Entrevista a João Pedro Plácido

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joão pedro plácido Como começou a sua ligação com o cinema?

entrevista de tatiana Henriques

João Pedro Plácido juntou à sua carreira como diretor de fotografia um novo desafio: a realização. O resultado foi o documentário «Volta à Terra», que revela um retrato dos habitantes da aldeia transmontana da Uz. A obra será apresentada na secção “Regard Neuf”, do renomado festival de documentários Visions du Réel, que se realiza na Suíça. A METROPOLIS entrevistou João Pedro Plácido sobre o filme, que foi também vencedor da competição portuguesa do Doclisboa’14.

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Na tenra infância, mesmo antes de frequentar a escola primária. Tinha uma tia que, de vez em quando, me deixava no cinema Ávila e no cinema Nimas. Trabalhava ali perto e, no final das sessões, ia buscar-me. Lembro-me claramente do medo que passei desacompanhado na sala de cinema, de olhos semicerrados, com a cena de abertura do «E.T.». Ainda hoje recordo com clareza a luz e o som daquela cena, o ruído feroz dos motores e dos jipes a invadir a floresta à noite. Também me lembro de chorar de alegria e emoção no final. Para um miúdo de 4 ou 5 anos, são experiências que ficam para sempre. Foi aí que começou o prazer de ir ao cinema, de sujeitar o corpo e a mente à experiência semi-hipnótica que é ver um filme. Os meus pais perceberam a minha paixão pelos filmes e ofereceram-me um gravador VHS aos 10 anos. Gravava os filmes da televisão e copiava os do clube de vídeo. Mais tarde montava filmes caseiros com a câmara Hi8 que recebi aos 13 anos, uma verdadeira aprendizagem! Depois foi seguir o curso natural das coisas: Escola António Arroio, Escola Superior de Teatro e Cinema e um ano fabuloso a estudar em Babelsberg, na Alemanha. Seguiu-se a carreira desde assistente, operador de câmara,


até diretor de fotografia. São já 16 anos de experiência mas em Portugal é quase impossível uma carreira exclusivamente dedicada ao cinema, pelo que atualmente trabalho mais no estrangeiro. Como surgiu a ideia para a génese de «Volta à Terra» e como foi o desenvolvimento do projeto? A minha família materna vem do Lugar da Uz, onde decorre a ação e onde viveram os meus avós até eu nascer. Fui criado em Lisboa por gente do campo e todas as férias ia para a Uz, um local invisível na maioria dos mapas. Quando comecei a viajar de mochila às costas procurei sempre locais assim, fora do mapa. Vi que existem em todo o mundo, em toda a Terra, onde vivem as pessoas mais simples, com menos posses e, por sinal, também as mais generosas. Admirei sempre as pessoas

do mundo rural pela opção de vida que representam, embora pudessem emigrar decidiram ficar. O não-consumismo que as caracteriza, o seu espírito de respiga, são para mim reflexo de uma certa sabedoria, uma filosofia assente na empatia com a terra e os animais, o que muito admiro. É também devido a eles esta minha oscilação entre a cidade e o campo. Admirando pessoas e locais assim, era inevitável que viesse a desenvolver o desejo de fazer filmes com esta temática. Na adolescência filmei umas coisas na Uz, tentei uma curta-metragem em

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1999, mas nada foi concluído por falta de meios. Mais tarde, andava pela região com a realizadora Laurence Ferreira Barbosa em busca de um determinado lugar, encontrei umas pessoas, que filmei com a câmara fotográfica de bolso enquanto falávamos. Ao ver as imagens, tal era a cumplicidade gerada, ela disse-me que eu tinha de fazer ali um filme. E assim foi, comecei a escrever o projeto e esperei pacientemente pelo apoio do ICA. Sabia que o que tinha em mente não era exequível indo sozinho para a Uz de câmara e microfone em riste. Precisava de uma estrutura de produção que O Som e a Fúria 128 metropolis Maio 2015

proporcionou e muito bem. Esta é a primeira vez que realiza uma longa-metragem. Quais foram os maiores desafios e dificuldades? Estive tão bem acompanhado por amigos e colegas na realização do filme que não posso apontar uma dificuldade em particular. Foi interessante sair da minha zona de conforto e sentir o mesmo que os realizadores com quem tinha trabalhado costumam experienciar. Aprendi muito com todos eles. Como diretor de fotografia, tive o privilégio de assistir várias vezes ao processo criativo dos realizadores e ao nascimento de um filme, pelo que não posso apontar desafios ou dificuldades maiores para além do que é habitual sentir-se, seja na montagem ou nas restrições orçamentais. O meu produtor soube sempre escolher as pessoas certas, de excelência profissional, para


imagens – para as histórias que eles queiram contar.

me acompanharem em cada momento do processo. Pensa que poderá ser uma experiência a repetir? "Nunca digas nunca", é uma frase comum, mas igualmente sábia. Uma coisa é certa, embora adore filmar não me sinto impelido a realizar. Sou diretor de fotografia e operador de câmara, é essa a minha profissão, é esse o meu hobby, sinto-me extremamente privilegiado com isso. O meu objetivo maior é continuar a colaborar com realizadores, atrás da câmara, contribuindo com a minha arte – a de criar

O filme será apresentado na secção "Regard Neuf", no Visions du Réel. Quais são as suas expectativas? Penso que ainda não me inteirei verdadeiramente do que está para vir. Mais do que expectativas, tenho curiosidade em ver a reação de estrangeiros a uma certa realidade rural, que é a nossa, e inexistente noutros países, como é o caso da Suíça ou a Alemanha. Acima de tudo, interessa-me que os espectadores, mesmo aqueles sem afinidades ao mundo rural – sobretudo esses –, sintam a beleza do amor que aqueles agricultores têm por aquela

forma de vida, pelo trabalho, a terra, os animais, e como essa paixão comum os torna solidários. Enfim, um enorme equilíbrio entre dar e receber, uma espécie de simbiose entre homem e natureza. Que outros projectos tem na calha? O único projeto que tenho de realização é para daqui a 15 ou 20 anos, talvez mais. Aí darei conta das mutações sofridas pelo mundo rural, sobretudo no Lugar da Uz, comparando-o com este primeiro registo daquela que considero uma forma ainda pura de subsistência. Estas pessoas estão em vias de desaparecer. Quando eu era miúdo viviam ali cerca de 130 pessoas, agora restam 54. Todos conhecem a desertificação, mas há muito mais além dos números. A ver vamos!

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