Olha o menino, viu!

Page 1

OLHA O MENINO, VIU! Menino curioso, ativo, que mexe e remexe em tudo, com ele nada fica no mesmo lugar. É criativo até na hora de “aprontar”, vive a inventar moda como arapucas e armadilhas, dá um jeito de driblar a aula chata e fazer uma bagunça. Assim consegue enganar o tempo e chamar a atenção de todos. Tem força o suficiente para não se calar, para fazer um estardalhaço e expressar sua revolta. Na aula não aprende (mas aprender o que?), na hora do recreio dá um show de bola e atrai os olhares enfeitiçados das meninas. Tão novo e já quer namorar. Para muitos, esse menino tem outros nomes, já não se sabe mais qual foi o seu de batismo! É Menino-capeta, Menino-folia; Danado, Teimoso, Desobediente. Não é bom na língua da escrita, com as palavras se enrosca, com as letras embaralha, troca e não faz nexo. Então ganha, na escola e na família, o apelido de Menino do reforço. E lá se esforça, com toda força que tem para suportar mais algumas horas de exercícios insalubres de juntar e separar pedaços e despedaços de sílabas e palavras que não dizem nada e não acalentam sua sede de saber (mas saber o que?). Ele sabe voltar sozinho para casa, carrega o primo mais novo com ele, esquenta a sua comida, pega o gato no colo, coloca a maçã para tartaruga que mora no quintal do vizinho. Fica horas a fio diante do computador, concentração que nunca ninguém viu. Para e pega um skate, desliza pela rampa da casa, dá algumas voltas e mais algumas revoltas no quintal do puxadinho. Me recebe desconfiado na sua casa. Sou visita branca na casa de preto pobre. Senti os anos de história e escravidão soarem profundamente na minha pele, na minha alma. Fui tratada com regalia. Toalha bordada na mesa, copos e talheres especiais. Um menu para “madame” nenhuma botar defeito. - Hoje é dia de camarão! Eu sento para almoçar, mas ele prefere vir depois. Não fala comigo, sei dele pela fala da mãe. - É a raspa do tacho, veio por último, mais um menino. Completou a prole de três. Nasceu de parto rápido e tranquilo perto dos dois primeiros paridos na pelve, na raça e na dor. Chegou na maternidade, anestesia e mais uma cesariana na lista da modernidade.


- Veio mais um neguinho. – diz a própria mãe Estava ali, disfarçado. Só a nos escutar, meio longe, de quando em quando espiava. Sabia que falávamos dele. A mãe chamou, ele veio cabisbaixo: - Conta pra ela o que você aprontou. Você vai ver como não dá para deixar esse moleque sozinho... Ela mesma contou. Sentiu um cheiro de queimado e ele trancado no banheiro. Quando viu o Danado tinha queimado um rolo de papel higiênico. Não contive a minha risada, ela saiu, para a surpresa de todos, inclusive a dele, leve e espontânea. Enxerguei claramente a lembrança daquela “bobagem”, mesmo com todas as broncas e reprovações, vi que ela ainda despertava um brilho curioso e profundo naqueles olhos negros de jabuticaba. Tinha um certo fascínio. Me deu vontade de queimar o papel e ver, como ele, aquelas folhas leves, incandescentes esvoaçantes empesteando o ar daquele banheiro. Creio que um verdadeiro espetáculo. Uma magia, um mistério e um susto do inesperado para um resultado que não se pode prever. Eu ri, perguntei: - O papel voou? Você colocou fogo na ponta ou no rolo fechado? O fogo durou muito ou apagou logo? O papel ficou de que cor? Nesta altura do nosso papo eu já queria buscar o rolo de papel para testar as hipóteses, mas para uma convidada de primeira viagem, eu me contive. Ele respondia e eu me contentava em perguntar mais: - O papel estava seco ou molhado? Você apagou o fogo ou ele apagou sozinho? Em pouco tempo tínhamos um pequeno tratado dos efeitos do fogo no rolo de papel higiênico e mais alguns suspiros entremeados dos meus questionamentos (pra que foi discutir com Madame, né?): - Mas você não ficou com medo? Você sabia que o papel podia voar e levar as fagulhas e espalhar o fogo pela casa? E se pegasse fogo nas coisas? Para quem não queria se quer sentar perto e na mesa para almoçar, ele já estava quase no meu colo! Até buscou os livros e cadernos da escola para me mostrar as suas lições. Falamos um pouco sobre elas, mas nada nos encantou tanto e despertou nossa vontade de saber do que o fascínio das fagulhas de papel queimado que desacomodava as famílias, as leis da escola e a arrogância de um mundo desigual e seletivo. Diante daquele menino, vi que tinha muito o que aprender. Para meu entender ele ganhou outros nomes: Menino-curioso; Menino-resistência; menino-expressão; Menino- revelação; Menino –ação; menino-coração. Menino Pedro, seu nome de batismo! Tânia Fukelmann Landau 19/04/2015


Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.