Entrevista - João Ferreira (Queer 2015)

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O Festival Internacional de Cinema Queer está de regresso para a sua 19.ª edição e traz muitas novidades. Uma delas é a realização do Festival, pela primeira vez, no Porto. A METROPOLIS conversou com João Ferreira, diretor artístico do Queer Lisboa e Queer Porto, sobre o Cinema Queer e alguns dos destaques desta nova edição, que se realiza de 18 a 26 de Setembro em Lisboa e de 7 a 10 de Outubro na cidade invicta.

tatiana henriques

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Destacaria, em primeiro lugar, a estreia de dois importantes filmes recentes, quer em Lisboa, quer no Porto. Na noite de encerramento do Queer Lisboa 19, vamos apresentar o «Eisenstein in Guanajuato», do Peter Greenaway, no que considero ser um regresso do cineasta britânico à sua melhor forma. Greenaway é hoje um nome fundamental na história do cinema, tendo transposto uma linguagem experimental para o grande público e explorado a sexualidade no ecrã como poucos. «Eisenstein in Guanajuato» pega num episódio, digamos que “não oficial”, da biografia do realizador russo, relatando-nos uma sua relação com o seu guia no México. O outro destaque vai para «Sangue Azul», do Lirio Ferreira, um dos mais interessantes títulos a sair do Brasil nestes últimos anos, rodado num local pouco conhecido do circuito turístico, a ilha de Fernando de Noronha. Além destes filmes, a partir de 2015, em

Eisenstein in Guanajuato © Submarine 2015

19º Queer lisboa / 1º queer porto

Apesar de a programação ainda não ser completamente conhecida, o que pode, desde já, adiantar os principais destaques desta edição?


Imagens: 1. «Eisenstein in Guanajuato»; 2. «Sangue Azul» Lisboa, vamos passar a ter um conjunto de formações abertas ao público em geral, com vertentes mais práticas e teóricas sobre cinema queer. O programador da Berlinale, Marc Siegel, e o realizador brasileiro Gustavo Vinagre vão ser os responsáveis por estes primeiros workshops. O género queer atravessa os diferentes géneros e que abrange diferentes complexidades, ao nível político e social. Poderia falar-nos um pouco mais sobre o Cinema Queer em si? De facto, não podemos definir o cinema queer encerrado num só formato ou linguagem – ele atravessa a ficção e o documentário, a animação ou o experimental. Como género isolado e com características formais e narrativas próprias também falhamos em larga medida essa definição – o cinema queer explora o melodrama, a comédia, o neo-noir, o thriller, o terror e até o western. E se procurarmos essa definição na narrativa, sucumbimos ao cânone tantas vezes usado – pelos próprios festivais queer – de que cinema queer é todo aquele que

representa, no seu enredo principal, personagens gay, lésbicas, transexuais, transgénero ou bissexuais, tendo pelo menos uma delas como protagonista. Acrescentando-se ainda o pressuposto de que estas mesmas personagens devem ser representadas de forma “positiva”, quebrando assim com a longa linhagem de representações distorcidas de que foram vítimas na história do cinema. A riqueza e motivo da constante mutação do cinema queer é, no fundo, este seu carácter transversal e sempre atento à realidade social, geográfica e política do espaço e tempo onde se encontra. Ele deve ser celebrado sobretudo pela sua enorme liberdade narrativa e formal. Como vê a evolução do Cinema Queer nos últimos anos? O cinema queer foi acompanhando os cânones

e diferentes realidades da história do cinema e das próprias comunidades queer. Quando ele se afirma enquanto género, nos anos 1980, foi marcado primeiramente por fortes questões sociais, nomeadamente pela epidemia da sida. A partir dos anos 1990, com o trabalho de realizadores como Gus Vant Sant ou Todd Haynes, ele começa a afirmar-se fortemente com uma estética e narrativa próprias; facto que se deveu muito ao resgate que começa a ser feito na altura do que foi o cinema queer na história do cinema, olhando aos seus realizadores mais marginais como Kenneth Anger e procurando, por exemplo, leituras queer em cinematografias mais clássicas. Nestes últimos anos, a existência do cinema queer enquanto género é cada vez mais reconhecida pela indústria, abrindo um lugar de destaque e relevância

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artística e económica ao cinema queer . O Festival vai ter a sua primeira edição no Porto, após uma edição zero em 2014. Como correu essa experiência e quais são as expectativas para o Queer Porto 1? A ideia de criar um festival queer no Porto já vem de há alguns anos. Poderíamos ter organizado extensões ao longo desses anos, mas sempre achámos que a dinâmica cultural do Porto merecia uma mostra com um maior fôlego e com uma identidade e programação próprias. Em 2014 levámos ao Porto uma parte da retrospetiva do John Waters que apresentámos na Cinemateca Portuguesa. Foi uma forma de dar a conhecer o nosso trabalho e começar a estabelecer parcerias na cidade. O Queer Porto tem uma política de programação distinta da de Lisboa. No Porto queremos fazer uma maior cruzamento disciplinar, ou seja, pôr o cinema em diálogo com outras artes, procurando assim mostrar diversas expressões da cultura queer. Ainda assim, o Queer Porto terá como base um conceito “clássico” de festival de cinema, com uma competição a acontecer no Teatro Municipal Rivoli, espalhando-se o resto da programação por espaços como a mala voadora, o Maus Hábitos ou a Galeria Wrong Weather. Outra das novidades este ano é que a secção Queer Art passa a ser

competitiva. Porquê esta mudança e em que se diferencia esta secção das restantes do Festival? O Queer Art nasceu no Queer Lisboa 12, em 2008. Foi uma secção criada na altura para, por um lado, programar linguagens mais experimentais de jovens realizadores e videastas, assim como retrospetivas de alguns outros mais consagrados. Por outro, a secção acolheu também um conjunto de documentários sobre artistas queer. Apresentámos, no Queer Art, pela primeira vez em Portugal, a obra quase integral de artistas como o canadiano Pascal Robitaille ou o austríaco Albert Sackl. Gradualmente, esta secção foi crescendo em número de sessões e de espectadores. Decidimos então que era chegada a altura de ela ter uma competição própria, pois a quantidade e a qualidade de obras nela programada já o justificava. E é uma forma de dignificar estes trabalhos. Quisemos também que o prémio associado esta secção partisse de uma instituição que tivesse a ver com a sua política de programação, daí a parceria com a Faculdade de Belas-Artes de Lisboa. O Festival chega este ano à 19.ª edição. Que balanço faz ao longo destes anos? O Queer Lisboa tem o mérito de ser hoje o Festival de Cinema mais antigo da cidade de Lisboa, não tendo falhado uma única edição ao longo da sua história, apesar de anos particularmente complicados em termos de financiamento e procura de espaço onde pudesse ser realizado. Acredito que o Festival tem hoje um lugar cativo e de destaque no panorama cultural, não apenas lisboeta, mas a nível nacional. É importante vermos também como conseguimos chegar a um patamar em que o nosso evento é apetecível para muitos patrocinadores privados, para além, claro, da garantia de financiamento público que temos conseguido renovar de ano para ano. Tem sido um percurso interessante, que tem acompanhado e servido como espelho, não apenas da cultura queer nacional e internacional, mas das próprias mudanças sociais e políticas em Portugal. E um Festival deve ser sempre o reflexo dessas duas vertentes, a cultural e a social. Agosto 2015 metropolis 167


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