Cobertura do Lisbon & Estoril Film Festival 2014

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um mar de ante os filmes do Leff 2014

maps to the stars 2014

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ecipações

Na sua oitava edição, o Lisbon & Estoril Film Festival 2014 volta a mostrar toda a sua versatilidade e sofisticação. Com uma programação que alterna novos nomes com outros já renomados, o Festival exibiu produções esmeradas e memoráveis do cinema europeu e norte-americano, revelando alguns dos melhores filmes que foram realizados neste ano. O Prémio de Melhor Filme Jaeger-LeCoultre foi atribuído a «Amour Fou», de Jessica Hausner. tatiana henriques

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saint laurent de Bertrand Bonello

Em «Saint Laurent», o filme de abertura do Lisbon & Estoril Film Festival 2014, iniciamos uma viagem intimista à vida (mais do que à obra propriamente dita) de Yves Saint Laurent, o renomado estilista francês. A história restringe-se ao período de 1967 a 1976, altura em que o criador estava no topo da sua carreira. Todavia, a obra dedica-se mais ao homem do que ao estilista, conhecido pelas suas criações extravagantes, que embelezavam a silhueta feminina. Sob a realização detalhista e inspirada de Bertrand Bonello, a obra encaminhanos para um Saint Laurent nem sempre seguro de si e algumas vezes perdido em álcool ou drogas. Conhecemos também a sua relação épica e marcante com Pierre Bergé (Jérémie Renier), seu amante e parceiro de negócios, que, aliás, não aprovou a realização deste filme. Bonello 86 metropolis dezembro 2014

providencia também um retrato acurado da época, tal como é exponenciado numa das melhores cenas do filme, quando se recorre a um split-screen em que são mostrados momentos importantes daquela altura ao mesmo tempo em que são exibidas peças inolvidáveis das colecções de Saint Laurent. Além de ser um biopic díspar do próprio género, «Saint Laurent» destacase, claro, pela interpretação ousada e muito iridescente do protagonista, Gaspard Ulliel. O actor consegue transmitir apenas pelo olhar tudo aquilo que se pretendia para a sua personagem. Brilhante na forma e no conteúdo, «Saint Laurent» peca apenas por arrastar-se em alguns momentos, perdendo algum do seu dinamismo, mas nada que afecte o cômputo geral de um belo retrato de uma figura incontornável do século XX.


mr. turner de Mike Leigh Um biopic competente e pouco ousado, «Mr. Turner» é, por si só, uma pintura cheia de traços vigorosos e inesperados, mas que resultam em algo de constatável beleza, tal como acontece com as obras da autoria da figura que o filme retrata. O filme abarca o último quarto de século da vida do pintor J.M.W. Turner (1775 – 1851). Durante esse tempo, o artista perde o pai (o que o deixará muito afectado) enquanto é amado pela sua mulher-a-dias (a quem não presta muita atenção). Entretanto, acaba por criar uma forte relação com uma senhoria de uma região costeira com quem vai viver de forma incógnita. Mas não é só, Turner vai viajando, convivendo com a aristocracia, visitando bordéis, além de ser um membro conhecido – e anárquico – da Royal Academy of Arts, tornandose alvo de aclamação mas também de algum ódio pela realeza e pelo público.

Timothy Spall tem uma interpretação genial do pintor excêntrico e algo caótico, recorrendo a bastantes maneirismos, tornando-se na alma do filme. A fotografia da obra é de um encanto avassalador, bem como os próprios diálogos, recheados com algum do delicioso humor britânico. Não obstante, o grande pecado do filme é a sua extensa duração, com alguns momentos quiçá dispensáveis, o que poderia ter rendido mais dinamismo ao resultado

final, prendendo mais o espectador. Em suma, «Mr. Turner» é uma obra de valor fundamentalmente estético, mas que não deixa de ser um retrato valoroso e importante de uma extraordinária figura da arte britânica e mundial.

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miss julie de Liv Ullmann

Adaptado de uma peça de teatro (da autoria de August Strindberg, que escreveu a obra em 1888), «Miss Julie» parece realmente isso: uma peça de teatro… mas em filme. A história passa-se em 1980, na Irlanda, quando todos celebram o São João. Enquanto isso, Miss Julie (Jessica Chastain) e John (Colin Farrell) provocam-se, apaixonam-se e envolvem-se sob o olhar de Kathleen (Samantha Morton), cozinheira da casa e namorada de John. Uma pintura dos problemas inerentes das diferenças provocadas pelas classes sociais, «Miss Julie» mostra a paixão e o desespero, mas também o medo da opinião alheia e de ofuscar e denegrir a re-

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putação social. A narrativa é algo arrastada e pouco cativante, apesar dos poderosos e sentidos diálogos. De realçar, porém, a realização refinada e atenta de Liv Ullmann e a fotografia belíssima que irradia toda a obra. Colin Farrell consegue uma surpreendente e segura interpretação, mas a rainha e senhora do filme acaba por ser mesmo Jessica Chastain, que rouba todas as cenas. A câmara adora-a e a actriz corresponde, oferecendo uma das melhores interpretações da sua carreira. «Miss Julie» é a prova de que não basta ter um grande texto para se fazer um grande filme, necessitando-se, por vezes, de recorrer a algumas adaptações para se alcançar a almejada perfeição.


maps to the stars de David Cronenberg Numa viagem pelo interior podre de Hollywood, David Cronenberg volta a superar-se e cria uma obra satírica e mordaz sobre a fama e o que significa ser uma celebridade. Em «Maps to the Stars», conhecemos um conjunto de pessoas cuja sua principal obsessão é ganhar relevância no feroz e competitivo mundo do Cinema, estando dispostos a tudo para conseguir atingir os seus propósitos. Agatha (Mia Wasikowska) é uma jovem com várias cicatrizes provocadas por queimaduras que chega a Los Angeles e conhece Jerome Fontana (Robert Pattinson), um motorista que almeja ser actor. Entretanto, Agatha começa a trabalhar como assistente para Havana Segrand (Julianne Moore), uma actriz perturbada e decadente que luta por conseguir o papel de protagonista num remake de um filme feito pela sua mãe. Simultaneamente, um adolescente, Benjie Weiss (Evan Bird), acabado de sair de uma clínica de reabilitação, tem toda a atenção da sua obcecada mãe, interpretada por Olivia Williams, ao mesmo tempo que o seu

pai (John Cusack) parece terioso, perturbador e inviver num mundo à parte. quietante, sem deixar de ser uma crítica global não O elenco é de luxo, mas apenas a Hollywood, mas destacam-se, indubita- à própria ambição descovelmente, Julianne Moo- medida universal. re e Mia Wasikowska, ambas soberbas na interpretação das suas desmedidas e desarranjadas personagens. «Maps to the Stars» é um retrato visceral e amargo sobre o que de pior resulta da busca dos sonhos, a busca da estrelar Hollywood. Com muitas referências à própria história da indústria e sob uma realização magistral de Cronenberg, a obra é elevada por um argumento tenso e misdezembro 2014 metropolis 89


pasolini de Abel Ferrara

O filme «Pasolini» poderia ser muito mais do que aquilo que acaba por ser. A obra restringe-se ao último dia de vida do poeta e cineasta italiano Pier Paolo Pasolini, em 1975, sendo uma mistura de realidade e pura imaginação, numa amálgama ora profícua, ora ineficiente. O biopic mostra um Pasolini irreverente, com pensamentos profundos sobre a sociedade, o mundo e a própria vida. Intimista e existencialista é também o filme, que evidencia e retrata a época, bem como as suas diferentes inquietações e libertações. Willem Dafoe é impressionante na pele de Pasolini, numa interpretação esmerada e marcante, apesar da estranheza da linguagem (a per90 metropolis dezembro 2014

sonagem é de origem italiana, mas a língua é tratada como se fosse meramente secundária). A narrativa é, por vezes, confusa e, na maior parte do tempo, pouco atractiva, fazendo com o que o espectador se perca num e noutro momento. A actriz portuguesa Maria de Medeiros também participa na obra e brilha no ecrã, conseguindo criar uma das melhores cenas do filme, apesar da simplicidade do momento representado. Com muito potencial, mas com um frágil resultado final, «Pasolini» é uma representação ousada e provocadora do artista italiano, mas não chega para se tornar, por si só, numa obra inesquecível.


o desaparecimento de eleanor rigby de David Cronenberg Uma ode ao amor e o duro relato de quando este simplesmente não chega. Eleanor Rigby (Jessica Chastain) e Conor Ludlow (James McAvoy) são um casal feliz e enamorado, mas que vê a sua estabilidade abalada por uma tragédia inelutável. Nada será como dantes e ambos tentam reconstruir a relação e… a si próprios. A obra é uma junção de dois filmes («The Disappearance of Eleanor Rigby: Him» e «The Disappearance of Eleanor Rigby: Her»), que contam os dois pontos de vista do casal. As duas obras estrearam no Festival de Toronto e o realizador montou depois um novo filme que unisse ambas as histórias, resultando na obra que viria a ter estreia no Festival de Cannes. «O Desaparecimento de Eleanor Rigby: Eles» conta uma belíssima e inesquecível história de amor, mas aborda muito mais do que isso. O foco principal é a dor e a sobrevivência à mesma, num filme muito humano e sensível. O argumento é fluido e aliciante, magnetizando o espectador à trama, ajuntando-se uma realiza-

ção profunda, intensa e perspicaz, aproveitando o melhor da pertinente fotografia e do trabalho dos actores. Os protagonistas são, aliás, um dos pontos altos do filme. Jessica Chastain e James McAvoy têm uma química explosiva e absorvente, transmitindo todas as nuances individuais das personagens e do casal. Viola Davis é uma adição especial à obra, recheando-a com momentos de humor leve e descomprometido, aliviando, assim, o drama preponderante da história.

uma doce e angustiante história, que incita à reflexão e à necessidade de o espectador se colocar no lugar das personagens de modo a tentar perceber as suas atitudes e os caminhos que vão escolhendo. Poético e esperançoso, o final prova o quão delicado e emotivo é o filme. Absolutamente a não perder.

«O Desaparecimento de Eleanor Rigby: Eles» é dezembro 2014 metropolis 91


pela rainha de John Boorman Um filme de época encantador e envolvente, «Pela Rainha» é a sequela de «Esperança e Glória» (1987). Mais uma vez, John Boorman recorre à sua própria história de vida para criar um filme. Ora, estamos em 1952 e Bill Rohan (Callum Turner) tem agora 18 anos e é um jovem sonhador e feliz, até que é obrigado a cumprir o treino militar. É lá que conhece Percy Hapgood (Caleb Landry Jones), com quem desde logo cria “uma bela amizade” - ambos citam o filme «Casablanca» (1942), no início de uma sequência de referências cinematográficas que se prolonga ao longo da obra. Como decorre a guerra na Coreia, alguns dos soldados são enviados para a batalha, mas os dois amigos são colocados como instrutores no campo do treino militar. Entre intrigas contra um sargento autoritário e outras peripécias, ambos fazem excursões ao exterior e é aí que Bill conhece uma mulher inatingível, por quem rapidamente se apaixona. 92 metropolis dezembro 2014

«Pela Rainha» emociona e surpreende, contendo vários elementos que magnetizam o espectador à história. O argumento é cativante, com paralelismos aos momentos políticos mais importantes da época, bem como a maneira de pensar e de viver daquela sociedade, ainda muito restrita e com pouca transposição dos limites impostos. As vestimentas das personagens são um belo retrato da época, bem como os restantes cenários. O trabalho de fotografia é cuidadoso e particularmente relevante na obra, sendo um dos

seus principais trunfos, tal como a realização aprazível e compassada de Boorman. Destaque também para a interpretação do protagonista, bem delineada para os pressupostos da personagem. Apesar de «Pela Rainha» não ser particularmente intimista, emocional ou com relevância histórica, sendo mais um filme simples com alguma comédia à mistura, acaba por ser, igualmente, uma obra agradável de se ver, deixando o espectador a desejar pelo terceiro capítulo da história de Rohan.


A premissa até era interessante, mas os disparos passam apenas de raspão… «Dos Disparos» conta a história de Mariano (Rafael Federman), um jovem de 17 anos que encontra um revólver em casa e dispara, por impulso, dois tiros a si próprio. Acaba por sobreviver e toda a sua família tenta lidar com o que aconteceu. A obra é uma tentativa de comédia, apesar de a maioria dos momentos de humor não funcionarem verdadeiramente. É, contudo, deveras interessante observar o desenrolar da história, que

dos disparos

não se foca apenas no protagonista, mas nas personagens circundantes. Relevante é ainda o modo como momentos quotidianos são filmados, mostrando alguma ligeireza e simplicidade que se coadunam com o próprio carácter de Mariano. O argumento é, todavia, algo entediante e moroso, aliado a uma fotografia que não é mais do que competente. Como resultado final, «Dos Disparos» acaba por tornar-se incoerente e pouco memorável, parecendo que o sentido se perdeu algures durante a obra.

de Martín Rejtman dezembro 2014 metropolis 93


io prém ilme or f melh 2014 leff

amour fou de Jessica Hausner Uma proposta de história irreverente e atípica, que subverte as tradicionais noções de amor e paixão. A narrativa passa-se em Berlim, em pleno período do romantismo, no qual as emoções estão à flor da pele e o extremismo toma, muitas vezes, o lugar cimeiro dos acontecimentos. O poeta Heinrich von Kleist (Christian Friedel) almeja superar a inevitabilidade da morte através do amor, procurando não a mulher da sua vida, mas a mulher da sua morte. Ora, ele sonha que uma mulher o ame tanto que esteja disposta a abandonar a vida e morrer com ele, num pacto suicida consagrado ao amor. A sua primeira tentativa, a prima Marie, não é convencida por esta ideia, o que deixa Heinrich profundamente frustrado. Entretanto, o poeta conhece Henriette (Birte Schnoeink), a mulher de um empresário que inicialmente também refuta a proposta, até que descobre que sofre de uma doença terminal.

Esta é uma comédia romântica livremente baseada no suicídio do poeta Heinrich von Kleist, em 1811, mas é também uma delineação da sociedade da época, que encarava a vida com muita intensidade e dramatismo. A realização de Jessica Hausner é delicada, pausada e harmoniosa, com belos momentos de contemplação artística. Os actores notabilizam-se, sobretudo os dois protagonistas, que interpretam duas personagens inseguras, com muitas dúvidas e senti-

mentos contraditórios. O guarda-roupa é belíssimo e muito bem-cuidado, bem como a ilustre fotografia. «Amour Fou» é uma história de amor às avessas, mas contém também alguma ironia e humor negro, resultando numa obra serena e poética que dificilmente será olvidável para o espectador.

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