particularmente sonora. É possível fazer uma poesia sem rima. Só com o ritmo, a sonoridade das palavras. Ou então ousadamente com palavras bombásticas, extremamente eloquentes, como o fizeram Castro Alves (1847-1871), Fagundes Varela (1841-1875) e Augusto dos Anjos (1884-1914), que fizeram coisas absolutamente fantásticas. A poesia está no dia a dia. As orações cristãs são verdadeiros poemas. A Música Popular Brasileira é cheia de poesia, como as de Chico Buarque e de Vinícius de Moraes (1913-1980). Há, ainda, os que compuseram canções para serem cantadas sem intenções literárias, como Orestes Barbosa (18931966), compositor de Chão de Estrelas (em parceria com Sílvio Caldas). Tem um trecho que diz assim: “A porta do barraco era sem trinco / Mas a lua, furando o nosso zinco / Salpicava de estrelas nosso chão”. Temos grandes compositores como Adelino Moreira (1918-2002), Cartola (1908-1980), Pixinguinha (1897-1973), Noel Rosa (1910-1937). A poesia está em todo canto. Pulando do chão e caindo do céu. E tem mil maneiras de se expressar. Não existe uma forma poética. Existe o sentimento poético. Com delicadeza, com sutileza. Enfim, uma pequena atenção e cuidado. Do mesmo modo que é o amor. Como dizia Chico Anysio, grande artista

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cearense: “O homem que diz sou não é, porque o que é mesmo não diz”. Ou seja, quem ama nunca está alardeando. Só precisa sentir e fazer. Qual a influência da sua terra natal, Limoeiro do Norte (CE), na sua obra? Há uma frase sobre o senhor que diz que saiu do sertão, mas o sertão não saiu do senhor. A influência da minha cidade em minha obra é total. O sertão é uma coisa muito marcante. Só sabe o que é o sertão quem viveu lá. Quem nunca foi ao sertão não sabe o que é. Ir não é passar. É viver. Viver não é ficar hospedado em um hotel de Fortaleza. Ou mesmo em um hotel no interior do Ceará. É relacionar-se teluricamente com as coisas da terra, com as pessoas, os animais, o vento, as noites, o luar, o sol tropical regional e terrivelmente quente, o solo agreste, as fantasias, os animais, as aves, as águas escassas ou abundantes. Quem nasceu lá nun-

interior aquela mitologia da praia, aqueles mitos do mar. Aliás, o mito do mar é muito insistente na historiografia universal. O mar é um tema constante como o amor. É um tema permanente como a saudade. O mar está dentro da alma do homem nordestino do interior como a saudade, como uma vocação, na minha opinião. Porque há dentro de cada homem rural do interior do nordeste essa nostalgia da praia. Quando vai ver o mar, o mar assombra, espanta. “Oceano terrível, mar imenso / De vagas procelosas que se enrolam / Floridas rebentando em branca espuma / Num polo e noutro polo, /Enfim... enfim te vejo; enfim meus olhos / Na indômita cerviz trêmulos cravo, / E esse rugido teu sanhudo e forte / Enfim medroso escuto!“. Esse é um trecho do poema O Mar, de Gonçalves Dias (1823-1864). Eu o considero um dos mais belos poemas da língua portuguesa e nem sequer é metrificado ou rimado, mas tem um ritmo fantástico. É o espanto que o

“Eu sou é a bagagem que carrego no surrão velho do meu coração agreste. As ancoretas vazam lágrimas e medo que mostro aqui em córregos e pedras e nesses caçuás largos e cheios dessas coisas que levo e me conservam.” Resumo biográfico, Napoleão Nunes Maia Filho

ca deixa de ser sertanejo, por mais distante que esteja. Quem não passou por isso não sabe o que é. E a influência do mar no sertanejo? Isso pode ser visto na obra poética do senhor. A influência do mar no sertanejo é nostálgica. Porque o sertanejo é todo ele interiorizado. A nossa civilização brasileira foi instalada em todo o Brasil na orla marítima. Só foi interiorizada, no caso do Ceará e do Nordeste, por exemplo, por meio da chamada civilização do couro e gado. A criação de gado foi que interiorizou o homem nordestino, o homem cearense. Portanto ele levou para o

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mar causa. Imagine um nordestino, um homem que viu o mar pela primeira vez aos 20 anos de idade. É de ficar realmente assombrado. O mar é uma nostalgia. Como é o processo criativo do senhor? Como escreve poesia? É de rompante ou tem um método? O meu processo criativo é absolutamente impulsionado pela experiência, pela vivência. Todas as pessoas que escrevem poesia partem do real. Só Fernando Pessoa (18881935), o grande escritor português, é que dizia que era um fingidor e que sentia com a imaginação. Aquilo que ele escrevia, aquelas coisas fabulosas, incomparavelmen-


te emocionantes, nas confissões que ele faz, diz que tudo aquilo que escreve é imaginação. Ele dizia “Eu sinto com a imaginação. O poeta é um fingidor. Finge tão completamente que chega a fingir que é dor, a dor que deveras sente.“ Tudo parte da experiência. Será que podemos falar numa experiência imaginativa? Será que experiência é só aquilo que a gente sente com os cinco sentidos? O que nós sentimos com os cinco sentidos é experiência. Visão, audição, tato, olfato e paladar. Mas e o que nós imaginamos? Também não se torna real o que existe na nossa mente? Nós temos um sexto sentido. Existe a expressão sexto sentido. Também chamada, às vezes, de intuição. Especialmente as mulheres. Chama-se, às vezes, intuição feminina, que é uma fonte inexaurível de emoções e de confusões. Quais os seus escritores preferidos na Literatura? Gosto dos escritores brasileiros Machado de Assis (18391908), José de Alencar (1829-1877), Graciliano Ramos (1892-1953), muito diferenciados. De Chico Buarque, os livros O Irmão Alemão (2014) e Estorvo (1991) são muito saborosos de ler. Affonso Romano de Sant’Anna é fantástico. Luís Fernando Veríssimo é absolutamente incomparável. Cecília Meireles (1901-1964) talvez seja a mais sensível poetisa brasileira. Adélia Prado eu considero muito religiosa, mística e emocionante. Costuma ler escritores estrangeiros? Eu tenho acesso a muitas traduções, principalmente de livros técnicos. Mas de literatura também. Tem um sociólogo polonês chamado Zygmunt Bauman, que na minha opinião é um poeta. Ele desenvolveu com muita originalidade a ideia de coisas líquidas no mundo contemporâneo. O amor, o medo, as sensações e os sentimentos líquidos. São percepcões que se espalham de um modo absolutamente incontrolável e imperceptível. Tem um escritor romeno, traduzido pelo meu irmão Luciano Maia, que escreveu sobre essa questão da indefinição das coisas, como o medo, escreveu No Consultório. É uma coisa

que não dá poesia, é um lugar muito frio. É um diálogo de um paciente com o médico escrito de uma maneira bem solta e livre e que é uma poesia belíssima. Ele é bem curtinho. “Doutor, sinto uma dor tremenda. / Aonde? / Aqui. / Aonde? / Aqui. Bem na região do meu ser. Acho que adoeci de morte. Um dia quando nasci.” Sobre música, o que o senhor gosta de escutar? Eu sou nascido e criado no sertão do Ceará e lá, o romantismo é – ou era – muito disseminado. Hoje eu não sei. Na minha infância e na minha juventude, o que a gente escutava na rádios eram músicas rigorosamente nordestinas. A gente escutava muito baião, principalmente Luiz Gonzaga (1912-1989), que era obrigatório. Lá tinha um programa de rádio chamado Gonzaga é Gonzaga. Para mim Luiz Gonzaga é uma figura familiar, próxima. Também escutava muito Nelson Gonçalves (1919-1998), Maria Betânia, Caetano Veloso, Chico Buarque, Gilberto Gil, Nelson Ned (1947-2014), Vinícius de Moraes, João Nogueira (19412000) e Martinho da Vila. Gosta de assistir filmes? Gosto de filmes americanos, principalmente os que são baseados em romances policiais, assisto muito a filmes sobre guerra, sobre julgamentos e filmes históricos. As séries ainda não me pegaram. Tenho muito filmes em casa e gosto do canal da TV por assinatura dedicado à História. Tem um programa que simula entrevistas com personagens históricos do qual eu gosto muito. Qual livro de poesias o senhor recomenda para um leitor que não gosta do gênero? Cecília Meireles, O Romanceiro da Inconfidência (1953).

* Livros de poesia de Napoleão Maia Nunes Filho lançados pelo Programa Cultural da Casa de José de Alencar, Editora da Universidade Federal do Ceará, Fortaleza/ CE: A Concha Impossível, 1998; O Antigo Peregrino, 2000; A Arca do Peregrino, 2001; Poemas do Amor Demasiado, 2001; Estações do Peregrino, 2001; e Lua da Tarde, 2002. Obras lançadas pela Editora O Curumim Sem Nome, Fortaleza/CE: Memória Deslúcida, 2003; O Amarelo e o Azul/Labirinto do Sentimento, 2003; Domínio das Lembranças, 2004; A Rigorosa Imprecisão, 2004; As Cores e as Sombras, 2006; e O Tempo e as Memórias na Soma dos Dias, 2007.

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A Magna Carta oitocentos anos depois (1215 - 2015) Alguns aspectos de sua gênese, de seu conteúdo e de seu alcance

B. G. da Costa Fontoura Juiz federal aposentado

1 – João sem Terra, John Lackland (1167 – 1216), rei da Inglaterra (1199 – 1216), era o mais novo dos cinco filhos do célebre casal Henrique II (1133 – 1189) e Alienor de Aquitânia (1122 -1204) e irmão do não menos cé-

Naquela época de feudalismo, a profissão das armas era exercida precipuamente por mercenários e custeada pelos grandes senhores lebre Ricardo I, Coração de Leão, Richard the Lionheart (1157 – 1199), cuja senha guerreira, “Dieu et mon droit”, posteriormente prestigiada por Henrique V (1387 – 1422), passaria a integrar as armas do Reino Unido. Ricardo e João eram trinetos de Guilherme I, o Conquistador (c. 1028 – 1087), duque da Normandia, que, oriundo do continente, reinara sobre a Inglaterra (1066 – 1087) por

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direito de conquista, e, a partir de seu bisneto Henrique II e até 1485, aqueles reis afrancesados, porque de origem normanda e angevina, se tornaram conhecidos como Plantagenetas, Plantagenets. Eram monarcas na ilha e eram senhores feudais no continente e, de tal sorte, vassalos do rei da França. Ora, carecendo de descendente sucessível, Ricardo reconhecia como herdeiro presuntivo da coroa o seu sobrinho Artur (1187 – 1203?), filho póstumo de seu irmão Godofredo (1158 – 1186), mas, quando da morte de Ricardo, João, filho favorito da poderosa Alienor, se assenhoreou do trono, tendo assassinado ou mandado assassinar o adolescente Artur. Ostentava ele, portanto, um cetro maculado por sangue doméstico, que, perante as mentes mais escrupulosas, serviria para contaminar a legitimidade de sua investidura usurpadora. 2 – Naquela época, costumando os arcebispos de Canterbury (condado de Kent),


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primazes da Inglaterra, exercer tradicionalmente funções ministeriais, era natural que os reis procurassem valer-se do poder de indicá-los. Vagando, no entanto, aquele arcebispado ao tempo de João sem Terra, os bispos do reino, por um lado, e os monges de Canterbury, por outro, tiveram pretensões indicantes idênticas. Ignorando todas essas pretensões e, portanto, preterindo inclusive o preferido real, o papa Inocêncio III (1160 – 1216) escolheu para arcebispo primaz o seu candidato, cardeal Stephen Langton (c. 1150 – 1228), a quem João se recusou a reconhecer como tal, tendo sequestrado os bens do arcebispado, do que resultou a sua excomunhão em março de 1208, após a Inglaterra ter sido posta em interdito. Por fim, em novembro de 1212, João reconciliou-se com o papado, humilhou-se perante o seu legado e concordou em aceitar Langton como arcebispo de Canterbury e primaz do reino, motivo pelo qual, em julho de 1213, cessava a excomunhão e, um ano depois, cessava o interdito. 3 – Considerando-se novamente fortalecido, João, autêntico Plantageneta, alimentou o intento de recuperar Normandia, Anjou, Maine e parte de Poitou, outrora domínios dos Plantagenetas no continente, dos quais pouco antes Filipe II Augusto (1165 – 1123), rei da França (1180 – 1123), se apossara. Para tanto, organizou ele com os condes de Flandres e de Boulogne e com o Sacro Império Romano-Germânico uma coligação internacional antifrancesa, mas os barões ingleses se recusaram a participar do empreendimento, pretextando aperturas financeiras (naquela época de feudalismo, a profissão das armas era exercida precipuamente por mercenários e custeada pelos grandes senhores). João teve de adiar a iniciativa, contratar mercenários e subsidiar os seus aliados, a fim de poder encetar as hostilidades. Finalmente, a França foi atacada por duas frentes e, em 16 de fevereiro de 1214, João e seus mercenários desembarcaram em La Rochelle (hoje no departamento de Charente-Maritime) e iniciaram o avanço rumo a Paris, chegando até o Anjou, onde, em 2 de julho de 1214, durante o cerco à fortaleza de La Roche-aux-Moines (hoje Savennières, no departa-

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mento de Maine-et-Loire, perto de Angers), encenou-se um fiasco, quando João, pressentindo o perigo de uma iminente derrota, abandonou o campo de batalha, deixando para o inimigo os artefatos de assédio. 4 – O confronto bélico principal, encerrando duradouras consequências para a história ocidental, entretanto, só viria a ocorrer dias depois, em 27 de julho de 1214, em Bouvines (hoje no departamento de Nord, perto de Lille), porquanto os aliados de João avançavam do norte. Lá, pela vez primeira, as forças comunais francesas combateram lado a lado com as tropas de seu rei,

Inaugurava-se, então, o demorado processo formativo dos Estados nacionais, sucessores dos feudos medievais

exibindo o embrião dos futuros exércitos nacionais, de modo que não mais se configurava uma contenda estritamente feudal, mas sim compreensiva de características bem mais abrangentes. Imperiais, flamengos e boulonnais, aliados de João, resultaram derrotados e a cabal e repercutente vitória francesa demarcou o advento da supremacia dinástica capetiana sobre os seus grandes vassalos, dentre os quais se contavam os Plantagenetas. Inaugurava-se, então, o demorado processo formativo dos Estados nacionais, sucessores dos feudos medievais, com o incremento do absolutismo real e do consequente debilitamento do papel representado pela aristocracia fundiária e da consequente ascensão da emergente burguesia urbana, processo esse que, na França, atingiria o apogeu com Luís XIV (1638 – 1715). Assim, em Bouvines,


virou-se uma significativa página da história ocidental e, com o sangue ali vertido, seria escrita, no ano seguinte, a Magna Carta. 5 – Na verdade, às vezes, a consecução do progresso, qual vampiro hematófago, reclama por sangue, e a derrota em Bouvines foi o mal que veio para o bem da Inglaterra. Se João, comandando os mercenários brabanteses, tivesse retornado ao seu reino vencedor, é de presumir-se que iria ele castigar a aristocracia local, que lhe negara auxílio em armas para a sua aventura no outro lado do canal da Mancha. Retornando ele, porém, vencido, a situ-

ação era bem diferente e, de resto, o arcebispo Langton, cabeça dos conspiradores, já vinha, desde 1213, promovendo assembleias secretas com os barões, alertando-os para os valiosos precedentes de que monarcas antecessores, Henrique I (1069 – 1135), Estêvão (1097 – 1154) e Henrique II, já tinham publicado cartas, contendo promessas ou concessões para seus feudatários. O interdito papal comovera os espíritos mais religiosos e o fracasso da campanha bélica de 1214 terminou por convencer os demais. As exigências dos conspiradores foram expostas no documento conhecido como “Articles of the Barons”,

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que o incorrigível João, encurralado por um ultimato e sem dispor de forças suficientes para enfrentar uma guerra civil, acabou aceitando com muita má vontade. A rigor, aquela peça era a minuta que serviria para a redação do texto definitivo e, em 15 de junho de 1215, em Runnymede (noroeste do condado de Surrey), em uma campina junto ao Tâmisa, entre Windsor e Staines, João fez com que fosse aposto o selo real na “Magna Charta Regis Iohannis de libertatibus Angliae”. 6 – Redigida originalmente em latim medieval, latim bárbaro, e reproduzida sob a forma manuscrita, porque o

7 – No extenso preâmbulo, após desfilar seus títulos de rei da Inglaterra, senhor da Irlanda, duque da Normandia e da Aquitânia e conde de Anjou, João saúda os dignitários seculares e eclesiásticos, indicando nominalmente mais de duas dezenas deles como seus conselheiros. O corpo principal começa e conclui assegurando a liberdade da igreja inglesa e a integralidade de seus direitos (cláusulas 1 e 63) e, examinada com amplitude, a carta incorporava os direitos mais importantes daquela época. Dentre estes, três ainda subsistem como preceitos constitucionais dos povos cultos. O primeiro consiste em ve-

...escoados oito séculos, a edificante imagem protetora da Magna Carta ainda sobrepaira, exorcismando as tiranias modernas e fazendo com que os modernos liberticidas vislumbrem a dignidade que distingue o respeito pelos direitos de cidadania. processo de reprodução por método impresso só iria surgir em meados do século XV, a carta viria a ser traduzida para o inglês somente no século XVI, já na renascentista época da dinastia dos Tudors, que, em 1485, sucederia à dos Plantagenetas. Tal circunstância evidencia que tão só os versados em latim tiveram acesso à sua leitura durante os três primeiros séculos de vigência, o que faz a carta parecer muito pouco popular ou, pelo menos, de consulta deveras dificultada. Por outro lado, embora escrita de forma continuada, é tradicional considerá-la como consistente de um preâmbulo e sessenta e três cláusulas (artigos), com o seu conteúdo dividido em nove partes, consoante a matéria regulada. Hoje em dia, subsistem somente quatro exemplares originais com a redação de 1215: dois nas catedrais de Lincoln e de Salisbury e dois no Museu Britânico, ao passo que a catedral de Durham abriga os exemplares com as redações alteradas em 1216, 1217 e 1225.

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dar que o homem livre possa ser privado da vida ou da liberdade, a não ser por força de sentença judicial, observado o devido processo legal (cláusula 39) e, daí, adveio o instituto do habeas-corpus, proclamado ulteriormente pelo Habeas Corpus Act (1679). O segundo consiste em vedar que a justiça possa ser vendida, denegada ou retardada (cláusula 40) e, daí, resulta o reconhecimento da independência do poder judicial. O terceiro consiste em vedar a criação de tributos sem o consentimento do conselho comum, integrado por nobres (cláusula 12), e, daí, surgiram as bases dos parlamentos, a quem compete privativamente legislar sobre matérias tributária e orçamentária. Em princípio, a carta garantia apenas as liberdades da nobreza e do clero, interpretando-se extensiva a todos os homens livres, mas não chegava a amparar aqueles submetidos ao regime de servidão: os servos da gleba, eufemismo medieval para denominar escravos. A carta sobreveio para manter o poder real sujeito à lei: o


rei deve obediência à lei e, por isso, não se acha sobreposto a ela. O constitucionalismo surge a partir de então, de modo que a carta significou mais para os pósteros do que para os seus coevos. 8 – João sem Terra, assim alcunhado por seu próprio pai porque, como caçula, não faria jus a possessões territoriais, sobreviveu à carta por apenas dezesseis meses, tendo violado a mesma em mais de uma oportunidade. Grande femeeiro, porém pouco dotado de carisma, ele conseguiu reunir contra si súditos de todas as classes e morreu em Newark (condado de Nottinghamshire), em 19 de outubro de 1216, com quarenta e oito anos de idade, vitimado por uma prosaica indigestão, ocasionada pela excessiva ingestão de pêssegos e cidra, embora não se possa excluir a hipótese de envenenamento. Nenhum monarca da Inglaterra ou do subsequente Reino Unido portou o nome João. Assim, sem Terra foi o primeiro e único João. Ele foi sucedido por seu filho Henrique III (1207 – 1272), em cujo reinado (1216 – 1272) ocorreriam as primeiras alterações do texto original (1216, 1217 e 1225). 9 – O prestígio da carta declinaria ao tempo dos reis Tudors (1485 – 1603), dinastia de origem galesa, composta por soberanos com personalidades muito marcantes, mas o seu prestígio iria recrudescer ao tempo dos reis Stuarts (1603 – 1714), dinastia de origem escocesa que associou as coroas inglesa e escocesa, dando nascimento ao Reino Unido, para, a partir de então e até hoje, permanecer em elevado grau de reputação, vindo a influenciar a redação da Constituição dos Estados Unidos da América (Filadélfia, 17 de setembro de 1787) e da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (Paris, 26 de agosto de 1789), que funcionaria, na aurora do processo revolucionário, como prefácio à primeira Constituição da França (Paris, 4 de setembro de 1791), assim como a influenciar a redação de cartas constitucionais de vários outros povos. Agora, escoados oito séculos, a edificante imagem protetora da Magna Carta ainda sobrepaira, exorcismando as tiranias modernas e fazendo com que os modernos

liberticidas vislumbrem a dignidade que distingue o respeito pelos direitos de cidadania. Rio, setembro de 2014. BIBLIOGRAFIA BATISTA NETO, Jônatas. História da Baixa Idade Média (1066 – 1453). São Paulo: Ática, 1989. BRITANNICA ATLAS. Chicago: Encyclopaedia Britannica, 1995. ENCYCLOPAEDIA BRITANNICA, The New. 15. ed. Chicago: Encyclopaedia Britannica, 1990. ENCYCLOPEDIA INTERNATIONAL. New York: Grolier, 1963. GIORDANI, Mário Curtis. História do mundo feudal: acontecimentos políticos. Petrópolis: Vozes, 1974. -------------. História do mundo feudal II/1: civilização. Petrópolis: Vozes, 1982. GRANDE ENCICLOPÉDIA DELTA LAROUSSE. Rio de Janeiro: Delta, 1972. HOLT, J. C. Magna Carta. 2. ed. Cambridge: Cambridge University Press, 1992. MAUROIS, André. História da Inglaterra. Trad. Carlos Domingues. Rio de Janeiro: Pongetti, 1959. MIRANDA, Pontes de. Democracia, liberdade, igualdade: os três caminhos. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 1979. -------------. História e prática do habeas-corpus (Direito constitucional e processual comparado). 4. ed. Rio de Janeiro: Borsoi, 1962. MONTESQUIEU, Charles de Secondat, Baron de. Do espírito das leis. Trad. Roberto Leal Ferreira. São Paulo: Martin Claret, 2010. NOUVEAU LAROUSSE ILLUSTRÉ: Dictionaire Universel Encyclopédique. Paris: Larousse, [s.d.] PERROY, Edouard. Le Moyen Age. In: HISTOIRE GÉNÉRALE DES CIVILISATIONS. Tome III. Paris: Presses Universitaires de France, 1955. PIMENTA, Joaquim. Enciclopédia de Cultura. 2. ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1963.

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Academia

Sobre a viola da gamba Raquel Chiarelli Juíza federal

“Os primeiros homens, dedicados a imitar a voz humana por meio de diversos instrumentos feitos de diferentes maneiras, procuraram sem dúvida aquele que melhor a imitava, e como não se pode contestar que nenhum instrumento se aproxima da voz humana mais do que a viola, que se diferencia da voz humana unicamente porque não articula palavras, deve-se admitir que ela era desde o começo do mundo objeto da pesquisa dos homens” (Traité de la viole, Jean Rousseau, Paris, 1687, tradução livre).

Imagine um tempo em que as distâncias somente pudessem ser vencidas a pé ou a cavalo. Em que durante o inverno as famílias tivessem que permanecer a maior parte do tempo em casa. Em que ainda estivessem misturadas ciência, filosofia e religião. Nesse tempo surgiu a viola da gamba. Ao que tudo indica, a viola da gamba originou-se de um instrumento espanhol chamado vihuela, semelhante ao alaúde, ao qual, por influencia dos mouros, adicionou-se um cavalete, o que permitiu que fosse tocado com arco, tal como ocorre com os instrumentos da família do violino (violino, viola e violoncelo).

liano. A viola da gamba se apoia entre as pernas, como um violoncelo, mas sem o auxílio do espigão. São inúmeros os tratados de música em que se ensina, segundo a tradição do local e da época, como se toca o instrumento. Uma das obras primas do repertório renascentista para viola da gamba é o Trattado de glossas sobre clausulas y otros generos de punctos en la musica de violones nuevamente puestos en luz, de Diego Ortiz, publicado em Roma no ano de 1553. A música inglesa para viola da gamba é muito particular, porque, mesmo após o início do barroco na Europa continental, ainda

gamba significa perna em italiano. A viola da gamba se apoia entre aspernas, como um violoncelo, mas sem o auxílio do espigão. No século XVI, a viola da gamba já era conhecida em boa parte da Europa e, na Itália, ganhou o nome pelo qual é mais conhecida: gamba significa perna em ita-

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preponderavam na Inglaterra as composições para consorts, isto é, conjuntos de instrumentos em que cada um executa uma voz sem que nenhum deles seja propriamente solista.


Detalhe da pintura Santa Cecília, Rafael, c. 1510.

A propósito, como num coral, existiam violas da gamba soprano, contralto, tenor e baixo (chamada na França de Basse de Viole), além do violone (que deu origem ao contrabaixo) e da pardessus, mais aguda ainda que a soprano. Em 1659, Christopher Simpson publicava The Division Viol, or the Art of Playing upon a Ground, que se divide em quatri partes: Of the Viol it self, with Instructions how to

Gravura extraída do Syntagma musicum, Michael Praetorius, 1618.

Play upon it; Use of the Concords, or a Compendium of Descant e The Method of ordering Division to a Ground. Essa obra foi editada diversas vezes, inclusive em latim, para alcançar o público da Europa continental. Mas foi na França que a viola da gamba atingiu seu apogeu, mais particularmente durante o reinado de Luis XIV. O conhecido Rei Sol era bailarino e amante das artes em geral, motivo pelo qual trouxe para a sua corte os mais talentosos músicos de seu tempo, garantindo a edição e a proteção de sua produção musical. É por isso que atualmente há tantos detalhes sobre o repertório e a técnica da viole de gambe na França, ao contrário do que ocorreu em outros países. Dentre os maiores virtuoses e compositores para viola da gamba de todos os tempos estão Marin Marais e Antoine Forqueray. Ambos exerceram o cargo de ordinaire de la chambre du roy pour la viole. O amor dos franceses pela viola da gamba era tamanho que, segundo Hubert Le Blanc – que também era Doutor em Direito – “A Divina Inteligência, entre seus muitos dons, distribuiu aos mortais aquele da harmonia. O violino foi atribuído aos italianos, a flauta aos alemães, o cravo aos ingleses e, aos franceses, a viola da gamba” (Défense de La Basse de Viole contre les Entréprises du Violon et les Prétentions du Violoncel, Paris, 1740, tradução livre). A viola da gamba tem usualmente seis ou sete cordas de tripa, tendo a sétima corda sido acrescentada por Sainte-Colombe no século XVII, as quais normalmente são afinadas em ré, com intervalos de quartas nas extremidades e uma terça no meio (do agudo para o grave: ré, la, mi, do, sol, ré, lá). Existem, contudo, outras possibilidades, a depender da espessura da corda utilizada ou do tamanho do instrumento. Por exemplo, a viola da gamba tenor é afinada normalmente em sol. A escrita musical para a viola da gamba é a mesma que se utiliza atualmente. Na viola da gamba baixo, por exemplo, é comum a notação nas claves de sol, dó e fá.

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Marin Marais, André Bouys, 1704.

Tablatura Numérica para vihuela, Miguel de Fuenllana, 1554.

Todavia, em razão de seu parentesco com o alaúde, há muitas peças para viola da gamba em tablatura, espécie de notação em que são indicadas não as notas a serem tocadas, mas a posição dos dedos em cada traste e cada corda. Até hoje se compõe para violão em tablatura. A altura do som da viola da gamba em muito se assemelha à do violoncelo, assim como a forma de tocar, mas há diferenças sensíveis. A partir de meados do século XVIII, com a popularização da música erudita e a necessidade de ampliação das salas de concerto, iniciou-se uma verdadeira competição entre a viola da gamba e o violoncelo pela preferência dos músicos e do público. Como sua origem está ligada ao alaúde, a viola da gamba possui oito trastes que se distanciam uns dos outros por um semitom, enquanto o violoncelo não possui traste algum. O som do violoncelo se projeta com mais facilidade, mas a viola da gamba, muito embora não tenha a potência sonora do seu rival, possui o som mais cheio e aveludado, já que a forma de sua construção e o fato de possuir duas ou três cordas a mais que o violoncelo permitem que dela se extraiam mais harmônicos. Mas, o fato é que o violoncelo venceu.... E a viola da gamba ficou esquecida durante muitos anos, até que no

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Raquel Chiarelli é juíza federal em Uruaçu e gambista

século XX o estudo da viola da gamba e da música antiga em geral ganhou impulso, e as obras de grandes compositores como Johann Sebastian Bach – que escreveu três sonatas para viola da gamba – passaram a ser estudadas e executadas à moda de sua própria época. A famosa apresentação da Paixão de São Mateus por Felix Mendelssohn, em 11 de março de 1829, ainda que tenha sido executada com instrumentos contemporâneos e sem preocupação histórica, constitui um verdadeiro marco para o ressurgimento da música antiga. De lá para cá, o mundo se interessa cada vez mais pelas chamadas performances históricas, e, especialmente a partir da segunda metade do século XX, a técnica atingida pelos grandes intérpretes, assim como a popularização dos instrumentos, permitiu que a música antiga passasse a ser definitivamente conhecida pelo público de música erudita. Em 1991, foi lançado o filme Tous les matins du monde, de Alain Corneu, sobre a vida dos gambistas Sainte-Colombe e Marin Marais, que levou ao grande público a música da viola da gamba. Eis algumas pinceladas sobre a viola da gamba, que, longe de esgotar o assunto, pretendem apenas despertar a curiosidade do leitor sobre esse instrumento ainda muito pouco conhecido no Brasil.


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O mal radical Marcel Citro Diretor Cultural da Ajufe

“Duas coisas me enchem a alma de crescente admiração e respeito: o céu estrelado sobre mim e a lei moral dentro de mim.” Immanuel Kant

A mãe que mata a filha, o cadáver esquartejado na parada de ônibus, centenas de corpos mutilados por terroristas na Nigéria. É a “banalidade do mal”, expressão consagrada por Hannah Arendt enquanto acom-

mos tal qual folha em branco, a esperar a impressão, positiva ou negativa, das experiências futuras ou da manipulação social. Partimos não do zero absoluto, mas do -1, -2, -3... Todos viriam, de fábrica, com uma

“...há um mal inato no ser humano, em maior ou menor grau, mas há também uma potencialidade para o bem.” panhava o julgamento do nazista Adolf Eichmann em Jerusalém. Se para a filósofa alemã o mal possui um viés político e histórico, para Kant existe um mal intrínseco no ser humano. Ele nunca aceitou a idéia de que nasce-

carga negativa, que oscilaria de acordo com variáveis incognoscíveis. Assim, estariam equivocados seus contemporâneos ao proclamar que o ser humano nasce puro e a sociedade o corrompe, e também Hobbes quando afirma que o

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homem sempre será o lobo do homem. Kant convenceu-se por uma posição intermediária: há um mal inato no ser humano, em maior ou menor grau, mas há também uma potencialidade para o bem. A maldade a ele inerente poderia ser contornada pela sua liberdade. Kant e a maldade intrínseca Só há um modo de ser bom em Kant: é ser livre. Não haveria nenhum mérito na criação ex machina de seres intrinsecamente bons, mas desprovidos de autonomia. Os seres humanos, enquanto inseridos na temporalidade deste mundo tridimensional, devem se esforçar para cumprir a lei moral, ao par que seres angelicais, caso existam, poderiam seguir a razão prática – aquela razão que influencia a conduta e é capaz de produzir uma vontade que seja genuinamente boa – de forma intuitiva, como resultado de seu próprio progresso e adiantamento. Em que pese mencionar seres angelicais, Kant não ousa filosofar sobre Deus, acreditando que a existência de um ser multitemporal e plenipotente

ato de liberdade: o homem permanece mau porque quer. Ele adverte: Seja como for que a origem do mal moral no homem possa estar constituída (...), o mais inconveniente é representá-lo como chegado a nós a partir dos primeiros pais por herança”. Não há, pois, um “pecado original” atribuído aos primeiros pais – Adão e Eva – que originou o mal radical presente no ser humano, nem um ser plenipotente que rivaliza com Deus e que irá tentar-nos a cada momento. Há, em verdade, uma luta constante para atacarmos as nossas tendências, as nossas más inclinações. O que caracteriza o homem é a potência, a possibilidade de transformar-se mediante um ato racional de submissão à lei moral. Em última análise, o fundamento supremo para a adoção de máximas universalizáveis (vale lembrar o imperativo categórico: “age de tal maneira que a máxima da tua vontade possa se transformar em lei universal) é justamente a nossa propensão para o mal.

“O mundo com as suas deficiências é melhor do que um reino de anjos sem vontade”. não poderia ser provada ou negada por seres tão limitados quanto os humanos. Não obstante, em um de seus livros menos conhecidos, “A religião nos limites da simples razão”1, ele desafia o velho argumento agnóstico de que se Deus realmente existisse não permitiria o mal que há no mundo. Para o filósofo de Königsberg, o móvel dessa inclinação natural para atos lesivos seria o “amor de si”, termo kantiano que pode ser traduzido como o egoísmo puro e simples, e cujo fundamento pode ser sumarizado na máxima: “trate todos como meios”. Sua origem é um 1 Kant. Immanuel. A Religião nos Limites da Simples Razão. Lisboa: Edições 70, 1986.

“Arcanos da Divindade” Nesse contexto, para Kant, cada homem em particular é artífice de seu próprio destino, razão pela qual não deve limitar-se a suplicar para ser ajudado a tornar-se um ser mais evoluído. Ao contrário, cada um de nós deve agir de modo a se tornar digno de auxílio. “Cada um deve fazer o quanto está nas suas forças para se tornar um homem melhor”, diz ele em seu livro, tomando o cuidado de ressaltar que esta “cooperação superior” provida pelos “arcanos da divindade” não precisa ser compreendida pelo seu beneficiário”, pois “não é essencial saber o que Deus faz ou fez em ordem a sua beatitude”, mas “o que ele mesmo deve fazer para tornar-se digno desta assistência”.

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Academia

Assim, ninguém se salva por um mero pedido de perdão dirigido ao padre, rabino ou imã, pois quem detém a possibilidade de absolver, em última análise, é a própria consciência racional. A “salvação”, entendida por Kant como autossalvação, dependeria da manutenção no ânimo de perseverar no bem.

“E se as estrelas forem apenas buracos no céu a filtrar a luz mortal que permeia tudo?” Essa perseverança, todavia, é constantemente ameaçada pelo meio social. Os perigos para a nossa vida moral emanam das pessoas que estão à nossa volta, o mal é contagiante. Ainda que possamos fazer com que a potencialidade boa possa preponderar, permanecemos sempre expostos aos assaltos da malignidade presente naqueles que nos circundam. Daí a necessidade de “exportar” a submissão à lei moral, editada por nós mesmos a partir de máximas universalizáveis. O resultado da adoção de tal prática seria a formação de uma comunidade ética: aquele que nela esteja inserido estará mais protegido contra os assaltos do mal. A luz mortal que permeia tudo Em suma, na concepção kantiana, o conflito entre bem e mal é mostrado como um conflito entre liberdade e servidão. O bem e o mal estão na liberdade e não na natureza que circunda cada homem. O pressuposto para ser bom é ser livre. De fato, não haveria mérito na criação de “marionetes angelicais” desprovidos de autonomia. Na nota 23 de seu livro, Kant cita Haller, em uma passagem muito inspirada: “O mundo com as suas deficiências é melhor do que um reino de anjos sem vontade”2 . 2 Kant afirma, em sua obra, que a alma é livre porque sem liberdade não pode haver dever, nem moralidade verdadeira. E é imortal porque apenas numa vida futura poderá a lei moral atingir a sua verdadeira concretude. Um exercício in-

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“Anjos sem vontade” é uma expressão forte. Talvez explique por que o rei Frederico da Prússia proibiu a circulação de A religião nos limites da simples razão pouco depois de seu lançamento, em 1792. Mesmo com o liberalismo do século seguinte, a filosofia da religião de Kant situou-se em um plano secundário porque a sociedade se secularizou, talvez até excessivamente. Nossa sociedade secular e laica, multifacetada e individualista ensejou a seguinte indagação de Sylvia Plat: “E se as estrelas forem apenas buracos no céu a filtrar a luz mortal que permeia tudo?3” O verso da poetisa americana, que se suicidou aos 31 anos, talvez sintetize a característica mais pungente desta nossa pós-modernidade: queremos tudo ao mesmo tempo agora. Nesse contexto de desejos extremados e incondicionais, que nem sempre produzem a “vontade boa” referida por Kant, a sucessão cadenciada de equilíbrio e de desequilíbrio psicológico encontra um reequilíbrio muito mais precário. Como se estivesse em queda livre, o mundo acelerou-se, encurtando os espaços comumente dirigidos à filosofia e à religião. Tais temas – o noticiário diuturno desde o 11/9 não nos deixa esquecer – jamais poderão ser relegados a um plano secundário. Kant nos traz a esperança que faltou a Sylvia Plat. Nele, a liberdade é o ponto de partida, a submissão à lei moral, o caminho a ser seguido e a construção de uma comunidade ética, onde todos estejam mais bem abrigados dos assaltos do mal, o destino a que devemos almejar enquanto homens – e juízes – capazes de ponderar e fazer escolhas. Escolhas que um dia, talvez, possam aproximar a humanidade inteira do “céu estrelado acima de nós”.

telectual interessante seria contrastar a filosofia moral kantiana com a ideia platônica da alma, em especial o mito de Er e a concepção inatista como justificativa para as diferentes “cargas” de mal radical presentes em cada indivíduo ao nascer. 3 No original: “The night sky is only a sort of carbon paper, Blueblack, with the much-poked periods of stars/ Letting in the light, peephole after peephole / A bonewhite light, like death, behind all things.” Sylvia Plath, The Collected Poems.


inspiração poética

Ao poeta Manoel de Barros Raquel Domingues do Amaral Juíza federal

Manoel, pediram-me pra falar de você. Senti um frio na barriga e um sol a pino na baia da alma. Com a força de dez mil éguas relinchantes, Meu coração tremulou. Enfim, dizer a toda gente O quanto te amo, apesar do não encontro! Mas, precisava de um encontro? Não, somos feitos do mesmo barro, O barro prenhe de vida dos corixos, Que alimenta os pássaros. Carne da mesma carne Dos bichos que repousam nos xaraés, A lamber o sal de uma terra que já foi mar. Mar imemorial que corre em nossas veias. Veias de velhos bichos do Mato Grosso do Sul. Manoel, te amo, mas não posso falar de ti, Não tenho falas que te abrigue, Você foi mestre das palavras, Mas elas não comportam a beleza do seu olhar! Manoel, só o olhar inocente do peixe dourado entre a isca e o anzol, Em uma manhã ensolarada, Captura o olhar do poeta diante da palavra achada. Você mordeu a isca do significado inefável Que habita o esmirrado, o opaco, o despercebido Dos caramujos, dos gravetos, dos seixos, Dos barrancos do velho rio sulcados pelo ciclo das águas. Tudo isso se fez poético em comunhão com seus olhos De menino pantaneiro. Da sua boca, não ouvi versos parnasianos, Esculpidos em ouro ou prata, Num espartilho camoniano, Mas ouvi a voz dos pássaros, Os casos dos bichos, O pulsar das águas O gemido da terra em sua cópula solar. Quem quiser saber de você Que venha cá, Manoel! Que se deite numa noite de lua gorda, No leito macio do Rio Paraguai, Que se perca nos olhos dos bichos, Que beba água de corixo, Que ouça o discurso dos pássaros, Só eles interpretam a sua fala, Só eles guardam agora sua alma.

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Cliques pelo mundo BERNARDO CARNEIRO, MARCELO DE NARDI E MARCELLE CARVALHO Juízes federais

Foto: Bernardo Carneiro

Confira as fotos produzidas pelos juízes federais Bernardo Carneiro, Marcelo de Nardi e Marcelle Carvalho em viagens por lugares como Bath, Londres e Stonehenge, na Inglaterra, Canoa Quebrada e Ubajara, no Ceará, Castelo de Ourém em Portugal e Grand Canyon e Las Vegas, nos Estados Unidos.

Bath - Inglaterra

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Foto: Marcelo de Nardi

Foto: Bernardo Carneiro

Stonehenge - Inglaterra

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Fotos: Marcelle Carvalho

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Fotos: Marcelle Carvalho

Castelo de Ourém - Portugal

Fotos: Marcelle Carvalho

Ponte Golden Gate - São Francisco - Califórnia - Estados Unidos

Grand Canyon - Estados Unidos

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Las Vegas - Estados Unidos


Foto: Bernardo Carneiro Foto: Antônio César Bochenek

Caravana Ubajara (CE)

Foto: Marcelle Carvalho

Pôr do Sol em Ponta Grossa (PR)

Castelo de Ourém - Portugal

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Kite surf - Barra do Cunhau (RN)

Fotos: Bernardo Carneiro

Jangadas e usina eólica - Paracuru (CE)

Falésias / Canoa Quebrada (CE)

Morro Dois Irmãos - Fernando de Noronha (PE)

Regent Park - Londres

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Foto: Marcelo de Nardi

Foto: Bernardo Carneiro

Mercado Popular / Ubajara (CE)

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Sabor e saúde desde a antiguidade O azeite de oliva é utilizado desde a Antiguidade pelos povos do Mediterrâneo, e foi um dos principais produtos comercializados pelos fenícios, que, como os povos da Mesopotâmia, os egípcios e os gregos, já o usavam há seis mil anos. Ao longo dos tempos, sua utilização cresceu e sua importância se acentuou, como resultado dos múltiplos aproveitamentos que lhe foram dados, especialmente na alimentação e na medicina. Seu consumo tomou grandes proporções na cozinha moderna graças aos benefícios que o azeite propicia à saúde, principalmente os azeites extravirgens, que possuem propriedades e vitaminas que podem prevenir doenças e melhorar a pele, além de conter ainda diferentes vitaminas (A, D, K e E). Dentre os inúmeros benefícios do azeite extravirgem estão sua ação antioxidante, redução do mau colesterol, proteção ao coração e ao cérebro, proteção contra a osteoporose, efeito analgésico, além de hidratação capilar e fortalecimento das unhas. Além de todos esses benefícios, o azeite dá sabor, cor e aroma, integra os alimentos, personaliza e identifica um prato. Graças ao conhecimento de seus benefícios, o consumo de azeite foi difundido de forma a abranger mercados longínquos dos locais de produção. Pensando na saúde e no crescimento do mercado do azeite, a Olivares de Quepu tem investido na expansão da sua marca. A empresa, localizada na região de Maule, no Chile, dedica-se 100% à produção de azeite de oliva extravirgem de altíssima qualidade. As oliveiras foram cultivadas no Vale de Pencahue, na VII Região, cidade de Talca, considerada uma terra muito fértil. No início, apenas 80 hectares e, após uma década, possui 763 hectares plantados. Devido à integração vertical na cadeia de produção, desde produzir as mudas para plantio até o engarrafamento dos azeites, a Olivares de Quepu obtém produtos únicos em sua categoria. Assim os monovarietais 1492 – Frantoio, Picual e Arbequina – e o Oromaule, cada um com a sua característica particular, mas todos com qualidade inigualável, com acidez de 0,2% e diversas premiações, adquiriram fama e prestígio no mercado mundial.


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Revista

AJUFE

de Cultura ANO 7 . ABRIL DE 2015 . Nº 10

Ponto de vista Ministro do STJ Napoleão Nunes Maia Filho mostra o seu lado poeta em uma conversa exclusiva sobre a arte em versos presente no dia a dia Academia Memória sobre o primeiro encontro nacional da Ajufe; ensaio sobre os 800 anos da primeira Carta Magna; curiosidades sobre a viola de gamba e artigo sobre o mal radical na sociedade contemporânea

Nos últimos anos, os azeites da Olivares de Quepu foram premiados nos principais concursos europeus e americanos: Terraolivo / Mediterranean International Olive Oil Competition – Israel, 2012 | Los Angeles Extra Virgin Olive Oil Competition –EUA, 2010 e 2011 Concorso Internazionale L´Orciolo D´Oro – Itália, 2004, 2006, 2007, 2009, 2010, 2011 e 2012 | 4ª ExpoAzeite Concurso de Azeites Extra Virgem –Itália, 2010 12° Concorso Internazionale Oli da Oliva L´Orciolo D´Oro – EUA, 2010

Quem conta um conto Cinco histórias pitorescas sob o olhar de juízes federais que mostram diferentes aspectos do cotidiano da magistratura


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