Entrevista - Mauricio Eça

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Mauricio Eça curtindo a apneia Mauricio Eça é já um renomado realizador brasileiro de videoclips no Brasil, mas estreia-se agora com uma primeira longa-metragem forte e irreverente: «Apneia». A obra foi exibida no FestIN e a METROPOLIS conversou com o cineasta sobre a sua paixão pelo cinema, o processo inerente à realização de «Apneia» e sobre o cada vez mais produtivo cinema brasileiro. tatiana henriques

Como começou a sua relação com o cinema? A minha relação com o cinema começou desde pequeno. Sempre gostei de assistir e o meu pai é publicitário, então ia muito a sets de filmagens de anúncios de televisão. Estudei cinema, formei-me em cinema e o incrível foi que, no ano em que me formei, o nosso presidente maravilhoso, Fernando Collor, acabou com a EMBRAFILME, que era o órgão que regulamentava e ajudava a subsidiar um pouco o cinema brasileiro. O que aconteceu foi que nesse ano foram produzidos exactamente zero filmes no Brasil. Formei-me com essa perspectiva, de não ter o que fazer no cinema, não tinha para onde ir. Acabei, naturalmente, por entrar na publicidade, fui trabalhar com cinema publicitário, que acabou sendo uma das minhas grandes

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escolas. Aprendi muito. Fiz uma carreira de produção, até chegar à direcção de publicidade, e também, depois, de videoclips. Tanto a publicidade como a music video têm formatos e linguagens muito diferentes do cinema, mas que me ajudaram quando finalmente consegui fazer cinema. Porém, de qualquer forma, o cinema sempre me esteve na alma e no coração. Agora, o Brasil tem uma retomada, está a produzir-se bastante no Brasil. Então, comecei com o projecto da «Apneia», demorou quase seis anos para fazer esse filme. Quais são as suas referências ou ídolos cinematográficos? São muitos! Woody Allen, Scorsese, Kubrick, Fellini… São muitos, mas gosto bastante desses.


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fazer esse filme e finalmente a lançá-lo, para mim, é um filme que trata de pessoas que não querem ficar sozinhas, é um filme que trata sobre solidão, sobre pessoas que querem ser amadas, todas elas querem ser amadas de alguma forma, querem chamar a atenção, querem pertencer a esse mundo.

A protagonista do filme sofre de apneia do sono. Mas acaba por ser uma metáfora da própria existência dela, certo? Poderia falar-nos um pouco sobre isso? Sim, é verdade. Vim a Lisboa no início de 2007 e fui ao Oceanário, que nunca tinha ido. E, lá, tinha uns poemas da Sophia de Mello Breyner e eu li uns versos que diziam: “Quando eu morrer voltarei para buscar os instantes que não vivi junto do mar”... Aquilo tocou-me – até comprei o livro dela – e foi uma primeira influência e inspiração para fazer «Apneia». O filme conta a história de uma classe social que eu quis retratar que normalmente as pessoas não retratam muito no cinema, uma classe social um pouco mais alta, e poder contar um pouco de um tema tão universal, como o tédio, a falta de perspectiva, falta de limites. São meninas que podem ter tudo mas não têm 162 metropolis Maio 2015

nada porque não dão valor às coisas, não sabem o que podem ou não fazer, até onde podem ir. É um vazio existencial. O filme fala um pouco sobre isso. «Apneia» veio, na verdade, dessa inspiração lusitana (risos), uma coisa que tinha muito elemento água na minha cabeça e assim fiz essa metáfora com a apneia do sono. A protagonista, quando tem apneia do sono, está numa espécie de paragem respiratória, uma espécie de adormecimento do mundo. Ela não entra em contacto com as coisas dela, ela faz as coisas sem pensar, sem julgar, ela não sabe o que é certo ou errado e então vai fazendo. É um pouco disso que trata o filme. Mas, ao mesmo tempo, são três meninas muito parecidas, fazem parte da mesma camada social e frequentam os mesmos lugares, mas também são muito diferentes, têm características diferentes. Mas acho que, depois de quase seis anos a

No filme, ao mesmo tempo que são jovens muito ricas, vemos também um mundo muito decadente. Em que se baseou para contar esta dicotomia? Talvez em histórias de algumas pessoas que me contaram, um pouco sobre o mundo que estamos a viver, que é uma coisa em que a comunicação é muito intensa, muito rápida mas ao mesmo tempo muito vazia. As pessoas têm muita informação mas consomem-na de uma maneira muito desprezível. Queria contar sobre essas meninas dessa idade e fiz até um anúncio no Facebook à procura de meninas que tivessem mais ou menos esse perfil para que me contassem algumas histórias. Essa troca ajudou-me um pouco nesse processo. O roteiro é meu. Quase no final do processo, entrou uma outra roteirista, que até é uma jovem que me ajudou principalmente com os meus diálogos. É um filme muito feminino. Sim, é muito feminino e as


personagens masculinas são até um pouco negligenciadas e fracos de carácter, não é? Sim, são. Ou são manipuladores ou são manipulados, ou as duas coisas. Como é que escolheu o elenco? Aliás, a protagonista tem uma interpretação fortíssima. Sim, ela está muito bem no filme. A Marisol [Ribeiro] é minha amiga e está no processo desde o início. É engraçado porque, no princípio, ela era um pouco como a Cris e, no decorrer dos anos, foi mudando muito. Tanto ela como a Thaila [Ayala] e a Marjorie [Estiano] ajudaram-me muito no processo do roteiro, com troca de ideias, eu escrevia e mandava e elas davam ideias. Foi um processo bacana. No final, prestes a começar a filmar, ensaiámos e aí descobrimos finalmente o que cada uma tinha de falar, quem era cada uma, a relação de umas com as outras, como isso seria interessante para o filme. Fazer cinema foi, para mim, uma escola muito louca. Trabalhar com dramaturgia é muito denso, muito difícil e esse foi o meu primeiro trabalho e foi um desafio muito grande, mas o que tirei muito disso é a coisa que cada cineasta procura que é qual o filme que você quer contar, o que tem que estar no seu filme? Porque, às vezes, colocamos coisas no filme que não é preciso, que estão

a mais. E penso que esse é o grande desafio do cineasta, entender que filme quer contar e o que é preciso ter para contar essa história. Só. E ficou contente com o resultado final? Era o que queria fazer? Fiquei, com certeza (risos). Continuo a ter ideias, queria continuar de alguma forma, ainda. Mas estou contente, com certeza. Também foi realizador de videoclips e notei que a banda sonora no filme tem um cunho especial, nota-se algum cuidado. Teve influência nesse processo? Sim, gosto muito de música e trabalho muito com música e com fotografia como referência – e literatura, claro. Mas música é realmente especial. Videoclip é uma coisa de você contar uma história baseada numa canção, num ritmo ou sensação. Tinha muitas cenas no «Apneia» que, para mim, vinha primeiro a música e só depois a imagem e, às vezes, a criação invertia-se. Ou cores, às vezes, pensava que a cena tinha uma cor mais fria e concluía que precisava de uma música mais triste. Foi interessante. Como fiz muitos videoclips, tenho vários grupos amigos que me cederam canções para o filme. No filme, todas as vozes que cantam são vozes femininas, já que era um filme tão femi-

nino. Foi uma escolha minha ter só vozes de mulheres. Já me disse que este filme foi um grande desafio. Quais foram os principais obstáculos? Sim, é verdade. Primeiro, o grande obstáculo foi conseguir escrever esse roteiro, porque eu não sou roteirista, então foi um processo até de auto-conhecimento e de entender como se conta dramaturgia em imagem, palavras. Esse foi talvez o maior desafio. Escrevi e fui mudando o roteiro quase até ao início das filmagens e depois na edição ainda alterei algumas coisas. O roteiro é uma espécie de organismo vivo que acaba só quando o filme está pronto (risos). Descobri isso neste processo. Outra coisa difícil nesse processo foi conseguir dinheiro para fazer o filme. Porque é um filme forte, no qual não fiz concessões, não me vendi a nada, não precisei de agradar a ninguém, por isso, os patrocinadores que entraram acreditaram no trabalho. Até conseguir esses patrocinadores foi difícil. Mas a reacção foi boa no Brasil, certo? O filme esteve várias semanas em sala. Sim, o filme esteve 12 semanas em cartaz no Brasil, num circuito pequeno, não foi um circuito muito grande, mas chegou em vários estados e cidades. Foi bem legal. Maio 2015 metropolis 163


As críticas foram positivas no Brasil e agora estamos a começar o circuito nos festivais. Eu fiz o inverso. Normalmente, cineastas brasileiros com filmes autorais, independentes, como o meu, vão primeiro para festivais e depois entram em cartaz. Mas como eu consegui uma distribuidora que queria lançar o filme, resolvi inverter. O FestIN foi o primeiro festival, depois para o próximo mês vai ser o de Milão e assim segue, espero (risos). O que lhe parece este Festival? Muito giro (risos). Essa iniciativa de só ter filmes de língua portuguesa é muito bacana, nesse cinema tão histórico [Cinema São Jorge]. Os filmes brasileiros que estão a participar são interessantes e diferentes entre si. É bem legal, um festival que penso que realmente tem força para crescer mais. Como vê o cinema brasileiro actualmente? O cinema brasileiro teve uma boa retomada, sobretudo

com as comédias. Até nos últimos anos teve bilheteiras muito grandes comparadas com filmes americanos. Mas principalmente comédias, muito comerciais, mas que estão a atingir um grande público. Essas comédias não me agradam totalmente, mas acho que é muito legal, porque estamos a conseguir criar um novo público para o cinema brasileiro, um público que não via cinema brasileiro. Tem comédias divertidas, mas penso que o grande desafio agora para o cinema brasileiro é conseguir ter outro género tão forte como são as comédias. Por exemplo, o «Apneia» é um tipo de filme que não atinge um grande público ainda no Brasil e a receptividade que tive foi boa. Por isso, acho que vai começar a haver mais produções desse tipo. No Brasil, está a produzir-se demais agora, nunca vi como está actualmente, tanto filmes como séries. Também com mais qualidade… Mais qualidade, mais quantidade e eu realizei há pouco

tempo a minha segunda longa-metragem, que é um filme infanto-juvenil, que se chama «Carrossel» e é baseado numa novela mexicana de muito sucesso, passada numa escola. É um filme de férias. A novela também fez muito sucesso no Brasil. O filme é uma progressão da novela. As crianças saem da escola e vão para um acampamento de férias e já cresceram um pouco. Foi um desafio completamente diferente. Primeiro, porque sou um director contratado, fui contratado por um produtor, já é um esquema mais comercial. É um filme mais comercial, com outro acabamento e cuidado, mas foi divertido de fazer. Trabalhar com 16 adolescentes é uma loucura. Mas é um filme de aventura, um filme de férias, bem interessante. E é também um tipo de filme que não existe no Brasil. Vai ser um filme diferente e vai ser lançado no Brasil em Julho. E que outros projectos tem neste momento? Tenho alguns projectos autorais que estou a começar, mas ainda nada certo. Também depois de 6 anos com «Apneia»… Pois, ainda estou curtindo um pouco a «Apneia» (risos).

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