Curtas de Vila do Conde - Entrevista a Miguel Dias

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entrevista: miguel dias O Festival de Curtas de Vila do Conde chega à 21ª edição, apresentando um vasto leque de projectos. A Metropolis conversou com Miguel Dias, Director do Festival, sobre os destaques deste ano e sobre a história do Curtas.

TATIANA HENRIQUES

Quais são os principais destaques desta edição? Poderia mencionar alguns dos filmes apresentados nos programas de competição que me impressionaram bastante, mas como não é da competência da direcção do festival colocar em destaque filmes da competição – para isso convidamos um júri competente – aqui ficam algumas sugestões que me parecem evidentes: a primeira longa-metragem de Basil da Cunha em estreia nacional, as mais recentes produções do nosso projecto Estaleiro e a retrospectiva Bill Morrison. Nos dois primeiros casos porque consolidam a presença e o grande interesse que desperta o cinema português neste festival e no caso de Bill Morrison pela oportunidade de conhecer a obra de um dos maiores mestres do cinema

experimental actual, cujo trabalho de recuperação da memória das imagens em movimento tem o seu expoente máximo no filme Decasia, brilhante meditação sobre o cinema mudo e a deterioração da película. Esta retrospectiva faz uma ligação óbvia à exposição paralela FILM, que estará patente durante as datas do festival na Solar – Galeria de Arte Cinemática e que se prolonga até Setembro. Quais são as secções de competição? As mais generalistas e que apresentam filmes de va r i a d í s s i m o s géneros são a Competição Internacional e a Competição Nacional. A par destas, existem secções competitivas mais específicas dedicadas ao cinema miguel dias


experimental, aos filmes de estudantes de escolas portuguesas de cinema e audiovisual (Take One!) e aos filmes para crianças (Curtinhas). Em que vão consistir os filmes-concerto? A secção Stereo explora a intersecção do cinema com a música, tendo o Curtas uma tradição já bem enraizada neste campo nomeadamente pela realização de filmes-concerto ou de outros modelos em que essa contaminação entre as duas linguagens possa ser desenvolvida. Nesta 21º edição, apresentamos várias propostas, duas delas em estreia absoluta: a encomenda de uma banda sonora aos Zelig para um clássico do cinema mudo pouco conhecido, “Bucking Broadway” de John Ford, e um espectáculo audiovisual que João Vieira desenvolverá a partir das canções do seu novo projecto White Haus.

As outras duas serão recriações de projectos já existentes: os filmes de Paulo Abreu serão musicados ao vivo pelos próprios autores da banda sonora original e, embora existam alterações relativamente às versões já apresentadas anteriormente, Vítor Rua irá reproduzir a sua própria banda sonora para o filme Barba e Rita Redshoes com The Legendary Tiger Man farão o mesmo para o filme Facínora. Quanto a “The Golden Age Of Danish Pornography”, trata-se de um projecto editado em DVD e em LP, em que uma série de curtasmetragens pornográficas dinamarquesas dos anos 70 são o ponto de partida para a música de Alex Puddu. Ao vivo, é de esperar uma aproximação mais jazzística e improvisada a um universo musical onde as principais referências são o funk, o easy listening e a library music.


Quais são os critérios para a selecção dos filmes exibidos? Eis uma questão nada fácil de responder, até porque existem, como foi atrás explicado, várias secções muito diferentes entre si que fazem do Curtas Vila do Conde um festival eclético e abrangente – por exemplo, existem poucas semelhanças entre os critérios utilizados para a selecção de filmes experimentais ou para os filmes para crianças, tendo apenas em comum o facto de querer obter uma programação de qualidade. Existe uma grande dose de subjectividade à partida, pois os filmes são vistos por um número bastante alargado de pessoas, que vai muito para lá da equipa que organiza o Festival. Pretende-se que cada um traga um outro olhar, as suas próprias experiências enquanto espectador de cinema. Essa subjectividade tem sempre muito que ver com a questão do gosto. Depois, há alguns critérios mais objectivos: serem filmes inéditos em Portugal, apresentarem uma diversidade de registos e de géneros (animação, documentário, ficção...), ou uma diversidade geográfica, onde nos interessa objectivamente mostrar um pouco do que se faz em todo o mundo.

Janeiro de 2011 e se prolongou por dois anos de actividade. Pretendeu ser uma plataforma contínua de programação cultural, estruturada em diferentes eixos: a produção de filmes, a organização de workshops e masterclasses (tanto para um público infantil como para um público universitário), as exposições e um ciclo alargado de concertos. Sempre numa perspectiva de desenvolvimento regional, através do apoio e incentivo à criatividade e à produção artística, criando saber, formando equipas, postos de trabalho sazonais, participando dum esforço tão revitalizador quanto necessário para a economia local e por isso incentivador de novas oportunidades de negócio e de trabalho em rede a partir de Vila do Conde. Entre algumas realizações de carácter efémero e outras mais perenes, ficam para o futuro, sobretudo, as

Pode falar-nos um pouco sobre o projecto Estaleiro? O Estaleiro foi um projecto especial que se iniciou em decasia


Até ver a luz

produções de filmes, cujos resultados nos surpreenderam a nós próprios pela sua qualidade e universalidade, que extravasou em muito o âmbito regional inicial do projecto. A propósito, serão conhecidos no próximo Curtas os últimos trabalhos desta série. Esperamos que esta experiência não fique por aqui e que tenha continuidade, pelo menos nesta área da produção, e novos desenvolvimentos poderão ser conhecidos nos próximos meses. E do que se trata o programa “Film”, que combina uma exposição com um programa de cinema? A ideia base partiu de uma reflexão sobre a condição do cinema e a presença física da película enquanto matéria prima para a expressão artística em plena era digital, onde essa presença surge de repente tão frágil como insubstituível. O declínio, que parece irreversível, do uso da película e da impressão fotoquímica das imagens, arrasta consigo

a própria decadência de um modo de fazer e de produzir que, no limite, poderá levar ao seu completo esquecimento, e uma parte importante das suas potencialidades nunca poderá ser substituída pela mera transcrição para suportes digitais. Eu diria que se trata de uma exposição que reflecte, igualmente, sobre tudo aquilo que podemos perder quando o último stock de película fotossensível se esgotar. Esta exposição conta com a presença de alguns dos maiores nomes do cinema experimental contemporâneo, como Gustav Deutsch, Peter Tcherkassky ou o já citado Bill Morrison. A programação alterou-se de alguma forma devido à actual situação de crise? O mínimo possível e com o menor impacto possível, mas sim, existem pequenos sinais dessa alteração, nomeadamente no total de sessões apresentadas, que é este ano um pouco menor relativamente ao ano anterior. No entanto, a maior parte dos

metropolis - festival de curtas de vila do conde


efeitos da crise têm impacto em outros aspectos menos visíveis da organização do festival, não quisemos de modo algum que a programação fosse afectada. Por outro lado, a verdade é que a crise afecta muito menos o Curtas que outro tipo de organizações, pois este Festival nunca foi fácil de montar em termos financeiros, digamos que nesse aspecto já estamos habituados a lidar com “crises”, resultado de algum desprezo a que sucessivos governantes votam a cultura, que se reflecte menos no discurso e mais na dotação orçamental, e na indiferença generalizada por parte de privados, pois o mecenato cultural não funciona de facto neste país. É a 21.º edição do Curtas de Vila do Conde. Qual é o balanço possível ao longo destes anos? Num balanço de duas décadas,

metropolis - festival de curtas de vila do conde


que só pode ser muito positivo, gosto sobretudo de registar um paralelo muito interessante com a evolução do cinema português deste período. Ao longo da sua história, o Festival assistiu ao aumento gradual na produção das curtas portuguesas - e à crescente qualidade daí resultante. Entretanto, e desde esses primeiros anos do Festival, muita coisa mudou, a propagação do digital agilizou os meios de produção multiplicando a quantidade de filmes, e dificultando a prospecção daquilo que julgamos que irá ser importante no cinema português do futuro. Esperamos, neste aspecto, que possamos continuar a mostrar em primeira mão os trabalhos dos mais talentosos cineastas da próxima geração. Apesar de todas estas mudanças, o Festival não perdeu relevância, antes pelo contrário, penso que conseguimos acompanhar

os fenómenos emergentes no campo das artes e a evolução da linguagem cinematográfica. A ocupação dos espaços tradicionais do cinema, mas também de novos espaços (Solar – Galeria de Arte Cinemática e outros), com as exposições temáticas, as instalações vídeo e as performances som / imagem, ilustram esse crescimento. Outros aspectos importantes desta evolução foram a abertura de uma competição de filmes de estudantes portugueses, o Take One, e ainda o Curtinhas, com filmes e actividades para as crianças. Finalmente, um momento muito importante foi a passagem para o Teatro Municipal em 2009, que por si só aumentou o público do Festival em cerca de 50%, e nos anos recentes temos verificado sobretudo uma participação muito maior do público local. A partir de uma certa altura, o sucesso do Curtas só seria

possível quando integrado na cidade a todos os níveis, e sustentado nessa ligação local. Sobretudo, espero que o Festival possa ter tido uma influência positiva nas pessoas, que possa ter mudado, pelo menos um bocadinho, as suas vidas, que pelo menos algumas delas tenham orgulho no festival e através dele sintam um vínculo ainda maior com a sua cidade, com a sua comunidade. Em termos físicos, a mudança também se faz notar, pois o festival e o Curtas Metragens em geral foram actores de primeiro plano na regeneração urbana da cidade, quer através da animação que trouxe a locais recuperados, como a Galeria de Arte Cinemática no Solar de São Roque, quer na preservação do Cine-Teatro Neiva e sua reconversão no Teatro Municipal.


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