“Um filme não é um tribu grande entrevista
O argumentista e realizador Miguel Gomes afigura-se como um dos principais nomes do Cinema português na atualidade. Após os sucessos de «Aquele Querido Mês de agosto» (2008) ou «Tabu» (2012), o cineasta lançou-se na criação de um verdadeiro épico, composto por três volumes e que tem por nome «As Mil e Uma Noites». Nesta entrevista da METROPOLIS, fique a conhecer melhor o português que arrebatou o último Festival de Cinema de Cannes.
tatiana henriques
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Como começou a sua relação com o Cinema? MIGUEL GOMES: Não me recordo, acho que era muito pequeno, mas começou certamente como espectador e não como realizador, como todos nós, acho eu. Provavelmente, numa altura em que não me ocorreria nunca poder fazer filmes, nem sequer sabia que era possível fazê-los ou que poderia poderia vir a ter a possibilidade de ser eu a fazê-los. Mas começou como espectador de cinema, provavelmente a ver filmes de animação. E quando é que deu o salto para o início da sua carreira de realizador? Porque antes foi crítico de cinema, certo? No liceu, decidi ir para a área de economia. Às vezes, tenho a sensação que percebo um bocado a desgraça que se passa neste país porque lembro-me das aulas que tinha de 56 metropolis Agosto 2015
economia – apesar de ser provavelmente mais novo do que as pessoas que estão no governo mas acho que já deviam ser as mesmas aulas –, em que se ensinava a gestão e tudo era visto de um ponto de vista muito contabilístico e eu era muito mau em contabilidade. Acho que era o pior aluno e percebi que não valia a pena insistir naquela área, que ia ser muito mau e nessa altura soube que existia uma escola em Portugal que então funcionava no Conservatório, no Bairro Alto, em Lisboa – agora mudou, é na Amadora. Decidi matricular-me e, no final, também para minha
melhor é desistir disto e ver se consigo arranjar outro tipo de emprego, não sei o quê, mas trabalhar em qualquer coisa que não em cinema porque em cinema ninguém me quer contratar e com alguma razão porque eu sou péssimo na área de produção”. Depois tinha uma amiga minha que era jornalista e que estava a trabalhar num jornal e me pediu para ver se eu queria escrever um texto sobre um filme, se eu podia fazer crítica. Recorda-se de qual era o filme?
desgraça, fui parar à área de produção dentro da escola de cinema, ou seja, era quase como estar em gestão ou em economia no liceu e percebi que também era muito mau, quer para tirar cafés, quer para organizar uma rodagem, fazer os telefonemas que é necessário para permitir que uma filmagem tenha lugar e tudo isso. Quando saí da escola, acho que ninguém, com razão, me queria contratar para trabalhar numa equipa de cinema, na produção, porque, de facto, não tinha qualquer tipo de talento para isso. Portanto, houve ali um momento em que provavelmente pensei “o
É de um realizador inglês, chamado Terry Gilliam, o filme chamava-se «12 Macacos» (1995). Não me lembro muito do filme, mas tinha a ver com ficção científica e tinha o Bruce Willis. Esse foi o meu primeiro visionamento de imprensa. Acabei por escrever num jornal que só existiu durante 9 meses, que era do Miguel Portas, chamado Já, era um semanário e eu escrevi durante uns meses mas depois fui convidado para o Público e fiquei lá mais três anos, acho eu, a escrever sobre cinema. Não tenho a ideia de que tenha sido um grande crítico de cinema, acho que não devo ter sido muito útil para os leitores mas foi um bocado útil para mim no sentido em que acho que esse exercício, essa disciplina de ser obrigado a ver filmes, e a pensar porque é que eu, como espectador, gostava mais de uns do que de outros, ajudou-me a clarificar algumas coisas sobre o cinema, sobre a minha relação com os filmes e com o cinema. Portanto, nesse
sentido, talvez tenha sido mais útil para mim do que para os leitores, mas o que é certo é que depois tive a oportunidade de começar a fazer filmes. E como surgiu a ideia para este «As Mil e uma Noites»? Tenho um problema com isso de uma “ideia para” porque eu acho que não há uma ideia, há muitas e que, às tantas, de forma misteriosa e não planeada, começamse a juntar e acho que tive sempre uma atração pelo livro «As Mil e Uma Noites». Desde adolescente que tomei contacto com esse livro, ia lendo – não até ao fim, nunca li o livro até ao fim. Fui lendo, fui regressando ao livro ao longo da vida. Aquilo fascinava-me, aquela estrutura, a forma como a ficção existia nesse livro, porque era uma estrutura muito barroca, em que havia histórias dentro de histórias, havia narradores que surgiam de uma forma inesperada para contar uma nova história. Portanto, havia uma espécie de um lado quase inesgotável, muito fecundo, em que, de qualquer lugar, de qualquer personagem, podiam aparecer muito mais histórias e, dentro dessas histórias, ainda podiam surgir mais histórias. E, portanto, havia um lado delirante em termos narrativos que me atraiu sempre muito. Por outro lado, a partir do momento em que se começaram a sentir mais os efeitos da crise, reconheci essa dimensão um bocado delirante e surrealista que existia no livro nas histórias da atualidade, Agosto 2015 metropolis 57
nas histórias que, se pensarmos um bocadinho nisso, provavelmente, é uma coisa que faz algum sentido, porque, digamos que não nos regemos por parâmetros de normalidade e há um excesso qualquer, uma dimensão qualquer excessiva, dramática, muito absurda, que começa a aparecer e entramos num domínio mais próximo, de facto, d’ As Mil e Uma Noites, em que o absurdo existe, quer nas histórias que a Xerazade conta, quer nas histórias da televisão sobre Portugal, em termos de crise. Teve um grupo de jornalistas a trabalhar consigo. Como foi o processo de encontrar as histórias e ficcioná-las? Todas as histórias têm uma base real? Todas elas tinham que ter, isso era um dado estabelecido à partida, tinham de ter uma base qualquer real. Podia ser quase a história toda que a Xerazade conta que era baseada numa história real ou apenas alguns detalhes ou até, às vezes, um somatório de várias histórias que se estavam a passar no país e que nós adaptávamos para uma narrativa da Xerazade, um conto da Xerazade. Essa parte da pesquisa não era do meu departamento, pertencia aos jornalistas, como a Maria José Oliveira, a quem eu pedi para contratar mais pessoas para poderem investigar. Tínhamos de ter, todos os dias, de forma quotidiana, como método de trabalho, uma ligação constante com o real e com a atualidade, que poderia ser investigada de uma forma jornalística. Eles tinham que apurar o que se passou realmente sobre determinado assunto, contactar as pessoas que tinham vivido aquela história, ir aos locais, fazer reportagem. Depois, deveriam passar-nos essa informação toda, não para nós pegarmos naquilo tudo e filmarmos exatamente aquilo que nos estavam a descrever mas para podermos efabular, ficcionar sobre esses acontecimentos reais. Às vezes, fazíamo-lo mais, outras menos, dependia de cada momento, quais eram as nossas intenções para com a história da Xerazade. Mas esse trabalho jornalístico era muito importante e o que estava definido era que durante 12 meses em que haveria um escritório e o filme estaria em fase de produção os jornalistas iriam fornecer-nos material para basearmos as nossas histórias da Xerazade nesse material.
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Por exemplo, a história do Simão Sem Tripas é baseada no Manuel Palito, certo? Sim, é baseada no Manuel Palito. Essa história é boa para falar de uma coisa que existe no filme, que foi o que me levou a agarrar aquela história e a pedir aos jornalistas que trabalharam connosco para irem à aldeia dele e falarem com as pessoas que estiveram próximas e que se encontraram com ele durante o processo de fuga dele. É uma boa história porque o que me levou a decidir a adaptar essa história para um conto da Xerazade foi algo que, de facto, ocorreu na parte final, precisamente quando foi apanhado, em que ele, quando chegou ao tribunal, teve uma receção de populares, em que alguns deles tinham cartazes
que diziam “Palito, és o nosso herói”. Isso chamou-me a atenção porque havia quase uma dimensão mítica, quase mitológica, naquela personagem, ou seja, presume que estava escrito naqueles cartazes “Simão, tu és o nosso herói” não pelo facto de ele ter disparado contra a filha dele ou contra a ex-mulher dele ou ter morto aquelas mulheres mas pelo facto de ele ter conseguido escapar àquele contingente enorme de GNR que andava à procura dele durante tanto tempo. E acho que isso tinha a ver com o filme, ou seja, esse lado de poder filmar coisas que, de facto, aconteceram, irmos para um sítio qualquer e filmarmos a solidão de uma personagem que deambula numa paisagem e que não pode ser apanhado, portanto, um fora da lei que nem se-
quer pode ter relações sociais porque está escondido, está a fugir à polícia mas, ao mesmo tempo, existe esse outro lado, que é a forma como, às vezes, a realidade é apreendida e percebida pelas pessoas, o que dá a essas personagens uma dimensão mitológica que se calhar não corresponde muito bem àquilo que foi o desempenho dessa pessoa. Havia ali um desajustamento naquilo que aquela pessoa tinha feito e a forma como ela tinha sido recebida que dizia alguma coisa, se calhar, sobre aquele tempo em Portugal e, portanto, foi por isso que nós decidimos investigar essa história. Há uma série de coisas que nós não pusemos no filme e houve um site que existiu durante a fabricação do filme, onde foram publicados os resultados Agosto 2015 metropolis 59
dessas investigações dos jornalistas e ainda está disponível [http://www.as1001noites. com]. O filme era invisível, o que era visível era quase o trabalho de pesquisa para o filme, através dos jornalistas que iam publicando o resultado das suas investigações. Houve determinadas informações que achámos que não era interessante filmar. Na história do Palito, há uma série de conclusões a que nós chegámos através do trabalho jornalístico que a mim não me interessava filmar e, portanto, o que decidimos foi que era impossível filmar, de facto, o que se passou com o Palito. Isso seria inútil, e escaparia provavelmente ao âmbito deste filme. Até podemos saber pela nossa investigação coisas que são bastante plausíveis que se terão passado durante esse período mas isso se calhar para o filme é menos interessante, falar da realidade do que se terá mesmo passado do que de ter um outro mundo – porque tenho a certeza que o Palito não esteve, acho eu, como aparece no filme, com três prostitutas, que a seguir lhe coziam perdizes e pernas de carneiro com três fogueiras. Tudo isso tem a ver com uma dimensão que é uma dimensão de fantasia em que não tento filmar o que, de facto, se passou com o Palito mas sim se o Palito fosse uma personagem de um filme chamado “As Mil e Uma Noites”. O que é que alguém tão sozinho, o que é que ele poderá ter imaginado que lhe faltava e posso trazer essas coisas para o filme. É por isso que esse episódio não se chama “Crónica da Fuga do Simão
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Sem Tripas” mas chama-se “Crónica de Fuga”. Se calhar, é uma fuga da realidade. Mas era importante ter as duas coisas: o mundo real e coisas que nós sabemos que se passaram com um outro mundo, que é um mundo mental, que tem a ver com as fantasias que as personagens podem desenvolver, com os receios. As fantasias que todos nós, um realizador ou uma personagem de cinema pode desenvolver, acho que partem sempre de uma base real, ou seja, nós só podemos imaginar, só podemos fantasiar, a partir daquilo que é a nossa experiência de vida, ou seja, a partir daquilo que são os nossos receios, o que é que nós temos medo que aconteça ou a partir daquilo que nós desejamos e, obviamente, temos medo e desejos de coisas diferentes em sociedades diferentes, em momentos diferentes. Durante o filme, há um momento em que a personagem Vasco, interpretada pelo Gonçalo
Waddington, vai até ao concurso dos tentilhões. Há assim aqui uma mistura desses dois mundos, o ficcional e o documental. Sim, isso é uma das coisas interessantes nesta divisão em três volumes. Imagina um espectador que não viu o segundo volume, ou seja, dentro daquele sistema de ir apresentando elementos individuais de uma comunidade de passarinheiros, imagina que há alguém que não conhece o Gonçalo Waddington como ator, os portugueses poderão conhecê-lo mas alguém no estrangeiro que não conheça o Gonçalo Waddington irá receber aquela informação e ver aquela personagem como pertencendo à mesma hierarquia que os outros, não aparece como uma personagem de ficção. E há um cão que está com ele, que é o cão que nós reconhecemos como a personagem do Dixie, no final do segundo volume. Para
quem viu o volume 2 pode entender até que ponto é que neste jogo entre a ficção e a realidade naquele caso está a aparecer uma personagem que nós reconhecemos como uma personagem desempenhada por um ator num episódio de ficção, com atores, e a aparecer ao mesmo nível de outros protagonistas, que têm essa atividade de passarinheiros. Acho que o filme, nos vários volumes, a cada momento, de maneiras diferentes, tenta estabelecer esse diálogo de complementaridade entre a imaginação e o real. Qual foi o processo de escolha entre atores e não-atores e o que é mais difícil de gerir enquanto realizador? Isso depende do episódio mas acho que o que interessa são as pessoas. Por exemplo, no segundo volume, na primeira história, precisamente a do Simão Sem Tripas, começa com alguém
que faz essa personagem que é um não-ator, que é um dos passarinheiros do terceiro volume, o Chico Chapas. Não faz sentido, para mim, falar com o Chico Chapas como com a atriz que faz a protagonista da história seguinte, a Luísa Cruz – que faz a juíza e que é uma grande atriz –, não faz sentido dirigi-los da mesma maneira. Eles reagem de maneira diferente a estímulos diferentes. Não faz sentido dar determinadas indicações mais técnicas ao Chico, é preciso é entender o Chico e conhecê-lo suficientemente bem para saber como é que ele pode reagir e perceber como é que na vida dele ele se movimenta, como é que ele reage, qual é o tom de voz dele normalmente, se fala alto, se fala baixo. A partir do momento em que conhecemos uma pessoa, sabemos como é que ela pode existir dentro de um filme, que, às vezes, não é tão diferente de como ela existe fora do filme. Agosto 2015 metropolis 61
Um ator profissional é diferente. Mas, para mim, também não faz sentido dirigir a Joana Verona ou o Rogério Samora como dirijo a Luísa porque depende de cada ator e cada ator é muito diferente. Cada filme obriga, às vezes, a falar de uma forma diferente com o ator e cada ator vive as suas personagens. Às vezes, há atores que estão completamente imersos na ideia da personagem e o realizador só tem de perceber isso e entender qual é o tipo de relação que deve existir entre ele e o ator, porque, no fundo, estamos a trabalhar para a mesma coisa. Acho sempre que uma personagem não é uma coisa que se imponha a um ator e que o ator tenha de acatar. Para mim, uma personagem de um filme só pode ser o resultado de uma espécie de acasalamento entre alguém real e uma ideia. Portanto, não faz sentido nenhum andar às turras com um ator para que ele seja aquilo que nós imaginámos que a personagem era. Acho que é preciso fazer esse casamento entre a ideia que nós tínhamos e depois a pessoa real. Acho que não há problema nenhum em adaptar ou prescindir de partes dessa ideia porque não resultam com aquela pessoa aquilo que nós tínhamos imaginado. Mas temos de estar disponíveis para perceber que com aquela pessoa algo daquela personagem pode aparecer. No filme, há um texto que diz que Portugal esteve refém de um governo aparentemente sem sentido de justiça social. Pedia-lhe a sua opinião sincera: aparentemente ou totalmente? Aparentemente porque acho que um filme também não é um tribunal. Apesar de haver uma cena em tribunal. Sim, de haver uma cena em tribunal em que a juíza não consegue por ordem no seu tribunal, que é uma arena naquele caso, porque aquilo ultrapassa-lhe, ou seja, percebe que não há um culpado, que há toda uma cadeia de pessoas que estão ligadas, de crimes que estão ligados e fazem com que ela não consiga – através do seu lado racional, através daquilo que ela conhece do código penal – pôr ordem naquela assembleia e, portanto, começa a ter uma reação
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emocional e desata a chorar. Acho que um filme não pode ter essa relação de julgar alguém e proferir uma sentença porque não é esse o papel de um realizador ou de um filme, a meu ver. Mas também não escondo que não tenho qualquer tipo de simpatia por este governo e pelas políticas que foram sendo seguidas nestes últimos anos e, portanto, não sou neutro. Daquilo que sinto, este governo colocou a justiça social no fundo da sua lista de prioridades. É o que eu sinto e, como o filme é meu, posso dizê-lo. Durante o filme, há uma cena que documenta uma manifestação dos polícias
A cara que mereces
na escadaria da Assembleia da República. Como é que essas filmagens aconteceram? Nessa manifestação dos polícias, sentimos que poderia ser interessante trazê-la para o filme mas não sabíamos ainda em que contexto. Portanto, estivemos nas duas – aquele é o resultado da filmagem de duas manifestações, numa sobem a escadaria e noutra não. Essa era uma das dificuldades do filme e uma das características do filme era de que, durante o período de produção, durante os 12 meses em que havia jornalistas e equipa
de Miguel Gomes com José Airosa, Gracinda Nave, Manuel Mozos 108m. Portugal, 2004
Miguel Gomes estreou-se nas longas com um filme injustamente mal-amado que, lançando mão de uma narrativa bipartida (quanto à estrutura) e bipolar (quanto ao tom), nos contava a história de um professor primário que ficava doente no dia do seu 30º aniversário, sonhando então que era acolhido por sete amigos numa casa de campo. O que daqui resultava? Um nostálgico lamento em ponto-morto pela perda de uma pátria chamada infância, e (para quem a quis ver) uma bela promessa de cinema que, no futuro, o talento de Miguel Gomes haveria de fazer cumprir. Vasco Baptista Marques
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disponível para ir inventando e filmando histórias, poderia haver também momentos em que teríamos de ir quase como as televisões, captar imagens com coisas que estavam, de facto, a suceder. Esse foi um dos casos em que aconteceu isso. Foi por isso, por exemplo, que tivemos um diretor de fotografia tailandês que foi obrigado a viver durante este tempo todo em Lisboa (outro do lado do mundo para ele), sem saber o que ia filmar porque as histórias que íamos filmar dependiam de acontecimentos futuros que estavam ligados com aquilo que se estava a passar em Portugal. Não conseguíamos chamá-lo e dizer “olha, vais fazer uma história em que se passa isto, com esta personagem”, era impossível. Explicámos-lhe o método: “Temos uma equipa de jornalistas, uma equipa de argumentistas, temos câmara e material para filmar disponível durante estes meses todos e precisamos de ti a viver aqui porque tanto podemos preparar uma rodagem e trabalhar com atores e visitar os décors e decorá-los e trabalhar de uma forma mais clássica, como podemos, de um dia para o outro, entrar todos num carro e ir filmar qualquer coisa que esteja a acontecer em Lisboa ou em qualquer sítio em Portugal. Portanto, desse modo precisamos sempre de ti disponível”. E ele, para meu grande espanto, aceitou isso – acho que ele é um grande maluco – e veio viver para Portugal, com a mulher, durante 12 meses, e esteve
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sempre disponível para aquilo que fomos propondo, fosse rodagens quase improvisadas de um dia para o outro, fosse coisas mais preparadas. Esteve sempre disponível. O filme foi muito elogiado em Cannes, sendo até considerado como um dos melhores do Festival. Apesar de o filme retratar a situação em Portugal, pensa que poderá ter também um caráter universal que terá ajudado a esta reação em Cannes? Acho que, neste momento, há uma coisa que se passa a nível social e político que é obviamente transversal. O choque entre o que se está a passar em alguns países do sul, com a implementação de medidas de austeridade, e o modo como isso se manifesta nas relações com os restantes países da comunidade europeia não deixa ninguém indiferente.. Enfim, deixará muitos, obviamente, mas não é uma questão que passe ao lado de ninguém num país europeu. E é isso que andamos a medir e a pesar, que nos causa perplexidade, às vezes fúria, enfim, andamos todos compreensivelmente obcecados com que se está a passar na Europa, preocupados com o tipo de relação possível entre os vários países dentro da Europa e as relações de poder que existem dentro desta união política. Acho que muitas vezes o filme foi falado como um filme onde essa questão era importante. É um filme
em que não escapa uma ligação com essa situação: que momento vivemos na Europa hoje em dia. Isso para os países europeus acho que é uma questão importante. E não tem havido muitos filmes no cinema que tenham falado muito sobre a crise, não tem acontecido muito. Por exemplo, em Cannes, perguntaram-me por que é que os gregos não fazem filmes sobre a crise ou espanhóis e eu disse “não sei, não sou espanhol nem grego, sou português, ultrapassa-me”. Até tinha pensado em fazer um filme fora de Portugal a seguir ao «Tabu» (2012) e percebi que, tendo a oportunidade de filmar, que não poderia deixar de filmar qualquer coisa, não se sabia ainda de que maneira, sobre este tempo que se vivia no meu país, em Portugal. Depois, além das questões que os filmes trazem, há sempre uma questão que é o cinema, que é que personagens existem, como eles existem, como é que o cinema pode contar o mundo, independentemente dos países e das situações. E isso é uma questão que é, obviamente, independente deste tempo, que no filme é trazido um pouco pela
Aquele querido mês de Agosto de Miguel Gomes com Sónia Bandeira, Fábio Oliveira, Joaquim Carvalho 147m. Portugal/França, 2008
Na sua segunda longa, Miguel Gomes instalou-se na região de Arganil (durante o mês ao qual o título alude) para nos oferecer, primeiro, um «documentário ficcionado» sobre as gentes e as festas da terra, e, depois, uma «ficção documentada» sobre a paixoneta de verão de dois adolescentes. O filme olha de frente (e sem qualquer snobismo) para a cultura popular, mas o que nele é sublime é o modo como Gomes se diverte (e nos diverte) a traçar uma linha de demarcação entre o documentário e a ficção para, logo a seguir, a apagar. Um magnífico filme de verão. V.B.M.
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ideia da Xerazade, de que é possível contar historias hoje em dia trazendo para dentro das histórias personagens que, muitas vezes, são personagens que não são, de todo, realistas. São personagens míticas, criaturas sobrehumanas, há génios, animais que falam. Toda essa dimensão fantástica do cinema sempre me interessou, independentemente da situação política e social em Portugal. Gostava também de fazer um filme em que se contassem histórias onde houvesse esse tipo de personagens. Porque é um bocado o meu cinema. Sempre fui muito atraído por abordagens muito artificiosas e acho que a verdade dos filmes não é a verdade da realidade da vida e, portanto, às vezes, aborrece-me um bocado, devo confessar, filmes que tentam muito convencer o espectador que aquilo que ele está a ver é a realidade e eu não acredito, não consigo ver ali a realidade, só consigo ver uma representação da realidade. Como representação da realidade, acho que temos o direito de ter outro género de figuras e ter artifícios que existem na ficção, de uma forma assumida, sem problemas, sem drama. Também ficámos a conhecer em Cannes o seu benfiquismo. Pensa que a paixão pelo desporto poderia dar um filme pelas suas mãos? Um dos projetos que tenho para filmar tem a ver diretamente com uma questão futebolística, mas como não sei se o vou filmar já ou se sequer vou filmá-lo um dia não quero aqui estar a contar coisas que depois não se passam, fico-me por aqui. Mas teria vontade nisso? Sim, mas não tanto pelo futebol em si, porque separo muito a vida do cinema. Gosto de, às vezes, pôr coisas que gosto nos filmes, é verdade. Mas, enfim, o Benfica é uma relação extracinematográfica, se fosse canalizador acho que teria a mesma relação com o meu clube. Não é por fazer filmes e por gostar do Benfica e por o Benfica ser o meu clube que tenho de o pôr num filme.
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O que se segue a estas Mil e Uma Noites? Tenho vários projetos e geralmente quando tenho vários projetos o que acontece é que não filmo nenhum deles. Às tantas, começa a existir uma aproximação entre projetos e o filme acaba por ser, muitas vezes, uma série de ideias de um desses projetos com outras ideias de outro projeto. Estou naquela fase em que acabei um filme muito, muito longo e em que, ainda por cima, como são três obriga-me também a esta fase de entrevistas, de mostrar o filme, de falar sobre o filme, aqui ou lá fora que é ainda mais exaustiva do que é habitual. Portanto,
tabu estou num momento em que tento sobreviver a isto e não enlouquecer e ver se começo a recuperar energias para que essas tais ideias, esses desejos de outros filmes que estão, por enquanto, dispersos comecem a reunir e de haver um dia qualquer, espero eu, em que vá ter com uma produtora e diga “Acabouse esta fase de promoção do filme, já não quero ir à Cochinchina, quero que a gente comece a trabalhar para começarmos a fazer o nosso filme”.
de Miguel Gomes com Ana Moreira, Carloto Cotta, Teresa Madruga 118m. Portugal/Alemanha/Brasil/França/ Espanha, 2012
Nas suas longas anteriores, Miguel Gomes evocava uma memória que – percebia-se – era sobretudo a sua (a de verões na província…). Em «Tabu», porém, o realizador opera directamente sobre um passado que só o cinema lhe poderia ter dado, a saber: o de uma África colonial imaginária e pintada a preto e branco que, nesta ficção bicéfala, emerge – como o sabor de uma madalena – das entranhas de uma Lisboa quotidiana em busca de transfiguração. Segue-se a história de um amor impossível, que está sem dúvida entre as mais belas que o cinema português nos ofereceu. V.B.M.
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