Especial - Festa do Cinema Francês 2014

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O Fim do Ester

15ª festa do cinema francês

Attila Marcel - Prémio do Público TV5MONDE

132 metropolis OUTUBRO 2014


reótipo

A Festa do Cinema Francês chega à sua 15.ª edição com uma programação diversificada e multicultural, como já é apanágio. Entre comédias, dramas e documentários, há filmes de todos os géneros para todos os públicos, com especial incidência para o cinema de autor. A METROPOLIS (revista oficial da Festa) conversou ainda com Fabianny Deschamps, realizadora de «New Territories», um filme muito politizado. Tatiana Henriques OUTUBRO 2014 metropolis 133


La Cour de Babel, de Julie Bertucelli O filme que inaugurou a Festa do Cinema Francês mostra-nos uma realidade multicultural, um documentário intimista e surpreendente. Durante um ano, a realizadora Julie Bertucelli acompanhou as vivências e os altos e baixos das vidas de um grupo de alunos entre os 11 e os 15 anos, que se reuniam para uma aula com o propósito de aprenderem francês. De resto, tudo não podia ser mais diferente. Oriundos do Brasil, China, Irlanda ou Senegal, cada um deles tem uma história muito própria para contar. Numa obra profunda, que mostra retratos de vida muitas vezes difíceis, o espectador aprende, também ele, uma aula sobre integração e união e esta não é uma lição fácil. A narrativa é muito dinâmica, oscilando entre momentos divertidos e outros mais dramáticos e tensos, ajuntando-se uma fotografia interessante (apesar de não deslumbrante) e uma banda-sonora bem adaptada. Destaque sobretudo para o trabalho que foi feito com os verdadeiros protagonistas da história, os jovens alunos, que revelaram histórias que, elas próprias, davam filmes. Os estudantes são as verdadeiras estrelas e a alma do filme, tornando-o tão especial e apelativo. T.H.

Les Combattants 134 metropolis OUTUBRO 2014


Libre et assoupi, Benjamin Guedj Uma comédia divertida e despretensiosa, «Libre et assoupi» é deliciosamente envolvente e instigadora à reflexão, mesmo sem parecê-lo à primeira vista. Numa adaptação do romance “Libre, soul et assoupi” (publicado em 2010), de Romain Monnery, a história é sobre Sébastien Morin (Baptiste Lecaplain), que tem um objectivo muito simples: não fazer nada na vida. É na cama que mais gosta de estar, a contemplar o dolce fare niente, mas esta calmaria não dura muito, sendo obrigado pelos pais a mudar de vida. Vai, então, viver para Paris, onde passa a dividir casa com Anna (Charlotte Le Bon) e Bruno (Félix Moati). A sociedade não o entende - aliás, até se ofende - e o próprio Sébastien começa a perceber que não poderá ser livre e sonolento para sempre. La Cour de Babel

Les Combattants, de Thomas Cailley Um drama de sobrevivência ao medo, à coragem desmedida e… ao amor. Arnaud (Kévin Azaïs) trabalha numa empresa familiar e tem uma vida tranquila, até que conhece Madeleine (Adèle Haenel) e tudo parece mudar demasiado rápido. São antípodas em quase tudo: ela rica e ele pobre, ela pessimista e fria, ele esperançoso e bem-disposto. Mas o amor tem trilhos nem sempre compreensíveis ao primeiro olhar e Arnaud sente-se impelido a seguir Madeleine, mesmo que ela não o peça ou julgue precisar da sua companhia. E a relação, ora tumultuosa, ora descontraída, começa a rodear-se de perigos, até que, afinal, poderão mesmo ter que lutar… para sobreviverem. «Les Combattants» é uma obra bem encadeada, que vive pelos seus protagonistas, sobretudo pela interpretação da seguríssima Adèle Haenel. A fotografia é um aspecto fascinante da obra, além de uns belos planos, fruto da realização criativa de Thomas Cailley. O argumento é consistente e iridescente, resultando num filme imperdível, que luta até ao fim para encantar o espectador e enredá-lo numa trama com diálogos bem construídos e reflexivos. T.H.

Com momentos verdadeiramente divertidos e inusitados, «Libre et assoupi» fala da incompreensão da sociedade por quem quer viver de forma diferente, não lidando muito bem com outras opções de vida. Os actores têm um trabalho muito dignitário, sobretudo o protagonista, que irradia carisma e vivacidade. A realização é um dos trunfos da obra, com planos e enquadramentos muito interessantes e simbólicos, tentando fugir aos clichés. «Libre et assoupi» apaixona e diverte, entretendo o espectador até ao fim, sem dar espaço para sonolências. T.H.

Libre et assoupi OUTUBRO 2014 metropolis 135


Comme un lion, de Samuel Collardey Hoje em dia, o futebol assume uma importância mundial, sendo considerado o desporto-rei. São muitos os meninos de tenra idade que sonham ser, um dia, Ronaldos ou Messis. Contudo, nem todos podem sê-lo e os caminhos para alcançar tal objectivo podem ser, na verdade, muito perigosos. Comme un lion conta a história de um jovem de 15 anos, Mitri Diop (Mytri Attal), que vive numa pequena aldeia no Senegal. Um dia, é descoberto por um olheiro que lhe diz que é necessário dinheiro para que possa investir na sua carreira. A sua família, que apenas se resume à sua avó, endivida-se e dá tudo o que pode para que Mitri possa ir para Paris e cumpra o seu sonho. Contudo, quando chega à capital francesa, rapidamente descobre que está sozinho e que não terá ninguém para ajudá-lo. Mesmo assim, apesar de estar numa situação temerosa e sem qualquer esperança, Mitri continua a sonhar em ser futebolista. Será que todos os sacrifícios valerão a pena? Apesar de pecar pelas muitas semelhanças com o filme «Golo!» (2005), este filme é mais realista e sombrio e menos hollywoodesco e risonho, o que contribui para uma boa história. Tudo o resto é mediano: a realização de Samuel Collardey apenas cumpre e o trabalho de fotografia é desaproveitado, não conseguindo retratar com veemência o que o filme trata. O protagonista não impressiona, esperando-se, porventura, mais magnetismo. Comme un lion poderia ser uma verdadeira história de um leão que não morre, mas que apenas dorme (como, em certa altura, é falado na obra), mas aqui trata-se apenas de um leãozinho com pouca chama. T.H.

Comme un lion 136 metropolis OUTUBRO 2014

L’amour est un crime


e parfait

Sur le chemin de l’école, de Pascal Plisson

Sur le chemin de l’école

L’amour est un crime parfait, de Arnaud Larrieu e Jean-Marie Larrieu Um thriller pouco empolgante e previsível, mas não totalmente perdido. O amor é um crime perfeito, pelo menos para Marc (Mathieu Amalric), um professor de literatura na Universidade de Lausane, que colecciona relacionamentos com as suas alunas. Todavia, um dia, uma delas desaparece, surgindo depois Anna (Maïwenn), a sua madrasta que tenta perceber o que aconteceu. Só que nem tudo é o que parece ser… Em «L’amour est un crime parfait», são poucas as surpresas ou os enigmas, tudo parece demasiado óbvio para o espectador. A excepção é a excelente fotografia que invade a tela de brilhantismo e que complementa todo o enredo. A música que acompanha a história consegue o mesmo, bem como os actores que, apesar de não demonstrarem um trabalho particularmente fascinante, são convincentes. O protagonista é, indubitavelmente, uma excelente escolha para o papel, conseguindo incrementar a sua personagem de nuances expressivas e emocionais, roubando sempre a cena. A grande falha da obra é a sua falta de suspense, numa realização talvez demasiado simplista e imaginativa. O amor até pode ser um crime perfeito, mas a perfeição aqui, neste filme, ainda parece uma miragem... T.H.

Malala Yousafzai, vencedora do Prémio Sakharov 2013 e, mais recentemente, do Prémio Nobel da Paz, disse, uma vez, nas Nações Unidas: “Um aluno, um professor, um livro e uma caneta podem mudar o mundo. A educação é a única solução. Educação primeiro”. Ora, tais palavras não podiam ir mais ao encontro da mensagem de Sur le chemin de l’école, um documentário encantador e profundamente inspirador. Trata-se da história de quatro crianças que vivem em diferentes partes do mundo, mas que têm todas uma vontade incomensurável de aprender e saber mais, para que possam ter um futuro mais promissor. E estão dispostos a enfrentar quaisquer riscos para alcançarem os seus sonhos. Neste documentário, seguimos crianças do Quénia, Argentina, Marrocos e Índia nos seus percursos tumultuosos para chegar à escola. Alternando entre momentos mais tensos e outros cheios de ternura, vemos que, apesar de se comportarem como adultos, aqueles meninos continuam a ser crianças, mas são muito mais conscienciosos e, porventura, corajosos. Numa altura em que a educação é um dado garantido para muitos países, este filme mostra-nos que essa realidade não é global, exacerbando a importância que a educação pode ter na sociedade e no futuro da mesma. É um documentário a não perder, com uma fotografia impactante e majestosa, juntamente com uma realização atenta e inteligente. Ver Sur le chemin de l’école é um caminho que não se deve deixar de fazer. T.H.

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Fabianny Deschamps em Entrevista New Territories é a sua primeira longa-metragem. Como correu a experiência?

new territories

New Territories, de Fabianny Deschamps Prepare-se para um filme atípico, único e muito diferente de qualquer outro que já tenha visto. «New Territories» é altamente perturbador, com uma narrativa contada de uma forma especial e ficamo-nos por aqui para não estragar o entendimento do enredo. A história trata da importância das crenças e de tudo aquilo que muitos são capazes de fazer para as perpetuar e defender. Na obra, testemunhamos a vida de duas mulheres que têm dois percursos completamente opostos: uma é francesa e mulher de negócios, enquanto outra é uma jovem chinesa e operária têxtil de Guangdong, que pretende passar clandestinamente a fronteira. A mulher francesa tem uma nova proposta para o mundo asiático, relacionada com a gestão funerária. As fronteiras das vidas de ambas vão cruzar-se a certa altura e não poderia ser de forma mais marcante. O ritmo de New Territories é muito lento, transpondo-se num filme quiçá um pouco longo demais, mas o argumento é tão forte e penetrante que não podemos escapar-lhe ou esquecê-lo. E, só por isso, já vale a pena ver a obra. Destaque para a excelente banda-sonora, pertinente e instigadora, que contribui para a imensidão narrativa, aliando-se a uma fotografia com momentos assinaláveis e uma realização detalhista e envolvente. T.H. 138 metropolis OUTUBRO 2014

Para mim, foi muito importante fazer esta primeira longa-metragem por causa da liberdade que tive ao fazê-lo, apesar do orçamento reduzido. Sobre o tema, passei algum tempo em Hong Kong, que é como se fosse um grande estúdio de cinema, o que me permitiu explorar o tema, tendo em conta a liberdade que é essencial e marcada pela diferença. Li um artigo na imprensa inglesa que contava que, do outro lado da fronteira da China continental, centenas de pessoas eram raptadas e assassinadas para que os seus corpos servissem como substituição a outros corpos que eram incinerados. Essa morte gigantesca levoume a fazer o filme. Para mim, impôs-se a questão das diferenças culturais no tratamento da morte entre o Ocidente e a Ásia. Apaixonei-me pelo tema e passei a fronteira. Isto é uma vontade política, o governo chinês reagiu muito mal a este artigo porque quer acabar com as tradições. Aliás, a incineração é obrigatória na China. Teve medo, em algum momento, em realizar este filme justamente devido ao tema que aborda? Sabia que seria impossível ter as autorizações para as gravações do filme e, então, organizei as filmagens com uma equipa muito reduzida, que fez o trabalho da forma mais discreta possível. O


fabianny deschamps

filme foi gravado com uma máquina fotográfica para ser muito discreto, além do uso escondido de microfones para a actriz poder movimentar-se. Na zona onde o filme foi feito, praticamente não há ocidentais, o que faz com que a equipa estivesse muito exposta, todos reparariam. E depois do filme, houve alguma reacção, incluindo da China? Terminei o filme à justa para Cannes e o filme ainda não chegou a ser visto na China. A obra é muito política e penso que perderei o visto para viver na China. Penso que será muito, muito difícil que o filme passe na China, talvez o seja apenas em Hong Kong. Depois do lançamento clássico do filme, talvez vá organizar sessões de projecção alternativa, via internet. Para mim, é muito importante que

o filme chegue aos chineses, porque este fala do seu país e da sua cultura. Como foi a recepção do filme em Cannes? Foi muito intenso, muito forte. Apresentar a primeira longa-metragem em Cannes foi decisivo para o filme porque terminamos a obra dois dias antes da projecção em Cannes e, nessa altura, ainda não havia distribuidores para o filme. Houve críticas muito boas sobre o filme e conseguimos distribuidor. O filme será lançado em França na Primavera. Como vê a evolução do Cinema Francês ao longo dos últimos anos? Há uma uniformização das coisas, tal como no resto. O cinema segue o que se passa no mundo, com fenómenos como a mundialização. Há

um risco financeiro e o cinema independente está muito dependente de financiamento. O cinema independente acaba por ter alguma limitação por causa disso. Não digo que o cinema francês não seja interessante, há muitos novos realizadores que utilizam as novas tecnologias e que são muito democráticas e próximas, permitem outras formas de fazer cinema, com menos dinheiro, o que faz com que também haja muito mais criatividade. Além do mais, há o problema posterior da distribuição - sei que a distribuição em Portugal é muito difícil, quase impossível para o cinema independente - em França, talvez haja mais hipóteses de diversidade de cinema do mundo, mas, ao mesmo tempo, os filmes mainstream (franceses, americanos ou de outra parte do mundo) ocupam 95% das salas de cinema francesas. É brutal. É a realidaOUTUBRO 2014 metropolis 139


de e é um problema mundial, mas não é normal, é algo que vai contra a diversidade. É importante que se crie uma lei de regulação de mercado cinematográfico. O cinema independente acaba por não ter espaço nem condições.

Porque, para um filme que é tão diferente, as pessoas poderiam dizer “não percebi nada”, mas não, apreciam a diferença.

O que está a achar da Festa do Cinema Francês?

Comecei a gravar o meu próximo filme, filmado em Lampedusa, na Sicília. É um filme de ficção filmado de forma documental e onde filmámos milhares de migrantes. É um fenómeno horrível que se passa na Europa. O filme será lançado em 2015. Um filme que fala da migração, de choque cultural e de populações deslocadas. A Europa nada diz sobre algo que é escandaloso.

Conheço a Festa do Cinema Francês, há dez anos que cá venho e fico muito contente por ver que, apesar de a programação da Festa ser muito mainstream, optou-se por mostrar outro tipo de filmes (como o meu), outras representações do cinema francês. Estou muito feliz com as escolhas deste ano, há documentários e a tentativa de mostrar a diversidade e a diferença. A maior parte das pessoas, não adorando o filme, aprecia-o e fica contente de o ver, mesmo não o compreendendo talvez na totalidade. A reacção do público em França é notável, porque as pessoas reagem de uma forma muito positiva, é surpreendente nesse aspecto. 140 metropolis OUTUBRO 2014

Quais são os seus próximos projectos?

Por que acha que há esse silêncio por parte dos governantes? A Europa fecha aos olhos a tudo o que seja relacionado com problemas das pessoas, está preocupada com a crise económica, mas pouco mais do que isso. As pessoas não contam para nada. A realida-

de é que a Sicília é uma região muito pobre. A europa abandona os sicilianos, cerca de 8 mil pessoas, desde crianças a mulheres grávidas. É muito violento. Os temas dos seus filmes são muito fortes. Pensa que podem servir também como uma forma de alerta para a sociedade? É complicado. Não sou documentarista ou jornalista mas... Há imagens que vemos nas notícias, mas que são misturadas com tantas outras imagens que nos afogam na imensidão das imagens e, depois, acabamos por vê-las com indiferença. Mas apaixona-me tornar estas coisas invisíveis visíveis, independentemente de chegar depois ao outro lado ou de conseguir esse alerta. Não é esse o objectivo, mas, se assim for, melhor. A partir da ficção, fazer com que a realidade seja mais visível.


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