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Sob o comando delas

Fotografias: Luciano Candisani

Imagine mergulhar mar adentro utilizando apenas o ar e a força dos próprios pulmões. Pode parecer difícil para alguns, mas esse é o dia a dia das mulheres haenyeo, que compartilham a mesma linhagem secular de Hana e Emi, personagens de Herdeiras do mar. Aproximadamente quatro séculos atrás, quando a Coreia do Sul era um país baseado na mão de obra e na hegemonia masculina, as mergulhadoras da ilha sul-coreana de Jeju deram início a uma sociedade semi-matriarcal — neste tipo de estrutura familiar, o papel de provedora e de liderança é exercido predominantemente pelas mães da comunidade. Ainda hoje, para sustentar suas famílias e fomentar a economia local, as haenyeo chegam a passar mais de cinco horas seguidas na água em busca de polvos,

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peixes, conchas e outros frutos do mar. A maioria delas tem entre 60 e 90 anos e, apesar da idade avançada, conseguem imergir até 10 metros de profundidade em cada mergulho — elas contam com nada mais do que um traje de mergulho simples, óculos para proteção e nadadeiras. Atualmente, cerca de 4.500 mulheres realizam a pesca submarina na ilha.

A prática evoca alguns dos valores que permeiam o século XXI: a sustentabilidade, a responsabilidade ambiental e a preservação cultural. Além disso, elas evidenciam a importância dos laços de amizade formados em pequenas comunidades e do amor pelo legado feminino que as move. Não à toa, em 2016 a cultura foi incluída na Lista do Patrimônio Cultural Imaterial da UNESCO, e o estilo de vida dessas mulheres continua a atrair olhares interessados. No ensaio Haenyeo, mulheres do mar, o fotógrafo e autor brasileiro Luciano Candisani conta a história das mergulhadoras de Jeju por meio de fotografias em preto e branco, produzidas ao longo de duas viagens à Coreia do Sul. O trabalho veio a público em uma exposição no Museu da Imagem e do Som, em São Paulo, em setembro de 2019, e houve convites para novas exposições no Brasil e no exterior. Candisani, que é fotógrafo da National Geographic, também finaliza um livro fotográfico sobre as haenyeo, que será lançado ainda este ano pela editora Vento Leste. Uma de suas fotografias agracia a capa de Herdeiras do mar e também figura no conjunto de cartões-postais que você recebe como mimo. Leia uma entrevista exclusiva com o fotógrafo:

TAG — Há vinte anos você registra espaços naturais e comunidades litorâneas de várias partes do mundo. O que inspirou você a fotografar as mergulhadoras de Jeju?

Luciano Candisani — Sou fascinado pelo modo de vida dessas pessoas que se lançam ao oceano pelas mais diversas razões e com ele estabelecem laços

Assista a uma entrevista com o fotógrafo Luciano Cardisani:

quase viscerais de existência. Vejo um heroísmo e uma sabedoria nisso. O meu ensaio sobre as haenyeo surgiu durante as filmagens do longa-metragem Haenyeo: a força do mar, de Lygia Barbosa da Silva. Ela decidiu contar a história da senhoras mergulhadoras da ilha de Jeju de uma forma não convencional: usaria o olhar de um fotógrafo — o meu, no caso — como guia para o roteiro do filme. A história das haenyeo já me fascinava, e recebi o convite da Lygia com entusiasmo. A primeira mostra da exposição teve um grande sucesso de público e crítica. No momento, buscamos apoiadores para a itinerância da exposição e finalização de um livro sobre as haenyeo.

Para você, qual a importância de registrarmos e de transmitirmos os valores dessa cultura, ainda tão pouco conhecida?

A cultura das haenyeo carrega lições fundamentais sobre muitos temas caros a todos nós. Hoje, não temos outra saída a não ser repensar de forma consistente as nossas definições de prosperidade e a nossa relação com os recursos naturais do planeta e com as demais espécies.

Quais foram os desafios para fotografar as mulheres haenyeo mar adentro em atividade?

Foi uma experiência surpreendente. Algumas têm certa dificuldade de locomoção em terra mas, ao entrar na água, deslocam-se com muita facilidade no fundo mar. Em muitos momentos, tive dificuldade de acompanhar o ritmo daquelas senhoras, principalmente por causa da frequência dos mergulhos. Elas pareciam entrar em um estado de concentração e de transe total, que as permitia subir e descer na água sem quase nenhum intervalo entre as imersões.

Para criar o ensaio Haenyeo: mulheres do mar, você passou mais de um mês na companhia das

mergulhadoras. Quais lições você aprendeu com elas durante esse período?

Viajei para Jeju em 2017, com a expectativa de fotografar mais uma história sobre o tema da sustentabilidade, que já abordo há vinte e cinco anos. Porém, ao conviver com as mergulhadoras, outros temas surgiram de forma natural: é por isso que falo dos conceitos de pertencimento, longevidade, saúde na maturidade e da importância da convivência em comunidade. Certo dia, eu estava com uma haenyeo de 90 anos no mar e as ondas quebravam forte no costão. Sofri para sair da água e me cortei nas pedras vulcânicas afiadas. Aquela senhora, porém, soube entender as ondas, o vento e as pedras, e simplesmente saiu andando por uma passagem segura na encosta. Ou seja, percebi que a força está na sabedoria e não nos músculos ou na juventude. Ficou curioso? Por ser de natureza semimatriarcal, a cultura haenyeo permite a aproximação masculina. Em contrapartida, hoje ainda há sociedades fundamentadas na matrilinearidade, conceito da paleoantropologia que designa a descendência com base na linhagem materna — isso pode ser visto no clã indiano de Khasi, em uma região do estado de Meghalaya, e na tribo chinesa Mosueo, conhecida popularmente como Reino das mulheres; ambas lutam para manter as tradições locais.

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