Entrevista a Daniel Monzón

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Daniel Monzón em entrev Daniel Monzón é um cineasta espanhol que se entrega de corpo e alma a cada obra. Mais conhecido pela obra «Cela 211» (2009), o argumentista e realizador chega ao seu 5.º com «El Niño». A propósito do CineFiesta 2014, no qual foi um dos convidados, a METROPOLIS conversou com Daniel Monzón sobre o seu novo filme e a sua paixão antiga pelo Cinema. tatiana henriques 122 metropolis Janeiro 2015


vista

Como começou a sua ligação com o Cinema? Apaixonei-me pelo Cinema aos 7 anos de idade. A minha avó levou-me a ver «King Kong» e aquele filme transportou-me a outro universo. Para mim, foi como uma explosão de uma bomba atómica na minha vida. Desde esse momento, não pensei noutra coisa do que, em algum dia, fazer Cinema. Comecei a ver filmes, fui autodidacta. Aprendi o que sei de Cinema vendo Cinema, a escrever sobre Cinema – fui jornalista de cinema, trabalhei em rádio, televisão e imprensa escrita – e escrevi guiões que foram realizados por outras pessoas. Conheci realizadores importantes que admirava muito, como Woody Allen, Roman Polanski, Steven Spielberg. Entrevistava-os e fazia-lhes perguntas mais do que como jornalista, mas como um rapaz que queria realizar algum dia. Essa foi a minha escola, mas é algo vocacional. Senti, aos meus 7 anos, com uma força indescritível, que queria fazer Cinema e, finalmente, tenho a sorte de poder fazê-lo. Quais são as suas referências cinematográficas no seu trabalho? Vi tanto Cinema que penso que todos os filmes que vi – bons ou maus – me influenciaram. Há filmes que as pessoas consideram que são maus, mas em que também há algo desse filme ou determinadas sequências que me disseram alguma coisa e moldaram o meu olhar. Os meus primeiros três filmes são muito cinéfilos, de alguém que viu muito Cinema. Agora, quando filmo, tento não pôr uma referência cinematográfica clara para não ser mimético, para não repetir coisas que vi ou que já foram feitas. Mas, claro, todos esses filmes que vi estão entranhados em mim e os meus filmes são Foto: Luis Tosar e Daniel feitos por Monzón (no centro) na alguém muirodagem de «Cela 211» to cinéfilo. (2009) Quando era jovem, tinha Janeiro 2015 metropolis 123


três realizadores que admirava profundamente – e que continuo a admirar –, posso citar três nomes que foram os meus grandes mestres à distância, porque aprendi a ver os seus filmes, a ler sobre os seus filmes e pensar nos mesmos: Alfred Hitchcock, Orson Welles e Luis Buñuel. Estes três realizadores foram importantíssimos para mim, na minha educação sentimental, digamos. Mas adoro todo o tipo de Cinema. Quando era jovem, gostava dos filmes de um cineasta americano, John Carpenter, que fazia filmes de série B, porque encantava-me a maneira de como, com muito pouco dinheiro, era capaz de fazer filmes muito emocionantes, trepidantes e espectaculares. É algo que aplico cada vez mais, porque tenho orçamentos reduzidos e tento fazer filmes emocionantes e espectaculares. Como surgiu a ideia para «El Niño»? Há já algum tempo que escrevo os meus argumentos com Jorge Guerricaechevarría, um homem basco de muito talento e um companheiro de aventuras excepcional – porque fazer um filme é uma aventura. A origem de «El Niño» está numa tarde em que estávamos a escrever o guião de outra coisa e ele disse-me “Sabes onde penso que pode haver base para um filme interessante? Os jovens que passam em lanchas na fronteira entre Marrocos e Espanha, no Estreito de Gibraltar”. Ele disse-me isso e eu respondi logo “Vamos parar”, porque a imagem surgiu-me na minha mente de uma forma muito intensa – a origem de um filme sempre tem a ver com uma ideia ou com uma imagem muito simples, mas muito contundente, que entra em ti como se fosse um vírus, como se fosse uma doença que germina instantaneamente. De seguida, vi a imagem de alguém, a toda a velocidade, numa lancha – essa imagem tinha muita força. Parámos o guião que estávamos a escrever, entrámos no YouTube e vimos que havia uma série de gravações feitas pela polícia de perseguições a estes rapazes que faziam com helicópteros, eram vídeos que a polícia colocava para dissuadir os delinquentes. Paralelamente a isso, os mesmos delinquentes utilizavam essas gravações, remontavam-nas, 124 metropolis Janeiro 2015

punham músicas e transformavam-nas em algo completamente diferente, como uma glorificação do acto criminoso de traficar. Logo percebi que esta história tinha que ser contada a partir das duas perspectivas. O ponto de vista da lei e o do delinquente. Considerei que essas perseguições tinham uma força invulgar e que não se vê muito no Cinema. Perseguições no mar com helicópteros e lanchas não são algo habitual. Pensei que, por um lado, poderia ser um grande filme de acção, e um filme que fala de um tema – narcotráfico no Estreito de Gibraltar – que também não tinha

sido visto no Cinema. Assim, eu e o Jorge fomos para o Sul de Espanha e a Marrocos, no norte de África, e estivemos oito meses na zona, onde falámos com polícias e delinquentes. Foram ambos os lados que nos contaram a história. Quisemos falar com todos, viver tudo na primeira pessoa – estive num helicóptero da polícia e numa lancha de traficantes – e toda a história de «El Niño» surge da realidade. Contámos de uma maneira dramática, mas é reflexo do que nos contaram e do que vivemos no Estreito de Gibraltar, que é conhecido como a


Porta da Europa, porque é por ali que passam quase todas as mercadorias que vão para a Europa. Esse ponto quente que é muito conhecido internacionalmente ainda não tinha, contudo, um filme sobre isso. Quais foram as maiores dificuldades na realização desta obra? Foram muitas, muitas. Queria que o filme, além de ser de acção e espectacular, fosse muito realista e queria filmar em todos os sítios reais, nas fronteiras. Imagine o que é gravar nas fronteiras e todos os problemas que isso implica. Filmámos em alguns bairros mar-

ginais em que nem sequer a polícia se atreve a entrar e nós entrávamos com as nossas câmaras – chegámos a gravar em plantações de marijuana. Além disso, queria que os protagonistas fossem interpretados por pessoas das ruas, porque um actor profissional não teria o sotaque tão característico do Sul e eu queria a autenticidade que ouvia quando falava com as pessoas de lá. Fiz uma audição, em que participaram mais de 3 mil rapazes, até que surgiram os protagonistas, que são dois rapazes que nunca tinham pensado entrar num filme. Isso foi tam-

bém um desafio: ter, por um lado, actores muito profissionais e outros que nunca tinham feito nada no Cinema. Foi uma dificuldade acrescida, mas penso que o resultado final é espectacular, porque alberga muita verdade e frescura e os actores profissionais também se contaminaram desse naturalismo com que eu queria que o filme fosse contado. Filmei as sequências de acção sem efeitos especiais, não há efeitos digitais nas perseguições e filmámos de forma real. Os actores são os que pilotam as lanchas, sem nenhum truque digital. Janeiro 2015 metropolis 125


A equipa também sofreu como os actores com as inerências de filmar no mar. Queria que o filme fosse realista, incluindo nas cenas de acção, para que o espectador vivesse toda esta acção de uma forma física. Estou um pouco cansado dos grandes espectáculos de efeitos digitais que vêm de Hollywood. São artificiais? Sim, sim. Aborrece-me. Penso que os efeitos visuais são muito valiosos e uma ferramenta muito útil para muitas coisas, mas depender um espectáculo exclusivamente dos efeitos especiais, a mim – talvez me esteja a superiorizar – aborrece126 metropolis Janeiro 2015

me. Este filme recupera o sabor desse cinema de acção dos filmes dos anos 1970, em que vias que tudo era de verdade. As suas influências… Sim, exactamente. «El Niño» é uma ficção, mas poderia ser um documentário, certo? Totalmente. Pensou nessa opção? De alguma maneira, o filme está rodado com um certo olhar documental. Agora que o filme está a ter a sua carreira internacional – já estive em Inglaterra, Suécia, agora estou em Portugal –, no Festival de Cannes tive

comentários dos EUA, Hungria, Checoslováquia, Japão... Todos me diziam que o filme era quase uma viagem antropológica à zona do Estreito. O filme é quase uma viagem turística e humana ao Estreito de Gibraltar e, mais concretamente, ao narcotráfico. O que pensa do cinema espanhol actualmente? Interessa-me e gosto muito. Está a evoluir? Gosto muito do Cinema que se faz em Espanha, tal como gosto bastante do que se faz em Portugal. Gosto de filmes de todos os territórios

porque fui muito cinéfilo. Gosto sobretudo que um filme tenha uma personalidade própria. Penso que há obras muito valiosas e muito interessantes no Cinema espanhol desde o início dos tempos. Talvez ultimamente o espectador espanhol tenha estado, durante algum tempo, alheado, parecendo que não tinha interesse no cinema espanhol, mas está a recuperar o interesse pelo seu próprio Cinema. Este ano, concretamente, dos 10 filmes mais vistos do ano, há 5 espanhóis e isto é estupendo. Nesse sentido, creio e espero que o Cinema Espanhol está a recuperar o interesse.


Fotos: Jesús Castro (direita), Luis Tosar (baixo)

Que outros projectos tem na calha? Tenho várias coisas na mesa e estou no momento em que me despeço de «El Niño» – que ocupou durante anos toda a minha energia, carinho, paixão e entrega e tenho que decidir. Demoro por volta de 3 anos a fazer um filme, estou também no processo de escrita do argumento... Assim, tenho que estar muito convencido no que me meto porque vai ser a minha vida durante 3 anos, é quase como escolher uma companheira – tenho que estar verdadeiramente apaixonado, porque o caminho é longo. Tenho que parar algum tempo e perceber exactamente o que me apetece.

argumento e quer ser um dos protagonistas. Tenho outros projectos e tenho de perguntar a mim mesmo o que é me apaixona verdadeiramente. Porque, se não estás apaixonado pelo que fazes, não podes transmitir a tua paixão à equipa com quem fazes o filme e depois ao espectador. Se não gostas realmente do que estás a fazer, é impossível que o espectador adore o filme. Tem que te apetecer submergir no Universo do filme. No caso do meu filme anterior,

«Cela 211» (2009), estive em cadeias, falei com presos, alguns homicidas. Era uma história que queria contar, mas havia momentos em que estava nesses ambientes tão amargos, sórdidos e tristes, que me perguntava a mim mesmo “por que decidi fazer isto?”. E não sabia explicar, mas havia algo que me impulsionava a fazê-lo e, no final de contas, estou incrivelmente orgulhoso do filme, que foi um sucesso internacional, mas o processo que poderia ser, algumas vezes, duro, era, sem dúvida, muito interessante, porque, humanamente, enriqueceu-me muito. Um filme leva-te a ter oportunidades de conhecer realidades, pessoas, universos, que nunca conhecerias de uma maneira tão estreita e íntima. Tal como aconteceu com «El Niño»? Sim, conheci uma realidade interessantíssima, de uma maneira muito profunda. Viajei por alguns locais de uma beleza tremenda e outros muito deprimidos. A aventura tem que chamar-te, por algum motivo.

Tenho uma comédia negra escrita para rodar em Inglaterra com actores ingleses. Uma comédia muito divertida e muito negra, uma espécie de comentário à grande crise europeia. Por exemplo, há um actor britânico que adoro, o Ian McShane, que gosta muito do Janeiro 2015 metropolis 127


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